Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2240/14.6T8STB-B.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: CRÉDITOS DA SEGURANÇA SOCIAL
PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Sumário: 1. A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral proclamada pelos acórdãos do Tribunal Constitucional registados sob os nºs 362/2002 e 363/2002, que faz prevalecer a hipoteca sobre privilégios imobiliários gerais atribuídos à Fazenda Pública e à Segurança Social, não é extensível ao credor que apenas se encontra garantido com uma penhora.
2. Os créditos de IRS, IRC, IVA e por Contribuições à Segurança Social prevalecem na graduação sobre os créditos comuns garantidos por penhora.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 2240/14.6T8STB-B.E1
Tribunal Judicial Comarca de Setúbal – Juízo Central de Execução de Setúbal – J2
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Decisão nos termos dos artigos 652º, nº 1, al. c) e 656º do Código de Processo Civil:
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I – Relatório:
Na presente reclamação de créditos apensa à execução para pagamento de quantia certa proposta por “(…), Lda.” contra “(…) Construções Civil, Lda.”, a exequente veio interpor recurso da sentença de graduação de créditos.
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O Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, veio reclamar o pagamento do Imposto Municipal sobre Imóveis devido desde 2012 a 2013, no valor de € 1.548,72, e do Imposto sobre o rendimento de Pessoas Singulares devida desde 2012, no valor de € 184,25, ambas as quantias acrescidas de juros de mora.
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O Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Setúbal veio reclamar o pagamento das contribuições e quotizações referentes aos meses de Dezembro de 2007, Janeiro de 2008, Novembro e Dezembro de 2009 e Outubro de 2011 a Agosto de 2012, no valor de € 7.573,54, acrescida de juros de mora.
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A “Caixa (…) de Depósitos, SA” apresentou reclamação de créditos para garantir o pagamento de um empréstimo sob a forma de abertura de crédito até ao montante de € 1.400.000,00, cuja dívida ascende a € 1.509.163,33 e se encontra garantida por uma hipoteca sobre as fracções aqui penhoradas.
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A exequente (…), Lda.” deduziu oposição.
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A “Caixa (…) de Depósitos, SA” respondeu à impugnação.
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A sentença recorrida decidiu graduar os créditos referidos da seguinte forma:
«1º Os créditos de capital e juros, relativos a IMI, reclamados pela Fazenda Nacional.
2º O crédito reclamado pela Caixa (…) de Depósitos S.A. abrangido pela hipoteca.
3º O crédito reclamado pelo ISS.
4º O crédito da reclamante Direcção-Geral dos Impostos a título de IRS.
5º O crédito do exequente garantido pela penhora».
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A recorrente não se conformou com a referida decisão e apresentou as alegações que continham as seguintes conclusões:
1 – Os créditos executivos da AT graduados em primeiro lugar são respeitantes a dívidas fiscais de 2008, 2009, 2012, portanto, nem são respeitantes ao ano da penhora da fracção, nem dos dois anos anteriores, não gozando assim de privilégio creditório.
2 – Quanto aos demais créditos da AT, graduar-se-ão segundo a antiguidade do respectivo registo – art. 822º, nº 1, do Cód. Civil – cedendo, contudo, perante os créditos que gozem de privilégio imobiliário especial (IMI dos últimos dois anos) – art. 751º do CC –, mas prevalecendo sobre os privilégios imobiliários gerais (IRS dos últimos 2 anos) – art. 749º, nº 1, do CC, ou seja, no caso concreto, após a graduação do crédito da ora Apelante.
3 – A verificação de requisitos ad substantiam das dívidas não se verificaram na douta sentença, por falta da identificação dos mesmos nos autos pela AT (data da penhora; natureza de cada um dos créditos e respectivo montante; data de constituição de cada um dos créditos; tratando-se de créditos por IMI ou contribuição autárquica, identificação do imóvel a que respeitam), pelo que a douta decisão recorrida de os graduar em 1º lugar padece de nulidade, por falta de fundamentação da decisão ora recorrida, o que se argui para os devidos efeitos.
4 – Da certidão de dívidas emitida pelo Serviço de Finanças e junta à reclamação de créditos resulta que, de entre os créditos de que é titular a Fazenda Nacional se encontram não apenas créditos por CA e IMI, mas também por IRS, coimas fiscais, juros e custas; e, quanto aos créditos por Contribuição Autárquica e por IMI, não se encontram discriminados por referência a cada um dos prédios a que respeitam, encontram-se aí indicados por referência à data de vencimento, não especificando que imposto respeita aos prédios.
5 – A reclamação de créditos apresentada pela Fazenda nacional não dispõe dos elementos de facto que permita proceder à graduação dos créditos da forma como o foram pela Douta Sentença, devendo ter sido graduados a seguir ao crédito da ora Apelante.
6 – Resulta das listas de dívidas juntas pela Fazenda Pública na reclamação de créditos que muitas das execuções já se encontram garantidas por penhoras, não se sabendo se tais penhoras se destinam a liquidar os IMI´S agora graduados ou se estes já o foram em processos anteriores, o que deveria ter sido aferido pelo meritíssimo juiz a quo.
7 – Quanto ao benefício concedido ao credor hipotecário Caixa de ser pago preferencialmente por força das hipotecas registadas, não é global em relação ao crédito exequendo e conjuntamente em relação aos imóveis penhorados nos autos.
8 – Antes funciona e exerce-se, em relação a cada imóvel e na estrita medida do valor objecto da hipoteca e dos acessórios do crédito, nestes se incluindo os juros limitados a três anos por força do estatuído no art.º 693º, nº 2, até ao montante máximo inscrito na hipoteca.
9 – Quanto ao crédito do ISS deverá este ser graduado em último lugar.
10 – O artigo 11º do mencionado Decreto-lei nº 103/80 estatuía que “…os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748º do Código Civil…”.
11 – O privilégio creditório foi considerado como constituindo um perigo para o comércio jurídico-económico, tendo vindo o douto Acórdão nº 363/2002, do Tribunal Constitucional, de 16 de Outubro de 2002, declarar com força obrigatória geral, por violação do princípio da confiança, a inconstitucionalidade do artigo 11º do DL 103/80 de 9-V e do art. 2º do Decreto-lei nº 512/76, de 3-VII, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral neles conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do C. Civil.
12 – Assim, o crédito da segurança social deverá ser graduado em último lugar.
13 – De acordo com o estatuído nos artigos 686º, nº 1, e 749º do CPC, os créditos reclamados devem ser assim graduados sucessivamente:
a) Em primeiro lugar o crédito da Caixa apenas em relação às fracções penhoradas, e na estrita medida do valor objecto da hipoteca e dos acessórios do crédito de tal fracção, nestes se incluindo os juros limitados a três anos por força do estatuído no artº 693º, nº 2;
b) Em 2º lugar o crédito da ora Apelante;
c) Em 3º lugar o crédito da AT, por não beneficiar de privilégio creditório imobiliário especial;
d) Em 4º lugar o crédito da SS.
Entendimento sufragado pelo Acórdão TR Lisboa de 18-05-2015, Proc.º 32-14.1TBALM-A.L1-6, in www.dgsi.pt e pelo STA através do acórdão de 13.01.2010 (Relator Casimiro Gonçalves).
Requer-se assim a V. Exas. a revogação da Douta Sentença nos termos alegados, e assim se fará a costumada Boa Justiça!».
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O Ministério Público apresentou contra-alegações de recurso.
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Foi admitido o recurso e observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC).
Analisadas as alegações de recurso, a questão que se suscita neste recurso é apurar qual a ordem de graduação dos créditos reclamados. *
III – Factos com interesse para a decisão da causa:
Do histórico do processo e da documentação junta aos autos resultam provados os seguintes factos:
1 – Nos autos de execução foi penhorada a fracção autónoma designada pela letra “G”, correspondente ao 3º andar direito do prédio sito na Rua das (…), 16-A, em Setúbal, para habitação, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, sob o nº (…)/20111220-G, freguesia da Gâmbia, Pontes, Alto da Serra, registada pela ap. (…) de 2008/03/12 a favor da executada.
2 – Nos autos de execução foi penhorada a fracção autónoma designada pela letra “P”, correspondentes ao 3º andar esquerdo do prédio sito na Quinta da (…), 16, em Setúbal, para habitação, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, sob o nº (…), freguesia da Gâmbia, Pontes, Alto da Serra, inscrito na matriz sob o artigo (…), a favor da executada.
3 – Por instrumento notarial avulso registado sob o nº (…) outorgado em Dezembro de 2007, no Notariado Privativo da Caixa (…) de Depósito, esta concedeu à sociedade executada um empréstimo sob a forma de abertura de crédito até ao montante de € 1.400.000,00 (um milhão e quatrocentos mil), destinado à construção de edifício na parcela de terreno para construção urbana, denominada lote 68, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o nº (…)/20010914, da freguesia da Gâmbia – Pontes – Alto da Guerra.
A dívida emergente do empréstimo descrito encontra-se garantida por hipoteca sobre as fracções penhoradas nos presentes autos e o capital mutuado vence juros, à taxa inicial de 6,389%, posteriormente alterada nos termos constantes dos documentos particulares outorgados em 27/10/2009, 08/11/2010 e 02/11/2011, sendo de 7,776% a taxa em vigor no seguimento da última alteração contratual. Foi convencionada uma taxa de juro especial em caso de mora e contratualizada uma comissão.
4 – A executada é devedora à Fazenda Nacional de Imposto Municipal sobre Imóveis, incidente sobre as fracções designadas pelas letras “G” e “P”, devido desde 2012 a 2013, no valor de € 1.548,72, acrescida de juros de mora nos termos do artigo 3º do DL nº 73/99, de 16/03.
5 – A executada é devedora à Fazenda Nacional de Imposto sobre o Rendimento Singular, devido desde 2012, no valor de € 184,25, acrescido de juros de mora.
6 – A executada não pagou ao “Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Setúbal” as contribuições e quotizações referentes aos meses de Dezembro de 2007, Janeiro de 2008, Novembro e Dezembro de 2009 e Outubro de 2011 a Agosto de 2012, no valor de € 7.573,54, acrescido de juros de mora.
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IV – Fundamentação:
Os privilégios são sempre de fonte legal e a razão da sua concessão liga-se, ou à qualidade dos credores, ou à natureza do próprio crédito[1]. O carácter real do privilégio não se reflecte só na preferência concedida ao credor de ser pago com preferência a outros credores. Também se revela na preferência que o privilégio tem, em certos casos, sobre o direito de terceiros adquirentes da coisa[2].
Os privilégios creditórios consistem em garantias que são concedidas por lei a determinados credores de serem pagos com preferência face aos demais, podendo ser mobiliários ou imobiliários (artigos 733º e 735º, nº 1, do Código Civil).
Os privilégios imobiliários são especiais e têm por objectivo garantir através de concretos imóveis do devedor o pagamento de certos créditos, cuja fonte está em conexão directa com os imóveis sobre os quais incide o privilégio (artigos 733º, 738º a 742º do Código Civil).
Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores (artigo 751º do Código Civil, com a redacção introduzida pelo DL nº 38/2003, de 08/03).
Esta garantia visa apenas assegurar dívidas que, por sua natureza, se encontram especialmente relacionadas com determinados bens do devedor, justificando-se, portanto que sejam pagas de preferência a quaisquer outras, até ao valor dos mesmos bens. As semelhanças com a hipoteca legal mostram-se evidentes[3].
As garantias especiais consistem em situações em que a posição do credor aparece reforçada para além do que resultaria simplesmente da responsabilidade patrimonial do devedor. Este reforço pode ter carácter quantitativo ou qualitativo, surgindo este, na lição de Menezes Leitão, «quando o credor adquire o direito de ser pago com preferência sobre outros credores, em relação a bens determinados ou rendimentos desses bens (caso das garantias reais, que também proporcionam um reforço quantitativo quando são constituídas por terceiro, da separação de patrimónios e ainda da cessão de bens aos credores)»[4].
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De acordo com a disciplina vertida no nº 1 do artigo 744º do Código Civil, os créditos por contribuição predial devida ao Estado ou às autarquias locais, inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou acto equivalente, e nos dois anos anteriores, têm privilégio sobre os bens cujos rendimentos estão sujeitos àquela contribuição.
As dívidas provenientes de juros de mora gozam dos mesmos privilégios que por lei sejam atribuídos às dívidas sobre que recaírem, face ao consignado no artigo 8º do DL nº 73/99, de 16/03.
Invoca a exequente que os «créditos executivos que constam da certidão de dívida da AT são respeitantes a dívidas fiscais de 2008, 2009 e 2012». Porém, da análise da certidão de dívidas e do detalhe da demonstração de liquidação juntos aos autos resulta que as dívidas reclamadas a título de Imposto Municipal sobre Imóveis se venceram em 2012, 2013 e 2014. E, como tal, são abrangidas pela esfera de protecção da lei, atribuindo assim ao Estado um privilégio imobiliário especial.
E a simples análise da certidão junta aos autos permite reconstituir os créditos associados às referências U-(…)-G e U-(…)-P que correspondem respectivamente às fracções penhoradas “G” e “P” e apurar os montantes devidos relativamente a cada um dos prédios.
A ordem de graduação dos privilégios imobiliários está provisionada no artigo 748º[5] do Código Civil e no concurso entre o direito de crédito do Estado ou das autarquias locais e o direito de crédito das instituições de segurança social derivado da taxa contributiva, prevalece o primeiro[6].
A circunstância da lista de dívidas junta pela Fazenda Pública indicar que as mesmas já se encontram garantidas por penhoras não retira a preferência no pagamento decorrente da existência de privilégio imobiliário especial.
O único cuidado a ter no pagamento do IMI em falta é que cada um dos imóveis responde individualmente pelas dívidas concretamente reportadas às fracções “G”[7] e “P”, admitindo-se neste ponto que a sentença poderia ter sido mais esclarecedora, carecendo, no entanto, de qualquer sentido a invocação da nulidade por falta de fundamentação[8] [9] [10].
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Quanto à sua natureza, a hipoteca limita-se às faculdades de executar a coisa e de obter pagamento sobre o seu valor, com preferência em relação aos demais credores do devedor.
É indiscutível que a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artigo 686º, nº 1, do Código Civil).
A obrigação garantida pela hipoteca pode ser futura ou condicional (artigo 686º, nº 2, do Código Civil) e as especificidades da hipoteca voluntária (aquela que nasce de contrato, de testamento ou de declaração unilateral) estão regulamentadas nos artigos 712º a 717º do Código Civil.
Os acessórios do crédito hipotecário abrangem os juros relativos a três anos, salvo convenção em contrário, tal como impõe a regra impressa no artigo 693º[11] do Código Civil.
Relativamente à preferência da hipoteca sobre créditos da segurança social e decorrentes e imposto relativa aos rendimentos singulares é de atender aos acórdãos do Tribunal Constitucional, de 16 de Outubro de 2002, registados sob os nºs 362/2002 e 363/2003.
Os créditos garantidos por hipoteca prevalecem sobre os créditos que beneficiam de privilégio imobiliário geral[12] [13] [14] [15].
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O Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho teve por objectivo definir as garantias que assistem aos créditos por contribuições do regime geral de previdência (ou segurança social) e aos respectivos juros de mora, por forma a acautelar mais eficazmente os interesses da população beneficiária.
Com esta intenção, são graduados logo a seguir aos do Estado os privilégios mobiliários gerais e os privilégios imobiliários de que os créditos às caixas gozam [16] [17].
A matéria do privilégio mobiliário e do privilégio imobiliário concedida às caixas de previdência foi objecto de intervenção legislativa com edição do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, mais precisamente nos artigos 10º[18] e 11º[19] do citado diploma.
A recorrente advoga que o crédito do Instituto da Segurança Social deve ser graduado em último lugar, após o crédito exequendo. Em benefício da sua tese, a recorrente invoca a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 11º do Decreto-lei nº 103/80, de 9 de Maio, proclama no acórdão do Tribunal Constitucional, de 16 de Outubro de 2002[20]. Porém, aquele aresto visa tão só a protecção dos titulares de hipoteca e não dos credores comuns que beneficiam de penhora.
Os créditos da Fazenda Pública, relativos a IRS, apenas gozam de privilégio imobiliário geral, nos termos do artigo 111º do CIRS, não prevalecendo sobre os créditos reclamados garantidos por hipoteca. Concorrendo à graduação créditos de ambas as proveniências, os créditos pelas contribuições à Segurança Social logram preferência sobre os créditos de IRS[21].
No entanto, o crédito do ISS e o crédito por IRS, gozando dum privilégio que, sendo imobiliário, não é especial, não aproveitam da oponibilidade a terceiros conferida pelo artigo 751º do Código Civil; pelo que, não valendo o privilégio de tais créditos «contra terceiros, titulares de direitos que recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente», não valem em relação ao crédito garantido por hipoteca[22].
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Para pagamento do IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro ato equivalente, conforme se extraí do disposto no artigo 111º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
O privilégio creditório abrange ainda os juros relativos aos últimos dois anos, se forem devidos, face ao critério estabelecido no artigo 734º do Código Civil
É actualmente incontroverso que os créditos reclamados pela Fazenda Pública, relativos a IRS, gozando apenas do privilégio imobiliário nos termos do artigo 111º do CIRS, não preferem aos créditos também reclamados garantidos por hipoteca, face ao teor do acórdão do Tribunal Constitucional nº 362/2002[23], de 16 de Outubro.
No entanto, a disciplina prevista naquele aresto não é aplicável à situação da penhora e o Tribunal «a quo» tem assim razão quando graduou o crédito de IRS atrás da hipoteca e com preferência de pagamento relativamente ao crédito garantido por penhora.
Na situação vertente, os créditos provenientes de IRS, por se referirem aos três últimos anos, beneficiam de privilégio creditório imobiliário sobre os bens existentes no património do executado à data da penhora.
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O crédito do exequente goza da garantia de penhora, que lhe confere o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior, de acordo com a disciplina contida no artigo 822º[24] do Código Civil.
Miguel Teixeira de Sousa afirma que «a penhora não é um direito real de garantia, mas é fonte de uma preferência sobre o produto da venda dos bens penhorados, dado que o exequente adquire por ela o direito a ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior (artigo 822º, nº 1, do Código Civil). Esta regra prevê a hipótese de existirem, além do exequente, outros credores com garantias reais sobre os bens penhorados ou com uma segunda penhora sobre esses mesmos bens e destina-se a hierarquizar o crédito do exequente na sua relação com os créditos que beneficiam dessas garantias ou daquela penhora»[25].
E mesmo os autores que consideram que a penhora é uma garantia real das obrigações, sublinham que a mesma não é plena, pois a preferência «não será atendida nos casos de liquidação de herança declarada vaga para o Estado e de falência ou insolvência do executado»[26].
No caso dos autos, como já atrás referimos, a situação é diversa daquela que deu origem às declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral acima convocadas, pois o que está em causa é saber se é constitucionalmente admissível que o privilégio imobiliário geral atribuído pela disposição em causa aos créditos da segurança social possa preferir, já não à hipoteca, mas à garantia conferida pela penhora ao credor comum.
Contrariamente ao que ocorre na ocorrência da hipoteca e do privilégio imobiliário ou mobiliário geral, o Tribunal Constitucional entende que não há lugar a qualquer violação do princípio da confiança dos demais credores, nem a preferência se mostra arbitrária, irrazoável ou desproporcional à protecção conferida pela penhora[27].
Na realidade, o credor comum que obteve a penhora do imóvel não tem uma expectativa jurídica tão forte como a do credor hipotecário e, por isso, os créditos de IRS, IRC, IVA e por Contribuições à Segurança Social prevalecem na graduação sobre os créditos comuns garantidos por penhora. Esta é a jurisprudência constante e consolidada dos Tribunais Superiores comuns.
No mesmo sentido, acolhendo esta jurisprudência do Tribunal Constitucional, já se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo, nos recursos registados sob os números 648/11, de 18/01/2012, 0173/12 de 23/05/2012 e 315/12, de 05/07/2012, disponíveis em www.dgsi.pt.
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Em síntese conclusiva, a sentença em discussão não padece dos vícios que lhe foram imputados e a graduação foi efectuada em conformidade com os comandos legais editados a propósito do concurso e graduação de créditos. E, nesta ordem lógica, mantém-se a decisão recorrida.
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V – Sumário:
(...)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo da apelante nos termos do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 28 de Junho de 2018
José Manuel Galo Tomé de Carvalho
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[1] Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2009, pág. 161.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), Coimbra Editora, Coimbra 2010, pág. 755.
[3] Almeida e Costa, Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 1991, pág. 814-815.
[4] Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, 4ª edição, Almedina, Coimbra 2006, pág. 317.
[5] Artigo 748º (Ordem dos outros privilégios imobiliários):
1. Os créditos com privilégio imobiliário graduam-se pela ordem seguinte:
a) Os créditos do Estado, pela contribuição predial, pela sisa e pelo imposto sobre as sucessões e doações;
b) Os créditos das autarquias locais, pela contribuição predial.
A contribuição autárquica goza das garantias especiais previstas no Código Civil para a contribuição predial, conforme decorre do artigo 24º, nº 1, do DL nº 442-C/88, de 30/11.
[6] Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 252.
[7] A circunstância do Ministério Público ter, por lapso, feito referência a apenas um dos prédios não impede que o Tribunal da Relação de Évora possa reconstituir a verdade histórica, por via da força probatória que é conferida aos documentos autênticos e aos poderes de investigação confiados ao julgador.
[8] Seguindo em absoluto a lição de Alberto dos Reis, Código de Processo Civil (Anotado), Vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1984, pág. 140, «há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto».
[9] No mesmo sentido pronunciam-se Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição – Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 687.
[10] Igual posicionamento teórico é adoptado por Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, pág. 670.
[11] Artigo 693º (Acessórios do crédito):
1. A hipoteca assegura os acessórios do crédito que constem do registo.
2. Tratando-se de juros, a hipoteca nunca abrange, não obstante convenção em contrário, mais do que os relativos a três anos.
3. O disposto no número anterior não impede o registo de nova hipoteca em relação a juros em dívida.
[12] No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/10/2005, in www.dgsi.pt, é afirmado que «o artigo 751º do Cód. Civil contém um princípio geral insusceptível de aplicação ao privilégio imobiliário geral, por este não incidir sobre bens determinados, pelo que não está envolvido de sequela.
Assim, os direitos de crédito garantidos por tais privilégios cedem perante direitos de crédito garantidos por hipoteca».
[13] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04/07/2013, in www.dgsi.pt.
[14] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/03/2015, in www.dgsi.pt.
[15] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/05/2009, in www.dgsi.pt.
[16] Artigo 1º
1 – Os créditos pelas contribuições do regime geral de Previdência e os respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil.
2 – Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.
[17] Artigo 2º
Os créditos pelas contribuições do regime geral de Previdência e respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil.
[18] Artigo 10º (Privilégio mobiliário):
1 – Os créditos das caixas de previdência por contribuições e os respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil.
2 – Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.
[19] Artigo 11º (Privilégio imobiliário):
Os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição, e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748º do Código Civil.
[20] Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 51.º do Código Civil
[21] Neste sentido, pode ser consultado o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18/01/2012, in www.dgsi.pt.
[22] Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 15/02/2011, in www.dgsi.pt.
[23] Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante, na versão primitiva, do artigo 104.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na numeração resultante do Decreto-Lei n.º 198/2001, de 2 de Julho, do seu artigo 111.º, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil.
[24] Artigo 822º (Preferência resultante da penhora):
1. Salvo nos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior.
2. Tendo os bens do executado sido previamente arrestados, a anterioridade da penhora reporta-se à data do arresto.
[25] Acção Executiva Singular, pág. 251.
[26] Almeida Costa, Noções de Direito Civil, 2ª edição, pág. 260.
[27] Acórdãos nºs 688/98, 193/2003 e 697/2004, entre outros, in www.tribunalconstitucional.pt.