Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2123/15.2T8TMR.E1
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
Data do Acordão: 09/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Na distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviços temos de ter presente que em determinados modelos de gestão a vontade do empregador pode não se manifestar por ordens diretas, mas diluir-se em troca de impressões, em discussões de projetos e de estratégias a seguir, continuando a ser patente a subordinação jurídica.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 2123/15.2T8TMR.E1 (Apelação)


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
BB (A./recorrida), patrocinada pelo Ministério Público, intentou a presente ação emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum contra CC, Ld.ª (R./recorrente), pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de € 26.251,18, a título de diferenças salariais, subsídio de alimentação e diferença do valor da compensação recebida por cessação do contrato de trabalho, acrescida de juros de mora até integral pagamento.
Para o efeito, em síntese, alegou o seguinte:
- Trabalhou por conta, sob as ordens e direção da R., desde 2 de maio de 2008 até 31 de dezembro de 2014, auferindo mensalmente a retribuição de € 500,00 e desempenhando sempre as funções inerentes à categoria profissional de Técnico Qualificado de 1º nível, nas instalações da R., sitas em Mira de Aire,
- Nos termos do Contrato Coletivo de Trabalho (CCT) aplicável deveria ter auferido a retribuição mensal ilíquida de € 706,00, acrescida de € 2,40 de subsídio de alimentação por dia de trabalho desde a sua admissão e até ao dia 30 de junho de 2010, a partir desta data e até final do contrato devia ter auferido a retribuição mensal de € 732,50, acrescida do subsídio de alimentação de € 2,40 por dia de trabalho, razão pela qual reclama as diferenças salariais, entre aquilo que lhe foi pago e o que lhe era devido.

A R. apresentou contestação pedindo a improcedência da ação e a sua absolvição de todos os pedidos, alegando, em resumo:
- O contrato celebrado com a A. não pode ser qualificado como um contrato de trabalho, uma vez que as partes o que pretenderam foi celebrar um contrato de prestação de serviços;
- Caso assim não se entenda, a R. defende que o tribunal terá de considerar que a A. não foi contratada para trabalhar a tempo completo, pois nunca cumpriu as 40 horas semanais, razão pela qual, caso não se entenda qualificar a relação contratual como de prestação de serviços, sempre se terá de configurar o contrato de trabalho como um contrato de tempo completo com jornada reduzida, não sendo por isso devida à autora qualquer quantia a título de diferenças salariais;

Procedeu-se à audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que decidiu julgar a ação procedente, por provada, e consequentemente condenou a R. a pagar à A. o montante global de € 25.757,28, sendo € 20.753,11 a título de diferenças salariais, € 3.729,60 a título de subsídio de alimentação e €1.274,57 a título de diferença de compensação pela cessação do contrato, tudo acrescido dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos até integral pagamento.

Inconformada com esta decisão judicial, a R. interpôs recurso de apelação, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. O facto, dado como provado sob o nº 11, deve ser alterado para a seguinte redação “Os serviços prestados pela A. antes de 2/5/2008 foram liquidados sempre em regime de avença até 30 de Abril de 2008, com quitação de recibos emitidos pelo marido da A., por interesse de ambos.”
2. O facto, dado como provado sob o nº 15, deve ser alterado para a seguinte redação:
“Em 2/5/2008 é subscrito um “contrato de trabalho” entre A. e Ré, a fim de evitar que a A. se coletasse passando, desde então, a Ré a processar o pagamento dos serviços da A. a par dos salários dos seus trabalhadores.”
3. O facto, dado como provado sob o nº 18, deve ser alterado para a seguinte redação:
“Uma vez por ano, a A. acompanhava a Ré à feira internacional de Colónia, onde a empresa Ré montava a sua exposição, sendo também do seu interesse a deslocação à feira.”
4. Desde o seu início, em 2007, até 31/12/2014, a relação profissional da A. com a Ré sempre foi a mesma: apresentação de modelos (confecionados por si em tricot), na qualidade de estilista, por conta própria, no seu atelier.
5. Trabalhando segundo os seus próprios horários e com autonomia no desenvolvimento do seu trabalho, que executava no seu atelier (13 dos Factos Provados) e socorrendo-se de serviços e de peças de tricot que mandava fazer a terceiras pessoas, a quem pagava (como resulta da prova).
6. Duas ou três manhãs por semana (até 2/5/2008) deslocava-se às instalações da Ré para apresentar os seus novos modelos e para discutir e aconselhar estratégias de coleção, exposição, imagem e levar o fio que a Ré lhe confiava para confeção de modelos (14 dos Factos Provados).
7. Sempre assim aconteceu desde o início, mas também depois de maio de 2008, pois a A. continuou a manter autonomia na execução e desenvolvimento do seu trabalho (16 dos Factos Provados), deslocando-se às instalações da Ré, duas ou três vezes por semana, para apresentar os novos modelos, para discutir ou aconselhar estratégias no desenvolvimento desses seus trabalhos (modelos) – nº 17 dos Factos Provados.
8. Dúvidas, pois, não existem de que a relação profissional estabelecida com a A. sempre foi a mesma desde 2007 a 2014, com as mesmas características e conteúdo: uma estilista que confecionava os seus próprios modelos (embora servindo-se dos fios que a Ré fabrica, para combinar as cores a seu bel-prazer nos seus modelos) e que, como estilista que era, aconselhava, face aos modelos (que autonomamente, no seu atelier, confecionava ou desenvolvia), estratégias de coleção, exposição e moda nas conversas que mantinha nas instalações da Ré duas ou três vezes por semana (quer antes, quer após maio de 2008).
9. E, por isso, sempre essa relação profissional se consubstanciou desde 2007a 2014 num verdadeiro contrato de prestação de serviços.
10. E não é por ter sido subscrito um denominado “contrato de trabalho” que foi alterada essa relação profissional entre a A. e Ré – que não se alterou, como resulta dos Factos Provados e da demais prova – de prestação autónoma, independentemente, de serviços (criação de modelos e aconselhamento).
11. Sendo certo que a razão de ser da subscrição do denominado “contrato de trabalho” (mantendo-se a autonomia e independência dos serviços da A., o tempo despendido e até o valor da avença, pois, com os descontos, o que a A. continuava a receber era sensivelmente o mesmo valor) foi o de evitar que a A. se coletasse (o que devia ter acontecido) e que os recibos da avença andassem a ser passados/emitidos pelo (ou em nome do) marido.
12. E sendo esta a realidade, certo é que o denominado contrato de trabalho é uma ficção – como disse a testemunha …: um contrato a favor - ou simulação relativa.
13. De qualquer modo – e sem prescindir – à data da subscrição do denominado “contrato de trabalho” vigorava a lei 99/2003, a qual dispunha, no seu artº. 184, nº 3 que:
Se faltar no contrato a indicação do período normal de trabalho semanal, presume-se que o contrato foi celebrado para a duração máxima do período normal de trabalho admitida para o contrato a tempo parcial pela lei ou instrumento de regulamentação coletiva de trabalho aplicável.”
14. E, nos termos do artº. 180 daquela lei 99/2003:
“Considera-se trabalho a tempo parcial o que corresponda a um período normal de trabalho semanal igual ou inferior a 75% do praticado a tempo completo numa situação comparável”.
15. Ora, duas ou três manhãs por semana, ou duas ou três vezes por semana, quase sempre de manhã – como está provado -, corresponde (mesmo que a A. estivesse na empresa das 9 H. às 12.30 H.) a um período de trabalho semanal inferior a 75% do praticado a tempo completo.
16. Pelo que, mesmo que se considerasse, desde Maio de 2008, que a relação profissional entre A. e Ré fosse a resultante da celebração de um verdadeiro contrato de trabalho, sempre teria de ser considerado um contrato de trabalho a tempo parcial, com um período, no máximo, de três manhãs, por semana, ou seja, cerca de 25% de 40 H. semanais.
17. O atual Código do Trabalho (artº. 153 da Lei 7/2009, nº 2) estipula que, na falta de indicação do período normal de trabalho diário e semanal, com referência comparativa a trabalho a tempo completo “presume-se que o contrato é celebrado a tempo completo”.
18. Mas, à data (2/5/2008) do denominado “contrato de trabalho” subscrito por A. e Ré, estava em vigor a Lei 99/2003.
19. Que, no seu artº. 184, nº 3, estabelecia a presunção de que, na falta de indicação do período normal de trabalho semanal, fora celebrado para a duração máxima do período normal de trabalho admitido para o contrato de trabalho a tempo parcial pela lei (o que seria de 75% face ao artº. 180 do mesmo diploma legal).
20. Contudo, esta presunção (75%) foi iniludivelmente ilidida pela prova produzida, uma vez que, como consta dos factos provados, nem sequer (tratando-se de duas ou 3 vezes por semana, quase sempre de manhã, para apresentar os seus modelos e discutir e aconselhar estratégias) o tempo de trabalho da A. atingiria 50% do horário normal!
21. Do próprio texto do “contrato de trabalho” de 2/5/2008 se extrai que o local de trabalho da A. era nas instalações da Ré.
22. E que a duração do trabalho semanal e horário (dentro do limite máximo de 40 H. semanais, como era então pelo Contrato Coletivo, e é de lei), seriam definidos pela entidade patronal.
23. Não só a A. não provou que a Ré tivesse fixado outra duração semanal que não fosse duas ou três vezes por semana (quase sempre de manhã), como foi exatamente essa a duração do trabalho semanal - como aliás já acontecia antes de 2/5/2008.
24. Assim, mesmo que não estivéssemos na presença de um contrato de prestação de serviços, sempre estaríamos na presença de um contrato de trabalho a tempo parcial, exercido nas instalações da Ré durante duas ou três vezes por semana, quase sempre de manhã.
25. Mesmo considerando três manhãs (cerca de 10,30 H. por semana), em relação a 40 H., temos que o trabalho da A. correspondia a 25,75% de um horário completo.
26. Sempre a A. respeitou tal horário de trabalho e outro não lhe foi fixado pela Ré, auferindo, pois, correspondentemente em conformidade com o salário a tempo completo.
27. Ao vir reclamar diferenças salariais (que nunca, aliás, invocou antes do termo do contrato) como se o seu trabalho fosse a tempo completo – que não praticou – litiga de má-fé e com autêntico abuso de direito.
28. Violou, pois, a douta sentença, entre outras as seguintes disposições legais:
artºs. 9, 12, 334, 342 e 1154 do C.C., 607 do C.P.C., 11 e 150 do C.T..
Termos em que – e melhores de direito e com o douto suprimento de V. Exªs., Venerandos Desembargadores – deve ser revogada a douta sentença e ser declarado:
a) que entre A. e Ré sempre existiu um contrato de prestação de serviço e, portanto, não há lugar ao pagamento de diferenças salariais e de subsídios de alimentação;
Sem conceder,
b) que houve, entre A. e Ré, um contrato de trabalho a tempo parcial e, por isso, dada a remuneração da A. (confrontada com a duração semanal e horário do trabalho da A.), não há lugar a diferenças salariais, devendo apenas ser calculado o subsídio de alimentação em relação aos dias de trabalho semanal prestado (duas ou três vezes por semana).
A A. contra-alegou, tendo apresentado as seguintes conclusões:
1ª A matéria de facto dada como provada deve-se considerar definitivamente assente, não enfermando de qualquer vício que imponha a sua alteração.
2ª Entre A. e R. vigorou efetivamente um contrato de trabalho.
3ª E não um contrato de prestação de serviços.
4ª Consequentemente, à A. são devidas as importâncias em que a recorrente foi condenada.
5ª Não se verifica qualquer vício de julgamento nem violação dos preceitos legais indicados pela recorrente.
6ª A decisão recorrida não merece reparo e deve ser mantida.
Foi remetido projeto de acórdão aos senhores Juízes Desembargadores Adjuntos, e colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente retira da respetiva motivação, tendo sido suscitadas as seguintes questões:
a) Determinar se deve ser alterada a decisão proferida pela primeira instância sobre a matéria de facto, atentas as razões invocadas pelo recorrente nos pontos 1º a 3º das suas conclusões;
b) Determinar qual a natureza do contrato que vinculou a A. à R.;
c) Na hipótese de se considerar que se tratava de um contrato de trabalho apurar se era um contrato de trabalho a tempo parcial.

III. Factos dados como provados pelo tribunal de primeira instância:
(…)

IV. Fundamentação
a) A impugnação da matéria de facto.
(…)
Considerando já a nossa decisão sobre a impugnação da matéria de facto são estes os factos que entendemos que devem ser considerados provados, expurgados das expressões e conceitos conclusivos:
1 -A Ré dedica-se à indústria de tinturaria de fios e respetivo comércio (alínea A) dos factos assentes).
2 - Em 2 de maio de 2008 Autora e Ré celebraram por escrito um contrato que denominaram de contrato de trabalho a termo certo, pelo prazo de um ano, renovável, nos termos do qual fizeram constar o seguinte:

“O segundo outorgante (a autora) é admitido para exercer as funções de Técnico Qualificado de 1º nível, nas instalações da primeira outorgante (a Ré) sitas em Mira de Aire, auferindo a retribuição mensal ilíquida de €500,00. No entanto, o local de trabalho compreende quaisquer outras instalações que a primeira outorgante tenha ou venha a ter, desde que tal mudança seja essencial para o exercício da sua atividade.

1 - A duração do trabalho semanal e o horário de trabalho diário, serão definidos pela entidade patronal tendo em conta, nomeadamente, os limites máximos definidos na legislação em vigor e as necessidades da própria empresa.
2 - O segundo outorgante desde já declara aceitar as alterações ao horário de trabalho que a primeira Outorgante entenda fazer.
(…)”(alínea B) dos factos assentes).
3 - No referido contrato celebrado entre Autora e Ré ficou ainda estipulado que para a resolução de dúvidas emergentes do clausulado se aplicaria o Código do Trabalho de 2003, o seu Regulamento e o Contrato Coletivo de Trabalho para a Industria de malhas e lanifícios publicado no BTE n.º 42, 1ª série de 15 de novembro de 2006 (alínea C) dos factos assentes).
4 - Em 31 de dezembro de 2014 o contrato celebrado entre Autora e Ré terminou por extinção do posto de trabalho (alínea D) dos factos assentes).
5 - Em dezembro de 2014 foi liquidado pela Ré à Autora, para além do mais, a título de vencimento, a importância de €505,00 e a título de acordo de cessação, a importância de €2.835,56 (alínea E) dos factos assentes).
6 - Nos termos do contrato celebrado a A. realizava para a R. trabalhos relacionados com a produção no âmbito da conceção e desenvolvimento de produtos têxteis, tendo em conta as tendências da moda, nomeadamente desenvolvendo as seguintes funções:
- Pesquisar as tendências de Moda – acompanhar as tendências em cores, modelos e materiais da moda da estação;
- Criar e desenvolver modelos exclusivos para os fios existentes e novidades/lançamento em qualquer altura do ano;
- Assegurar que os modelos criados e aprovados são manufaturados com boa qualidade;
- Executar todas as explicações dos modelos criados, em português e inglês e desenhos técnicos;
- Participar na preparação, decoração e acompanhamento na Feira de Colónia;
- Assegurar a boa imagem e atualização do showroom, com todos os novelos/meadas das coleções em bom estado;
- Assegurar a boa imagem da empresa;
- Assegurar a decoração de Natal da empresa;
- Pesquisar e assegurar a dinamização e pertinência dos conteúdos do Facebook;
- Planeava e acompanhava os projetos para os workshops;
7 – A autora realizou estes trabalhos para a Ré ininterruptamente até ao dia 31 de dezembro de 2014;
8 – Até novembro de 2014 a R. pagava à A. uma quantia mensal ilíquida de € 500,00.
9 – Em tempos a autora teve uma loja/atelier na cidade de Ourém dedicada a modelos confecionados a tricot, onde a autora desenvolvia a sua profissão de estilista.
10 – A Ré tomou conhecimento do atelier da Autora e passou a encomendar alguns modelos para a sua coleção à autora, oferecendo a autora outros serviços para complementar a criação dos seus modelos, o que veio a ser aceite pela Ré.
11 – Até 30 de abril de 2008 a A. entregou sempre à R. recibos em nome do marido como quitação das quantias que lhe eram entregues pela R. no âmbito da relação que estabeleceram.
12 – (eliminado)
13 - A autora trabalhava segundo os seus próprios horários e com autonomia no desenvolvimento do seu trabalho, que executava no seu atelier.
14 - A autora deslocava-se às instalações da Ré duas ou três manhãs por semana, para apresentar novos modelos para discutir e aconselhar estratégias de coleção, exposição, imagem, moda e levar o fio que a Ré lhe confiava para confeção dos modelos.
15 - Em maio de 2008 A. e R. acordaram celebrar o contrato referido no ponto 2. dos factos provados, passando a R. o processar os pagamentos à A. nos mesmos moldes dos demais trabalhadores subordinados.
16 – Após a celebração do contrato referido em 2. a Autora continuou a trabalhar em casa e nas instalações da Ré, sem horário predefinido.
17 – Deslocava-se às instalações da Ré duas ou três vezes por semana, quase sempre da parte da manhã para apresentar os novos modelos e para discutir ou aconselhar as estratégias a seguir no desenvolvimento desses seus trabalhos.
18 – A A. uma vez por ano, no âmbito das funções que desempenhava para a R., deslocava-se a uma feira em Colónia onde a R. montava uma exposição.
19 – A Autora assessorava a Ré nos eventos em que esta participava sempre que se mostrava conveniente cuidar da imagem da empresa.

b) Determinar qual a natureza do contrato que vinculou a A. à R.
Feita esta enumeração, e delimitado como está o objeto do recurso pelas conclusões das alegações do recorrente, passaremos a apreciar a questão a decidir que, como já se referiu, consiste em saber se a relação mantida pela A. com a R., a partir de 2 de maio de 2008 deve ou não ser qualificada como uma relação laboral.
Quando se iniciou a referida relação contratual entre a A. e a R., em 2 de maio de 2008 vigorava o Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/8, que entrou em vigor em 1/12/2003.
O referido diploma, no seu art. 11º, dá-nos a noção de contrato de trabalho como aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.
Uma das figuras mais próximas do contrato de trabalho é o contrato de prestação de serviços.
A R., nas suas alegações, defende que o vínculo existente entre si e a A. era um contrato de prestação de serviços e não um contrato de trabalho.
O art. 1154º do C. Civil define contrato de prestação de serviços como aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.
Confrontando as referidas definições legais verificam-se três diferenças essenciais:
A primeira diz respeito ao objeto do contrato. No contrato de trabalho, uma das partes obriga-se a prestar à outra “a sua atividade”, já no contrato de prestação de serviços obriga-se a prestar “certo resultado do seu trabalho”, isto é, no primeiro estamos perante uma obrigação de meios, sendo a prestação devida uma atividade, intelectual ou manual, no segundo estamos perante uma obrigação de resultado, ou seja, é devido o resultado da referida atividade.
A segunda diferença prende-se com a remuneração. O contrato de trabalho é necessariamente oneroso, o contrato de prestação de serviços ser gratuito.
A terceira diferença diz respeito ao modo como a atividade é exercida. No contrato de trabalho a atividade tem de ser prestada sob a autoridade e direção do empregador, ou seja, mediante subordinação jurídica, o que não acontece no contrato de prestação de serviço. Neste último, o prestador de serviços exerce a sua atividade com autonomia.
Uma vez que, muitas das vezes, no contrato de trabalho igualmente está em causa a obtenção de um resultado e no contrato de prestação de serviço também se tem frequentemente em vista uma prestação de meios (como acontece, por via de regra, nos contratos celebrados com médicos e advogados) e, por outro lado, em regra, a remuneração está também presente no contrato de prestação de serviços, a doutrina e a jurisprudência vêm identificando o critério da subordinação jurídica como sendo aquele decisivo para a distinção entre as duas figuras contratuais em apreço. No contrato de prestação de serviços, ao contrário do contrato de trabalho, o prestador não fica sujeito à autoridade e direção da pessoa ou entidade servida, exercendo a atividade conducente ao resultado pretendido como melhor entender, de harmonia com o seu querer e saber e a sua inteligência.
A subordinação jurídica que caracteriza o contrato de trabalho traduz-se numa situação de sujeição em que se encontra o trabalhador de ver concretizada, por simples vontade do empregador, numa ou noutra direção, o dever de prestar em que está incurso.
No contrato de trabalho emerge uma relação de dependência necessária que condiciona a conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem. Saliente-se que detetar a presença de subordinação jurídica numa determinada relação não é tarefa fácil, pois esta não existe em estado puro.
Para resolver as dificuldades que vão surgindo em cada caso concreto a doutrina e a jurisprudência têm enumerado determinadas traços distintivas com vista a facilitar a distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviços, traços distintivos esses que devem ser utilizados como tópicos indiciadores de subordinação jurídica.
Os indícios que podem conduzir à qualificação de um contrato de trabalho são os seguintes:
- A vinculação do trabalhador a um horário de trabalho;
- A execução da prestação em local determinado pelo empregador;
- A existência de controlo externo do modo da prestação;
- A obediência a ordens;
- A sujeição do trabalhador à disciplina da empresa;
- O pagamento da retribuição em função do tempo;
- O pagamento da retribuição de férias e dos subsídios de férias e de Natal;
- Pertencerem ao empregador os instrumentos de trabalho e serem por ele disponibilizados os meios complementares da prestação;
- Inscrição do trabalhador na segurança social como trabalhador por conta de outrem;
- Estar o trabalhador inscrito numa organização sindical;
- Não recair sobre o trabalhador o risco da inutilização ou perda do produto;
- Inexistência de colaboradores;
- A prestação da atividade a um único beneficiário.
Identificados estes indícios, há que confrontar a situação concreta com o modelo tipo de subordinação, através não de um juízo de mera subsunção, mas de um juízo de aproximação que terá de ser também um juízo de globalidade.
Como refere o Prof. Monteiro Fernandes cada um destes elementos, tomado de per si, reveste-se de patente relatividade. O juízo a fazer, nos termos expostos, é ainda e sempre um juízo de globalidade, conduzindo a uma representação sintética da tessitura jurídica da situação concreta e comparação dela com o tipo trabalho subordinado.
Acrescenta ainda o referido Professor que não existe nenhuma fórmula que pré-determine o doseamento necessário dos vários índices, desde logo porque cada um deles pode assumir um valor significante muito diverso de caso para caso.
Face à dificuldade da distinção a doutrina de origem britânica avançou com um critério baseado na existência ou inexistência de incorporação na empresa ou organização técnico-laboral alheia (organisation test), ao qual se confere um alcance complementar no âmbito do método tipológico.
De qualquer forma, temos de ter presente que o contrato de prestação de serviço pode conciliar-se com a inserção funcional dos resultados da atividade no metabolismo da organização empresarial.
Nesta linha, refira-se que o artigo 12º do Código do Trabalho, ao procurar estabelecer uma presunção da existência de contrato de trabalho, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº9/2006, de 20/03, abandonou o critério baseado na verificação de condições cumulativas, para incorporar os referidos ensinamentos atinentes ao critério baseado na existência ou inexistência de incorporação na empresa ou organização técnico-laboral alheia (organisation test) aliados ao critério da subordinação ou do controlo (control test).
No caso concreto dos autos temos de ter presente que a R. é uma sociedade comercial que mantém vínculos de natureza laboral com outros trabalhadores e também vínculos com prestadores de serviços, sendo certo que não está, de maneira alguma, em início de atividade.
Neste quadro empresarial não é de todo irrelevante a qualificação que foi dada ao contrato celebrado entre a A. e a R. em 2 de maio de 2008.
As partes chamaram-lhe contrato de trabalho e fizeram constar do mesmo uma regulamentação típica de um contrato de trabalho, mencionando a categoria profissional, o local de trabalho, a retribuição mensal, a duração do trabalho semanal e horário de trabalho diário, termo do contrato e respetiva justificação, período experimental e finalmente para a resolução de dúvidas remeteram para o Código do Trabalho e para o Contrato Coletivo de Trabalho (doc. de fols. 9 e 10 dos autos).
A A. nos termos desse contrato realizava para a R. trabalhos relacionados com a produção no âmbito da conceção e desenvolvimento de produtos têxteis, tendo em conta as tendências da moda, nomeadamente desenvolvendo as seguintes funções:
- Pesquisar as tendências de Moda – acompanhar as tendências em cores, modelos e materiais da moda da estação;
- Criar e desenvolver modelos exclusivos para os fios existentes e novidades/lançamento em qualquer altura do ano;
- Assegurar que os modelos criados e aprovados são manufaturados com boa qualidade;
- Executar todas as explicações dos modelos criados, em português e inglês e desenhos técnicos;
- Participar na preparação, decoração e acompanhamento na Feira de Colónia;
- Assegurar a boa imagem e atualização do showroom, com todos os novelos/meadas das coleções em bom estado;
- Assegurar a boa imagem da empresa;
- Assegurar a decoração de Natal da empresa;
- Pesquisar e assegurar a dinamização e pertinência dos conteúdos do Facebook;
- Planeava e acompanhava os projetos para os workshops.
Todos estes trabalhos exigem um certo grau autonomia, pois o que era pedido à A. era fundamentalmente criatividade, o que não é compatível com um horário rígido cumprido dentro de quatro paredes.
A A. podia concretizar o que lhe era pedido nas instalações da R., na sua casa ou em qualquer outro lugar.
No entanto, temos um facto que foi dado como provado que merece a nossa reflexão, que é o seguinte:
14 - A autora deslocava-se às instalações da Ré duas ou três manhãs por semana, para apresentar novos modelos, para discutir e aconselhar estratégias de coleção, exposição, imagem, moda e levar o fio que a Ré lhe confiava para confeção dos modelos.
No ponto 17 desenvolve-se um pouco mais o referido no ponto 14 acrescentando-se para discutir ou aconselhar as estratégias a seguir no desenvolvimento desses seus trabalhos.
A deslocação da A. às instalações da Ré duas ou três manhãs por semana denota que existia uma relação muito estreita, sendo certo que esse tempo era gasto a discutir e aconselhar estratégias de coleção, exposição, imagem, moda.
Como consta da matéria de facto provada tudo era discutido entre a A. e a R., não se limitando a A. a levar à R. um produto acabado
Nesses períodos em que a A. permanecia nas instalações da R. teriam de ser necessariamente transmitidas orientações acerca daquilo que a R. pretendia, pois estavam em causa objetivos empresariais.
Estamos a falar da preparação, decoração e acompanhamento na Feira de Colónia, da forma como assegurar a boa imagem e atualização do showroom, com todos os novelos/meadas das coleções em bom estado, assegurar a boa imagem da empresa, a decoração de Natal da empresa, a pesquisa e a forma de assegurar a dinamização e pertinência dos conteúdos do Facebook, o planeamento e acompanhamento dos projetos para workshops.
Era uma multiplicidade de tarefas que não eram pagas à peça, pois a A. recebia mensalmente uma quantia ilíquida de €500,00 e subsídios de férias e de Natal (recibos juntos com a p.i)
Sobre a referida quantia eram feitos descontos para a segurança social e quando o contrato cessou foram pagos proporcionais de férias e de subsídio de férias e uma indemnização pela cessação do contrato (doc. de fols.101).
Todos estes elementos nos levam a concluir que a A. estava inserida na empresa de uma forma pouco compatível com a mera prestação de serviços.
É certo que sendo a A. uma criativa tinha necessariamente de ter uma grande autonomia, mas a matéria de facto dada como provada não indicia, de forma alguma, que a R. assumisse com a A. uma posição de tal forma passiva que nos leve a concluir pela total inexistência de subordinação jurídica.
Em determinados modelos de gestão a vontade do empregador pode não se manifestar por ordens diretas, mas diluir-se em troca de impressões, em discussões de projetos e de estratégias a seguir.
Os trabalhadores subordinados são cada vez mais envolvidos na gestão das empresas e levados a tomar decisões, procurando-se criar uma motivação coletiva sempre benéfica ao escopo empresarial, em detrimento de modelos autoritários, que potenciam uma conflitualidade indesejável, quase sempre com reflexos negativos em termos de produtividade.
No caso concreto dos autos, o grau de inserção da A. na empresa é bastante elevado, havendo um conjunto forte de indícios que nos levam a concluir que o contrato celebrado pelas partes em 2 de maio de 2008 é substancialmente um contrato de trabalho.

c) A questão de saber se estamos perante um contrato de trabalho a tempo parcial.
Nas suas alegações e conclusões (ponto 13 e segs) a recorrente vem defender que caso se considere que existia um contrato de trabalho entre a A. e a R. então tem de ser considerado um contrato de trabalho a tempo parcial, nos termos dos art. 180 e 184 nº3 do Código do Trabalho de 2003.
A argumentação da recorrente estriba-se no facto de se ter provado que a A. deslocava-se duas ou três manhãs por semana, ou duas ou três vezes por semana, quase sempre de manhã, o que corresponde (mesmo que a A. estivesse na empresa das 9 H. às 12.30 H.) a um período de trabalho semanal inferior a 75% do praticado a tempo completo.
Vejamos se a pretensão da R. deve ou não proceder, atenta a matéria de facto dada como provada e ao disposto nos artigos 180 e 184 nº3 do Código do Trabalho de 2003.
O referido art. 180º refere que se considera trabalho a tempo parcial o que corresponda a um período normal de trabalho semanal igual ou inferior a 75% do praticado a tempo completo numa situação comparável.
O art. 184º nº3 estipula que se faltar no contrato a indicação do período normal de trabalho semanal, presume-se que o contrato foi celebrado para a duração máxima do período normal de trabalho admitida para o contrato a tempo parcial pela lei ou por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho aplicável.
No contrato de trabalho que as partes celebraram em 2 de maio de 2008 estipularam o seguinte:
1 - A duração do trabalho semanal e o horário de trabalho diário, serão definidos pela entidade patronal tendo em conta, nomeadamente, os limites máximos definidos na legislação em vigor e as necessidades da própria empresa.
2 - O segundo outorgante desde já declara aceitar as alterações ao horário de trabalho que a primeira Outorgante entenda fazer.
Não se provou que a R. tivesse imposto à A. um horário de trabalho específico, sendo certo que se provou que esta trabalhava em casa e nas instalações da R. sem horário predefinido.
Trabalhando a A. em casa, o que era do conhecimento da R., não faz sentido a posição defendida pela R. de estarmos perante um contrato de trabalho a tempo parcial, contabilizando apenas o tempo em que a A. permanecia nas instalações da R.
Finalmente defende a R. que a A., ao vir reclamar diferenças salariais, que nunca invocou antes do termo do contrato, como se o seu trabalho fosse a tempo completo, que não praticou, litiga de má-fé e com autêntico abuso de direito.
Pelas razões já referidas, uma vez que se considera que estamos perante um contrato de trabalho a tempo completo, também não faz sentido esta posição da recorrente.

V. Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
a) Julgar parcialmente procedente a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos acima referidos;
b) Julgar improcedentes as restantes pretensões formuladas na apelação, mantendo, nessa parte, na íntegra a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
Anexa-se sumário do acórdão.

Évora, 7/09/2016
Joaquim António Chambel Mourisco (Relator)
Moisés Pereira da Silva
João Luís Nunes

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[1] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, pág. 384.
[2] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, pág. 386.