Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | GOMES DE SOUSA | ||
Descritores: | DIFAMAÇÃO RESPONSABILIDADE CRIMINAL RESPONSABILIDADE CIVIL REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO | ||
Data do Acordão: | 11/09/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | 1 - O não cumprimento do mínimo ético jornalístico quanto ao dever de informação e do contraditório e a ânsia de fazer televisão com apelo exclusivo à emoção nas audiências (ao invés de programa essencialmente informativo) pode ser forte suporte para responsabilização civil - até punitiva que, realmente, deve ser reforçada pela jurisprudência – mas não são suporte factual para a imputação criminosa. 2 - O crime de difamação é doloso, de onde decorre naturalmente a não punibilidade pelo negligenciar de deveres eventualmente existentes, algo que já não ocorre na responsabilização civil. 3 - A previsão do nº 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal assume um carácter essencial e a sua frase inicial (a não sujeição a formalidades especiais) é enganadora, já que não desobriga à menção dos factos – e de todos os factos – capitais ao preenchimento de um determinado tipo penal. Tal requerimento para abertura de instrução assume, assim, duas naturezas: a de uma acusação formal; a de um (eventual) requerimento probatório. E as exigências formais e substanciais quanto à primeira são muito mais exigentes na medida em que essa parte do RAI (a acusação) vai ser a base do julgamento e a peça determinante para a condenação ou absolvição. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: A - Relatório Nos autos de Inquérito supra numerados que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém Juízo de Instrução Criminal de Santarém - Juiz 1, (...) constituiu-se assistente nos autos e, a 12-08-2019, deduziu acusação particular contra: (…) aos quais imputou a prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de difamação agravada, nos termos p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1, 182º e 183º do Código Penal. Contra os mesmos deduziu pedido de indemnização civil no montante de 33.500 €. O Ministério Público não acompanhou a acusação particular contra (…) acompanhando quanto aos restantes pela prática de um crime de difamação agravada, nos termos p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1, 182º, e 183º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal. * (…), requereram a abertura de instrução. Admitidos os requerimentos de abertura de instrução - e realizado debate instrutório - veio a ser lavrada decisão de não pronúncia que decidiu: - não pronunciar os arguidos (…), pela prática do crime de difamação agravada que lhes vem imputada na acusação particular; e - pronunciar, para julgamento em processo comum perante Tribunal Singular a arguida (…), pela prática dos factos constantes na acusação particular de fls. 365 a 377, no segmento em que respeitam à arguida supra identificada e pelos quais se lhe imputa a prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de difamação agravada, nos termos p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1, 182º, e 183º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal. * O assistente interpôs recurso do despacho do Mmº Juiz de Instrução Criminal, com as seguintes conclusões (transcritas): 1ª- A decisão entendeu a acusação não conter todos os factos necessários para que se possa imputar aos arguidos requerentes da instrução a prática de qualquer crime, e estando a questão balizada nestes termos, e apenas nestes (até porque tudo o que está na acusação se crê mais do que indiciado), a bondade ou não da decisão extrai-se precisamente dos factos que constam da acusação, que assim teremos que recordar; 2º A SIC, Sociedade Independente de Comunicação S.A. é proprietária da estação privada de televisão SIC, que emite em Portugal e em todo o mundo, através dos canais SIC, SIC INTERNACIONAL e da sua versão eletrónica na internet. 3ª- Salvo o devido respeito, é quanto baste para proceder o recurso, contendo a acusação os factos mais do que suficientes, aliás todos perfeitamente indiciados, para imputar aos arguidos a prática de um crime; * Respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Santarém defendendo a improcedência do recurso, concluindo: Subscreve-se, integralmente o despacho recorrido, por correcto, do ponto de vista jurídico, dada a sua irrepreensível fundamentação, contexto a que se acrescentarão outras insuficiências, estas fundamentadas supra. * O arguido (…) respondeu apresentando as seguintes conclusões: 1. O Recurso interposto pelo Assistente quanto à Decisão Instrutória de 24.11.2020 deve ser julgado improcedente, devendo a Decisão Instrutória de não pronúncia do Arguido (...) ser mantida na íntegra. * Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer onde defende a improcedência do recurso. Foi observado o disposto no n. 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal, respondendo a assistente. *** B.1 - Fundamentação: Os elementos de facto relevantes constam do relatório supra e do teor do despacho judicial recorrido. É o seguinte o teor de tal despacho: «II - Questão prévia – Da (in)validade da acusação quanto aos arguidos (…) * Passando pois aos factos em concreto devemos ter em conta quais os factos objetivos em concreto imputados a cada arguido (por ação ou por omissão).Nota-se pois que a acusação fala em diversas parte dessa reportagem que incluem afirmações cuja autoria não está atribuída a nenhuma pessoa (e nomeadamente a nenhum arguido) em concreto. Nomeadamente as intervenções em “voz off”, as menções “em rodapé” ou outras menções escritas inseridas na emissão e as imagens de fundo, referidas nos artigos 6º, 7º, 8º, 11º, não estão atribuídas a nenhum arguido concreto. Quanto aos arguidos (…) este introduz a arguida (...), “como vítima de violência doméstica” e afirma que esta “partilha o seu testemunho” referindo-se ao livro que esta havia escrito, intitulado “Conversas do … e da …” (filhos da arguida e do assistente) que aborda a questão se saber como devem ser abordadas as questões da violência doméstica perante as crianças que a ela assistem. Seguidamente os arguidos (...) dirigem à arguida (...) várias perguntas, tendo por base o pressuposto de que esta foi vítima de violência doméstica. Ora da análise dos factos referidos na acusação, nota-se que toda a reportagem se baseia nas declarações da pessoa que aí se apresenta como ofendida de um crime de violência doméstica, declarações essas que já haviam sido tornadas públicas mesmo antes da reportagem ter sido emitida. Como se refere na reportagem e na acusação, a arguida (...) não só se havia afirmado como vítima de violência doméstica, como havia “partilhado online” as conversas que vai tendo com os filhos, principalmente sobre a violência doméstica e havia inclusivamente publicado um livro sobre essa alegada experiência, que estava aí a ser apresentado. É perfeitamente claro da leitura dos factos da acusação, como é claro para qualquer pessoa que assista ao segmento em causa, que todas as referências à arguida (...) sobre a sua condição de vítima de violência doméstica partem das suas próprias declarações, já públicas, desde há muito. De resto, o próprio assistente refere na acusação que essas declarações da arguida (...) datam pelo menos desde 2013, quando a arguida havia feito declarações do mesmo teor no programa “Querida Júlia” onde havia difamado o assistente “com as mesmas imputações falsas”. Parece pois que as intervenções dos arguidos (...) (que de entre os arguidos requerentes da instrução são os únicos a quem se pode imputar uma conduta ativa) estão a coberto do disposto no artigo 71º, n.º 4 da Lei da Televisão, porquanto apenas se limitam a formular perguntas à ofendida e se algumas dessas perguntas têm pressupostos afirmativos de facto, estes baseiam-se apenas nas afirmações anteriores e já públicas (e publicadas) da arguida (...) que está a ser entrevistada. De facto, quando alguém produz afirmações sobre matérias de potencial interesse público e jornalístico, podem e por vezes devem os jornalistas questionar essa pessoa sobre o teor das suas afirmações, procurando aprofundar o tema. Essas perguntas, para serem relevantes, têm por vezes de se basear na realidade factual afirmada previamente. Tal não as torna criminalmente puníveis, pois os pressupostos afirmativos que estão na base da pergunta se baseiam precisamente nas declarações já anteriormente produzidas pelo entrevistado. Assim sendo, quando o arguido (...) refere, como se diz na acusação “Ó (…) durante oito anos foi vítima de violência doméstica, certo, (…) Parte desse tempo os seus filhos assistiram (…)Como é que se vive nesta roleta?”, as afirmações assinaladas a itálico, são apenas a reprodução de declarações anteriores e públicas da arguida (...), que servem para contextualizar a pergunta que é feita de seguida. Já quanto aos demais arguidos requerentes da instrução, nenhuma conduta ativa lhes é imputada em concreto. Quanto ao arguido (…), alega-se que este é diretor geral da “SIC-Sociedade Independente de Comunicação, SA” e da estação de televisão “SIC” e que nas suas obrigações funcionais estão os deveres de conhecimento dos conteúdos televisivos e de decidir antecipadamente sobre a determinação do conteúdo dos programas”. Quanto aos arguidos (…) afirma-se que são “os diretores de programa” e a arguida (…) é “Diretora Executiva de conteúdos do programa televisivo “Queridas manhãs” e lhes compete “orientar, superintender e determinar” o conteúdo desse programa. Assim sendo, mesmo que a conduta em causa pudesse responsabilizar estes arguidos (o que como já vimos não parece possível em face do teor do artigo 71º, n.º 4 da Lei da Televisão), sempre seria necessário alegar em termos concretos que estes arguidos tinham a possibilidade de se opor à emissão deste segmento e, necessariamente, alegar que estes arguidos tiveram conhecimento antecipado do teor desta emissão, o que não se alega em concreto quanto a estes. Não se afirma no entanto, de forma inequívoca que estes arguidos tiveram (como e quando) conhecimento prévio do teor projetado da entrevista e do segmento em causa de modo a poderem obstar tempestivamente ao mesmo. Não basta dizer que os arguidos, nomeadamente os arguidos (…) “tinham o dever de conhecer” o teor desse programa, em face das suas funções. Mesmo que tal seja verdade (o que é posto em causa pelos arguidos), existem múltiplos motivos possíveis pelos quais poderiam não ter tido conhecimento efetivo do mesmo independentemente de qualquer culpa ou dolo. A este respeito, por mero exemplo, a arguida (…) afirma que não estava em exercício efetivo de funções à data dos factos. Nota-se depois alguma confusão na acusação na descrição da conduta subjetiva dos arguidos e mesmo na imputação objetiva das suas condutas. Refere-se no artigo 22º da acusação que “A arguida (...) sabia, e os restantes arguidos também o sabiam ou tinham obrigação de o saber, que as palavras e imputações falsas referidas em 6°, 7°, 9°, 10° e 11°, que produziram voluntaria e conscientemente, eram aptas a atingir o assistente na sua honra e consideração…”. Ora como já se notou supra, um dos elementos essenciais do tipo legal de difamação é o conhecimento, por parte do agente, de que as afirmações de factos ou juízos de valor que imputa a terceiros são objetivamente ofensivo da sua honra e consideração. Isto apenas é inequivocamente afirmado quanto à arguida (...) que sem dúvida o sabia (de acordo com a acusação). Já os restantes arguidos “sabiam ou deviam saber”, afirmação que, em sede acusatória, é insuficiente para sustentar o seu dolo. O mero dever saber é irrelevante pois um dever (seja de que natureza for) pode ser quebrado de forma não culposa ou não dolosa, como já supra se notou. Depois o assistente, sem individualizar a conduta dos arguidos referem de forma confusa no artigo 23º da acusação que “Os arguidos imputaram ao assistente factos falsos criminosos e formularam sobre ele juízos ofensivos da sua honra e consideração, reproduziram tais imputações e juízos e permitiram-no e não o impediram…”. Confunde aqui o arguido a prática deste crime por ação (imputaram factos, formularam juízos ou reproduziram juízos) com a prática por omissão (não o impediram) imputando ambas as formas de atuação indistintamente a todos os arguidos de uma forma genérica e conclusiva. Conclui-se pois que a acusação não contém todos os factos necessários para que se possa imputar aos arguidos requerentes da instrução a prática de qualquer crime, nomeadamente do crime de difamação agravada, aos arguidos (…). Deve assim concluir-se pela sua não pronúncia. * III - Das consequências legais da instrução para a arguida que a não requereu:Nos termos do artigo 307º, n.º 4 do CPP, que rege a decisão instrutória “A circunstância de ter sido requerida apenas por um dos arguidos não prejudica o dever de o juiz retirar da instrução as consequências legalmente impostas a todos os arguidos.”. No entanto, no caso dos autos, concluímos que a instrução requerida pelos demais arguidos não afeta os pressupostos de facto e de direito da acusação no segmento em que é dirigida contra a arguida que a não requereu, ou seja, a arguida (…). Os argumentos expostos pelos arguidos requerentes da instrução baseiam-se na sua posição específica no contexto dos factos, nos quais não são a fonte das afirmações ofensivas, pelo que a sua responsabilização penal comporta pressupostos acrescidos que, in casu, a acusação não logrou alegar. Pelo exposto, devem os autos prosseguir para julgamento quanto à arguida (...), cuja posição processual não foi afetada pela presente instrução. * IV – Decisão:Nestes termos e com os fundamentos expostos: a) Não pronuncio os arguidos (…), pela prática do crime de difamação agravada que les vem imputada na acusação particular; e b) pronuncio, para julgamento em processo comum perante Tribunal Singular a arguida: - (…); Pela prática dos factos constantes na acusação particular de fls. 365 a 387, no segmento em que respeitam à arguida supra identificada; E pelos quais se lhe imputa a prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de difamação agravada, nos termos p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1, 182º, e 183º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal. Prova: (…)» *** B - Cumpre apreciar e decidir. O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº 1 e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal. O tema abordado no recurso reconduz-se a apurar se todos os arguidos deveriam ser pronunciadas pelos crimes imputados pelo assistente. Esta única questão implica a análise da argumentação do recorrente e a sua delimitação de facto e de direito face à fundamentação do despacho recorrido. * B.2 – A argumentação do recorrente assenta na afirmação de que na sua acusação elencou todos os factos necessários à imputação a todos os arguidos acusados, entendendo que os descreveu de forma exaustiva, reproduzindo-os na conclusão 2ª do seu recurso. No entanto parece-nos que dois equívocos imperam neste seu recurso. De uma banda o assistente dá como assente que as afirmações da arguida pronunciada, (…), são suficientes em conjunto com os respetivos deveres dos restantes arguidos na estrutura da estação televisiva para integrarem os crimes que imputa aos arguidos não pronunciados. Se bem repararmos nenhum dos factos por si indicados relata afirmações ou condutas de qualquer dos arguidos que sejam distintos e autónomos da conduta/afirmações da arguida (…). Ora, incumbia-lhe fazer essa descrição autónoma relativamente a cada um dos arguidos e não ficar pelas asserções abstractas e genéricas que constam, por exemplo, dos pontos 13º, 14º e 23º da sua conclusão 2º, designadamente: 13º Todos os factos e comportamentos imputados ao assistente são falsos e gravemente ofensivos da sua honra, dignidade e consideração pessoal, tanto mais graves e ofensivos quando a imputação que lhe é feita é sobre a prática de factos criminosos, tudo pondo em causa o seu carácter, bom nome, rectidão e dignidade perante a sociedade em geral. Isto é, não existe a imputação de qualquer facto ou afirmação praticado ou realizada pelos arguidos que seja concreto, destacável, autónomo das afirmações da arguida (...), pelo que nenhum crime lhes é imputado. De outra banda, olvida o recorrente que o eventual incumprimento dos deveres jornalísticos que ali imputa aos arguidos não pronunciados – e que até podemos aceitar como tendo ocorrido quanto ao dever de prévia informação e exercício do básico contraditório – não constitui em si um ilícito criminal. Naturalmente que esses deveres (existentes), o não cumprimento do mínimo ético jornalístico quanto ao dever de informação e do contraditório (eventualmente existentes) e a ânsia de fazer televisão com apelo exclusivo à emoção nas audiências (ao invés de programa essencialmente informativo) pode ser forte suporte para responsabilização civil - até punitiva que, realmente, deve ser reforçada pela jurisprudência – mas não são suporte factual para a imputação criminosa. Como bem realça o tribunal recorrido, o crime de difamação é doloso, de onde decorre naturalmente a não punibilidade pelo negligenciar de deveres eventualmente existentes, algo que já não ocorre na responsabilização civil. Relativamente ao meio usado, o meio televisivo, deparamo-nos agora com norma expressa no artigo 71º, nº 4 da Lei n.º 27/2007, de 30 de Julho, “Lei da televisão e dos serviços audiovisuais a pedido”, que veio estatuir de forma clara que “Tratando-se de declarações correctamente reproduzidas ou de intervenções de opinião, prestadas por pessoas devidamente identificadas, só estas podem ser responsabilizadas, salvo quando o seu teor constitua incitamento ao ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual, ou à prática de um crime, e a sua transmissão não possa ser justificada por critérios jornalísticos”. Ora, a norma citada é clara na exclusão de responsabilidade criminal pois que no caso sub iudice a pessoa que – em exclusivo - faz as afirmações está perfeitamente identificada. E sempre é certo que o assistente não invocou em termos factuais a possibilidade, aceitável, de se tratar de caso de incitamento ao ódio em função do sexo, que também necessitava de ser factualmente alegado e que sempre caberia na previsão da cláusula de salvaguarda da segunda parte do preceito. Destarte, para além da previsão da citada norma, e como bem fundamenta o tribunal recorrido, não existe a imputação factos objectivos e a respectiva subjectivação que seja suporte para uma pronúncia criminal. * B.3 – Como já afirmámos em anteriores relatos é um dado doutrinária e jurisprudencialmente aceite que a instrução é um mecanismo de controlo judicial da posição tomada pelo Ministério Público no final do inquérito, tendo em vista questionar o acerto do despacho de arquivamento ou do teor da acusação deduzida,[1] ao invés de uma fase autónoma de investigação, isto sem prejuízo de ser permitida uma actividade complementar de investigação dos factos. Por outro lado, é reconhecida ao assistente a possibilidade de introduzir os factos em julgamento através do Juiz de Instrução, o que só se pode configurar como um direito com dignidade constitucional. De facto, o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa estatui de forma clara que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos. O mesmo é afirmado pelo artigo 6º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (vulgo, Convenção Europeia dos Direitos do Homem). Assim, o requerimento de abertura de instrução está enquadrado no “direito ao juiz”, no direito a ver o seu caso apreciado jurisdicionalmente. É uma manifestação do vulgarmente designado “direito à tutela jurisdicional efectiva”, tendo presente que a instrução visa fazer o controlo jurisdicional da posição do Ministério Público de deduzir ou não acusação, sendo líquida a importância de tal controle para a defesa dos interesses do cidadão ofendido. Este direito não pode ser configurado como um direito formal, sim “efectivo”, como bem se salienta na epígrafe do normativo constitucional e é repisado pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Assim, é indubitável que uma interpretação do artigo 287º do Código de Processo Penal demasiado rígida e formalista poderá pôr em causa esse direito à tutela jurisdicional e constituir-se como uma recusa substancial do “direito ao juiz”. Mas supõe a necessidade de cumprir as exigências substanciais contidas no Código de Processo Penal que se não podem entender como desproporcionadas e desenquadradas dos restantes princípios e exigências do código. Tais exigências, aliás, revelam-se essenciais para a própria tutela dos interesses do assistente, que pretenderá ver a sua pretensão processual devidamente analisada para além de, naturalmente, assegurar o direito de defesa dos arguidos via exercício do contraditório. E, não obstante não estar sujeito a formalidades especiais, o requerimento deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, sendo-lhe ainda aplicável o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal - v.g. artigo 287º nº 2 do mesmo diploma. Assim, o papel do assistente, no uso dos poderes que lhe são conferidos pelos artigos 284º, nº 1 e 286º, nº 1 e 287º, nº 1, al. b), é o de sujeitar ao juiz a sua visão dos factos e do direito aplicável tendo em vista obter uma decisão judicial que homologue a sua visão processual através de um despacho judicial – a pronúncia – que obtenha o efeito pretendido e anteriormente não obtido, o da sujeição de um arguido a julgamento independentemente da posição assumida pelo Ministério Público no final do inquérito. E aqui é essencial ter presente que será essa visão – dos factos e do direito – que constituirá a base do julgamento e da decisão judicial futura. Nos termos do artigo 285º do Código de Processo Penal, com o necessário recurso ao nº 3 do artigo 283º do mesmo diploma, a acusação contém, sob pena de nulidade, a identificação do arguido, a indicação das nomas aplicáveis e a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada. Pretende-se, portanto, que a acusação contenha ab initio todos os factos que irão permitir a integração num ou mais tipos penais. Porque, é sabido, tais factos/elementos não se presumem de iure nem é lícito ao Juiz de julgamento extravasar dos seus poderes cognitivos, sabido que tais poderes são balizados e limitados pelo conteúdo da acusação, pelo thema decidendum (objecto do processo) e pelo thema probandum (extensão da cognição). Ou seja, não será permitido ao Juiz acrescentar os factos em falta ou imputar ao arguido, motu proprio, um ou mais crimes por sua iniciativa. O juiz não pode, por sua lavra, acrescentar factos que constituam alteração substancial dos factos que constam da acusação e acrescentar novos factos essenciais ao tipo penal é uma alteração substancial. O que se pretende, pois, é que a acusação contenha o facto, normativamente entendido, isto é, em articulação com as normas violadas pela sua prática e que irão, constando da acusação, conformar o “objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado” (Cfr. o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 130/98). Não há dúvida (como se afirma no acórdão nº 358/04 do Tribunal Constitucional) que o “processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do objecto do processo, uma vez definido este pela acusação. O processo penal admite, porém, que sendo a descrição dos factos da acusação uma narração sintética, nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime acusado possam constar desde logo dessa peça, podendo surgir durante a discussão factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos”. Ora, se é verdade que não é uma exigência inultrapassável que a acusação seja uma peça rígida e imutável, não menos verdade será que ela deve conter os factos essenciais à integração num ou mais tipos penais. Nem se trata, por outro lado, de uma mera questão de linguagem, do não uso de formas tabelares, sim da inexistência de factos que conduzem, desde já à afirmação de que o RAI a ser recebido e conduzisse a uma pronúncia, tal como está, conduziria inexoravelmente à absolvição dos arguidos agora não pronunciados. Assente, portanto, que a alegação de factos típicos é essencial – e sempre foi pacífico que estes eram tradicionalmente entendidos como os elementos objectivos do tipo - jurisprudência recente (acórdão u. j. nº 1/2015) veio a incluir nesse entendimento os elementos subjectivos do tipo, com a seguinte formulação: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP». Destarte, não obstante as posições inicialmente assumidas pela jurisprudência de que o requerimento para abertura da instrução apenas podia ser rejeitado com base numa interpretação literal do artigo 287º, nº 3 do Código de Processo Penal (v.g. acórdão desta Relação de 12-06-1995 – in CJ, IV, 140 - no sentido de que a insuficiência de factos não podia integrar a previsão daquele normativo), rapidamente se estabeleceu jurisprudência contrária no pressuposto de que a existência de todos os factos essenciais para a imputação de um crime devem constar daquele requerimento, que se torna peça essencial da apreciação instrutória, do exercício do contraditório e da futura apreciação de facto e de direito em sede de audiência de julgamento. Como consequência, a previsão do nº 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal assume um carácter essencial e a sua frase inicial (a não sujeição a formalidades especiais) é enganadora, já que não desobriga à menção dos factos – e de todos os factos – capitais ao preenchimento de um determinado tipo penal. Tal requerimento para abertura de instrução assume, assim, duas naturezas: a de uma acusação formal; a de um (eventual) requerimento probatório. E as exigências formais e substanciais quanto à primeira são muito mais exigentes na medida em que essa parte do RAI (a acusação) vai ser a base do julgamento e a peça determinante para a condenação ou absolvição. Aquilo que o tribunal recorrido decidiu concretiza-se na afirmação de que o RAI não cumpre na totalidade, relativamente aos arguidos não pronunciados, o papel de uma acusação formal. É que tal peça tem mesmo que ser uma “acusação”. Tem que ser apresentada com autonomia factual. Tem que “contar uma história” apenas com factos essenciais a integrar os tipos penais pretendidos integrar – e todos eles, objectivos e subjectivos. Após uma leitura cuidada do requerimento acusatório apresentado é indubitável que ocorrem as circunstâncias referidas pelo tribunal recorrido. ** B.4 – Constatada a falha factual no RAI poderá o Juiz de Instrução supri-las? Esta a segunda questão que se suscita nos autos. Como se afirmou supra o juiz não pode, por sua lavra, acrescentar factos que constituam alteração substancial dos que constam da acusação e acrescentar novos factos essenciais ao tipo penal é uma alteração substancial. Não pode, por outro lado, tomar a iniciativa de suprir falhas a favor de uma das partes, deduzindo intenções. Por outro lado, é jurisprudência assente que a omissão da narração dos factos no requerimento de abertura da instrução, ainda que a exigência se baste com uma narração sintética, não dá lugar a um direito ao aperfeiçoamento - v. acórdão de uniformização de jurisprudência nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005. Não deixa de ser um acórdão com o qual estamos em desacordo com base na ideia de violação do princípio da igualdade de armas, mas também constatamos que tal argumento já foi dirimido na feitura daquele acórdão através do voto de vencido do Cons. José Vaz dos Santos Carvalho. Também nada impede o convite à correcção, sequer as necessidades de defesa, desde logo porquanto o “direito ao juiz” também é um direito constitucionalmente consagrado, depois porque o arguido não é titular do direito a impedir o efectivo exercício daquele “direito ao juiz”. Também nos parece terem sido utilizados argumentos irrelevantes naquele acórdão, designadamente o dilatar do prazo final do desfecho da instrução, o trânsito do despacho de não pronúncia (que, no caso não está em causa pois que outros factos – os em falta – impedem a formação de um caso julgado negativo com base, precisamente, na falta dos indicados factos), a renovação da acusação e a impossibilidade de o juiz convidar o Ministério Público a corrigir a acusação (nada obsta que o Ministério Público, caso veja a sua acusação recusada por falta de factos, a possa renovar com os novos factos e, mesmo que se considere o processo jurisdicionalizado, com mera certidão do processo, pelo que o argumento é ínvio). Mas temos que reconhecer que tais argumentos já foram dirimidos na fundamentação daquele acórdão, pelo que não podemos aduzir novos argumentos e nos resta acatar aquela jurisprudência uniformizada. A jurisprudência constitucional parece, igualmente, estabilizada, pelo menos a crer na fundamentação avançada pelo acórdão nº 358/04. É claro que vem subentendida neste tipo de insatisfação uma crítica, o de uma eventual diferença de tratamento do RAI com a possibilidade de convite ao aperfeiçoamento das conclusões de um recurso. Apesar do dito supra, tal matéria foi já tratada de forma bastante clara no Acórdão nº 27/2001 do Tribunal Constitucional como segue: «Ora, nos casos de não pronúncia de arguido e em que o Ministério Público se decidiu pelo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução que é reconhecido ao assistente – e que deve revestir a forma de uma verdadeira acusação – não pode deixar de contender com o direito de defesa do eventual acusado ou arguido no caso daquele não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentação. O estabelecimento de um prazo peremptório para requerer a abertura da instrução – prazo esse que, uma vez decorrido impossibilita a prática do acto – insere-se ainda no âmbito da efectivação plena do direito de defesa do arguido. E a possibilidade de, após a apresentação de um requerimento de abertura de instrução, que veio a ser julgado nulo, se poder ainda repetir, de novo, um tal requerimento para além do prazo legalmente fixado, é, sem dúvida, violador das garantias de defesa do eventual arguido ou acusado. Com efeito, a admissibilidade de renovação do requerimento não permitiria que transitasse o despacho de não pronúncia, assim desaparecendo a garantia do arguido de que, por aqueles factos não seria de novo acusado. Se se focar, agora, a perspectiva do direito da assistente de deduzir a acusação através do requerimento de abertura da instrução, a não admissibilidade de renovação do requerimento por decurso do prazo não constitui uma limitação desproporcionada do respectivo direito, na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir – na sua possível concretização - uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido. Dir-se-á, por último, que do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito. Este balanceamento dos interesses em causa basta para mostrar que a aceitação da exclusão do direito de renovar um requerimento nulo pelo decurso do prazo peremptório fixado não desencadeia uma limitação excessiva ou desproporcionada do direito de acusar do assistente, pelo que o recurso de constitucionalidade não pode proceder.» Assim, apesar de o direito ao juiz ter consagração constitucional, tal direito tem sido valorado pelo Tribunal Constitucional de forma diversa – e menos relevante – do que o direito à defesa do arguido. Esta matéria está já estabilizada – e desde os anos 90 do século passado – sendo o mais recente acórdão n.º 175/2013 do Tribunal Constitucional uma boa resenha jurisprudencial sobre o tema, O mesmo reedita jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional e conclui não julgando inconstitucional “a norma resultante do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, com referência ao artigo 283.º, nº 3, alíneas b) e c), do mesmo Código, segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados aos arguidos, delimitando o objeto fáctico da pretendida instrução”. Assente, portanto, que a alegação exaustiva de factos típicos é essencial e que o convite à correcção não é hipótese aceite pela jurisprudência, resta afirmar a improcedência do recurso. * C - Dispositivo: Face ao que precede, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora negam provimento ao recurso. Custas pelo assistente com o mínimo de taxa de justiça. Notifique. Évora, 09 de Novembro de 2021 (Processado e revisto pelo relator) João Gomes de Sousa António Condesso __________________________________________________ [1] - V.g. DIAS, Figueiredo, in “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, Jornadas de Direito Processual Penal – O novo Código de Processo Penal, Almedina Coimbra, 1988, 16 e “Os princípios estruturais do processo e a revisão de 1998 do Código de Processo Penal”, in RPCC, ano 8, t. 2, pag. 211; ANTUNES, Maria João, in “O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coação”, in Liber Discipulorum, Coimbra Editora, 2003, pag. 1247. |