Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
62/18.4T9OER.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: DIFAMAÇÃO
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - O não cumprimento do mínimo ético jornalístico quanto ao dever de informação e do contraditório e a ânsia de fazer televisão com apelo exclusivo à emoção nas audiências (ao invés de programa essencialmente informativo) pode ser forte suporte para responsabilização civil - até punitiva que, realmente, deve ser reforçada pela jurisprudência – mas não são suporte factual para a imputação criminosa.

2 - O crime de difamação é doloso, de onde decorre naturalmente a não punibilidade pelo negligenciar de deveres eventualmente existentes, algo que já não ocorre na responsabilização civil.

3 - A previsão do nº 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal assume um carácter essencial e a sua frase inicial (a não sujeição a formalidades especiais) é enganadora, já que não desobriga à menção dos factos – e de todos os factos – capitais ao preenchimento de um determinado tipo penal.
Tal requerimento para abertura de instrução assume, assim, duas naturezas: a de uma acusação formal; a de um (eventual) requerimento probatório. E as exigências formais e substanciais quanto à primeira são muito mais exigentes na medida em que essa parte do RAI (a acusação) vai ser a base do julgamento e a peça determinante para a condenação ou absolvição.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório

Nos autos de Inquérito supra numerados que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém Juízo de Instrução Criminal de Santarém - Juiz 1, (...) constituiu-se assistente nos autos e, a 12-08-2019, deduziu acusação particular contra:

(…)

aos quais imputou a prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de difamação agravada, nos termos p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1, 182º e 183º do Código Penal. Contra os mesmos deduziu pedido de indemnização civil no montante de 33.500 €.

O Ministério Público não acompanhou a acusação particular contra (…) acompanhando quanto aos restantes pela prática de um crime de difamação agravada, nos termos p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1, 182º, e 183º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal.

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(…), requereram a abertura de instrução.
Admitidos os requerimentos de abertura de instrução - e realizado debate instrutório - veio a ser lavrada decisão de não pronúncia que decidiu:

- não pronunciar os arguidos (…), pela prática do crime de difamação agravada que lhes vem imputada na acusação particular; e

- pronunciar, para julgamento em processo comum perante Tribunal Singular a arguida (…), pela prática dos factos constantes na acusação particular de fls. 365 a 377, no segmento em que respeitam à arguida supra identificada e pelos quais se lhe imputa a prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de difamação agravada, nos termos p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1, 182º, e 183º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal.


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O assistente interpôs recurso do despacho do Mmº Juiz de Instrução Criminal, com as seguintes conclusões (transcritas):

1ª- A decisão entendeu a acusação não conter todos os factos necessários para que se possa imputar aos arguidos requerentes da instrução a prática de qualquer crime, e estando a questão balizada nestes termos, e apenas nestes (até porque tudo o que está na acusação se crê mais do que indiciado), a bondade ou não da decisão extrai-se precisamente dos factos que constam da acusação, que assim teremos que recordar;
2ª- Para além dos factos objetivos que se consubstanciam na emissão do programa em causa, ainda relevando também o que corresponde a decisões e orientações televisivas (destacados, voz-of, imagens, rodapés, etc) da acusação consta ainda (do que destacamos e sublinhamos):

2º A SIC, Sociedade Independente de Comunicação S.A. é proprietária da estação privada de televisão SIC, que emite em Portugal e em todo o mundo, através dos canais SIC, SIC INTERNACIONAL e da sua versão eletrónica na internet.
3º O arguido (...) é o Director Geral da referida sociedade e estação televisiva, decorrendo desse exercicio de funções e titularidade os deveres de conhecimento dos conteúdos televisivos, sobre ele impendendo o dever de decidir antecipadamente sobre a determinação do conteúdo dos programas e com a finalidade de impedir a divulgação de imagens, afirmações ou comentários susceptiveis de constituir facto ilicito.
4º Os arguidos (...) e (...) são os Directores de Programa e a arguida (...) é a Directora Executiva de conteúdos do programa televisivo “Queridas Manhãs”, com a efectiva direcção e coordenação desse programa televisivo e todas as rúbricas que o compõem, competindo-lhes orientar, superintender e determinar o seu conteúdo, impondo-se-lhes também o dever de impedir a divulgação de imagens, factos ou comentários consubstanciadores de ilicitos criminais.
5º Os arguidos (...) são apresentadores de televisão, nomeadamente desse programa “Queridas Manhãs” do canal SIC, que é emitido em direto diariamente de 2ª a 6ª feira, das 9H30 às 13H00, e com público aí presente.
13º Todos os factos e comportamentos imputados ao assistente são falsos e gravemente ofensivos da sua honra, dignidade e consideração pessoal, tanto mais graves e ofensivos quando a imputação que lhe é feita é sobre a prática de factos criminosos, tudo pondo em causa o seu carácter, bom nome, rectidão e dignidade perante a sociedade em geral.
14º É falso tudo quanto a arguida (...) se lhe refere ou lhe atribui, também tudo quanto os apresentadores dão como certo, insinuam, reproduzem e afirmam quanto ao assistente, ou no que é dito e passado em destacado durante a emissão da rúbrica do programa, que os restantes arguidos determinaram, autorizaram e não impediram.
15º É completamente inventado a (...) ter sido vítima de violência fisica, psicológica e maus tratos por parte do assistente e durante 8 anos em que viveu junto dele até 2013 ou posteriormente, e trata-se de imputação de factos gravissimos e que constituem crime, sobre os quais essa arguida já deduziu as participações criminais que entendeu, em processos sistematicamente arquivados por falta de indicios, prova ou coerência.
16º Nenhum dos outros arguidos conhece o assistente nem o auscultou ou sequer informou ou confrontou sobre a ida da sua mulher ao programa ou o respectivo tema, nem isso determinou, também não procurando obter qualquer tipo de confirmação das falsidades atribuidas ao assistente ou ofensas que lhe eram e foram dirigidas, fazendo completa tábua rasa do seu direito à presunção de inocência, antes apresentando como certos, seguros e consumados os factos que falsamente imputaram e permitiram imputar ao assistente, e bem sabendo de assim não ser e não querendo saber da existência de elementos que o desmentem e contrariam de forma absoluta as teses inventadas pela (...) e que subscreveram e destacaram, nomeadamente quanto à existência de investigações e processos judiciais e respectivos desfechos.
17º até em condutas que já antes havam sido censuradas à SIC e arguida (...), pois em 2013 e no mesmo programa de televisão (antes denominado Querida Júlia) a (...), sob outro pretexto, ofendeu, enxovalhou e difamou o denunciante com as mesmas imputações falsas, e sobre o que veio a ser proferida decisão pela Entidade Reguladora da Comunicação Social e na qual se concluíu então, como pode concluir-se na actualidade, que a Sic deveria ter respeitado a presunção de inocência de que o queixoso beneficiava, assegurando uma ética de antena que garantisse o respeito pelos direitos fundamentais.
18º A situação é tanto mais rídicula quando a 15/5/2017, escassos 5 meses antes da sua ida ao programa, a (...) foi já condenada por 4 crimes de difamação sobre o ora demandante e precisamente por lhe imputar falsamente e junto de terceiros falsos comportamentos de violência doméstica, o que mais evidencia a gravidade dos factos e a enormidade dos danos sofridos pelo ofendido, o que tudo facilmente os restantes demandados saberiam se por isso minimamente indagassem ou o determinassem, conforme era sua inequivoca obrigação.
19º As próprias considerações tecidas pela (...) a propósito da sua saída de casa, levando consigo e sem aviso os filhos de ambos, são também falsas, e ainda mais temerárias quando ela própria expressamente reconheceu ao demandante ter-lhe ela antes sido infiel, e posteriormente à separação por várias vezes lhe tendo proposto reconciliação ou ir morar para a cave da casa que foi residêmcia comum do casal e onde este residia e continua a residir, o que também seria facilmente do conhecimento dos restantes demandados, e por isso indagassem.
21º O assistente não deu qualquer causa às ofensas de que foi vítima, perpetradas através da comunicação social e programa televisivo, também de modo a que não deixa qualquer dúvida quanto à sua identificação por todos quanto o conheçam ou à arguida (...), porque casado e vivendo com ela até Janeiro de 2013.
22º A arguida (...) sabia, e os restantes arguidos também o sabiam ou tinham obrigação de o saber, que as palavras e imputações falsas referidas em 6º, 7º, 9º, 10º e 11º, que produziram voluntaria e conscientemente, eram aptas a atingir o assistente na sua honra e consideração e ainda assim quiseram produzi-las e destiná-las a terceiros, como o fizeram, com o propósito de denegrir, diminuir e humilhar o assistente e atingi-lo na sua reputação e consideração, bem sabendo que as suas condutas são punidas por lei, por violar, ilicitamente, o direito ao bom nome, à honra, ao respeito e consideração devidos ao assistente, resultado que os arguidos previram e quiseram alcançar, conforme fizeram.
23º Os arguidos imputaram ao assistente factos falsos criminosos e formularam sobre ele juízos ofensivos da sua honra e consideração, reproduziram tais imputações e juízos e permitiram-no e não o impediram, fazendo-o através de meio de comunicação social e em meios e circunstâncias facilitadoras da sua divulgação, agindo livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo serem proíbidas por lei as respetivas condutas.

3ª- Salvo o devido respeito, é quanto baste para proceder o recurso, contendo a acusação os factos mais do que suficientes, aliás todos perfeitamente indiciados, para imputar aos arguidos a prática de um crime;
4ª- Com o devido respeito, que é muito, entendimento como o da decisão implica tout court que não haja ou possa haver responsabilidade penal de apresentadores de televisão ou de pessoa com qualquer cargo no respetivo operador, mesmo que de tudo do programa televisivo seja decisor, porque apesar das suas funções e responsabilidades podem não as exercer de facto ou disso nem querer saber e ora porque afinal o que reproduziram, insinuaram e afirmaram é apenas para «puxar» pelas ofensas que a outra arguida já antes proferira;
5ª- As funções de todos os arguidos (com exclusão da (...)) estão perfeitamente assentes e indiciadas, e implicam deveres, aliás recordados na acusação;
6ª- Mas o caso concreto e atuação dos arguidos é ainda mais gerador de perplexidade e repúdio quanto há decisão anterior da ERC, as queixas apresentadas pela (...) foram sistematicamente arquivadas ou o aqui assistente absolvido, a (...) meros escassos meses antes foi condenada por 4 crimes de difamação por imputar falsamente condutas de violência doméstica ao ora assistente - do que ficou ressabiada e motivou novo enxovalho na Tv, agora com o beneplácito e ajuda dos restantes arguidos - a (...) ter há muito reconhecido ao assistente ter-lhe ela antes sido infiel, e posteriormente à separação por várias vezes lhe tendo proposto reconciliação ou ir morar para a cave da casa que foi residêmcia comum do casal e onde este residia e continua a residir, o que tudo seria, se o não foi, do fácil conhecimento dos restantes arguidos, se por isso indagassem ou o determinassem.
7ª- E, como a acusação recorda, com o assistente ninguém falou, procurou falar ou o determinou.
8ª- Os arguidos (…) são criminalmente responsáveis nos termos gerais, como o são por não se terem oposto, podendo (e devê-lo) fazê-lo através das ações destinadas a evitá-los, sendo-lhes exigível a consciência do carácter criminoso do seu acto, o que aliás se aplica também aos arguidos (…), nem estes se limitaram a reproduzir corretamente as declarações da (...) ou à mera colocação de questões e enquadramento, como aliás resulta claro da matéria objetiva que consta da acusação;
9ª- Recordando a acusação, terá que concluir-se conter todos os factos necessários para a imputação da prática do crime aos arguidos (incluindo os requerentes da instrução), e, consequentemente, deve assim ser a decisão substituida por outra que pronuncie todos os arguidos pelos factos descritos na acusação particular, tendo a decisão proferida violado os artigos 180º, 183º do C.P., 71º e 35º da Lei da Televisão e 285º e 283º do C.P.P..

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Respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Santarém defendendo a improcedência do recurso, concluindo:

Subscreve-se, integralmente o despacho recorrido, por correcto, do ponto de vista jurídico, dada a sua irrepreensível fundamentação, contexto a que se acrescentarão outras insuficiências, estas fundamentadas supra.
Ao reconduzir a sua pretensão aos factos resultantes da acusação particular, o assistente acaba por nada acrescentar que possa obviar às conclusões do despacho recorrido.
Nesta senda, constata-se que o recurso deverá ser considerado manifestamente infundado e, portanto, liminarmente rejeitado.
Com efeito, para além dos vícios apontados à acusação particular evidenciados no douto despacho em crise, deverá ainda, considerar-se que o impugnante não aduziu quaisquer outros factos àqueles, o que manifesta ausência de factos, quer na acusação, quer no RAI, quer nas conclusões de recurso que possam integrar a forma de autoria com que cada um dos arguidos agiu, ficando por definir se se tratou de autoria singular, autoria em comparticipação e, neste caso, se em co-autoria, se em cumplicidade.
Para além destas insuficiências, constata-se que o texto das conclusões de recurso não inclui, para além de outros elementos de facto e de direito legalmente exigidos quando se pretenda uma pronúncia de quem quer que seja, designadamente aqueles que vêm definidos no artigo 283.º n.º 3 do Código de Processo Penal, reconduzido à fase de instrução pelo artigo 287.º n.º 2 do mesmo diploma legal.
Tendo em conta que as conclusões de qualquer recurso delimitam o respectivo objecto, é imperioso que delas constem, expressamente, pelo menos os elementos de facto reclamados pelo supra citado artigo 283.º n.º 3 alínea b) do diploma penal adjectivo.
Não constando tais factos das conclusões de recurso, não é possível, ao arguido, exercer a defesa na sua plenitude, dado que não é exigível ao homem médio o entendimento de não factos que se pretende serem-lhe imputados, a correspondente adivinhação dos mesmos.
Apresentando-se as conclusões de recurso com fica descrito, situação que resulta dos autos, esta comporta a violação flagrante das garantias de defesa em processo penal, resultantes, expressamente, do artigo 32.º n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
Por outro lado, o despacho recorrido fez correcta aplicação da lei e do direito.
Por isso, deverá ser mantido nos seus precisos termos.

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O arguido (…) respondeu apresentando as seguintes conclusões:

1. O Recurso interposto pelo Assistente quanto à Decisão Instrutória de 24.11.2020 deve ser julgado improcedente, devendo a Decisão Instrutória de não pronúncia do Arguido (...) ser mantida na íntegra.
2. A Acusação Particular não cumpre, conforme entendido pelo Tribunal a quo, os requisitos previstos nos artigos 283.º n.º 3 e 285.º do CPP, pelo que sempre deveria ser declarada nula.
3. Em qualquer caso, bem andou o Tribunal a quo ao decidir que, sem prejuízo dessa insuficiência, os factos nela descritos relativamente ao Arguido (...) não assumem relevância criminal, em particular pelo crime de difamação, previsto no artigo 180.º e 183.º do Código Penal.
4. Com efeito, não consta alegado na Acusação Particular:
(i) que o Arguido (...) tenha propalado factos falsos ofensivos da honra do Assistente, dado que da Acusação Particular resulta apenas que o Arguido (...) colocou 2 questões e fez uma afirmação em contexto de frases proferidas pela Arguida (...);
(ii) que o Arguido (...) soubesse que o relatado pela Arguida (...) era falso;
(iii) que o Arguido (...) tivesse intenção de ofender a honra e a reputação do Assistente.
5. O Tribunal a quo interpretou corretamente os artigos 180.º, 183.º do Código Penal, o artigo 74.º da Lei da Televisão ao sustentar que pelos factos relatados por (...) apenas esta pode ser criminalmente responsabilizada.
6. A circunstância de, na perspetiva do Assistente, o Arguido (...) dever saber da falsidade dos factos não é suficiente para que se possa imputar qualquer crime de difamação a título de dolo, sobretudo atendendo, como se disse, que o mesmo não afirmou qualquer facto falso imputado ao Assistente.
Nestes termos, deverão V. Exas. julgar improcedente o recurso apresentado pelo Assistente e manter a Decisão Instrutória, que decidiu pela não pronúncia do Arguido (...) assim fazendo a Costumada Justiça!

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Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer onde defende a improcedência do recurso.

Foi observado o disposto no n. 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal, respondendo a assistente.


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B.1 - Fundamentação:

Os elementos de facto relevantes constam do relatório supra e do teor do despacho judicial recorrido.

É o seguinte o teor de tal despacho:

«II - Questão prévia – Da (in)validade da acusação quanto aos arguidos (…)
Os arguidos requerentes da instrução todos eles alegaram, de uma maneira ou de outra, que a acusação não contém factos suficientes para sustentar a sua responsabilização criminal.
Cumpre pois aferir desta invalidade, devendo notar-se que esta se situa no plano da alegação, e não da análise da prova indiciária.
Podem assim existir afirmações na acusação que sejam insustentadas pela prova indiciária recolhida. Estas podem ainda assim, de um ponto de vista meramente formal, servir para garantir a validade desse ato, sendo a questão da análise da prova indiciária referente ao mérito da acusação e não à sua validade formal.
No entanto, caso a acusação não contenha factos suficientes para imputar aos arguidos a prática de um crime (tanto de um ponto de vista objetivo como de um ponto de vista subjetivo), então estaremos perante um vício semelhante ao previsto no artigo 331º, n.º 3, al. d), do CPP, ou seja, a acusação será manifestamente infundada, pois os seus factos não constituem crime.
Este vício, constatado na fase de instrução, dará necessariamente lugar a um despacho de não pronúncia, pois o Juiz de Instrução Criminal não pode aditar à acusação (publica ou particular) os factos de que carece para a pronúncia sob pena de violação do princípio da estrutura acusatória do processo, ínsito no artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Cabe pois primeiro analisar o tipo legal de crime imputado aos arguidos, para definir os seus elementos objetivos e subjetivos, tendo em conta as várias pessoas a quem este é imputado e considerando que os factos ocorreram mediante uma reportagem televisiva.
a) Do crime de difamação na lei penal geral:
O artigo 180º, n.º 1 do CPenal estatui que:
“Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.”.
O artigo 182º, do mesmo código estatui que “À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.”.
Já o artigo 183º, do mesmo Código Estatui que:
“1 - Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º:
a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou,
b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação;
as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
2 - Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias.”.
Trata-se de um crime de perigo e mera atividade, não se exigindo como resultado que o visado se sinta efetivamente ofendido ou que a sua imagem social fique efetivamente denegrida ou sequer que o agente tenha em mente estes resultados.
Basta que o agente saiba que os factos, palavras ou juízos de valor imputados ao ofendido são objetivamente suscetíveis de afetar negativamente a sua honra ou consideração e ainda assim os expresse perante terceiros.
De um ponto de vista objetivo, é assim necessário que:
- O agente comunique com terceiros, que não o ofendido, através de qualquer veio de expressão (expressão verbal, escrita, por gestos, por imagens, etc…);
- Que por esse meio de expressão impute factos (mesmo sob forma de suspeita) ou formule juízos sobre o ofendido;
- Que esses juízos sejam objetivamente ofensivos da sua honra e consideração (tendo em conta os padrões sociais vigentes).
Já do ponto de vista subjetivo estamos perante um crime doloso, não estando prevista a sua comissão por negligência – artigo 13º do CPenal.
Aderindo pois aqui à formulação adotada no AUJ 1/20152, diremos que a acusação deve conter os “…elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor.”.
Portanto, do ponto de vista objetivo, é necessário que os arguidos tenham agido de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo o desvalor ético-jurídico da sua conduta (o que normalmente se traduz no conhecimento da sua punibilidade legal).
Mais é necessário que os arguidos tenham conhecimento de que os factos ou juízos de valor que comunicam perante terceiros são objetivamente ofensivos da honra e/ou consideração do assistente.
b) Do crime de difamação praticado por via de emissão televisiva:
- Da prática do crime por omissão:
Este crime, sendo um crime de mera atividade e não um crime de resultado, só pode em regra ser praticado de forma ativa, não lhe sendo aplicável o disposto no artigo 10º, n.º 1 do Código Penal.
No entanto, a Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido3 (Lei da Televisão) estabelece uma forma especial de responsabilidade criminal por omissão para crimes cometidos através destes serviços, definindo também as especificidades da responsabilização criminal por crimes praticados por via de emissões televisivas.
No artigo 71º da citada Lei estatui-se que:
“1 - Os actos ou comportamentos lesivos de interesses jurídico-penalmente protegidos perpetrados através de serviços de programas televisivos ou de serviços audiovisuais a pedido são punidos nos termos gerais, com as adaptações constantes dos números seguintes.
2 - Sempre que a lei não estabelecer agravação em razão do meio de perpetração, os crimes cometidos através de serviços de programas televisivos ou de serviços audiovisuais a pedido que não estejam previstos na presente lei são punidos com as penas estabelecidas nas respectivas normas incriminadoras, elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
3 - O director referido no artigo 35.º apenas responde criminalmente quando não se oponha, podendo fazê-lo, à prática dos crimes referidos no n.º 1, através das acções adequadas a evitá-los, caso em que são aplicáveis as penas cominadas nos correspondentes tipos legais, reduzidas de um terço nos seus limites.
4 - Tratando-se de declarações correctamente reproduzidas ou de intervenções de opinião, prestadas por pessoas devidamente identificadas, só estas podem ser responsabilizadas, salvo quando o seu teor constitua incitamento ao ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual, ou à prática de um crime, e a sua transmissão não possa ser justificada por critérios jornalísticos.
5 - No caso de emissões não consentidas, responde quem tiver determinado a respectiva transmissão.
6 - Os técnicos ao serviço dos operadores de televisão ou dos operadores de serviços audiovisuais a pedido não são responsáveis pelas emissões a que derem o seu contributo profissional se não lhes for exigível a consciência do carácter criminoso do seu acto.”.
Nota-se pois que a regra geral prevista no n.º 1 desse artigo limita-se a remeter para a legislação incriminadora geral.
No entanto, o n.º 3 desse artigo estabelece uma forma especial de incriminação por omissão que pode ser aplicada ao crime de difamação cometido por via televisiva.
Este crime pode ser imputado “ao diretor referido no artigo 35º” dessa lei. Esse artigo, estatui nos seus n.ºs 1 e 2 que:
“1 - Cada serviço de programas televisivo deve ter um director responsável pela orientação e supervisão do conteúdo das emissões.
2 - Cada serviço de programas televisivo que inclua programação informativa deve ter um responsável pela informação.”.
Assim sendo, a responsabilização criminal nos termos desta norma, ao nível objetivo, exige que:
- O agente seja diretor responsável pela orientação e supervisão do conteúdo das emissões ou responsável pela informação;
- Que tenha a possibilidade de se opor à prática do crime em referência na estação televisiva onde exerce funções, através de ação adequada a evitá-lo;
- Que omita essa mesma ação.
Também neste caso se exige o dolo, ou seja que a conduta omissiva do agente seja livre, deliberada e consciente, com consciência do seu desvalor étco-jurídico.
Tanto o dolo como a possibilidade de oposição estão dependentes de um mesmo facto subjetivo, que é o conhecimento prévio, por parte do agente de que o crime irá ser praticado, ou seja, de que o serviço televisivo em causa irá no futuro afirmar factos ou emitir juízos de valor ofensivos da honra e consideração de terceiro.
Na falta deste conhecimento o agente não terá como se opor a uma realidade que não conhece, nem a sua omissão poderá ser vista como livre, deliberada e consciente.
- Da limitação da responsabilidade penal:
Por outro lado, existe também uma norma limitadora da responsabilidade penal quanto a crimes praticados por via de emissões televisivas.
O n.º 4 do artigo 71º, supra citado estatui que “Tratando-se de declarações correctamente reproduzidas ou de intervenções de opinião, prestadas por pessoas devidamente identificadas, só estas podem ser responsabilizadas…”.
Assim sendo, na análise dos factos, deve ser tido em conta que pelas declarações da arguida (...) no programa em referência, apenas esta pode ser responsabilizada, apesar de tais declarações terem sido transmitidas e reproduzidas numa estação de televisão.

*
Passando pois aos factos em concreto devemos ter em conta quais os factos objetivos em concreto imputados a cada arguido (por ação ou por omissão).
Nota-se pois que a acusação fala em diversas parte dessa reportagem que incluem afirmações cuja autoria não está atribuída a nenhuma pessoa (e nomeadamente a nenhum arguido) em concreto.
Nomeadamente as intervenções em “voz off”, as menções “em rodapé” ou outras menções escritas inseridas na emissão e as imagens de fundo, referidas nos artigos 6º, 7º, 8º, 11º, não estão atribuídas a nenhum arguido concreto.
Quanto aos arguidos (…) este introduz a arguida (...), “como vítima de violência doméstica” e afirma que esta “partilha o seu testemunho” referindo-se ao livro que esta havia escrito, intitulado “Conversas do … e da …” (filhos da arguida e do assistente) que aborda a questão se saber como devem ser abordadas as questões da violência doméstica perante as crianças que a ela assistem.
Seguidamente os arguidos (...) dirigem à arguida (...) várias perguntas, tendo por base o pressuposto de que esta foi vítima de violência doméstica.
Ora da análise dos factos referidos na acusação, nota-se que toda a reportagem se baseia nas declarações da pessoa que aí se apresenta como ofendida de um crime de violência doméstica, declarações essas que já haviam sido tornadas públicas mesmo antes da reportagem ter sido emitida.
Como se refere na reportagem e na acusação, a arguida (...) não só se havia afirmado como vítima de violência doméstica, como havia “partilhado online” as conversas que vai tendo com os filhos, principalmente sobre a violência doméstica e havia inclusivamente publicado um livro sobre essa alegada experiência, que estava aí a ser apresentado.
É perfeitamente claro da leitura dos factos da acusação, como é claro para qualquer pessoa que assista ao segmento em causa, que todas as referências à arguida (...) sobre a sua condição de vítima de violência doméstica partem das suas próprias declarações, já públicas, desde há muito.
De resto, o próprio assistente refere na acusação que essas declarações da arguida (...) datam pelo menos desde 2013, quando a arguida havia feito declarações do mesmo teor no programa “Querida Júlia” onde havia difamado o assistente “com as mesmas imputações falsas”.
Parece pois que as intervenções dos arguidos (...) (que de entre os arguidos requerentes da instrução são os únicos a quem se pode imputar uma conduta ativa) estão a coberto do disposto no artigo 71º, n.º 4 da Lei da Televisão, porquanto apenas se limitam a formular perguntas à ofendida e se algumas dessas perguntas têm pressupostos afirmativos de facto, estes baseiam-se apenas nas afirmações anteriores e já públicas (e publicadas) da arguida (...) que está a ser entrevistada.
De facto, quando alguém produz afirmações sobre matérias de potencial interesse público e jornalístico, podem e por vezes devem os jornalistas questionar essa pessoa sobre o teor das suas afirmações, procurando aprofundar o tema. Essas perguntas, para serem relevantes, têm por vezes de se basear na realidade factual afirmada previamente. Tal não as torna criminalmente puníveis, pois os pressupostos afirmativos que estão na base da pergunta se baseiam precisamente nas declarações já anteriormente produzidas pelo entrevistado.
Assim sendo, quando o arguido (...) refere, como se diz na acusação “Ó (…) durante oito anos foi vítima de violência doméstica, certo, (…) Parte desse tempo os seus filhos assistiram (…)Como é que se vive nesta roleta?”, as afirmações assinaladas a itálico, são apenas a reprodução de declarações anteriores e públicas da arguida (...), que servem para contextualizar a pergunta que é feita de seguida.
Já quanto aos demais arguidos requerentes da instrução, nenhuma conduta ativa lhes é imputada em concreto.
Quanto ao arguido (…), alega-se que este é diretor geral da “SIC-Sociedade Independente de Comunicação, SA” e da estação de televisão “SIC” e que nas suas obrigações funcionais estão os deveres de conhecimento dos conteúdos televisivos e de decidir antecipadamente sobre a determinação do conteúdo dos programas”.
Quanto aos arguidos (…) afirma-se que são “os diretores de programa” e a arguida (…) é “Diretora Executiva de conteúdos do programa televisivo “Queridas manhãs” e lhes compete “orientar, superintender e determinar” o conteúdo desse programa.
Assim sendo, mesmo que a conduta em causa pudesse responsabilizar estes arguidos (o que como já vimos não parece possível em face do teor do artigo 71º, n.º 4 da Lei da Televisão), sempre seria necessário alegar em termos concretos que estes arguidos tinham a possibilidade de se opor à emissão deste segmento e, necessariamente, alegar que estes arguidos tiveram conhecimento antecipado do teor desta emissão, o que não se alega em concreto quanto a estes.
Não se afirma no entanto, de forma inequívoca que estes arguidos tiveram (como e quando) conhecimento prévio do teor projetado da entrevista e do segmento em causa de modo a poderem obstar tempestivamente ao mesmo.
Não basta dizer que os arguidos, nomeadamente os arguidos (…) “tinham o dever de conhecer” o teor desse programa, em face das suas funções.
Mesmo que tal seja verdade (o que é posto em causa pelos arguidos), existem múltiplos motivos possíveis pelos quais poderiam não ter tido conhecimento efetivo do mesmo independentemente de qualquer culpa ou dolo. A este respeito, por mero exemplo, a arguida (…) afirma que não estava em exercício efetivo de funções à data dos factos.
Nota-se depois alguma confusão na acusação na descrição da conduta subjetiva dos arguidos e mesmo na imputação objetiva das suas condutas.
Refere-se no artigo 22º da acusação que “A arguida (...) sabia, e os restantes arguidos também o sabiam ou tinham obrigação de o saber, que as palavras e imputações falsas referidas em 6°, 7°, 9°, 10° e 11°, que produziram voluntaria e conscientemente, eram aptas a atingir o assistente na sua honra e consideração…”.
Ora como já se notou supra, um dos elementos essenciais do tipo legal de difamação é o conhecimento, por parte do agente, de que as afirmações de factos ou juízos de valor que imputa a terceiros são objetivamente ofensivo da sua honra e consideração.
Isto apenas é inequivocamente afirmado quanto à arguida (...) que sem dúvida o sabia (de acordo com a acusação).
Já os restantes arguidos “sabiam ou deviam saber”, afirmação que, em sede acusatória, é insuficiente para sustentar o seu dolo. O mero dever saber é irrelevante pois um dever (seja de que natureza for) pode ser quebrado de forma não culposa ou não dolosa, como já supra se notou.
Depois o assistente, sem individualizar a conduta dos arguidos referem de forma confusa no artigo 23º da acusação que “Os arguidos imputaram ao assistente factos falsos criminosos e formularam sobre ele juízos ofensivos da sua honra e consideração, reproduziram tais imputações e juízos e permitiram-no e não o impediram…”.
Confunde aqui o arguido a prática deste crime por ação (imputaram factos, formularam juízos ou reproduziram juízos) com a prática por omissão (não o impediram) imputando ambas as formas de atuação indistintamente a todos os arguidos de uma forma genérica e conclusiva.
Conclui-se pois que a acusação não contém todos os factos necessários para que se possa imputar aos arguidos requerentes da instrução a prática de qualquer crime, nomeadamente do crime de difamação agravada, aos arguidos (…).
Deve assim concluir-se pela sua não pronúncia.
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III - Das consequências legais da instrução para a arguida que a não requereu:
Nos termos do artigo 307º, n.º 4 do CPP, que rege a decisão instrutória “A circunstância de ter sido requerida apenas por um dos arguidos não prejudica o dever de o juiz retirar da instrução as consequências legalmente impostas a todos os arguidos.”.
No entanto, no caso dos autos, concluímos que a instrução requerida pelos demais arguidos não afeta os pressupostos de facto e de direito da acusação no segmento em que é dirigida contra a arguida que a não requereu, ou seja, a arguida (…).
Os argumentos expostos pelos arguidos requerentes da instrução baseiam-se na sua posição específica no contexto dos factos, nos quais não são a fonte das afirmações ofensivas, pelo que a sua responsabilização penal comporta pressupostos acrescidos que, in casu, a acusação não logrou alegar.
Pelo exposto, devem os autos prosseguir para julgamento quanto à arguida (...), cuja posição processual não foi afetada pela presente instrução.
*
IV – Decisão:
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
a) Não pronuncio os arguidos (…), pela prática do crime de difamação agravada que les vem imputada na acusação particular; e
b) pronuncio, para julgamento em processo comum perante Tribunal Singular a arguida:
- (…);
Pela prática dos factos constantes na acusação particular de fls. 365 a 387, no segmento em que respeitam à arguida supra identificada;
E pelos quais se lhe imputa a prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de difamação agravada, nos termos p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1, 182º, e 183º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal.
Prova: (…)»
***

B - Cumpre apreciar e decidir.

O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº 1 e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal. O tema abordado no recurso reconduz-se a apurar se todos os arguidos deveriam ser pronunciadas pelos crimes imputados pelo assistente. Esta única questão implica a análise da argumentação do recorrente e a sua delimitação de facto e de direito face à fundamentação do despacho recorrido.


*

B.2 – A argumentação do recorrente assenta na afirmação de que na sua acusação elencou todos os factos necessários à imputação a todos os arguidos acusados, entendendo que os descreveu de forma exaustiva, reproduzindo-os na conclusão 2ª do seu recurso.

No entanto parece-nos que dois equívocos imperam neste seu recurso.

De uma banda o assistente dá como assente que as afirmações da arguida pronunciada, (…), são suficientes em conjunto com os respetivos deveres dos restantes arguidos na estrutura da estação televisiva para integrarem os crimes que imputa aos arguidos não pronunciados.

Se bem repararmos nenhum dos factos por si indicados relata afirmações ou condutas de qualquer dos arguidos que sejam distintos e autónomos da conduta/afirmações da arguida (…). Ora, incumbia-lhe fazer essa descrição autónoma relativamente a cada um dos arguidos e não ficar pelas asserções abstractas e genéricas que constam, por exemplo, dos pontos 13º, 14º e 23º da sua conclusão 2º, designadamente:

13º Todos os factos e comportamentos imputados ao assistente são falsos e gravemente ofensivos da sua honra, dignidade e consideração pessoal, tanto mais graves e ofensivos quando a imputação que lhe é feita é sobre a prática de factos criminosos, tudo pondo em causa o seu carácter, bom nome, rectidão e dignidade perante a sociedade em geral.
14º É falso tudo quanto a arguida (...) se lhe refere ou lhe atribui, também tudo quanto os apresentadores dão como certo, insinuam, reproduzem e afirmam quanto ao assistente, ou no que é dito e passado em destacado durante a emissão da rúbrica do programa, que os restantes arguidos determinaram, autorizaram e não impediram.
23º Os arguidos imputaram ao assistente factos falsos criminosos e formularam sobre ele juízos ofensivos da sua honra e consideração, reproduziram tais imputações e juízos e permitiram-no e não o impediram, fazendo-o através de meio de comunicação social e em meios e circunstâncias facilitadoras da sua divulgação, agindo livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo serem proíbidas por lei as respetivas condutas.

Isto é, não existe a imputação de qualquer facto ou afirmação praticado ou realizada pelos arguidos que seja concreto, destacável, autónomo das afirmações da arguida (...), pelo que nenhum crime lhes é imputado.

De outra banda, olvida o recorrente que o eventual incumprimento dos deveres jornalísticos que ali imputa aos arguidos não pronunciados – e que até podemos aceitar como tendo ocorrido quanto ao dever de prévia informação e exercício do básico contraditório – não constitui em si um ilícito criminal.

Naturalmente que esses deveres (existentes), o não cumprimento do mínimo ético jornalístico quanto ao dever de informação e do contraditório (eventualmente existentes) e a ânsia de fazer televisão com apelo exclusivo à emoção nas audiências (ao invés de programa essencialmente informativo) pode ser forte suporte para responsabilização civil - até punitiva que, realmente, deve ser reforçada pela jurisprudência – mas não são suporte factual para a imputação criminosa.

Como bem realça o tribunal recorrido, o crime de difamação é doloso, de onde decorre naturalmente a não punibilidade pelo negligenciar de deveres eventualmente existentes, algo que já não ocorre na responsabilização civil.

Relativamente ao meio usado, o meio televisivo, deparamo-nos agora com norma expressa no artigo 71º, nº 4 da Lei n.º 27/2007, de 30 de Julho, “Lei da televisão e dos serviços audiovisuais a pedido”, que veio estatuir de forma clara que “Tratando-se de declarações correctamente reproduzidas ou de intervenções de opinião, prestadas por pessoas devidamente identificadas, só estas podem ser responsabilizadas, salvo quando o seu teor constitua incitamento ao ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual, ou à prática de um crime, e a sua transmissão não possa ser justificada por critérios jornalísticos”.

Ora, a norma citada é clara na exclusão de responsabilidade criminal pois que no caso sub iudice a pessoa que – em exclusivo - faz as afirmações está perfeitamente identificada.

E sempre é certo que o assistente não invocou em termos factuais a possibilidade, aceitável, de se tratar de caso de incitamento ao ódio em função do sexo, que também necessitava de ser factualmente alegado e que sempre caberia na previsão da cláusula de salvaguarda da segunda parte do preceito.

Destarte, para além da previsão da citada norma, e como bem fundamenta o tribunal recorrido, não existe a imputação factos objectivos e a respectiva subjectivação que seja suporte para uma pronúncia criminal.


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B.3 – Como já afirmámos em anteriores relatos é um dado doutrinária e jurisprudencialmente aceite que a instrução é um mecanismo de controlo judicial da posição tomada pelo Ministério Público no final do inquérito, tendo em vista questionar o acerto do despacho de arquivamento ou do teor da acusação deduzida,[1] ao invés de uma fase autónoma de investigação, isto sem prejuízo de ser permitida uma actividade complementar de investigação dos factos.

Por outro lado, é reconhecida ao assistente a possibilidade de introduzir os factos em julgamento através do Juiz de Instrução, o que só se pode configurar como um direito com dignidade constitucional. De facto, o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa estatui de forma clara que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos. O mesmo é afirmado pelo artigo 6º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (vulgo, Convenção Europeia dos Direitos do Homem).

Assim, o requerimento de abertura de instrução está enquadrado no “direito ao juiz”, no direito a ver o seu caso apreciado jurisdicionalmente. É uma manifestação do vulgarmente designado “direito à tutela jurisdicional efectiva”, tendo presente que a instrução visa fazer o controlo jurisdicional da posição do Ministério Público de deduzir ou não acusação, sendo líquida a importância de tal controle para a defesa dos interesses do cidadão ofendido.

Este direito não pode ser configurado como um direito formal, sim “efectivo”, como bem se salienta na epígrafe do normativo constitucional e é repisado pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Assim, é indubitável que uma interpretação do artigo 287º do Código de Processo Penal demasiado rígida e formalista poderá pôr em causa esse direito à tutela jurisdicional e constituir-se como uma recusa substancial do “direito ao juiz”.

Mas supõe a necessidade de cumprir as exigências substanciais contidas no Código de Processo Penal que se não podem entender como desproporcionadas e desenquadradas dos restantes princípios e exigências do código. Tais exigências, aliás, revelam-se essenciais para a própria tutela dos interesses do assistente, que pretenderá ver a sua pretensão processual devidamente analisada para além de, naturalmente, assegurar o direito de defesa dos arguidos via exercício do contraditório.

E, não obstante não estar sujeito a formalidades especiais, o requerimento deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, sendo-lhe ainda aplicável o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal - v.g. artigo 287º nº 2 do mesmo diploma.

Assim, o papel do assistente, no uso dos poderes que lhe são conferidos pelos artigos 284º, nº 1 e 286º, nº 1 e 287º, nº 1, al. b), é o de sujeitar ao juiz a sua visão dos factos e do direito aplicável tendo em vista obter uma decisão judicial que homologue a sua visão processual através de um despacho judicial – a pronúncia – que obtenha o efeito pretendido e anteriormente não obtido, o da sujeição de um arguido a julgamento independentemente da posição assumida pelo Ministério Público no final do inquérito.

E aqui é essencial ter presente que será essa visão – dos factos e do direito – que constituirá a base do julgamento e da decisão judicial futura.

Nos termos do artigo 285º do Código de Processo Penal, com o necessário recurso ao nº 3 do artigo 283º do mesmo diploma, a acusação contém, sob pena de nulidade, a identificação do arguido, a indicação das nomas aplicáveis e a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

Pretende-se, portanto, que a acusação contenha ab initio todos os factos que irão permitir a integração num ou mais tipos penais. Porque, é sabido, tais factos/elementos não se presumem de iure nem é lícito ao Juiz de julgamento extravasar dos seus poderes cognitivos, sabido que tais poderes são balizados e limitados pelo conteúdo da acusação, pelo thema decidendum (objecto do processo) e pelo thema probandum (extensão da cognição).

Ou seja, não será permitido ao Juiz acrescentar os factos em falta ou imputar ao arguido, motu proprio, um ou mais crimes por sua iniciativa. O juiz não pode, por sua lavra, acrescentar factos que constituam alteração substancial dos factos que constam da acusação e acrescentar novos factos essenciais ao tipo penal é uma alteração substancial.

O que se pretende, pois, é que a acusação contenha o facto, normativamente entendido, isto é, em articulação com as normas violadas pela sua prática e que irão, constando da acusação, conformar o “objecto do processo que, por sua vez, delimita os pode­res de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado” (Cfr. o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 130/98).

Não há dúvida (como se afirma no acórdão nº 358/04 do Tribunal Constitucional) que o “processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do objecto do processo, uma vez definido este pela acusação. O processo penal admite, porém, que sendo a descrição dos factos da acusação uma narração sintética, nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime acusado possam constar desde logo dessa peça, podendo surgir durante a discussão factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos”.

Ora, se é verdade que não é uma exigência inultrapassável que a acusação seja uma peça rígida e imutável, não menos verdade será que ela deve conter os factos essenciais à integração num ou mais tipos penais.

Nem se trata, por outro lado, de uma mera questão de linguagem, do não uso de formas tabelares, sim da inexistência de factos que conduzem, desde já à afirmação de que o RAI a ser recebido e conduzisse a uma pronúncia, tal como está, conduziria inexoravelmente à absolvição dos arguidos agora não pronunciados.

Assente, portanto, que a alegação de factos típicos é essencial – e sempre foi pacífico que estes eram tradicionalmente entendidos como os elementos objectivos do tipo - jurisprudência recente (acórdão u. j. nº 1/2015) veio a incluir nesse entendimento os elementos subjectivos do tipo, com a seguinte formulação: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP».

Destarte, não obstante as posições inicialmente assumidas pela jurisprudência de que o requerimento para abertura da instrução apenas podia ser rejeitado com base numa interpretação literal do artigo 287º, nº 3 do Código de Processo Penal (v.g. acórdão desta Relação de 12-06-1995 – in CJ, IV, 140 - no sentido de que a insuficiência de factos não podia integrar a previsão daquele normativo), rapidamente se estabeleceu jurisprudência contrária no pressuposto de que a existência de todos os factos essenciais para a imputação de um crime devem constar daquele requerimento, que se torna peça essencial da apreciação instrutória, do exercício do contraditório e da futura apreciação de facto e de direito em sede de audiência de julgamento.

Como consequência, a previsão do nº 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal assume um carácter essencial e a sua frase inicial (a não sujeição a formalidades especiais) é enganadora, já que não desobriga à menção dos factos – e de todos os factos – capitais ao preenchimento de um determinado tipo penal.

Tal requerimento para abertura de instrução assume, assim, duas naturezas: a de uma acusação formal; a de um (eventual) requerimento probatório. E as exigências formais e substanciais quanto à primeira são muito mais exigentes na medida em que essa parte do RAI (a acusação) vai ser a base do julgamento e a peça determinante para a condenação ou absolvição.

Aquilo que o tribunal recorrido decidiu concretiza-se na afirmação de que o RAI não cumpre na totalidade, relativamente aos arguidos não pronunciados, o papel de uma acusação formal.

É que tal peça tem mesmo que ser uma “acusação”. Tem que ser apresentada com autonomia factual. Tem que “contar uma história” apenas com factos essenciais a integrar os tipos penais pretendidos integrar – e todos eles, objectivos e subjectivos.

Após uma leitura cuidada do requerimento acusatório apresentado é indubitável que ocorrem as circunstâncias referidas pelo tribunal recorrido.


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B.4 – Constatada a falha factual no RAI poderá o Juiz de Instrução supri-las? Esta a segunda questão que se suscita nos autos.

Como se afirmou supra o juiz não pode, por sua lavra, acrescentar factos que constituam alteração substancial dos que constam da acusação e acrescentar novos factos essenciais ao tipo penal é uma alteração substancial. Não pode, por outro lado, tomar a iniciativa de suprir falhas a favor de uma das partes, deduzindo intenções.

Por outro lado, é jurisprudência assente que a omissão da narração dos factos no requerimento de abertura da instrução, ainda que a exigência se baste com uma narração sintética, não dá lugar a um direito ao aperfeiçoamento - v. acórdão de uniformização de jurisprudência nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005.

Não deixa de ser um acórdão com o qual estamos em desacordo com base na ideia de violação do princípio da igualdade de armas, mas também constatamos que tal argumento já foi dirimido na feitura daquele acórdão através do voto de vencido do Cons. José Vaz dos Santos Carvalho.

Também nada impede o convite à correcção, sequer as necessidades de defesa, desde logo porquanto o “direito ao juiz” também é um direito constitucionalmente consagrado, depois porque o arguido não é titular do direito a impedir o efectivo exercício daquele “direito ao juiz”.

Também nos parece terem sido utilizados argumentos irrelevantes naquele acórdão, designadamente o dilatar do prazo final do desfecho da instrução, o trânsito do despacho de não pronúncia (que, no caso não está em causa pois que outros factos – os em falta – impedem a formação de um caso julgado negativo com base, precisamente, na falta dos indicados factos), a renovação da acusação e a impossibilidade de o juiz convidar o Ministério Público a corrigir a acusação (nada obsta que o Ministério Público, caso veja a sua acusação recusada por falta de factos, a possa renovar com os novos factos e, mesmo que se considere o processo jurisdicionalizado, com mera certidão do processo, pelo que o argumento é ínvio).

Mas temos que reconhecer que tais argumentos já foram dirimidos na fundamentação daquele acórdão, pelo que não podemos aduzir novos argumentos e nos resta acatar aquela jurisprudência uniformizada. A jurisprudência constitucional parece, igualmente, estabilizada, pelo menos a crer na fundamentação avançada pelo acórdão nº 358/04.

É claro que vem subentendida neste tipo de insatisfação uma crítica, o de uma eventual diferença de tratamento do RAI com a possibilidade de convite ao aperfeiçoamento das conclusões de um recurso.

Apesar do dito supra, tal matéria foi já tratada de forma bastante clara no Acórdão nº 27/2001 do Tribunal Constitucional como segue:

«Ora, nos casos de não pronúncia de arguido e em que o Ministério Público se decidiu pelo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução que é reconhecido ao assistente – e que deve revestir a forma de uma verdadeira acusação – não pode deixar de contender com o direito de defesa do eventual acusado ou arguido no caso daquele não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentação.

O estabelecimento de um prazo peremptório para requerer a abertura da instrução – prazo esse que, uma vez decorrido impossibilita a prática do acto – insere-se ainda no âmbito da efectivação plena do direito de defesa do arguido. E a possibilidade de, após a apresentação de um requerimento de abertura de instrução, que veio a ser julgado nulo, se poder ainda repetir, de novo, um tal requerimento para além do prazo legalmente fixado, é, sem dúvida, violador das garantias de defesa do eventual arguido ou acusado. Com efeito, a admissibilidade de renovação do requerimento não permitiria que transitasse o despacho de não pronúncia, assim desaparecendo a garantia do arguido de que, por aqueles factos não seria de novo acusado.

Se se focar, agora, a perspectiva do direito da assistente de deduzir a acusação através do requerimento de abertura da instrução, a não admissibilidade de renovação do requerimento por decurso do prazo não constitui uma limitação desproporcionada do respectivo direito, na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir – na sua possível concretização - uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido.

Dir-se-á, por último, que do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito.

Este balanceamento dos interesses em causa basta para mostrar que a aceitação da exclusão do direito de renovar um requerimento nulo pelo decurso do prazo peremptório fixado não desencadeia uma limitação excessiva ou desproporcionada do direito de acusar do assistente, pelo que o recurso de constitucionalidade não pode proceder

Assim, apesar de o direito ao juiz ter consagração constitucional, tal direito tem sido valorado pelo Tribunal Constitucional de forma diversa – e menos relevante – do que o direito à defesa do arguido.

Esta matéria está já estabilizada – e desde os anos 90 do século passado – sendo o mais recente acórdão n.º 175/2013 do Tribunal Constitucional uma boa resenha jurisprudencial sobre o tema, O mesmo reedita jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional e conclui não julgando inconstitucional “a norma resultante do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, com referência ao artigo 283.º, nº 3, alíneas b) e c), do mesmo Código, segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados aos arguidos, delimitando o objeto fáctico da pretendida instrução”.

Assente, portanto, que a alegação exaustiva de factos típicos é essencial e que o convite à correcção não é hipótese aceite pela jurisprudência, resta afirmar a improcedência do recurso.


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C - Dispositivo:

Face ao que precede, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora negam provimento ao recurso.

Custas pelo assistente com o mínimo de taxa de justiça.

Notifique.

Évora, 09 de Novembro de 2021

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

António Condesso

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[1] - V.g. DIAS, Figueiredo, in “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, Jornadas de Direito Processual Penal – O novo Código de Processo Penal, Almedina Coimbra, 1988, 16 e “Os princípios estruturais do processo e a revisão de 1998 do Código de Processo Penal”, in RPCC, ano 8, t. 2, pag. 211; ANTUNES, Maria João, in “O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coação”, in Liber Discipulorum, Coimbra Editora, 2003, pag. 1247.