Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
54/22.9PEBRR-G.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: REJEIÇÃO DE RECURSO
MINISTÉRIO PÚBLICO
FALTA DE INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 04/02/2023
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Sumário: I - Não se revela processualmente admissível que, em função dos elementos constantes dos autos, o Ministério Público realize a sua avaliação, se pronuncie num determinado sentido, e, tendo tal sido pronúncia acolhida por despacho, venha a recorrer do mesmo, com o propósito de alcançar um resultado exatamente oposto à posição que anteriormente assumira.
II - Admitir tal recurso, apresentado em manifesto abuso de direito, na sua vertente de venire contra factum proprium, traduzir-se-ia na aceitação de uma clara vulneração do princípio da lealdade processual, violadora das garantias de defesa do arguido, pelo que o mesmo deverá ser rejeitado por falta de interesse em agir, nos termos do artigo 401º, nº 2 do CPP.
Decisão Texto Integral: Constata-se no exame preliminar que o recurso deve ser rejeitado por falta de interesse em agir do recorrente, o que, nos termos do disposto nos artigos 417º, nº 6, alínea b) e 420.º, n.º 1, alínea b) do CPP, legitima a prolação de decisão sumária.
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I - Da tramitação do incidente.

No âmbito dos autos de inquérito n.º 54/22.9PEBRR, que correm termos nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de … – DIAP e que constituem o processo principal, após o 1º interrogatório judicial do arguido AA realizado no dia 19.10.2022, previamente à decisão proferida sobre as medidas de coação, decidiu o JIC, declarar:

- A invalidade das buscas realizadas na residência sita na Rua …, n.º …, …, … – por violação do disposto no artigo 176º do CPP – e nos veículos automóveis com as matrículas … e … – por violação do disposto no artigo 174º, n.º 3 do CPP;

- A invalidade das apreensões efetuadas em tais buscas;

- E, consequentemente, a nulidade da prova recolhida.

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Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso da mesma para este Tribunal da Relação, tendo extraído da respetiva motivação, as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso é interposto contra o despacho proferido no dia 19 de Outubro de 2022, após primeiro interrogatório judicial de arguido detido, e sob a epígrafe “1. Da nulidade/irregularidade das buscas" (Ref.ª Citius …), e tem como fundamento a errada qualificação jurídica das diligências processuais efectuadas, tendo violado, assim, o disposto nos artigos 174.º, n.º 3, e 176.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.

2. O Ministério Público crê que, salvo melhor opinião, o Douto Tribunal a quo não efectuou a correcta apreciação jurídica das irregularidades que vieram invocadas pela Defesa, tendo tomado posição nos autos, sem que dispusesse dos cabais elementos que lhe permitiriam tomar uma decisão munida da informação necessária.

3. Contrariamente ao que consta na decisão proferida após o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, os mandados de busca domiciliária e a cópia do despacho a eles anexo foi entregue à pessoa que se encontrava na disponibilidade da residência sita na "Rua …, nº…, …, …".

4. Veja-se, nesse sentido, o Aditamento n.º 9 junto aos autos sob a Ref.ª …, de 07 de Novembro de 2022, com o seguinte teor:

"Em aditamento aos presentes autos, e na qualidade de Chefe responsável pela busca domiciliária realizada no passado dia 17-10-2022 à residência do arguido AA, sita na Rua …, nº …, em …, para os devidos efeitos, consigno que antes do início da mesma foi dado cumprimento a todas as formalidades previstas no art.º 176 do CPP.

À nossa chegada, a Srª. BB (ex-cunhada do arguido) apresentou-se como a pessoa que detinha a disponibilidade daquele lugar, sendo-lhe de imediato entregue por mim cópia do Mandado de Busca Domiciliária e respetivo Despacho, bem como explicado os motivos da nossa presença, tendo a mesma ficado ciente do seu conteúdo e acompanhado a referida diligência, assinando no final o Auto de Busca e Apreensão manuscrito por nós elaborado."

5. Pese embora tal informação tenha sido junta aos autos em momento posterior à realização das buscas, de tal aditamento retira-se, de forma clarividente, que as formalidades previstas no artigo 176.º do Código de Processo Penal foram cumpridas, tendo-se entregue à pessoa com disponibilidade do lugar em que a diligência se realizou, a Senhora BB, cópia do despacho que determinou a busca, bem como dos mandados.

6. Tal informação mostra-se conforme com o teor do auto de busca e apreensão da morada sita em "Rua …, n.º …, …, …", que consta de fls. 162 a 164 dos autos, e de acordo com o qual, a Senhora BB acompanhou as buscas desde o seu início, até final, tendo assinado o respectivo auto após o encerramento da diligência.

7. Apesar da entrega de cópia do despacho que determinou as buscas à pessoa que tinha a disponibilidade do lugar não tenha ficado consignada na certidão lavrada, tal não significa que não tenha ocorrido, como efectivamente ocorreu.

8. O Douto Tribunal, antes de tomar uma posição definitiva nos autos sobre a (i)rregularidade das referidas buscas, num momento processual tão incipiente, deveria ter cuidado de apurar junto dos Agentes da P.S.P. que procederam às buscas, e que estavam presentes no interrogatório judicial do Arguido, se as formalidades previstas no artigo 176.º do Código de Processo Penal foram cumpridas, como bem sugeriu a Defesa do Arguido e a Magistrada do Ministério Público.

9. Só assim tomaria uma decisão munida de toda a informação sobre as formalidades atendidas no decurso das buscas.

10. A decisão sob recurso é tomada num momento processual bastante incipiente dos autos, que se mostra longe, ainda, do despacho de acusação que, de futuro, fixará o objecto do processo.

11. Na óptica do Ministério Público, cremos afigurar-se redutor coactar, desde já, o processo do produto das referidas buscas, quando a dúvida levantada quanto à entrega das cópias do despacho e dos mandados de buscas domiciliárias à pessoa que tinha a disponibilidade do local, era de fácil esclarecimento, mediante o prévio contacto com os Agentes da PSP presentes.

12. Como tal, não ocorreu a violação do disposto no artigo 176.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não se verificando, dessa forma, a irregularidade decidida.

13. O mandado de busca e apreensão dos veículos com as matrículas …, … e … foi devidamente certificado no dia 18 de Outubro de 2022, no momento da realização das buscas, tendo-se lavrado a seguinte certidão manuscrita:

"Certidão

Certifico e dou fé que hoje, pelas 00H05, dei cumprimento ao presente mandado de Busca e Apreensão, para os veículos nele constantes, …, matrículas … e …, matrícula …, na presença do visado AA.

Foi-lhe entregue cópia do mandado e despacho e apreendido os artigos constantes no auto de busca e apreensão, respectivo.

Não foi localizada a viatura …, matrícula ….

A busca teve o seu terminus pelas 00H40.

…, 18 de Outubro de 2022.

O OPC" (cfr. Ref.a …, de 07 de Novembro de 2022)

14. Por manifesto lapso, tal certificação do mandado de busca e apreensão não foi junta ao processo em momento anterior à apresentação do Arguido AA a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o que apenas se constatou em momento posterior.

15. Na verdade, atento o curto prazo de 48 (quarenta e oito) horas, previsto no artigo 141.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e o elevado número de expediente a realizar e preparar, tendo em conta a multiplicidade de locais em que ocorreram as buscas, o O.P.C. olvidou-se de juntar aos autos a certificação do mandado de busca e apreensão dos veículos, lapso pelo qual o signatário desde já se penitência.

16. No entanto, o facto do mesmo não estar junto aos autos à data do interrogatório judicial de arguido detido, não significa que não tenha sido regularmente certificado, aquando da realização das buscas.

17. Cremos que tal dúvida era de fácil dissipação, se ouvidos os Agentes da P.S.P. presente no interrogatório ou praticando-se diligências, de manifesta simplicidade, como fosse solicitar-se à Magistrada do Ministério Público presente na diligência que diligenciasse pela junção de tal certificação aos autos.

18. O Douto Tribunal não devia, sem mais, proferir decisão definitiva sobre a (i)regularidade das buscas e, posteriores, apreensões aos veículos automóveis (com as inerentes consequências processuais), sem antes procurar apurar se a certificação do mandado foi efectuada.

19. Pelo que, não ocorreu qualquer violação ao artigo 174.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, nem, tão pouco, ao artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa.

20. Sempre se dirá, de todo o modo, que as apreensões efectuadas pelo O.P.C., foram tempestivamente validadas, nos termos do disposto no artigo 178.º, nºs 1, 3, 4 e 5, do Código de Processo Penal, porque realizadas em conformidade com os pressupostos legais de que dependem, motivo pelo qual as mesmas teriam também amparo legitimador.

21. Ao decidir nos termos em que decidiu, o Douto Tribunal a qua, violou o disposto nos artigos 174.º, n.º 3, 176.º, n.º 1, e 178.º, nºs 1, 3, 4 e 5, e 249.º, n.º 2, alínea c), todos do Código de Processo Penal.

Termina pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que considere regulares as buscas realizadas na Rua …, nº…., … e as buscas e as apreensões nos veículos automóveis com as matrículas … e ….

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Por despacho proferido em 18.11.2022, o tribunal recorrido decidiu rejeitar parcialmente o recurso do Ministério Público, por falta de interesse em agir, concretamente na parte que se reporta às buscas nos veículos. Para sustentar o despacho de rejeição, invocou o tribunal que, exercido o contraditório, o recorrente se havia pronunciado manifestando concordância com a existência de irregularidades nas buscas realizadas nos veículos, pelo que, e considerando a jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 2/2011, lhe faltaria interesse em agir na parte do recurso interposto com base na alegada regularidade das mencionadas buscas.

Quanto ao mais, o recurso foi regularmente admitido e veio a ser conhecido no apenso E.

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Relativamente ao despacho de não admissão parcial do recurso foi apresentada reclamação, que veio a ser conhecida no apenso C e julgada procedente por decisão proferida em 06.01.2023 pelo Vice-Presidente desta Relação.

Em cumprimento de tal decisão veio o recurso do Ministério Público, na parte relativa às invalidades das buscas nos veículos, a ser admitido, por despacho proferido em 03.02.2023, constituindo o mesmo o objeto da nossa análise.

O arguido respondeu ao recurso, pugnando pela sua rejeição por falta de interesse em agir do recorrente e, subsidiariamente, pela sua total improcedência, com a manutenção integral da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“I – Da falta de interesse em agir do MP para recorrer

1. Em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, veio o Tribunal a quo julgar irregulares as buscas e as apreensões dos e nos veículos automóveis, determinando a invalidade e nulidade da prova recolhida com esse ato processual, em concordância com a posição assumida pelo arguido e pelo MP.

2. Não obstante o decidido, veio o MP recorrer da decisão de julgou irregulares as buscas e apreensões dos e nos veículos automóveis em causa, recurso que apenas foi admitido após deferimento de reclamação apresentada pelo MP.

3. Nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 405.º do CPP, a decisão do presidente do Tribunal superior não vincula o Tribunal de recurso.

4. Conforme bem decidiu o Tribunal a quo, por despacho de 18 de novembro de 2022:

Existe “falta de interesse em agir” quando recorrer quem conseguiu pela decisão recorrida o que solicitou ou o que está de acordo com a sua conduta no processo (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 27-06-2017), proc. n.º 61/09.7T3STC.E1).

(…)

No Acórdão STJ n.º 2/2011, fixou-se a seguinte jurisprudência:

«Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 53.º, e 401.º, do Código de Processo Penal o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo».

Com efeito, tendo o Ministério Público concordado com a existência de irregularidades no que respeita às buscas não domiciliárias, mais concretamente, aos veículos automóveis, concluímos que agora o Ministério Público não tem interesse em agir na parte em que pede a revogação da decisão que reconhece a irregularidade das buscas atinentes aos veículos automóveis.

5. De igual forma, entende o arguido que o MP carece de legitimidade para recorrer, por falta de interesse em agir, nos termos elencados pelo Tribunal a quo, fundamentos com os quais concorda e subscreve na íntegra.

II – Da manifesta improcedência do recurso

6.Vem o MP, em sede de recurso, dizer que o mandado de busca e apreensão dos veículos foi devidamente certificado no momento da realização das buscas.

7.Mais refere que, por lapso, tal certificação não foi junta ao processo em momento anterior à apresentação do arguido a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, mas tão-só em momento posterior ao primeiro interrogatório, designadamente, em 07 de novembro de 2022.

8.Acompanhando a decisão, transitada em julgado, do Tribunal da Relação de Évora , a propósito do recurso interposto pelo mesmo Magistrado do MP sobre a decisão de irregularidade da busca domiciliária em …, a certificação a que agora o MP faz referência, junta em 07 de novembro de 2022, não era, nem podia ser do conhecimento do Senhor Juiz de Instrução Criminal que procedeu ao interrogatório judicial do arguido, no dia 19 de outubro de 2022 e, nessa ocasião, proferiu a decisão agora em recurso.

9.Conforme defende a referida decisão, Estamos a avaliar a decisão judicial proferida em 19 de outubro de 2022. E porque assim é, não podemos revogá-la ou confirmá-la com base num documento que não era conhecido à data da sua prolação.

10.Neste sentido, deve o presente recurso ser rejeitado, por manifesta improcedência, nos termos do disposto nos artigos 417.º, n.º 6, al. b) e 420.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP.

III – Das buscas realizadas aos veículos automóveis

11.Vem o MP, em sede de recurso, dizer que não ocorreu qualquer violação ao artigo 174.º, n.º 3, do CPP, nem ao artigo 32.º, n.º 8, da CRP, baseando-se, para tanto, na certificação do mandado junta aos autos apenas em 07 de novembro de 2022.

12.Salvo o devido respeito, a atitude do MP e do OPC é absolutamente desleal para com a defesa, levando a mesma a acreditar que a certificação dos mandados de busca e apreensão dos veículos não retrata a realidade dos factos.

13.Veja-se que, os mandados de busca e apreensão dos veículos não existiam nos autos, ao momento do primeiro interrogatório, para agora aparecerem certificados à mão, quando todos os demais estão certificados a computador.

14.É nosso entendimento que a certificação do mandado, junta aos autos em 7 de novembro de 2022, é completamente extemporânea e não pode ser admitida a pôr em causa a decisão recorrida.

15.A certificação do mandado de busca tinha, necessariamente, de estar junta aos autos, ao momento do primeiro interrogatório judicial do arguido, dado que tem implicações com a preparação e estratégia da defesa.

16.Ao admitir-se a junção posterior da referida certificação, nos termos promovidos pelo MP, estar-se-á a abrir a porta ao cometimento de ilegalidades.

17.Para além disso, é descabido o MP vir agora argumentar que deveriam ter sido ouvidos os OPC’ s presentes, tal como requerido pela defesa, quando na realidade, nem sequer recorreu do despacho que indeferiu a referida inquirição.

18.Estão em causa os princípios de lealdade, boa-fé processual, confiança e colaboração que devem nortear a conduta do MP, movendo-se por critérios de legalidade e objetividade.

19.A conduta processual assumida pelo MP, com os argumentos que pautam o presente recurso, é desleal e reveladora de má-fé processual.

20.A posição assumida pelo MP viola objetivamente o dever de lealdade ou de fair play no processo penal que incide sobre os órgãos de administração da justiça.

21.Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que, em momento algum, os referidos mandados de busca aos veículos automóveis foram entregues ao arguido, único visado na busca, que à hora do início da diligência já havia sido intercetado pelo OPC na garagem em …, violando-se, desse modo, o disposto no artigo 176.º do CPP.”

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Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exm.ª Procuradora Geral Adjunta, tendo tido vista do processo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416º, nº 1 do CPP, apôs o seu visto.

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II - Do fundamento da rejeição do recurso.

Considerando que o presente recurso foi admitido em cumprimento da decisão do Vice-Presidente desta Relação, que julgou procedente a reclamação apresentada pelo recorrente contra o despacho proferido pelo tribunal recorrido de não admissão do recurso, importa convocar o artigo 405º, nº 4 do CPP, que dispõe da seguinte forma:

“Artigo 405.º

Reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso

(…) 4 - A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso.”

De tal norma resulta expressamente que a decisão do tribunal superior é definitiva apenas quando confirmar o despacho de indeferimento, assumindo, de outra sorte, natureza provisória quando ordenar o recebimento do recurso ou alterar o efeito de subida. Nestes casos, nos quais se inclui o dos presentes autos, tal como referiu o Vice-Presidente da Relação do Porto, na decisão proferida em 21.01.2014 (1) “o tribunal de recurso, na apreciação subsequente, continua depositário do poder de não admitir o recurso ou alterar o seu efeito.”

Deste modo, analisemos o pressuposto da admissibilidade do recurso que motivou a sua rejeição inicial pelo tribunal de 1ª instância.

Conforme resulta do iter processual exposto no relatório da presente decisão, por despacho proferido em 18.11.2022, o tribunal recorrido decidiu rejeitar parcialmente o recurso do Ministério Público, por falta de interesse em agir, concretamente na parte que se reporta às buscas nos veículos. Para sustentar o despacho de rejeição, invocou o tribunal que, exercido o contraditório, o recorrente se havia pronunciado manifestando concordância com a existência de irregularidades nas buscas realizadas nos veículos, pelo que, e considerando a jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 2/2011, lhe faltaria interesse em agir na parte do recurso interposto com base na alegada regularidade das mencionadas buscas.

E pensamos que decidiu com acerto, não colhendo, a nosso ver os argumentos apresentados pelo recorrente para sustentar a reclamação contra o despacho de rejeição.

Vejamos.

A respeito da legitimidade e do interesse em agir, dispõe o artigo 401º do CPP que:

“Artigo 401.º

Legitimidade e interesse em agir

1 - Têm legitimidade para recorrer:

a) O Ministério Público, de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido;

b) O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas;

c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas;

d) Aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afetado pela decisão.

2 - Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.”

A questão que se nos coloca e que condiciona a apreciação do interesse do Ministério Público na apresentação do presente recurso, é simples e de fácil exposição: após a realização do primeiro interrogatório judicial do arguido, e previamente à prolação da decisão sobre as medidas de coação, veio aquele arguir, entre o mais, a invalidade das buscas realizadas nos veículos automóveis com as matrículas … e … No exercício do seu direito ao contraditório, o Ministério Público aceitou a invalidade de tais buscas, tendo-se pronunciado, concretamente, nos seguintes termos“(…) relativamente aos mandados de busca aos veículos, existem irregularidades quanto aos mesmos (…)” (2). No mesmo ato, o tribunal recorrido proferiu decisão declarando a invalidade das identificadas buscas, por violação do disposto no artigo 174º, n.º 3 do CPP e, consequentemente, a invalidade das apreensões nas mesmas efetuadas e a nulidade da prova aí recolhida. De tal decisão veio o Ministério Público interpor o presente recurso, pugnado pela validade das mencionadas buscas.

Do exposto decorre, incontornavelmente, que o tribunal decidiu quanto à identificada questão, em sentido absolutamente concordante com a posição anteriormente assumida nos autos pelo recorrente, pelo que não temos dúvidas em subscrever o entendimento expresso no despacho de rejeição do recurso proferido na primeira instância, que assentou precisamente na declaração de falta de interesse em agir do Ministério Publico. Nem outra decisão se revela, a nosso ver, admissível, sob pena de se desrespeitar a jurisprudência obrigatória fixada no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 2/2011 (3), que estabeleceu:

“Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 53.º e 401.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.”

No mesmo sentido se pronunciou expressamente Paulo Pinto de Albuquerque, no comentário do Código de Processo Penal (4), referindo que“(…) O princípio da lealdade processual impõe -se aos sujeitos e participantes processuais. Por força deste princípio, não pode recorrer quem tiver promovido a decisão proferida e, designadamente, aquele que impugna decisão concordante com a sua anterior posição assumida no processo (…). A ilegitimidade do Ministério Público para recorrer de decisões concordantes com posições anteriores assumidas é imposta pelo princípio de lealdade processual, ínsito ao Estado de direito e à legalidade democrática que compete ao Ministério Público defender. (…) Acresce que a interposição de recurso de decisão que acolheu uma posição tomada pelo MP favorável ao arguido constitui um inadmissível venire contra factum proprium, que viola o princípio da lealdade processual e as garantias de defesa do arguido.(…)”

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Nenhum mérito reconhecemos, ademais, aos argumentos apresentados pelo recorrente para sustentar a sua reclamação contra o despacho de rejeição do recurso proferido na primeira instância. Descortinamos na reclamação três ordens de argumentos:

- O primeiro reporta-se à circunstância de ter sido indeferido o requerimento de inquirição dos agentes da PSP que estiveram presentes nas diligências das buscas, o que segundo o reclamante demostra que não terá existido uma “concordância incondicional com as irregularidades”, uma vez que a diligência indeferida visava sanar as dúvidas sobre a regularidade dos procedimentos adotados na realização das buscas.

- O segundo tem que ver com a inexistência de concordância expressa anterior do Ministério Público relativamente à invalidade dos meios de prova obtidos durante as buscas declaradas inválidas.

- O terceiro diz respeito à circunstância de a magistrada do Ministério Público que se pronunciou no sentido de admitir a irregularidade das buscas nos veículos ter, alegadamente, agido em erro em virtude de, aquando da prolação do despacho agora posto em causa, não constar dos autos a certificação dos mandados de busca e apreensão dos veículos, documento que viria mais tarde a ser junto ao processo.

Na verdade, nenhuma razão assiste ao recorrente quanto a nenhum dos argumentos apresentados.

Assim, quanto ao primeiro – reportada à alegada falta de esclarecimento aquando da tomada de posição anterior do recorrente – dir-se-á que se não concordava com o despacho de indeferimento de diligências, deveria o Ministério Público ter recorrido do mesmo. Não o tendo feito, tal despacho transitou em julgado (5), não podendo, obviamente, servir para justificar uma tomada de posição alegadamente duvidosa quanto à irregularidade das buscas. Ou seja, ou entendia que a diligência solicitada se revelava imprescindível para viabilizar uma tomada de posição totalmente esclarecida sobre a regularidade das buscas – caso em que deveria ter recorrido do despacho que a indeferiu – ou, tendo-se conformado com o aludido despacho e tendo decidido pronunciar-se no sentido de que as diligências de buscas nos veículos enfermavam de irregularidades, não poderá mais tarde vir invocar que a posição que tomou “não evidencia uma concordância integral, sem reservas, esclarecida e ostensiva” com a decisão recorrida. Tal linha argumentativa denota uma manifesta incoerência no processo decisório do Ministério Público, que, ademais, se não coaduna com o dever de lealdade e de boa fé processual ao qual todos os sujeitos processuais se encontram vinculados.

Relativamente ao segundo argumento apresentado – relativo à invocada inexistência de concordância expressa anterior do Ministério Público relativamente à invalidade dos meios de prova obtidos durante as buscas declaradas inválidas – o mesmo afigura-se-nos absolutamente destituído de razoabilidade, pois que não se vê como poderia o recorrente pugnar pela validade de meios de prova obtidos de forma irregular, conforme expressamente aceitou, levando em conta o regime dos métodos proibidos de prova e das nulidades das provas previsto no artigo 126º, mormente no seu nº 3 do CPP. Consabidamente, e conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, “as proibições de prova dão lugar a provas nulas (artigo 32º, nº 8 CRP)”. (6)

Finalmente no que diz respeito ao terceiro argumento invocado para sustentar a admissibilidade do recurso – atinente à circunstância de a magistrada do Ministério Público que se pronunciou no sentido de admitir a irregularidade das buscas nos veículos ter, alegadamente, agido em erro – não poderá olvidar-se que corria por sua conta o ónus de ter instruído os autos com o documento que teria permitido atestar a regularidade da realização das buscas nos veículos automóveis, concretamente, a certificação dos respetivos mandados; não o tendo feito atempadamente, não poderá, obviamente, em momento posterior, vir invocar a existência de tal documento para pôr em causa um despacho que assentou na sua inexistência no processo à data e que foi proferido.

De todo o modo, e em suma, sempre se dirá que se não revela processualmente admissível que, em função dos elementos constantes dos autos, o Ministério Público realize a sua avaliação, se pronuncie num determinado sentido, e, sendo tal pronúncia acolhida por despacho, venha a recorrer do mesmo, com o propósito de alcançar um resultado exatamente oposto à posição que anteriormente assumira. Admitir tal recurso, apresentado em manifesto abuso de direito, na sua vertente de venire contra factum proprium, traduzir-se-ia na aceitação de uma clara vulneração do princípio da lealdade processual, violadora das garantias de defesa do arguido.

Nesta conformidade e pelas razões expostas, mais não haverá do que proceder à rejeição do recurso nos termos dos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), 414.º, n.º 2 e 401º, nº 2, todos do Código de Processo Penal.

Dispõe o artigo 417.º, nº 6.º, alínea b) do CPP, que, após exame preliminar, o relator profere decisão sumária sempre que “O recurso dever ser rejeitado”. Nesta conformidade, considerando o iter processual acima relatado, proceder-se-á à rejeição do recurso com a consequente extinção deste procedimento.

III - Decisão

Pelo exposto, decide-se rejeitar o presente recurso atendendo à falta de interesse em agir do recorrente e, consequentemente, não conhecer do mesmo.

Notifique e, oportunamente, proceda à devolução dos autos à primeira instância.

Sem custas.

Évora, 02 de abril de 2023

Maria Clara Figueiredo

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1 Decisão do Desembargador António Gama, proferida na qualidade de Vice-Presidente da Relação do Porto, em 21.01.2014 disponível em www.dgsi.pt.

2 Conforme resulta de fls. 9 do auto de primeiro interrogatório datado de 19.10.2022, exarado nos autos principais a fls. 213 a 223.

3 Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 2/2011, publicado no DR, I Série A de 27-01-2011.

4 Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, Lisboa, 2018, páginas 1051 a 1053.

5 Existindo um despacho de indeferimento da mencionada diligência probatória, despacho que, por não ter sido posto em causa no prazo legal, transitou em julgado e assumiu caráter definitivo, não pode o mesmo ser posto em causa nesta instância recursiva. No sentido em que agora decidimos, se pronunciou, entre outros, o acórdão da Relação de Évora de 07.11.2017, relatado pelo Desembargador António João Latas, no proc. nº 275/12.2GCMMN.E1, disponível em www.dgsi.pt, nos seguintes termos: “I - O meio processual próprio de reagir contra o indeferimento de diligência probatória requerida em audiência (prestação de esclarecimento em audiência por perito), nos termos do art. 340º nº4 a) do CPP, é o recurso do despacho judicial respetivo e não a arguição de nulidade, pois de acordo com postulado antigo que, no essencial, se mantem válido, «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.(…)”.

6 Ob. cit, página 335.