Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1518/14.3T8STR.E1
Relator: CONCEIÇÃO FERREIRA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PESSOA SINGULAR
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O regime do PER aplica-se a qualquer devedor seja ele, pessoa singular, pessoa colectiva, património autónomo, titular de empresa ou não, dado o silêncio da lei quanto a qualquer dos requisitos - cfr. artºs 1º, n.º 2, 2º, n.º 1 e artº 17º- A, n.º 1, do CIRE.
Sumário da Relatora
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1518/14.3T8STR.E1 (1ª secção cível)


ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

(…) e (…), trabalhadores por conta de outrem, instauraram em 10/12/2014, processo especial com vista à sua revitalização, ao abrigo do disposto nos artº 17º - A e segs. do CIRE.
Por despacho de 15/04/2015, com fundamento que o processo especial de revitalização (PER) não se destina a pessoas singulares foi indeferido liminarmente o PER dos requerentes.
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Inconformados com esta decisão, vieram os requerentes interpor recurso e apresentar as respectivas alegações, terminando por formular as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“1. O douto despacho recorrido não admitiu o PER apresentado pela recorrente, porquanto considerou que este instituto não se aplica a pessoas singulares.
2. Conclusão que retira do facto de entender que, quanto às pessoas singulares, já estas beneficiavam da possibilidade de, suspender a declaração de insolvência, através da apresentação de um plano de pagamentos.
3. Ora, tal possibilidade em nada distingue as pessoas singulares das pessoas colectivas que beneficiam da mesma possibilidade de apresentar um plano de insolvência e dessa forma encerrar o processo de insolvência.
4. Com o devido respeito andou mal o despacho recorrido porquanto nenhuma distinção é feita na Lei que permita concluir que o PER não se aplica às pessoas singulares, pelo contrário.
5. Acresce que, até ao aparecimento do PER, qualquer pessoa singular que se encontrasse em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente acabava, na maior ia dos casos, por ser declarada insolvente. Sofrendo todos os efeitos negativos associados à declaração de insolvência. E isto para não falar do estigma social que, ainda hoje, é associado à declaração de insolvência.
6. A interposição de um plano PER, permite assim às Pessoas Singulares fugirem a esse estigma.
7. Tem sido sufragado pelos credores, tal entendimento, dado que, como se pode constatar, são inúmeros os casos em que os credores votam favoravelmente os muitos planos apresentados no âmbito do PER de pessoas singulares, não titulares de empresas.
8. O entendimento acolhido no Douto despacho recorrido, cria uma desigualdade inexplicável e legalmente injustificável, entre as pessoas singulares não titulares de empresas e as pessoas singulares titulares de empresas.
9. A acolher o entendimento do despacho recorrido, as pessoas singulares, ao contrário das colectivas e das pessoas singulares titulares de empresas, mesmo estando em situação económica difícil, devem aguardar até estarem insolventes, para poderem recorrer a um eventual plano de pagamentos, visto que a sua recuperação através de um plano de pagamentos em sede de PER, lhes estar ia vedada.
10. Essa desigualdade de tratamento na aplicação da Lei é, além de ilegal, inconstitucional.
11. O despacho recorrido, que indeferiu liminarmente o PER interposto, socorrendo–se duma excepção que oficiosamente conheceu, foi proferido 5 meses após o dia da distribuição.
12. O Artigo 27º do CIRE determina que o despacho de indeferimento deve ser proferido no prazo máximo de 3 dias após o dia da distribuição, prazo que o tribunal “a Quo” não respeitou.
13. Não pode, por ilegal, ser proferido despacho de indeferimento liminar do PER interposto, 5 meses após o dia da distribuição.
14. Tal indeferimento liminar já não se encontra na disponibilidade do tribunal que não o proferiu em tempo e, nada foi alegado que justificasse tal atraso.
15. A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 17-A e 27º do CIRE e, o disposto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa (Direitos Fundamentais).”
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Cumpre apreciar e decidir

O objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso.
Tendo por alicerce as conclusões, a questão que importa apreciar consiste em saber se as pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, tal como acontece com os requerentes, se podem aproveitar do PER quando se encontrem em situação económica difícil.
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Conhecendo da questão
Na decisão impugnada seguiu-se o entendimento de que, embora a lei não o diga expressamente, o Processo Especial de Revitalização não se destina aos devedores pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários nem exerçam, por si mesmos, qualquer actividade autónoma e por conta própria, não existindo com a aprovação de tal instituto qualquer propósito de pretender reabilitar os devedores singulares.
Apesar de esta posição ser efectivamente sustentável (v. Carvalho Fernandes e João Labareda in Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, 143; Paulo Olavo Cunha in II Congresso do Direito da Insolvência, 2014, 220-221) temos para nós, onde a lei não distingue não deve ser o seu aplicador a fazer tal distinção, assumindo tarefa que cabia ao legislador.
Conforme salienta Luís M. Martins (Recuperação de Pessoas Singulares vol. 2 edição 14-15) «Atendendo à forma como a lei foi redigida, e não obstante o processo especial de revitalização inserido no CIRE, ter sido anunciado como um meio de recuperação das empresas, o objectivo de fundo do memorando no que respeita à matéria em causa, era "facilitar o resgate efectivo das empresas viáveis e apoiar reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis... ". pretendendo, de raiz, abranger as empresas e as pessoas singulares.
Talvez por esse motivo, os novos arts. 17°-A a 17º-I, que regulam o processo especial revitalização, em momento algum referem que a sua aplicação está limitada às pessoas colectivas ou entidades equiparáveis antes anunciando, expressamente, que o processo de revitalização pode ser utilizado “por todo o devedor" Assim, não deixa de ser aplicável às pessoas singulares quando estas estejam na situação descrita e sejam financeiramente responsáveis – Cfr. n.º 2 do art. 17°-A. [1]
Podem assim recorrer ao procedimento especial de revitalização todos os sujeitos previstos no artº 2°, prevalecendo o critério da autonomia patrimonial tenham ou não personalidade judiciária.»
A mesma posição é assumida por Maria do Rosário Epifânio (O processo Especial de Revitalização, 2015, 15-16) ao referir que «o PER é aplicável a qualquer devedor, pessoa singular ou colectiva, e ainda aos patrimónios autónomos, independentemente da titularidade de uma empresa (é aplicado na sua plenitude o disposto no artº 2 n.º 1» do CIRE (v. também, no mesmo sentido Fátima Reis Silva in Processo Especial de Revitalização – Notas Práticas e Jurisprudência Recente, 2014, 21; Paulo Tarso Domingues in I Colóquio do Direito da Insolvência de Santo Tirso, 2014, 15).
Também Catarina Serra (O Regime Português da Insolvência, 5ª Edição, 176) defende a mesma posição ao salientar que «o regime do PER aplica-se, assim, a qualquer devedor, pessoa singular, pessoa coletiva, património autónomo, titular de empresa ou não, dado o silêncio da lei quanto a qualquer dos requisitos (cfr. artº 1º n.º 2 e artº 17º- A n.º 1» do CIRE).
«O devedor não terá necessariamente de ser uma sociedade comercial. As pessoas singulares e demais pessoas colectivas e patrimónios autónomos previstos no artº 2º n.º 1, do CIRE podem ser objecto de PER… Sendo certo que o PER foi concebido no interesse da recuperação do tecido empresarial, ainda assim as vantagens de um processo expedito e não estigmatizante pode até ser mais justificado no caso de pessoas singulares» conforme defendem Nuno Casanova e David Dinis (O processo Especial de Revitalização, 1ª edição, 13-14). Também, acolhendo a mesmo entendimento veja-se Isabel Alexandre (II Congresso do Direito da Insolvência, 2014, 235), afirmando que «os sujeitos que podem utilizar o processo de revitalização não são necessariamente titulares de empresas… o processo de revitalização tem sido também utilizado por pessoas singulares não titulares de empresas» exemplificando com os processos decididos no TRP n.ºs 1172/12.7TBMCN.P1 e 1457/12.2TJPRT-A.P1, disponíveis em www.dgsi.pt.
«O Programa Revitalizar destina-se a qualquer devedor que se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente pelo que nada impede que a ele recorram pessoas singulares. As alterações ao CIRE que criam o processo especial de revitalização não preveem qualquer especificidade para o caso de o requerente ser pessoa singular pelo que o processo será comum caso se trate de uma empresa ou de uma pessoa singular» (v. António Branquinho de Almeida -http://www.abreuadvogados.com/xms/files/05-Comunicacao/Artigos na Imprensa/Re-vitalizar-Pessoas Singulares.pdf).
«Pode socorrer-se do processo especial de revitalização qualquer empresa (sociedade comercial), pessoa colectiva em geral, e ainda, pessoas singulares que estejam com dificuldades em pagar todas as suas dívidas ou que estejam prestes a entrar em situação de insolvência de empresas ou insolvência pessoal, mas que ainda não se encontrem efectivamente nessa situação» (v. Fátima Pereira Mouta - http://www.advogadosinsolvencia.pt/programa-revitalizar/processo-especial-de-revitalizacao).
O PER não pode deixar de ser considerado uma inovação que o legislador quis introduzir no CIRE, como procedimento mais flexível com vista a solucionar situações problemáticas que conduziriam necessariamente à insolvência dos devedores se não fossem tomadas, de acordo com os credores, medidas suscetíveis da sua recuperação.
Por isso, as pessoas singulares têm vindo a recorrer a tal mecanismo a fim de resolverem a sua situação económica difícil ou a situação de insolvência eminente tendo os tribunais aceitado o uso do PER, ao que pensamos, sem porem reticências à sua aplicação às pessoas singulares.
Pois, conforme refere Nuno Gundar da Cruz (http://www.revistainvest.pt/pt/O-aumento-dos-processos-PER-de-pessoas-singulares-por-Nuno-Gundar-da-Cruz/A920) «Até ao aparecimento do PER, qualquer pessoa singular que se encontrasse em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente acabava, na maioria dos casos, por ser declarada insolvente. Sofrendo todos os efeitos negativos associados à declaração de insolvência. E isto para não falar do estigma social que, ainda hoje, é associado à declaração de insolvência.
E assim, nos últimos meses, tem-se verificado um aumento verdadeiramente exponencial do número de processos de PER de pessoas singulares nos tribunais portugueses. Segundo as estatísticas da Turnwin, o número de processos PER instaurados por pessoas singulares aumentaram: (i) 203,23% em Outubro de 2014 face ao mês de Setembro de 2014; (ii) 108,89%, em Outubro de 2014, relativamente ao mês homólogo de 2013 e (iii) 118,63% nos primeiros 10 meses de 2014, relativamente aos primeiros 10 meses de 2013.»
O próprio Governo Português, elucida os cidadãos, através do IAPMEI, (http://www.iapmei.pt/resources/download/FAQ_PER.pdf) informando que «pode recorrer ao PER todo o devedor que se encontre comprovadamente em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, independentemente de o devedor ser uma pessoa singular ou uma pessoa colectiva, ou mesmo um ente jurídico não personalizado (por ex. um património autónomo)».
Do que se expôs, ao contrário do que defendeu o Julgador “a quo” na decisão impugnada, entendemos que aos requerentes é lícito fazerem uso do PER tendo em vista a sua recuperação económica.
Nestes termos, merece procedência o recurso, sendo de revogar a decisão impugnada.
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DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra com vista ao prosseguimento dos autos, se outra causa a tal não obstar.

Sem custas.

Évora, 09 de Julho de 2015

Maria da Conceição Ferreira
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes


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[1] - A proposta de lei 39/XII, anuncia ia o processo especial de revitalização como abrangendo todos os devedores, em sentido amplo, e sem menção especial se são pessoas singulares ou colectivas, concluindo na exposição dos motivos de que “O processo especial de revitalização pretende assumir-se como um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência actual…”. Também o n.º 11 do artº 17º - D é elucidativo quanto à possibilidade de pessoas singulares recorrerem ao procedimento estatuindo que: “O devedor, bem como os seus administradores de direito ou de facto, no caso de aquele ser uma pessoa colectiva, são solidária e civilmente responsáveis pelos prejuízos causados aos seus credores em virtude de falta ou incorrecção das comunicações ou informações a estes prestadas, correndo autonomamente ao presente processo a acção intentada para apurar as aludidas responsabilidades.”