Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
10601/15.7T8STB-B.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
HERANÇA
QUINHÃO
Data do Acordão: 02/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – O que o incidente de habilitação de herdeiros apura é a legitimidade de quem pode prosseguir na acção principal em substituição da parte falecida, sendo que quem tem tal legitimidade é quem se tenha assumido como herdeiro.
II – Porém, em sede de tal incidente, já não se apura se, apesar de ser parte legítima, possui todos os demais requisitos para, em concreto, efectivamente, responder pela dívida do falecido.
III – Nos termos do nº 2 do art.º 940.º do Código Civil, não se pode confundir repúdio da herança com doação do quinhão hereditário, pelo que quem doa o seu quinhão hereditário é porque o aceitou.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 10601/15.7T8STB-B.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
No âmbito da execução instaurada pelo exequente “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL” contra o executado (…), tendo este vindo a falecer, o exequente interpôs o presente incidente de habilitação de herdeiros contra (…), (…), (…), (…) e “(…) – Investimentos e Participações, S.A.”.
Citados os requeridos, veio (…) contestar o incidente de habilitação de herdeiros com o fundamento, em síntese, de que, por escritura de 27-03-2015, foi habilitado como herdeiro de (…), seu pai, falecido em 22-03-2015, porém, através de escritura de 06-05-2015, doou à sua irmã (…) o quinhão hereditário que lhe pertencia na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai, o que foi aceite pela mesma, pelo que, com tal cessão do quinhão hereditário o requerido já não veio a participar na realização da partilha, que já ocorreu e onde foi reconhecida a cessão do quinhão hereditário do requerido a favor da sua irmã (…).
Concluiu, assim, que, em face de ter cedido o seu quinhão hereditário à sua irmã, transmitiu-lhe a sua posição jurídica na herança, operando-se uma alteração de legitimidade em termos substantivos, com efeitos processuais, pelo que o requerido nada recebeu da herança de seu pai, não podendo, por isso, ser responsável pelas dívidas de seu pai, visto que, nos termos do art. 2071.º do Código Civil, apenas pode ser responsável no valor dos bens herdados.
O exequente/requerente respondeu, tendo vindo requerer a substituição de (…) por (…), tendo pugnado pela procedência do incidente contra todos os requeridos.
(…), devidamente citada, não deduziu oposição.
O tribunal recorrido proferiu sentença, em 28-05-2019, com o seguinte teor:
Pelo exposto, julgo o presente incidente parcialmente procedente, e, em consequência:
a) Declaro (…), (…), (…) e (…) habilitados a prosseguir os termos da causa principal em substituição de (…);
b) declaro improcedente o pedido de habilitação relativamente a (…).
Inconformado com a sentença proferida, veio o requerido (…) recorrer, apresentando as seguintes conclusões:
I. O presente recurso vem interposto da Douta Sentença de fls., na parte que julga o incidente de habilitação de herdeiros procedente e, em consequência, declara o ora Apelante, entre outros, habilitado a prosseguir os termos da causa principal, em substituição do falecido (…), condenando-o ainda em custas na proporção de 1/3.
II. A factualidade considerada provada na sentença sob recurso impunha e impõe uma decisão diversa da recorrida e faz desta uma decisão injusta.
III. Não obstante a cessão do quinhão hereditário e invocando, entre outros, o disposto no artº 2128º do C. Civil, entendeu a Mm juiz que proferiu a decisão sob recurso, que (…) deve ser habilitado nos autos, por continuar a responder perante terceiros solidariamente com o adquirente relativamente aos encargos da herança, ainda que pelas forças da herança e com direito de regresso total sobre o adquirente, entendimento com o qual não se pode concordar.
IV. A Mm juiz do tribunal a quo descurou o facto de ter sido feita partilha entre os sucessores do falecido, sem intervenção do filho (…), naturalmente excluído, com reconhecimento por todos da cessão do quinhão hereditário.
V. Não se compreende como tendo cedido o seu quinhão a outra herdeira, a título gratuito e tendo os sucessores do falecido realizado a partilha dos bens entre eles, pode o Apelante responder pelas forças da herança, se nada recebeu.
VI. Os documentos nº s 2, 3 e 4 juntos com a Contestação do Incidente (escrituras de cessão gratuita de quinhão hereditário, rectificação e partilha) provam que o Apelante nada recebeu.
VII. Atenta a partilha já efectuada entre os herdeiros, a substituição processual [cf. 262º a) e artº 351º do CPC)] nos autos deverá acompanhar a substituição já operada em termos substantivos.
VIII. Uma vez que na execução movida contra herdeiro só podem penhorar-se bens que ele tenha recebido do autor da herança, a prossecução dos autos contra o Apelante é inútil [cfr. artigos 744.º e 784.º, nº 1, alínea c), do CPC] e eventualmente geradora de responsabilidade civil (cfr. artigo 858.º do CPC).
IX. Ao julgar procedente o incidente de habilitação, considerando habilitado a prosseguir os termos da causa principal, em substituição do falecido (…), o filho (…), para além do cônjuge e dos demais filhos, o tribunal a quo violou por erro de interpretação, o disposto no art.º 2128.º do C. Civil. Mostra-se ainda violado, entre outros, o disposto nos artigos 2069.º e o n.º 1 do 2098.º a contrario, ambos do Código Civil.
(…)
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, devendo, em consequência, ser revogada a douta sentença e substituída por outra que julgue o incidente de Habilitação de Herdeiros improcedente por não provado,
no que respeita ao Requerido, ora Apelante.
Como que se fará JUSTIÇA!
O requerente “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL” não apresentou contra-alegações.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II – Objecto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim, no caso em apreço, a questão que importa decidir é:
1) Se, em face da doação do seu quinhão hereditário, o Apelante pode ser habilitado no presente incidente.
III – Matéria de Facto
O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1. (…) faleceu em 22.03.2015, no estado de casado com (…).
2. (…), (…) e (…) são filhos de (…).
3. (…), através de instrumento de habilitação de herdeiros, elaborado no Cartório Notarial de (…), em 27.03.2015, declarou que (…) faleceu em 22.03.2015, no estado de casado com (…), que não deixou testamento e que são seus herdeiros (…), (…), (…) e (…).
4. (…), com o consentimento de (…), declarou, em 06.05.2015, através de escritura pública, doar, de forma gratuita, a (…), que declarou aceitar, o quinhão hereditário que lhe pertence na herança ilíquida e indivisa de (…).
5. (…), (…) e (…), em 24.02.2017, através de escritura pública, procederam à partilha da herança de (…).
6. Por sentença proferida no apenso A, (…) foi declarada parte ilegítima na execução.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se, em face da doação do seu quinhão hereditário, o Apelante pode ser habilitado no presente incidente.
1 – Consequências jurídicas da doação do quinhão hereditário no incidente de habilitação de herdeiros
Segundo o Apelante, a sentença recorrida errou ao considerar que o Apelante, não obstante a cessão do quinhão hereditário, deve ser habilitado nos autos, “por continuar a responder perante terceiros solidariamente com o adquirente relativamente aos encargos da herança, ainda que pelas forças da herança e com direito de regresso total sobre o adquirente”, entendimento com o qual não se pode concordar, uma vez que já foi efectuada a partilha entre os sucessores do falecido, nada tendo o Apelante herdado, pelo que não é possível ao Apelante responder pelas forças da herança, nos termos do art. 744.º do Código de Processo Civil, se nada recebeu.
Cumpre decidir.
Na realidade, verifica-se uma confusão na fundamentação da sentença recorrida entre o que seja o incidente de habilitação de herdeiros e a situação concreta sobre quem efectivamente preenche, em acção executiva, todos os requisitos para responder pela dívida exequenda.
O que o incidente de habilitação de herdeiros apura é a legitimidade de quem pode prosseguir na acção principal em substituição da parte falecida, sendo que quem tem tal legitimidade é quem se tenha assumido como herdeiro; porém, em sede de tal incidente, já não se apura se, apesar de ser parte legítima, possui todos os demais requisitos para, em concreto, efectivamente, responder pela dívida do falecido.
Desse modo, para efeitos do incidente de habilitação de herdeiros apenas releva quem são os herdeiros do falecido e se houve aceitação, por parte destes, da herança.
O Apelante, por ser filho do falecido, é seu herdeiro, nos termos do art. 2133.º, n.º 1, al. a), do Código Civil.
Por outro lado, o facto de o Apelante ter doado o seu quinhão hereditário, não se pode confundir com repúdio da herança, visto que apenas se pode doar aquilo que se aceitou.
Conforme dispõe o art. 940.º, n.º 1, do Código Civil, doação “é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”, sendo que, no n.º 2 deste artigo, consta expressamente que não há doação no repúdio de herança ou legado.
Ora, a ser assim, o Apelante, ao celebrar a escritura de doação do quinhão hereditário que lhe pertencia na herança ilíquida e indivisa do seu falecido pai, aceitou tal quinhão hereditário e, desse modo, habilitou-se como herdeiro de (…), seu pai.
Cita-se a este propósito, o acórdão do TRE, proferido em 06-10-2016, no âmbito do processo n.º 127/10.0TBRMZ-B.E1, consultável em www.dgsi.pt:
II – A sentença proferida em sede do incidente de habilitação de herdeiros de parte falecida, tendo em vista assegurar a legitimidade dessa mesma parte na ação principal, não determina o âmbito da responsabilidade dos herdeiros habilitados relativamente ao objeto da referida ação.

Cita-se de igual modo, o acórdão do TRP, proferido em 24-01-2019, no âmbito do processo n.º 818/12.1TVPRT-A.P1, consultável em www.dgsi.pt:
III - Já o incidente de habilitação tem por objecto determinar quem tem a qualidade que o legitime para substituir a parte falecida.
IV - Assim, por este processo incidental apenas se trata de averiguar se o habilitado tem as condições legalmente exigidas para a substituição, não se apreciando no mesmo a sua legitimidade senão como substituto da parte falecida.

Assim, e independentemente de o Apelante poder ou não vir a responder pela dívida do seu falecido pai, cuja questão não pode ser decidida nesta sede, efectivamente o mesmo tem de ser habilitado como herdeiro, devendo os autos principais prosseguir também contra si em substituição do falecido (…).
Nesta conformidade, ainda que por fundamentação diversa, improcede a pretensão do Apelante.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente improcedente o recurso, confirmando, ainda que com outra fundamentação, a decisão recorrida.
Custas pelo Apelante.
Notifique.
Évora, 13 de Fevereiro de 2020
Emília Ramos Costa (relatora)
Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura

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[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Conceição Ferreira; 2.º Adjunto: Rui Machado e Moura.