Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1507/10.7TBABF.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
ERRO CENSURÁVEL
Data do Acordão: 03/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - É da competência dos tribunais comuns o conhecimento de uma acção proposta contra um laboratório de análises (por erro nas análises), mesmo que ele tenha acordos com o SNS.
II - O pedido de realização de análises por um interessado e consequente realização pelo laboratório é um contrato de prestação de serviços.
III - Os trabalhadores de uma pessoa colectiva não são comissários nem representantes legais ou auxiliares do devedor.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1507/10.7TBABF.E1 (2.ª Secção)
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…) e (…), por si e em representação de (…) e (…) e (…), cuja identificação completa consta dos autos, intentaram contra “(…) – LABORATÓRIOS DE ANÁLISES CLÍNICAS, S.A. e (…), cujas identificações completas constam dos autos, ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum ordinário, pedindo que, pela procedência da mesma, os réus sejam solidariamente condenados ao pagamento uma indemnização global no valor de € 750.000,00, cabendo a:
A) (…) a quantia de € 250.000,00;
B) (…) a quantia de € 250.000,00;
C) (…) a quantia de € 150.000,00;
D) (…) a quantia € 50.000,00;
E) (…) a quantia de € 50.000,00.
Alegaram, para tanto, que por causa de um erro das RR. nas análises efectuadas ao A. menor (por meio de recolha do exsudado orofaríngeo e que revelarem a existência de espermatozóides, o que se veio a revelar fruto de erro) sofreram diversos danos morais.
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As RR. contestaram defendendo a improcedência da acção.
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A ré (…) veio ainda deduzir incidente de intervenção principal provocada da Companhia de Seguros (…), S.A, alegando que celebrou um contrato de seguro com a mesma, nos termos do qual transferiu a responsabilidade civil decorrente de erros de natureza profissional cometido pelas pessoas ao seu serviço.
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Foi admitida a intervenção da Companhia de Seguros (…), S.A mas como parte acessória da Ré (…), Lda..
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A interveniente contestou defendendo também a improcedência da acção.
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O processo seguiu os seus termos e, depois de realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença cuja parte decisória é a seguinte:
Julga-se a ação parcialmente procedente e, em conformidade, decide-se:
1) Condenar a ré (…), Lda. a pagar aos autores:
1.1. (…): € 25.000,00 (vinte e cinco euros);
1.2. (…): € 100.000,00 (cem mil euros);
1.3. (…): € 125.000,00 (cento e vinte cinco mil euros);
1.4. (…): € 15.000,00 (quinze mil euros);
1.5. (…): € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros);
2) Absolver a ré (…), Lda. do restante pedido;
3) Absolver a ré (…) da totalidade do pedido;
4) Condenar autores e ré (…), Lda., no pagamento das custas da acção, na proporção do respectivo decaimento;
5) Declarar que a presente sentença constitui caso julgado quanto à Companhia de Seguros (…), S.A., relativamente às questões de que dependa o direito de regresso da autora do chamamento.
Foi também decidido julgar o tribunal competente em razão da matéria.
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Desta sentença recorre a R. (…), Lda. impugnando a matéria de facto bem como a solução de direito. Defende que deve ser absolvida do pedido, ou, em caso de se entender não haver lugar à sua absolvição, condenando-se nos mesmos termos e solidariamente a Recorrida (…).
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Recorreu também, autonomamente, da decisão sobre a competência.
Este recurso já foi julgado e foi decidido não conhecer dele porque tal questão deve ser tratada no acórdão final.
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Foram colhidos os vistos.
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Devemos começar pela questão da competência material do tribunal para conhecer da presente acção.
O seu art.º 1.º tem o seguinte teor: «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
São os litígios que surgem no âmbito das relações administrativas que constituem o objecto desta jurisdição e, por isso, definem a sua competência. O art.º 4.º, ao elencar um conjunto de matérias, não o faz de forma taxativa, como logo resulta da utilização do advérbio «nomeadamente». Significa isto que as diversas alíneas do n.º 1 daquele preceito legal não esgotam o objecto da jurisdição administrativa. Lê-se no ac. da Relação de Lisboa, de 13 de Março de 2014, o seguinte: a «actual definição legal, na esteira da lei fundamental, deixou de estribar a delimitação da jurisdição administrativa na distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, deslocando o pólo aglutinador para o conceito de relação jurídica administrativa e de função administrativa, em que avulta a realização de um interesse público levado a cabo através do exercício de um poder público e, portanto, de autoridade, seja por uma entidade pública, seja por uma entidade privada, em que esta actua no uso de prerrogativas próprias daquele poder ou no âmbito de uma actividade regulada por normas do direito administrativo ou fiscal».
A jurisdição administrativa não é hoje uma jurisdição por atribuição, no sentido de que a ela cabe conhecer dos litígios que a lei expressa e restritivamente indica. Como se escreve no mesmo acórdão, os «tribunais administrativos são, actualmente, os verdadeiros tribunais comuns em matéria administrativa». A sua competência abrange a quase totalidade, se não mesmo a totalidade, dos litígios que envolvam a Administração Pública, seja directamente, seja por intermédio de particulares que a ela se associam para prosseguir objectivos públicos, com base nos instrumentos jurídicos disponíveis.
A expressão «relação jurídica administrativa» pode ter diversos sentidos. Um subjectivo que se pode entender «como qualquer relação em que intervenha a Administração»; um tendencialmente objectivo «como a relação em que intervenham entes públicos, mas desde que sejam reguladas pelo Direito Administrativo»; e um outro sentido «associado agora à ideia do âmbito da própria função administrativa» (Vieira de Andrade, «Âmbito e Limites da Jurisdição Administrativa» em Reforma do Contencioso Administrativo Trabalhos Preparatórios O Debate Universitário, ed. do Ministério da Justiça, s. d., p. 102).
O certo, em todo o caso, é que, coligados aqueles sentidos da expressão, a reforma acabou entregar à jurisdição administrativa os litígios com a Administração Pública. Como logo se escreveu após a reforma de 2002, «uma das grandes novidades desta reforma do contencioso administrativo reside precisamente (…) na eliminação da referência às questões de direito privado no elenco de matérias que se consideram excluídas do foro administrativo. Finalmente desaparece a dicotomia tradicional “gestão pública/ gestão privada” como critério de repartição de competência entre o foro administrativo e o foro comum» (cfr. M.ª João Estorninho, «A reforma de 2002 e o Âmbito da Jurisdição Administrativa», em C.J.A., n.º 35, p. 5). E logo adianta: «Sintomática desta eliminação da dicotomia “gestão pública/gestão privada” é a atribuição aos tribunais administrativos, no art.º 4º., n.º 1, alínea g), do novo ETAF, de todo o contencioso da responsabilidade civil extracontratual das pessoas, colectivas de direito público (e não apenas, como agora acontece, do contencioso da responsabilidade civil extra-contratual por actos de gestão pública)» (idem, ibidem).
Ou seja, afastou-se, como fulcro da atribuição da competência, o carácter administrativo ou privado do litígio para, em seu lugar, aceitar o carácter subjectivo, isto é, o litígio que existe com uma pessoa colectiva de direito público.
Ou que com isto esteja relacionado.
O art.º 10.º, n.º 9, CPTA, dispõe que podem «ser demandados particulares ou concessionários, no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares». Dito de outra forma, podem ser demandados particulares que estejam envolvidos com outros particulares no âmbito de uma relação jurídica administrativa. Mas a relação que se estabeleceu entre as partes nesta acção nada tem de administrativo, tem de comercial. Os AA. dirigiram-se ao laboratório da R. como podiam ter ido a outro qualquer, tivesse ou não tivesse acordo com o SNS. A R. é uma sociedade comercial, logo, uma pessoa colectiva de direito privado e tanto pode fazer análises em cumprimento dos referidos acordos como pode não o fazer. A natureza da actividade (comercial) não muda.
Como se escreve na sentença, a R. é um «prestador de serviços de saúde integrada no sector privado e não na qualidade de prestador de saúde integrado no serviço nacional de saúde, pelo que estamos no âmbito das relações jurídicas de direito privado».
Por isso entendemos que o tribunal civil é o competente para conhecer desta acção.
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Em relação à prova, não podemos deixar de ter em mente que o tribunal recorrido fundamentou a sua convicção, e explicou-a, ao longo de 38 páginas, facto a facto, relatório a relatório, depoimento a depoimento. Cremos ser difícil, salvo o caso de natural parcialidade da parte, passe o pleonasmo, que tenha havido erro de julgamento.
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A impugnação da matéria de facto começa por uma restrição ao facto provado n.º 13. Defende a recorrente que a técnica que fez a recolha para análise não pertence à Clínica (…) uma vez que o posto de colheita de (…) instalado na referida Clínica é parte integrante da Recorrente (razão por que a colheita veio depois a ser analisada no seu laboratório em …) e não pertence à dita Clínica.
Concordamos porque é uma confissão de um facto, o reconhecimento de que a recolha foi feita nas suas instalações por uma técnica sua. Independentemente do resultado que isto possa ter na relação com a seguradora, o certo é que ele é, objectivamente, desfavorável à recorrente.
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Os factos provados 22 e 23 devem ser, o primeiro, dado por não provado e, o segundo, deve ser alterado.
O seu teor é o seguinte:
22) Na realização do exame microbiológico referido em 21) foram reutilizadas lâminas que, em momento anterior à realização de tal exame, continham os espermatozoides mencionados no respectivo relatório;
23) Devido a tal reutilização, (…), técnica superior de biologia especialista em análises clínicas, observou os espermatozoides mencionados em 21).
O desacordo prende-se com o facto, que a recorrente não aceita, de ter havido reutilização das lâminas.
Entre uma hipótese avançada por uma testemunha (…) como a mais provável e o depoimento cerrado de outras a afirmar que não há, de maneira nenhuma, reutilização de lâminas, podia o tribunal recorrido aceitar a hipótese.
Entendemos que podia e, até, que devia pela razão que não vemos outra maneira de as análises mostrarem o resultado que mostraram. Todo o caso gira à volta de um erro pois que não há dúvidas que erro houve. Por isso, o plausível é que, não obstante os cuidados na recolha do material para exame, tenha acontecido por uma vez que tais cuidados não tenham sido observados. Sem dúvida que o relatório da Inspecção Geral das Actividades em Saúde concluiu pela correcção dos procedimentos levados a cabo no laboratório da R. e refere, inclusivamente, que nada indicia a existência de qualquer deficiência, quer no que respeita à colheita de amostras, quer no que respeita ao exame e análise em laboratório.
Mas, então, como aconteceu isto? Como aconteceu que o exame da amostra recolhida ao menor contivesse vestígios de espermatozóides quando tal não era verdade? É que as partes estão todas de acordo quanto a este último ponto. Por isso, pode-se afirmar que em 99% dos casos as recolhas e análises estão correctas; em 1% não estão — o que foi o caso. Note-se que se nada de errado tivesse acontecido, nunca o resultado da análise aqui em causa seria o que foi.
E é aqui que o depoimento da Senhora Dr.ª (…), perita, especialista de medicina legal, merece a relevância que o tribunal lhe deu. As conclusões que se podem retirar da sua análise são as seguintes: na lâmina em questão existem duas zonas distintas, uma pertencente ao menor e outra não; na primeira não se encontram vestígios de espermatozóides, na segunda sim. Deixa de ser só uma hipótese plausível, provável; passa a ser a única explicação.
Que outra explicação pode haver que não a reutilização das lâminas? Avança a recorrente com alguma? Não. Limita-se a dizer que não compete à Recorrente provar o sucedido nem explicar por que razão havia características genéticas de um terceiro no exsudado do menor (p. 17 das alegações). Seria melhor que o fizesse em ordem a melhor se apurar o circunstancialismo das coisas, isto é, em ordem a afastar a versão que o tribunal colheu.
O tribunal não escamoteou a questão e preferiu assumir que do «que fica dito resulta que foi possível apurar um conjunto de factores que corroboram fortemente a hipótese de reutilização de lâminas». Não está aqui uma afirmação absolutamente positiva mas sim que se chegou a um resultado que a prova, com todas as fragilidades que possa ter, indicou.
Assim, mantém-se as respostas como estão.
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A impugnação prossegue para os pontos 39 a 42, 44 e 47 da matéria de facto que são estes:
39) Na sequência da instauração do processo mencionado em 29.2., em data não apurada, mas posterior a 5.6.2009 e anterior a 19.6.2009, duas técnicas da Segurança Social e militares da GNR fizeram uma visita ao domicílio dos avós maternos do menor, onde, permaneceram mais de 2 horas;
40) Nessa visita, a avó materna do menor foi questionada pelas referidas técnicas sobre se: o menor tinha quarto próprio, se dormia na cama dos pais, quais as pessoas do sexo masculino com que se relacionava, como se relacionava com essas pessoas, nomeadamente o pai, o avô materno, o avô paterno, e padrinho, quanto tempo passava com essas pessoas, como é que os pais do menor se conhecerem, quanto tempo durou o namoro, se na creche de relacionava com pessoas do sexo masculino;
41) Durante a inspeção e interrogatório das assistentes sociais, os elementos da GNR não abandonaram o local, afirmando terem ordens para permanecerem;
42) Posteriormente à visita mencionada em 39) a GNR, em data não apurada, mas anterior a 19.6.2009, voltou a deslocar-se à casa dos avós maternos;
44) As assistentes sociais, aquando da visita mencionada em 39), informaram a autora (…), que transmitiu aos demais autores, que a mesma estava relacionada com um processo a decorrer no Tribunal de Família e Menores de Portimão, não informando sobre os motivos da instauração de tal processo, o mesmo sucedendo aquando da visita mencionada em 42), o que levou os autores a concluir que algo de anormal se passava, provocando-lhes inquietação;
46) A Dra. (…) transmitiu aos autores (…) e (…) e (…) e (…), em data anterior a 19.6.2009, a informação que havia colhido junto do Tribunal de Família e Menores de Portimão, o que os deixou devastados;
47) As visitas da GNR mencionadas em 39), 42) e 43) despertaram a curiosidade dos vizinhos.
Entende a recorrente que os depoimentos de parte não podem ser utilizados por foça do disposto no art.º 466.º, n.º 1, Cód. Proc. Civil; por outro lado, não podem ser acriticamente considerados apenas por serem os únicos meios de prova produzidos sobre determinada factualidade.
A prova por declarações da parte deve incidir sobre factos pessoais ou de que o depoente tenha conhecimento directo. Significa isto que sobre mais nada pode o depoimento ser considerado?
Cremos que não porque a lei também manda aplicar as regras da prova testemunhal cujo âmbito se não restringe aos factos de que a testemunha tenha só conhecimento pessoa e directo. Por outro lado, também o depoimento de parte é apreciado livremente. A circunstância de o depoimento não incidir só sobre os factos indicados no preceito legal não significa que ele não possa ser aproveitado como um (mais um) depoimento sobre uma dada situação. Ponto é que ele seja credível e o ser parte, por si só, não o torna impossível de acreditar. O tribunal não está obrigado a recusar uma afirmação de facto só porque ela foi produzida por uma parte que dele tomou conhecimento por outra via que não a pessoal. Pensamos que é ir longe demais nos termos de produção e valoração desta prova.
Aliás, o tribunal explica porque considera os depoimentos como credíveis.
A recorrente invoca ainda discrepâncias entre os depoimentos prestados no inquérito. Mas estes não têm de ser necessariamente iguais, o mais natural é que existam as tais discrepâncias (cfr. p. 64 da sentença). Por outro lado, é a prova produzida na audiência de julgamento a que deve ser considerada e não a produzida no inquérito.
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O mesmo se dirá quanto aos factos 50 a 61 que se referem aos danos sofridos.
As declarações prestadas na Polícia Judiciária não podem ser utilizadas aqui para contradizer a prova que aqui foi feita. Poderia levar a duvidar da credibilidade das pessoas em questão mas essa foi afirmada pelo tribunal e não infirmada pelo recurso.
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A recorrente defende ainda que devem ser dados por provados dois factos que o tribunal deu como provados.
São eles:
d) Ao efectuar o procedimento mencionado em 25) dos factos provados, a ré (…) constatou uma vez mais a existência de espermatozoides em algumas das lâminas;
i) O descrito em 22) dos factos provados foi colocado como hipótese no relatório elaborado pelo INML junto a fls. 117/121 dos autos.
A respeito do primeiro, escreve-se na sentença:
«É verdade que a ré (…) e a testemunha (…), técnica que, em primeiro lugar, observou os espermatozoides, relataram que ao repetirem a análise ao exsudado orofaríngeo do menor tornaram a observar espermatozoides vivos nas outras lâminas, o que faria concluir que os espermatozoides estariam misturados na própria amostra de exsudado orofaríngeo colhida na garganta do menor.
«Porém, a afirmação por parte das referidas pessoas de que também observaram espermatozoides nas lâminas que usaram para repetir a análise ao exsudado orofaríngeo do menor não nos mereceu credibilidade, dado que, essas lâminas foram remetidas ao IML e nelas não foram observados espermatozoides ou sequer ADN dos mesmos.
«Concretizando.
«É certo ré (…), numa das suas reinquirições, referiu que, com excepção da lâmina designada por n.º 2, que foi «parafinada” (colocada um lamela para a proteger da acção do ar), as restantes repetições da análise à amostra de exsudado orofaríngeo do menor foram feitas em lâminas que não foram coradas, o que explicaria o facto de no IML não ter sido observados espermatozoides, cujas células, por acção do ar, se desintegraram. Porém, a própria ré reconheceu, nessa reinquirição, que sempre seria encontrado ADN dos espermatozoides nessa lâminas, pois o ADN por ser encontrado nos mais diversos materiais (papel, vidro, etc.26).
«Ora, a Sra. Perita … (que foi quem elaborou o relatório do IML), corroborando o que foi dito pela ré (…), explicou que se em tais lâminas existissem espermatozoides, ainda que as células dos mesmos tivessem desaparecido pela exposição de tais lâminas ao meio ambiente, pelo menos o ADN dos espermatozoides seria sido detectado em tais lâminas e não o foi, o que nos leva a concluir que a mencionada observação de espermatozoides vivos aquando das repetições das análises ao exsudado orofaríngeo do menor não corresponde à realidade. Dito de outra forma, o conhecimento científico (necessidade de, pelo menos o ADN dos espermatozoides ter sido detectado nas demais lâminas) infirma categoricamente a prova testemunhal e depoimento de parte, na parte em que sustentou terem sido observados espermatozoides nas repetições das análises ao exsudado orofaríngeo do menor.
«Não se argumente que houve uma lâmina que não foi observada pelo IML, a designada por lâmina n.º 2, dado que, como referiu a Sra. Perita (…), tendo sido observadas as demais lâminas, a observação da lâmina designada por número 2 tornava-se desnecessária. Acresce que a mesma só não foi observada dado que por cima da mesma estava colada uma lamela de um modo que nunca havia observado. Dito de outra forma, o modo como havia sido colocada a lamela naquela lâmina não estava de acordo com os procedimentos conhecidos.
«Em suma, a ser verdade que foram observados espermatozoides nas demais lâminas, o ADN dos mesmos teria de ter sido observado em todas as lâminas e não apenas na lâmina n.º 2».
Este excerto explica (mesmo que não convença a recorrente) as razões por que o tribunal deu por provados os factos 22 e 23, já acima transcritos. E contra isto não vemos argumentos.
O segundo facto é a apresentação de uma hipótese, hipótese esta que foi ponderada pelo tribunal nos termos que já se deixaram expostos. Daqui, parece, a recorrente defende que não passa de uma vaga e ténue hipótese; não. Como já se disse, houve boas razões para considerá-la verosímil e muito provável; e, por isso, o tribunal respondeu aos n.º 22 e 23 da maneira que o fez.
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A recorrente acusa ainda o tribunal de fazer elaboradas conjecturas com base em factos e presunções deles decorrentes (pp. 19 e segs. das alegações). Mas não tem razão. O tribunal socorreu-se dos factos que lhe foram chegando ao conhecimento e no confronto de todos (quesitados e não quesitados) respondeu à matéria de facto. Não se socorreu de presunções para estabelecer os factos em discussão mas teve-os em conta para achar a solução mais plausível e mais conforme com a prova produzida. Não teria, eventualmente, necessidade destes raciocínios se a recorrente tentasse, então e de uma vez por todas, explicar as razões do sucedido. Mas já vimos que entende que não lhe cabe fazer isso.
Por isso julga-se improcedente o recurso quanto a esta parte.
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A matéria de facto é a seguinte:
1) O autor (…) nasceu em 18.1.2006 e é filho dos autores (…) e (…);
2) Em 2008 (…) foi sujeito a uma intervenção cirúrgica à garganta, que o deixou vulnerável a infeções na garganta;
3) Por esse motivo, o médico de família, Dr. (…), solicitava periodicamente análises ao menor;
4) Na semana de 11 a 17 de Maio de 2009, (…) esteve com febre, tosse e expectoração, razão pela qual não frequentou o infantário onde se encontrava matriculado;
5) No fim-de-semana de 15 a 17 de Maio de 2009, (…) ausentou-se para Braga por motivos profissionais;
6) Durante esse fim-de-semana, o menor ficou aos cuidados do pai;
7) No domingo dia 17 de Maio de 2009, o menor e o pai não saíram de casa, tendo a companhia dos avós paternos durante o almoço;
8) (…) regressou a casa pelas 7h00 do dia 18 de Maio de 2009;
9) Na parte da manhã desse dia 18 de Maio de 2009, (…) e (…) levaram (…) ao Centro de Saúde de (…), para ser observado pelo médico de família, Dr. (…);
10) Antes de sair de casa, o menor tomou o pequeno-almoço;
11) Enquanto esperava, pela consulta no Centro de Saúde de Albufeira, o menor ingeriu água e bolachas;
12) Após a consulta com o Dr. (…), (…) e (…) levaram o (…) à Clínica “(…) - Centro de (…) e (…) (…), Lda.”, para ser feita a recolha do material de exsudado orofaríngeo do menor, necessário para a realização das análises receitadas pelo médico de família;
13) Com vista a efetuar a recolha do material de exsudado referido em 12), uma das técnicas do posto de colheitas do Laboratório (…), instalado na Clínica (…), introduziu uma zaragatoa na boca do menor, que a cuspiu, razão pela qual foi deitada no lixo”.
14) Perante a reacção referida em 13), e com o acordo de todos, o menor foi sentado no colo do pai, enquanto a mãe lhe tentava introduzir uma nova zaragatoa na boca;
15) Durante o procedimento referido em 14), a mãe do menor, que não utilizava luvas, acabou por tocar com uma mão na referida zaragatoa, razão pela qual a mesma foi deitada no lixo inserida no tubo destinado ao seu acondicionamento;
16) O referido tubo já se encontrava etiquetado com os dados referentes à identificação do menor;
17) Foi feita nova colheita do material de exsudado orofaríngeo, desta vez pela técnica, com nova zaragatoa;
18) Como o novo tubo destinado a acondicionar a nova zaragatoa não estava etiquetado, uma técnica acabou por ir ao lixo recuperar a etiqueta com os dados referentes à identificação do menor e colou-a no novo tubo;
19) No gabinete da “(…), Lda.” onde foram praticados os actos descritos em 13) a 18), não se procede a quaisquer colheitas de esperma ou de produtos biológicos vaginais, não tendo sido realizados, na manhã do dia 18 de Maio de 2009 e nos dois dias anteriores, nas instalações da “(…), Lda.” qualquer colheita destinada a espermogramas ou análise de exsudados vaginais;
20) A colheita referida em 17) foi entregue no Laboratório (…), para realização das análises receitadas pelo Dr. (…), pelas 14h00 do mesmo dia;
21) Realizadas as análises referidas em 20), foi elaborado pelo Laboratório (…) relatório que, no exame microbiológico de exsudado orofaríngeo do menor, mencionava: “observaram-se bastantes espermatozoides”;
22) Na realização do exame microbiológico referido em 21) foram reutilizadas lâminas que, em momento anterior à realização de tal exame, continham os espermatozoides mencionados no respectivo relatório;
23) Devido a tal reutilização, (…), técnica superior de biologia especialista em análises clínicas, observou os espermatozoides mencionados em 21);
24) Na sequência dessa observação (…) chamou a ré (…), na qualidade de Directora Técnica do Laboratório (…), a qual, sem ter sido previamente informada do que ia observar, confirmou a observação mencionada em 23);
25) A ré (…) depositou novas gotas de material de exsuado orofaríngeo do menor em novas lâminas e submeteu-as a observação microscópica;
26) A presença de espermatozoides vivos em exsudados orofaríngeos não pode ser superior a 12 horas;
27) A ré (…), na qualidade de Directora Técnica, comunicou telefonicamente o resultado mencionado em 21) ao médico requisitante, tendo diligenciado para que esses resultados lhe fossem entregues confidencialmente e em mão por uma funcionária do Laboratório;
28) O Dr. (…) deu conhecimento da situação à Delegação de Saúde de (…), que, por sua vez, promoveu a comunicação ao Ministério Público e ao Tribunal de Família e Menores de Portimão;
29) Na sequência dessas comunicações e em face do resultado das análises referido em 21):
29.1. Foi instaurado o processo de inquérito que correu termos pelos Serviços do Ministério Público de Albufeira sob o nº …/09.3TAABF, para se apurar se existiam factos integradores do crime de abuso sexual de criança;
29.2. Foi instaurado o Processo nº …/09.4TBPTM do Tribunal de Família e Menores de Portimão, aferir o menor estava em situação de risco;
29.3. O Laboratório (…) foi objecto de uma inspecção levada a cabo pela IGAS em 17.6.2009, sendo que no respectivo relatório se concluiu: “o risco de contaminação, de origem química ou biológica, a nível das determinações realizadas no laboratório, revela estar minimizado, face a instalações, equipamento e práticas, sendo a existência de um sistema da qualidade, e o envolvimento em programas de avaliação, garantia dessa minimização” e “que nada do que foi apurado em sede da acção de fiscalização em causa indicia a existência de qualquer deficiência, passível de consubstanciar um “cenário de contaminação”, quer no que respeita à colheita de amostras de produtos biológicos, quer no que respeita ao exame e análise em laboratório”;
30) Na sequência da instauração do inquérito mencionado em 29.1., foram entregues ao Instituto de Medicina Legal a lâmina onde foi feita a observação dos espermatozoides referidos em 21) e outras cinco lâminas, entre elas as mencionadas em 25), bem com a zaragatoa de exsudado orofaríngeo do menor, efectuada em soro fisiológico;
31) No dia 18 de Agosto de 2009 foi elaborado relatório pericial pelo IML, onde, além do mais se fez constar o seguinte:
31.1. Lâmina 1. Lâmina corada. A observação microscópica revelou a presença de duas zonas distintas nesta lâmina. Uma zona na qual foi observada a presença de espermatozoides, designada por zona 1 e outra zona, na qual não foi observada a presença de espermatozoides designada por zona 2.
31.2. Lâmina 2 – lâmina com vestígios e com lamela colada com um material de cor branca;
31.3. Lâminas 3 e 4 – lâminas não coradas, com círculo de cor preta a delimitar zonas com eventuais vestígios biológicos. Ao microscópio não foi efectuada visualização de espermatozoides;
31.4. Lâminas 5 e 6 – lâminas não coradas, com círculo de cor preta a delimitar zona com eventuais vestígios biológicos. Ao microscópio não foi efectuada visualização de espermatozoides;
31.5. Foram obtidos resultados genéticos de STRs autossómicos:
- Nas lâminas designadas por n.º 1 e n.º 6;
- Na zaragatoa de exsudado orofaríngeo;
- Nas zaragatoas bucais do ofendido e dos restantes intervenientes no Processo;
- Não foram obtidos resultados genéticos de STRs nos vestígios retirados pela lâmina n.º 4;
31.6. Foram obtidos resultados genéticos de STRs do cromossoma Y:
- Na lâmina designada por n.º 1 – na zona 2;
- Na lâmina designada pelo n.º 6;
- Na zaragatoa bucal do suspeito;
- Na zaragatoa de exsudado orofaríngeo;
- Nas zaragatoas bucais do ofendido e dos restantes intervenientes no Processo;
- Não foram obtidos resultados genéticos de STRS do cromossoma Y na lâmina designada pelo n.º 1 – na zona 1 e na lâmina designada pelo n.º 4;
31.7. Conclusões:
1ª- Pelo estudo dos STRs do cromossoma Y, verifica-se que:
- O perfil genético na lâmina designada pelo n.º 6 e na zaragatoa de exsudado orofaríngeo é coincidente com o perfil genético da linha paterna do ofendido (…), seu progenitor (…) e seu avô paterno (…),
2ª - Pelo estudo dos marcadores autossómicos de DNA, verifica-se que: - Na zaragatoa de exsudado orofaríngeo foi obtida uma mistura de características genéticas detectando-se características genéticas não coincidentes com nenhum dos restantes intervenientes.
- As características genéticas obtidas na lâmina designada pelo n.º 6, são coincidentes com as características genéticas obtidas na zaragatoa bucal do menor ofendido (…).
- As características genéticas obtidas na lâmina designada pelo n.º 1, lâmina corada na zona n.º 2, isto é, na zona onde não foram observados espermatozoides, são coincidentes com as características genéticas obtidas na zaragatoa bucal do menor ofendido (…).
3ª – Pelo estudo dos STrs do cromossoma Y e dos marcadores autossómicos de DNA os intervenientes (…), (…) e (…) não são contribuintes em nenhum dos vestígios estudados;
32) O valor unitário de cada lâmina, do tipo das referenciadas em 25), era, em Março de 2009, de € 0,018 (acrescido de IVA);
33) Os autores (…) e (…) prestaram depoimento em 30.6.2009 no âmbito do processo de inquérito nº …/09.3TAABF, tendo declarado o que consta dos autos de inquirição cujas certidões se encontram juntas a fls. 220/227, nomeadamente e além do mais, o seguinte:
33.1. A autora (…): “Após levantar os resultados das análises, dirigiu-se ao médico e foi aí informada pelo próprio Dr. (…) que tinha recebido um contacto telefónico por parte da Dra. (…), responsável pelo laboratório, informando terem sido detectados “bastantes espermatozoides”, mas tranquilizou-a, afirmando que seria improvável que fosse do marido… o Laboratório (…), Lda., em Faro, deve ser investigado, pois o próprio Dr. (…) pensa que pode ter havido algum engano na recolha, ou contágio já no próprio laboratório em Faro” e “não ter qualquer razão para suspeitar que alguma vez o marido tivesse qualquer atitude de abuso sexual em relação ao filho. Nunca o viu a ter qualquer conduta incorrecta. Por outro lado, não detectou qualquer alteração de comportamento entre pai e filho”;
33.2. O autor (…): “após levantar os resultados das análises, e ainda na (…), ao ler o relatório deparou-se com a inscrição “bastantes espermatozoides”, o que o deixou a si e à sua mulher bastante perplexos… Não exclui a hipótese de ter havido alguma falha no laboratório, mas não tem quaisquer provas. Em suma, não tem explicação para o sucedido e apenas encara a hipótese de alguma falha ter ocorrido ou na Clínica ou no Laboratório”;
33.3. No depoimento referido em 33.1., a autora (…) juntou uma declaração por si redigida, onde referiu que a Directora e a Auxiliar da creche frequentada pelo menor manifestaram a sua vontade em prestar declarações no âmbito do processo de inquérito que se encontrava em curso;
34) A autora (…) prestou depoimento na Polícia Judiciária, em 30.6.2009, no âmbito do inquérito referido em 29.1, nos termos que constam da certidão junta a fls. 228/230, onde, além do mais, declarou: ”não acreditar que os espermatozoides estivessem na garganta do (…), aceitando poder tratar-se de um erro do laboratório. Não pretende questionar a competência de ninguém, pois não tem elementos que lhe permitam fundamentar essa suspeita, mas não exclui a hipótese de um erro”;
35) O autor (…) prestou depoimento em 30.06.2009 na Polícia Judiciária no âmbito do mesmo inquérito, nos termos que constam da certidão junta a fls. 231/233, onde, além do mais, declarou: “aceita ter havido qualquer tipo de falha na realização da recolha ou das análises.”;
36) No processo de inquérito referido em 29.1 foi proferido despacho de arquivamento em 6.10.2009, nos termos que constam do documento de fls. 144/149, onde, além dos mais, é dito: “o facto de a lâmina apresentar duas zonas distintas, aponta para a eventualidade de as mesmas serem reutilizadas em exames distintos, o que acabou por ser confirmado”; “Perante este cenário, e pese embora não se possa concluir peremptoriamente pela existência de ilícito de abuso sexual relativamente ao menor (…), é possível concluir com elevado grau de probabilidade que o mesmo não aconteceu, sendo de supor que tudo tenha advindo de qualquer contaminação de vestígios biológicos, tanto na recolha, como na realização de análises clínicas a que o mesmo se submeteu, no dia 18 de Maio de 2009, por se encontrar doente.”;
37) Com data de 14.9.2009 foi lavrada uma cota pela Inspectora da Polícia Judiciária, no âmbito do referido processo de inquérito, com o seguinte teor: “anonimamente, se obteve informação de que é prática corrente no Laboratório (…), Lda., a reutilização de lâminas, após serem lavadas, para a realização de análises clínicas (…) Esta informação foi facultada à Dra. (…) do INML, que reputou a prática de «inqualificável»”;
38) Em 9.10.2009, a família do menor (…) teve conhecimento do teor do despacho de arquivamento proferido no inquérito nº …/09.3TAABF;
39) Na sequência da instauração do processo mencionado em 29.2., em data não apurada, mas posterior a 5.6.2009 e anterior a 19.6.2009, duas técnicas da Segurança Social e militares da GNR fizeram uma visita ao domicílio dos avós maternos do menor, onde, permaneceram mais de 2 horas;
40) Nessa visita, a avó materna do menor foi questionada pelas referidas técnicas sobre se: o menor tinha quarto próprio, se dormia na cama dos pais, quais as pessoas do sexo masculino com que se relacionava, como se relacionava com essas pessoas, nomeadamente o pai, o avô materno, o avô paterno, e padrinho, quanto tempo passava com essas pessoas, como é que os pais do menor se conhecerem, quanto tempo durou o namoro, se na creche de relacionava com pessoas do sexo masculino;
41) Durante a inspecção e interrogatório das assistentes sociais, os elementos da GNR não abandonaram o local, afirmando terem ordens para permanecerem;
42) Posteriormente à visita mencionada em 39) a GNR, em data não apurada, mas anterior a 19.6.2009, voltou a deslocar-se à casa dos avós maternos;
43) Posteriormente à visita mencionada em 42), elementos da GNR visitaram a casa onde vive o autor (…), para verificar se o mesmo tinha quarto próprio;
44) As assistentes sociais, aquando da visita mencionada em 39), informaram a autora (…), que transmitiu aos demais autores, que a mesma estava relacionada com um processo a decorrer no Tribunal de Família e Menores de Portimão, não informando sobre os motivos da instauração de tal processo, o mesmo sucedendo aquando da visita mencionada em 42), o que levou os autores a concluir que algo de anormal se passava, provocando-lhes inquietação;
45) Os autores recorreram então aos serviços da Dra. (…), advogada, para tentar averiguar o que estaria na origem das visitas da GNR e das assistentes sociais, tendo aquela apurado junto do Tribunal de Família de Menores de Portimão que as visitas estavam relacionadas com um processo em que se averiguava a suspeita de o autor (…) ter sido vítima de abuso sexual;
46) A Dra. (…) transmitiu aos autores (…) e (…) e (…) e (…), em data anterior a 19.6.2009, a informação que havia colhido junto do Tribunal de Família e Menores de Portimão, o que os deixou devastados;
47) As visitas da GNR mencionadas em 39), 42) e 43) despertaram a curiosidade dos vizinhos;
48) Após ter tido conhecimento do mencionado em 46) e até ao momento em que foi notificada do despacho de arquivamento proferido no âmbito do processo n.º …/09.3TAABF, (…) passou a suspeitar que (…) poderia ter sido abusado sexualmente por (…) e por outros homens;
49) A suspeita de que (…) pudesse ter abusado sexualmente de (…) gerou tensão entre os autores (…) e (…), levando-os a cessaram a coabitação sexual e, em momento não apurado, a separarem-se;
50) Essa mesma suspeita determinou que autora (…):
50.1. Sentisse nojo do autor (…);
50.2. Sentisse dificuldade em trabalhar, faltando alguns dias ao trabalho;
50.3. Passasse noites sem dormir;
50.4. Emagrecesse vários quilos;
50.5. Sentisse receio em se afastar do filho;
50.6. Nutrisse sentimentos de culpa, por se achar uma mãe pouco atenta;
50.7. Cortasse relações com os sogros;
51) O mencionado em 50.1 a 50.7. levou a autora (…) a recorrer ao Dr. (…), neurologista, que lhe diagnosticou um quadro depressivo;
52) A autora (…), como Técnica de Turismo, viajava com frequência no exercício das suas funções;
53) Devido referido em 50.5, deixou de viajar pelo menos uma vez;
54) A autora (…) contou aos colegas de trabalho o resultado mencionado em 21), os quais lhe passaram a fazer perguntas sobre a evolução do caso;
55) O autor (…), devido à existência dos processos em que se indiciava que o mesmo era suspeito de ter abusado sexualmente do seu filho;
55.1. Deixou de o ir levar e buscar à creche;
55.2. Deixou de lhe dar banho, de o vestir e de brincar com ele;
55.3. Foi interrogado na Polícia Judiciária, onde lhe foi perguntado se tinha abusado sexualmente do filho;
55.4. Teve de sujeitar-se à recolha de ADN;
55.5. Foi alvo de suspeita por parte de (…) e (…) de que teria abusado sexualmente de (…), o que determinou o corte de relações com os mesmos;
55.6. Foi alvo de suspeita de ter abusado sexualmente do seu filho por outras pessoas;
56) Devido à suspeita mencionada em 49) a autora (…) perguntou a (…) se (…) e (…) ou outros homens lhes haviam colocado a pilinha no ânus;
57) No âmbito do Processo de Inquérito nº …/09.3TAABF (…) foi sujeito à recolha de material para análise do ADN;
58) Devido ao mencionado em 55.1 e 55.2. (…) perguntou “Porque é que o pai não quer brincar comigo?”, “porque é que o pai não me leva à escola?”, o que lhe causou sofrimento;
59) Devido ao mencionado em 21) (…) foi interrogado pela polícia judiciária, tendo-lhe sido perguntado se tinha abusado sexualmente do neto e teve de se sujeitar à recolha de material para, através de testes de ADN, para a polícia confirmar ou não as suspeitas;
60) A autora (…), devido às suspeitas de que o neto teria sido sexualmente abusado pelo seu genro e pelo seu marido e devido ao mencionado em 49) sofreu desgosto e angústia;
61) (…) é portadora de colite ulcerosa, a qual, devido ao conhecimento do resultado das análises feitas ao neto, ao corte de relações com (…) e ao tempo que decorreu até ter conhecimento do despacho de arquivamento mencionado em 38), se agravou, tendo sido medicada com corticoides;
62) Nas procurações forenses outorgadas pelos autores (…) e (…) nos autos e da sua identificação constante na petição inicial é indicada a mesma morada para ambos;
63) A ré Dra. (…) era a responsável técnica do Laboratório (…);
64) A empresa (…), Lda., NIPC (…), com sede no Largo da (…), nº (…), em (…), fundiu-se em 2.4.2010 com a Ré (…). Lda.;
65) A Ré (…), Lda. encontra-se segurada no âmbito da apólice nº (…) da Companhia de Seguros (…), SA, com início em 1.4.2009 e termo em 31.3.2010, mediante o qual a seguradora assumiu para si o risco de responsabilidade civil, relativamente à 1ª Ré, resultante de danos decorrentes de lesões corporais e/ou materiais que, da actividade de laboratório de análises clínicas sejam causadas a clientes ou terceiros por actos ou omissões do segurado e seus comissários, com o valor seguro de 150.000,00€ por período de vigência e por sinistro, e com uma franquia a cargo do segurado de 10% dos prejuízos indemnizáveis no mínimo de 1.500,00€ por lesado em cada sinistro;
66) Por carta datada de 5.11.2009, a ré (…), Lda. participou à sua Seguradora – declarando não reconhecer a existência de qualquer erro na análise efectuada – a interpelação recebida por parte dos autores na qual os mesmos davam a conhecer os alegados danos sofridos e reclamavam a indemnização objecto dos presentes autos;
67) Nessa sequência, a Seguradora concluiu nos termos constantes do documento de fls. 163, onde, além do mais, é referido: “por não ter ficado demonstrada qualquer falha no serviço prestado pelo Segurado (aqui R.), encerramos o processo sem emissão de qualquer indemnização” e “confirma-se que a pedido do SNS o Laboratório (…) fez as análises e emitiu o boletim de resultados, tendo sido detectado na microbiologia bastantes espermatozoides. Da análise ao método utilizado na recolha, e tendo em conta que o corpo considerado estranho (espermatozoides), não é um agente contaminador volátil, torna-se de todo improvável que a amostra tenha sido adulterada após a recolha. Cumpre-nos referir que a recolha de esperma e/ou amostras vaginais, não são efectuadas no gabinete onde a criança permaneceu. Nestes casos os pacientes recolhem o material de recolha e a amostra é colhida na casa de banho. De referir por último que a participação ao Ministério Público não partiu do Laboratório e este não foi ouvido durante o processo de investigação”;
68) O contrato de seguro referido em 65) não garante o risco de responsabilidade civil da (…) – Centro de (…) e (…) (…), Lda., onde foi efectuada a recolha ao menor (…).
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A parte jurídica das alegações abrange os seguintes assuntos:
- relação contratual ou não;
- responsabilidade da recorrente;
- nexo de causalidade;
- valor dos danos (tanto em geral como a cada um dos AA.);
- absolvição da R. (…).
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Depois de na contestação a recorrente ter afirmado que importa aferir se a sua conduta «constituiu violação do contrato de prestação de serviços» (art.º 157.º) e, resultando a ilicitude (faz uma citação do Prof. Antunes Varela) «”no domínio da responsabilidade contratual, da desconformidade entre a conduta devida (a prestação debitória) e o comportamento observado”, ela há-de ser ponderada à luz de princípios e normas pelos quais o contraente devia pautar a sua actuação» (art.º 158.º), e isto depois de ter invocado o art.º 798.º, Cód. Civil, que define os termos da responsabilidade do devedor – vem agora defender que se trata de responsabilidade aquiliana porque as análises foram prescritas pelo médico de família na consulta a que o menor tinha tido e que essas análises foram realizadas ao abrigo da convenção que a Recorrente tinha com a Administração Regional de Saúde do Algarve.
Acrescenta ainda que a «circunstância de que a relação estabelecida entre o menor, representado pelos seus pais, e a Recorrente foi estabelecida no âmbito do sistema de convenções do SNS, veio depois a ser confirmada pela prova documental apresentada pela Recorrente com a sua Contestação, designadamente através da cópia do formulário de requisição de meios complementares de diagnóstico, em modelo aprovado por Portaria pelo Ministério da Saúde, onde se prescreveram as análises requisitadas, e o registo informático das colheitas inscritas para análise naquele dia, onde, na entrada referente ao menor Recorrido, figura como entidade de origem a ARS-Faro».
Compreende-se a razão de ser do argumento (que se prende com o último tema) mas não se vê, de maneira nenhuma, o que tenha uma coisa a ver com a outra.
Já acima se disse, a propósito da competência do tribunal, que a recorrente é uma sociedade comercial e que presta o serviço de análises clínicas a quem os solicitar. É indiferente para este efeito (como o é para o outro) que a R. esteja, ela sim, em relação com o SNS.
Em nada se altera a realidade de a recorrente vender análises clínicas quem as queira pedir. A comparticipação financeira do Estado não caracteriza e menos ainda define a relação que se estabelece entre a recorrente e os seus clientes.
Coisa diferente é os danos provocados pelo incumprimento atingirem mais pessoas do que as que são partes no contrato. Aqui pode tentar-se, como fez a sentença recorrida, qualificar a situação como também de responsabilidade aquiliana mas entendemos que as duas figuras não são cumuláveis. A fonte do dano é sempre o incumprimento, a violação do contrato. Pese embora a relatividade dos contratos, esta questão não foi colocada.
Por isso, a qualificação jurídica que a sentença fez (trata-se de um contrato de prestação de serviços) não merece censura.
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No campo da sua responsabilidade, a recorrente começa por defender que não pode concluir-se pela ilicitude da prática da reutilização de lâminas porque Manual de Boas Práticas Laboratoriais não tem carácter vinculativo, apontando apenas recomendações.
O erro da argumentação está, por um lado, no conceito de ilicitude como se ela fosse apenas violação de lei; por outro, não entra em linha de conta com as normas públicas editadas pelo Estado a este respeito.
A ilicitude que é fundamento da responsabilidade civil é aquela que resulta da violação de um dever, sendo que este dever tanto pode ser imposto por contrato como por lei. A violação do dever de agir de determinada maneira, de agir da maneira correcta, tem por consequência que a pessoa obrigada omitiu o comportamento devido (seguimos a posição de Pessoa Jorge, no Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, CCTF, reimp., Lisboa, 1972, n.ºs 22 e segs.).
Reconhecendo a recorrente (no art.º 160.º da sua contestação) que a «análise laboratorial é uma obrigação de resultado» (veja-se, aliás, o ac. do STJ, de 4 de Março de 2008, citado na sentença), temos por certo que a entrega do resultado de uma análise errada é violação do dever contratual de entregar o resultado de uma análise certa; o que se exige é a «realização de um relatório de exame fidedigno (isento de erro)» (da sentença, p. 85; negrito no original).
O comportamento devido era o segundo, sem margem para dúvidas.
Por outro lado, o referido Manual de Boas Práticas Laboratoriais foi aprovado pelo Despacho n.º 8835/2001, da Ministra da Saúde (publicado no D.R., II, n.º 98, de 27 de Abril). E foi aprovado na sequência do imposto pelo Decreto-Lei n.º 534/99, de 11 de Dezembro, que alterou o Decreto-Lei n.º 217/99, de 15 de Junho.
A Portaria n.º 166/2014, de 21 de Agosto, manteve este despacho no n.º 3 do seu art.º 4.º.
Estes são actos jurídicos do Estado, fontes de direito tal como as define o art.º 1.º, n.º 1 (com a noção que dá à lei o seu n.º 2), Cód. Civil, e tal como os recolhe a Constituição no seu art.º 112.º: actos normativos. E, face à referência que nele se faz aos regulamentos, entendemos que os regulamentos, mesmo que não aqueles que são expressamente mencionados naquele preceito constitucional (os decretos regulamentares; cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 55), estão abrangidos pela expressão «actos normativos», actos que regulam e comandam situações jurídicas de forma geral e abstracta.
Perante isto, é difícil concordar com a recorrente que o citado manual (não obstante o seu nome) não é vinculativo (que, aliás, cita abundantemente nas alegações).
*
No Capítulo III, 1.1, do Manual, determina-se que «[c]ada amostra biológica deve ser tratada separadamente para que seja possível relacionar inequivocamente o resultado com a amostra».
Manifestamente, a recorrente não cumpriu este preceito porque na lâmina utilizada estão elementos de duas pessoas.
No ponto 2.1 do mesmo Capítulo, determina-se que a «colheita deve ser efectuada, regra geral, com material esterilizado e não reutilizável». A este respeito, escreve-se na sentença que «o Manual de Boas Práticas não proíbe, de forma absoluta, a reutilização de material, dado que estipula que a colheita deve ser efectuada, regra geral, com material esterilizado e não reutilizável.
«Porém, a não reutilização constitui a regra, pelo que apenas em situações de excepção tal reutilização não deve ocorrer» (itálico e negrito no original).
Não vemos qual tenha sido, se porventura existiu, a situação de excepção. Não tendo nenhuma sido invocada, concluímos que a reutilização é proibida.
De qualquer das formas, a violação do ponto 1.1 já seria suficiente para afirmar a desconformidade com o devido, logo, a ilicitude do acto.
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Em relação à culpa, temos de ter presente o art.º 799.º, Cód. Civil, que estabelece uma presunção de culpa do devedor nos casos de falta de cumprimento ou de cumprimento defeituoso.
A este respeito, a recorrente defende que não há culpa sua porque logrou demonstrar que observou todos os deveres de cuidado que lhe eram impostos.
Não; obviamente, não.
A recorrente não teve o cuidado separar as amostras nem teve o cuidado de não reutilizar as lâminas. Admitimos que, em toda uma enorme quantidade de exames, possa haver um erro num. As pessoas não são perfeitas e enganam-se. Mas este engano, este erro, ainda assim é censurável, ainda assim é um acto culposo. Não se pode, pois, concordar com a afirmação que consta das alegações que a actuação da Recorrente «se consubstancia apenas na realização da análise efectuada ao exsudado orofaríngeo do menor»; consubstancia-se pela realização da análise efectuada correctamente, sem erros.
Por outro lado, admitindo-se que a recorrente conseguisse provar a sua ausência de culpa, ficaria sempre por explicar como a recolha para análise e o resultado foram o que foram. Obra do Espírito Santo? Ou obra do laboratório da recorrente?
Entendemos que, mesmo independentemente da presunção, existe culpa da recorrente.
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Em relação ao nexo de causalidade, a recorrente começa por afirmar que os danos alegados pelos Recorridos e dados como provados pelo Tribunal advêm do conhecimento e publicidade que o resultado da análise terá causado nas suas vidas e que não foi a Recorrente quem, de imediato, comunicou às autoridades competentes o resultado da análise.
«A actuação da Recorrente, que se consubstancia apenas na realização da análise efectuada ao exsudado orofaríngeo do menor, com a subsequente comunicação pela sua Directora Clínica, também ela médica, do resultado obtido ao médico de família que as havia solicitado e seu colega de profissão, não foi adequada à produção dos danos alegados pelos Recorridos, uma vez que a Recorrente não divulgou por qualquer forma o resultado, nem accionou os mecanismos que desencadearam os processos de investigação a que os Recorridos tiveram que se submeter».
Lê-se e não se acredita!
Na óptica da recorrente, se nada se soubesse nada se teria passado. Cabe perguntar, então, se a recorrente preferiria apagar o resultado, rasgar a folha onde ele estava inscrito. E porque não fez outro exame? Claro que não permitiríamos que se apagasse o anterior, mas pelo menos que o substituísse por um correcto, por um isento de erro.
O que a recorrente no fundo quer dizer com isto é que se se escamoteasse o resultado o dano não teria acontecido. Mas poderia fazê-lo? Poderia esconder eternamente o resultado? Porque é um dado que lhe diz pessoalmente respeito, o menor, por intermédio dos seus pais, tem o direito de saber que dados seus a recorrente tem (cfr. ponto 6.1 do Manual: os «resultados só́ podem ser fornecidos ao próprio e ao medico prescritor ou a qualquer outro médico designado pelo doente»). Está esta a querer afirmar que nunca entregaria, nem ao principal interessado, o resultado de forma a que ele não viesse jamais a ser conhecido? Cremos que isto só revela a atitude da recorrente neste caso; à força de não querer ser responsabilizada, entra em argumentos que roçam a má conduta que as pessoas não devem ter entre si. Admitimos, por experiência, que se os pedidos formulados na presente acção fossem modestos, melhor, modestíssimos, a atitude seria outra mas nunca deixaria de ser a responsável e nunca deixaria de ser censurada.
Por isso, afirmar que foi a comunicação às autoridades que causou os danos é algo que vai muito além do que seja a causalidade adequada; é esquecer que a análise é da recorrente, que foi ela quem a fez, no seu laboratório, que foi ela quem errou.
A fonte da comunicação às autoridades foi o resultado da análise e sobre isso não há dúvidas.
Mas o médico de família, perante o que leu do resultado da análise, não podia ter agido de outra forma, face ao disposto no art.º 53.º do Código Deontológico dos Médico, editado pela respectiva Ordem e publicado no D.R., II, n,º 8, de 11 de Janeiro de 2009, e que se acha transcrito na sentença: Sempre que o médico, chamado a tratar um menor, um idoso, um deficiente ou um incapaz, verifique que estes são vítimas de sevícias, maus-tratos ou assédio, deve tomar providências adequadas para os proteger, nomeadamente alertando as autoridades competentes. Da mesma forma que a recorrente, o médico não podia esconder os dados que tinha perante si.
O cumprimento da lei não é a causa adequada de danos ilegítimos; o cumprimento da lei, neste caso, decorreu, teve a sua causa (que, por sua vez foi causa de outros resultados) no erro de análise da recorrente.
Mas, uma vez que o que está em questão é o nexo de causalidade, vamos admitir que o médico nada teria dito ou feito.
Era obrigação da recorrente, como já se notou, entregar os resultados das análises aos AA., pais do menor. E qual seria a reacção destes? Não seria igual à do médico? Sabendo que tinham sido encontrados na boca do seu filho espermatozóides, iriam indagar junto, pelo menos e de imediato, da R.. Da mesma forma, também colocariam o caso perante as autoridades por força da suspeita de um adulto ter tido contacto sexual com o seu filho. Num instante se chegaria à suspeita sobre o pai ou o avô. Noutro instante se chegaria ao falatório na escola e na rua. Sendo, como é, um juízo de prognose póstuma e, portanto, a descrição de uma realidade eventual (um determinado curso de eventos), esta descrição tem que ser verosímil e plausível, ou, como subjaz ao pensamento da lei (art.º 563.º, Cód. Civil), adequada.
Ou seja, o resultado normal do erro de análise teria sempre as mesmas consequências, quer o médico de família tivesse intervindo quer não.
Em suma, concordamos com a sentença recorrida ao concluir que existe nexo de causalidade entre a acção da recorrente e os danos sofridos pelos AA..
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Sobre os valores da indemnização fixada, a recorrente alega que eles são exagerados:
O que foi atribuído foi o seguinte:
(…): € 25.000,00 (vinte e cinco euros);
(…): € 100.000,00 (cem mil euros);
(…): € 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros);
(…): € 15.000,00 (quinze mil euros);
(…): € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).
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Em termos gerais a recorrente considera todos estes valores excessivos. Poderíamos admitir tal se tivéssemos perante nós só os pedidos formulados na acção (no total de € 750.000), mas o tribunal não condenou neles; reduziu, e muito, os valores (para o total de € 272.500).
Analisaremos perfunctoriamente os argumento apresentados pois que eles são de tal ordem que evidenciam bem a atitude da recorrente perante a sua própria responsabilidade.
Por exemplo, em relação ao menor afirma que não houve qualquer impacto no comportamento ou no desenvolvimento emocional e familiar do menor em consequência directa da investigação criminal instaurada ou do suposto afastamento do pai durante o período de 4 meses; afirma também atendendo à tenra idade do menor à data dos factos, estranho seria que o menor guardasse qualquer memória de factos então ocorridos ou de como era a sua vivência familiar antes da separação dos pais, já que tinha apenas três anos de idade.
Mais: note-se, o juiz a quo considerou que tudo se ficou a dever à reutilização de lâminas pelo laboratório, logo, no pressuposto de que não foi cometido qualquer crime sexual contra o menor. Mas quem disse que a indemnização pedida era por o menor ter sido vítima de algum crime sexual?
Das afirmações reproduzidas só se nota a tentativa de total desvalorização dos acontecimentos. O menor vê os pais separarem-se e não sente nada? Não, na óptica da recorrente, continua feliz e contente tal como se eles estivessem juntos.
Em relação ao casal (embora referindo-se concretamente à A. …), a recorrente afirma que se a tensão alegadamente instalada entre o casal foi despoletada exclusivamente pela suspeita da prática do crime, logo que foi conhecido o teor do despacho de arquivamento, a mesma deixou de ter qualquer justificação, sendo crível que se tenha dissipado. Et voilá! Está descoberta a chave da felicidade. Houve um pequeno período de suspeita mas, depois, desfez-se a suspeita e tudo se passa, mais uma vez, como se nada se tivesse passado.
Cremos que isto é não conhecer as pessoas, é não ter qualquer noção do que são e como sentem as pessoas.
E o mesmo se verifica nas considerações que tece a respeito dos demais AA..
Por isso, a sua conclusão a respeito da indemnização atribuída a cada um deles é que ela deve ser revogada; apenas não o faz em relação à A. … mas no final pede a sua absolvição do pedido.
De maneira nenhuma.
Os danos morais existem, as pessoas foram lesadas no seu bem-estar, no sentimento de confiança mútuo, no seu bom nome, na sua unidade familiar. Não se pode afirmar que não são danos que não merecem a tutela do direito, nos termos do art.º 496.º, Cód. Civil.
Por isso, não só se mantém a condenação do pagamento de indemnizações como se mantém o valor atribuído.
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Em relação ao último tema, a recorrente defende que enquadrando-se a obrigação indemnizatória na responsabilidade extracontratual, mesmo em relação ao Recorrido menor, como se defendeu, nos termos do n.º 1 do art.º 500.º do CC, a responsabilidade objectiva do comitente só existe se sobre o comissário recair também a obrigação de indemnizar. Assim, absolvendo a Recorrida (…) e condenando apenas a Recorrente ao pagamento da indemnização, o juiz a quo ignorou os factos apurados nos autos quanto à conduta e obrigações daquela e violou os pressupostos legais de que depende a responsabilidade aquiliana.
Como acima já se notou, o problema tem que ver com a responsabilidade contratual, tem que ver com um contrato de prestação de serviços que não foi cumprido e não com a responsabilidade pelo risco.
Por outro lado, um trabalhador de uma sociedade não é um comissário nem, acrescente-se, um representante legal ou auxiliar do devedor (art.º 800.º), no caso, da recorrente – estaria achada a maneira fácil de as pessoas colectivas assacarem aos seus trabalhadores a responsabilidade pelos danos por si causados. O trabalhador é um elemento do substrato pessoal da pessoa colectiva mas não é mais que isso. Pode haver lugar a responsabilidade disciplinar perante a recorrente mas não a responsabilidade civil perante terceiros.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela recorrente.
Évora, 09 de Março de 2017
Paulo Amaral
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho