Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
41/21.4T8ENT.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE
ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL
PESSOA COLECTIVA
RESPONSABILIDADE CONTRA-ORDENACIONAL
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Antes de instaurado o processo sancionatório (penal ou contraordenacional), os documentos disponibilizados ao abrigo do dever de colaboração podem ser aproveitados para a sua instrução, atendendo às razões justificativas da restrição ao princípio

II - Depois de iniciado o processo sancionatório (penal ou contraordenacional), o eventual aproveitamento de tais informações nesse processo já não poderá considerar-se justificado, pois que utilizar no mencionado processo sancionatório documentos obtidos coativamente por via da inspeção, que não poderiam ser obtidos do mesmo modo seguindo a via do processo penal, significaria transformar a colaboração dos cidadãos ou das empresas num meio de obtenção de prova contra si próprios e, consequentemente, violaria o princípio constitucional de proibição da autoincriminação, nemo tenetur se ipsum accusare.

IIII - A imputação da prática de um ilícito contraordenacional a uma pessoa coletiva não pressupõe que se indague qual ou quais as pessoas singulares que em concreto levaram a cabo as condutas geradoras de responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva
Decisão Texto Integral:



Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.
Nos presentes autos de recurso de contraordenação que correm termos no Juízo de Competência Genérica do Entroncamento, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, com o n.º 41/21.4T8ENT, foi a arguida (…), com sede na Rua (…), condenada pela prática de duas contraordenações:
- Uma contraordenação ambiental muito grave relativa ao incumprimento das condições impostas no título, prevista e punida pelo artigo 81.º n.º 3, al. c) do DL n.º 226-A/2007 de 31 de Maio, sancionável mos termos da al. b) do n.º 4 do artigo 22º da Lei 50/2006 de 29 de Agosto, republicada pela Lei n.º 114/2015 de 28 de Agosto.
- Uma contraordenação ambiental grave relativa ao funcionamento de uma instalação abrangida pelo DL n.º 127/2013 de 30 de Agosto, sem as licenças previstas no presente DL previsto e punido pela al. e) do n.º 2, do artigo 111º do DL n.º 127/2013 de 30 de Agosto, sancionável nos termos da al. b) do n.º 3 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto, republicada pela Lei n.º 114/2015 de 28 de Agosto.
*
Inconformada com tal decisão, veio a arguida interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:
1.ª No pretérito dia 8-06-2021 a Recorrente foi notificada da sentença proferida no processo n.º 41/21.4T8ENT, que a condenou na coima única de € 30.000,00, pela prática de duas contraordenações ambientais, a saber, uma contraordenação ambiental muito grave relativa ao incumprimento das condições impostas no título, prevista e punida pelo artigo 81.º n.º 3, al. c) do DL n.º 226-A/2007 de 31 de Maio, sancionável nos termos da al. b), do n.º 4, do artigo 22.º, da Lei 50/2006 de 29 de Agosto republicada pela Lei n.º 114/2015 de 28 de Agosto, e uma contraordenação ambiental grave relativa ao funcionamento de uma instalação abrangida pelo DL n.º 127/2013 de 30 de Agosto, sem as licenças previstas no presente DL, previsto e punido pela al. e), do n.º 2, do artigo 111.º do DL n.º 127/2013, de 30 de Agosto sancionável nos termos da al. b), do n.º 3, do artigo 22.º, da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto republicada pela Lei n.º 114/2015 de 28 de Agosto;
2.ª A sentença recorrida pouco ou mais nada diz que a decisão administrativa impugnada;
3.ª Escamoteado o seu conteúdo, verifica-se que começa por reproduzir a decisão administrativa (que por sua vez reproduz o auto de notícia);
4.ª Após o que, decide tabelarmente julgar improcedentes todas as nulidades invocadas pela Recorrente, dá como provados os factos constantes da decisão administrativa e, em sede de motivação de direito, a decisão recorrida limita-se a transcrever os preceitos jurídicos aplicáveis, sem qualquer subsunção ao caso concreto, e repete a nulidade assacada à decisão administrativa no que tange à falta de fundamentação da determinação da coima concreta, sendo por essa razão também ela própria nula, nos termos dos arts. 374.º, n.º 2 e 3/b), 375.º, n.º 1, e 379.º do Código de Processo Penal.
5.ª A sentença recorrida socorre-se de provas proibidas, porque recolhidas em manifesta violação do princípio da proibição da autoincriminação, para condenar a Recorrente pela contraordenação ambiental muito grave relativa ao incumprimento das condições impostas no título, prevista e punida pelo artigo 81.º n.º 3, al. c) do DL n.º 226-A/2007 de 31 de Maio.
6.ª Com efeito, a sentença recorrida justifica a improcedência da nulidade já invocada em sede de impugnação judicial com apelo a alguma jurisprudência, baseada na jurisprudência Orkem do TJUE, e ainda no art. 18.º da LQCA, culminando a afirmar que a Recorrente está obrigada à participação dos resultados laboratoriais em face da necessidade imposta legalmente de controlo e monitorização, da sua actividade;
7.ª Sucede que, como já é apanágio, o Tribunal a quo limita-se a expor as conclusões dos acórdãos sem densificar a sua posição e sem a subsunção das mesmas ao caso sub judice. Isto porque:
8.ª A atuação da entidade inspetiva anulou por completo as garantias de defesa da Recorrente, não existindo qualquer ponderação ou concordância prática entre os interesses conflituantes em presença;
9.ª A ter em conta, desde logo, que a IGAMAOT não se socorreu dos resultados que mensalmente são reportados, em observância da obrigação de reporte e monitorização;
10.ª Ao invés, a inspecção solicitou, em plena inspecção, essas análises a uma pessoa que não tem poderes de vinculação da Recorrente, ignorando ou anulando a vontade desta, porque incapaz de se vincular através de terceira pessoa;
11.ª Para além disso, essa pessoa não foi informada de que a prestação de informações e, muito em concreto, o fornecer dos resultados laboratoriais, poderia culminar na aplicação de uma coima à Recorrente;
12.ª A forma de atuação da IGAMAOT corresponde a uma total privação das garantias de defesa da Recorrente no processo sancionatório, o qual ocorreu sem que tenha existido qualquer ponderação e limitação ao estritamente necessário, compensado com um acrescido dever de informar, de garantir que os elementos são fornecidos por pessoa com idoneidade para vincular a pessoa colectiva e, sobretudo, que impliquem uma possibilidade posterior de exercício do contraditório;
13.ª Isto na medida em que o Tribunal a quo se limitou a concluir, com base nos resultados das análises, que os VLE tinham sido ultrapassados, não obstante a justificação – técnica – da testemunha da Recorrente para explicar essa ultrapassagem.
14.ª Na verdade, o Tribunal entrou já convencido na sala de audiência que a Recorrente havia praticado a infracção (arrogando-se até que já não é a primeira vez que a julga…), suportando-se cegamente nos documentos/relatórios recolhidos em sede de inspecção, e sem qualquer possibilidade de contraditório, como é de resto patente pelo texto da decisão recorrida.
15.ª Ora, tal como entendido pela Jurisprudência (cfr. entre outros Ac. de 17-04-2012, Proc. 594/11.5TAPDL.L1-5, do Tribunal da Relação de Lisboa), o respeito pelos direitos da arguida exigiria que, no mínimo, a entidade administrativa referisse à arguida que os elementos que remeteu podiam servir para a instauração de um processo de contra-ordenação, o que não se verificou.
16.ª Para além dessa ausência de informação, a inspeção “solicitou” os relatórios a alguém que no dia estava a trabalhar na sede da Recorrente, sem sequer indagar se esse alguém vinculava, ou não, a Recorrente.
17.ª Pelo que – consequência direta e necessária – a Recorrente nem sequer teve possibilidade de se auto-vincular a tal prestação de informações, de forma elucidada e consciente.
18.ª Como é bom de ver, a Inspecção não usou de meios que pudessem contrabalançar essa restrição dos direitos fundamentais de defesa em processo contra-ordenacional, nomeadamente, informando a Recorrente que as informações facultadas poderiam vir a ser utilizadas contra si.
19.ª Não houve qualquer ponderação – ou concordância prática; ao invés, o que se assistiu foi a um total esvaziamento dos direitos de defesa da Recorrente em detrimento do poder sancionatório.
20.ª Como se não bastasse, o Tribunal a quo nem sequer fez um esforço por compreender o contra-argumentos da Recorrente.
21.ª Não obstante a testemunha da Recorrente ter explicado, em sede de julgamento, que no actual estado de desenvolvimento da técnica, a Recorrente não tem – como ninguém tem – meios para cumprir escrupulosamente os VLE, tendo em conta que o nível de eficácia actual da remoção dos componentes físico-químicos alcança entre os 95% e os 97% e que procuram diariamente soluções para o cumprimento dos mesmos.
22.ª A preterição da prerrogativa da não auto-incriminação tem como consequência que os relatórios de análises constantes dos autos, juntas ao relatório de inspecção, não podiam ter sido utilizados como prova para fundamentar a decisão condenatória;
23.ª Nesta sede, são aplicáveis as proibições de prova previstas no art.º 126º do C.P.Penal, cujo n.º 1 prevê que as provas obtidas mediante coação ou ofensa da integridade moral das pessoas são nulas.
24.ª Sendo que o n.º 2 especifica que serão ofensivas da integridade moral das pessoas, as provas obtidas mediante perturbação da liberdade da vontade ou de decisão através, designadamente, da utilização de meios enganosos.
25.ª No caso que nos ocupa, os elementos fornecidos por pessoa sem poderes de vinculação da Recorrente, foram obtidos sem que lhe tivesse sido transmitido pela IGAMAOT que tinha o direito ao silêncio e à não auto-inculpação.
26.ª A Recorrente, em momento algum do processo de inspeção, teve oportunidade de actuar de acordo com a sua vontade, sofrendo as consequências de uma actuação, desinformada, de terceiro.
27.ª No caso concreto, simplesmente não foi dada à Recorrente a possibilidade, sequer, de recusar a colaboração.
28.ª Desta forma, impõe-se concluir que a utilização destes meios de prova, através dos quais se obteve a prova junto da Recorrente, perturbou a liberdade de os representantes legais da Recorrente decidirem, pois não foram informados que poderiam não o fazer ou, pelo menos, que ao fazerem-no corriam o risco de ser sancionados,…
29.ª … pelo que são ofensivas da integridade moral das pessoas, sendo, por isso, nulas as provas consubstanciadas no procedimento administrativo e utilizadas pelo Tribunal a quo, que culminou com a decisão recorrida, e, consequentemente, nula também esta decisão, nulidade esta que desde já se requer que seja declarada, ao abrigo do art. 126.º, n.ºs 1 e 2 do CP, aplicável ex vi do art. 32.º do RGCO, e decorrência directa do art. 32.º, n.º 10, da CRP.
30.ª Sem prescindir, a sentença recorrida é igualmente nula porque os factos provados são insuficientes para imputar, ainda que forma negligente, as duas contra-ordenações à Recorrente;
31.ª A decisão recorrida limita-se a concluir que a Recorrente agiu com culpa, sem, no entanto, explicar tal conclusão, de tal forma que esta não percebe porquê, e em que grau, pois desse grau resultará a medida da coima a aplicar.
32.ª O art. 8.º da LQCA em vigor à data dos factos impunha que se especificasse a especial relação entre o autor dos factos contra-ordenacionais e a pessoa colectiva;
33.ª Pois, estas apenas seriam responsáveis quando os factos tiverem sido praticados, no exercício da respetiva atividade, em seu nome ou por sua conta, pelos titulares dos seus órgãos sociais, mandatários, representantes ou trabalhadores;
34.ª Ora, para preencher esta factualidade necessário seria, no mínimo, identificar quem tinha praticado os factos.
35.ª Não se discute aqui que as pessoas colectivas são autonomamente responsáveis pelas pelas contraordenações praticadas no exercício do respectivo objeto social.
36.ª Discute-se, sim, se é necessária a individualização da pessoa singular cuja atuação configura uma infração imputável à pessoa coletiva para efeitos da responsabilização desta.
37.ª Tendo em conta os princípios da legalidade e da culpa como princípios fundamentais do direito sancionatório, a Recorrente entende que a resposta só pode ser positiva.
38.ª Pois, de outra forma, o que se verifica é que o Tribunal não faz o mínimo esforço sequer por dar como provado quem atuou em nome da pessoa colectiva, não sendo possível haver efetiva avaliação de um comportamento (que a lei exige censurável).
39.ª A única maneira de saber que o infrator atuou por conta ou em representação da pessoa colectiva passa por saber quem é o infrator; caso contrário, tal conclusão é simplesmente impossível.
40.ª Ao que sempre acrescerá, nos termos do art. 8.º/2 da LQCA, concluir que essa pessoa é titular dos órgãos sociais, mandatário/a, representante ou trabalhador/a da Recorrente e que, no momento da prática dos factos, se encontrava no exercício da respetiva atividade, em nome ou por conta da Recorrente.
41.ª Assim, dúvidas não subsistem que os factos fixados na decisão recorrida são manifestamente insuficientes para condenar a Recorrente pela prática de duas contra-ordenações ambientais.
42.ª Para além disso, a decisão recorrida encerra uma manifesta contradição entre os factos provados (insuficientes) e a fundamentação de direito.
43.ª Na verdade, a Recorrente foi condenada por duas contraordenações distintas, sendo uma delas relativa à ultrapassagem dos VLE impostos no título de utilização dos recursos hídricos e outra relativa à não instalação de poços para captação do biogás no alvéolo 4.
44.ª E o Tribunal a quo, em sede de fundamentação, estatui que que «Relativamente à culpa da Arguida esta não agiu com a diligência necessária para cumprir as obrigações legais inerentes ao exercício da sua atividade de que era capaz ao ter depositado o lixiviado no alvéolo 4 da célula 2 sem a devida autorização da entidade competente
45.ª Em momento nenhum a decisão administrativa questionou acerca da deposição de lixiviado no alvéolo 4, não tendo sido essa matéria objeto do processo.
46.ª Assim, a fundamentação utilizada para fundamentar a culpa da Recorrente, para alem de insuficiente, é imperceptível, inteligível, e sem qualquer respaldo na realidade dos factos julgados.
47.ª Também por esta via, mais não resta, pois, que a decisão recorrida seja declarada nula e de nenhum efeito, por força do disposto nos artigos 8.º da LQCA e 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP.
48.ª A sentença recorrida não sumariou no relatório, como lhe competia, a contestação da Recorrente em matéria de alegado funcionamento de uma instalação sem as devidas licenças, ou em desrespeito da licença ambiental em vigor, violando assim o artigo 374.º, n.º 1, al. d) do CPP;
49.ª O Tribunal não valorou, nem quis valorar, o depoimento da testemunha da Recorrente nesta matéria, tendo aderido cegamente ao auto de notícia.
50.ª Não obstante, a descrição constante do ponto 2.2.1.3 da Licença Ambiental não passa disso mesmo, de uma descrição, e foi originado de uma alteração à LA ocorrida em novembro de 2016 – quando os factos remontam a 1 de outubro de 2015.
51.ª Nessa data, não existiam resíduos depositados no alvéolo 4; a obrigatoriedade de existência de poços para captação do biogás não era aplicável, pois, ao alvéolo 4.
52.ª Neste particular, a sentença recorrida é manifestamente nula, pois em momento algum existe uma ponderação do caso concreto – existe apenas um somatório de elementos tendenciosos que culminaram na condenação da Recorrente.
53.ª Como resulta à saciedade da análise do texto da decisão recorrida, não existe um processo de subsunção do caso concreto à norma jurídica que prevê a condenação.
54.ª Existem constatações, sem qualquer suporte na realidade factual, razão pela qual a mesma haverá de ser declarada nula por força dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP e a Recorrente absolvida desta contraordenação.
Caso assim não se entenda,
55.ª A decisão recorrida viola igualmente o art. 375.º, n.º 1, 1ª parte do CPP, na medida em que não especifica os fundamentos que presidiram à medida das coimas parcelares e da coima única fixada.
56.ª O Tribunal a quo invocou os arts. 18.º e 19.º do RGCO bem como o art. 27.º da LQCA mas em momento nenhum especificou no caso concreto, qual a gravidade das infrações, os interesses ofendidos e as suas consequências, a eficácia dos meios utilizados, entre outros.
57.ª Como sanção que é, a coima só é explicável enquanto resposta a um facto censurável, violador da ordem jurídica, cuja imputação se dirige à responsabilidade social do seu autor por não haver respeitado o dever que decorre das imposições legais.
58.ª A coima tem de dizer respeito a um “determinado pedaço de vida”, em todas as suas vertentes; não é um jogo de adivinhação como resulta da sentença recorrida.
59.ª No caso sub iudice, é manifesto que a sentença não explica a(s) razão(ões) concretas que estiveram na génese das coimas aplicadas à Recorrente e, por isso, a mesma é nula, por falta de fundamentação; pelo contrário, limitou-se a concluir “a arguida incorreu na prática de duas contraordenações ambientais” e que “a gravidade pode ainda depender ou aferir-se a partir diretamente da Lei”;
60.ª Esta última conclusão configura uma flagrante violação do princípio da proibição da dupla valoração ínsito no artigo 71.º, n.º 2, do CP, de acordo com o qual o aplicador da coima não poderá ter em conta circunstâncias que já foram tidas em conta pelo legislador na determinação da coima aplicável.
61.ª Noutras palavras, a gravidade da contra-ordenação não resulta de a mesma estar prevista na Lei como contra-ordenação grave!
62.ª Ao Tribunal compete aferir um grau de gravidade mediante a lesão do bem jurídico, as suas consequências, se foram tomadas medidas preventivas ou retificativas, etc.
63.ª Nada disso fez o Tribunal a quo, pelo que é impossível aferir da adequabilidade, justeza, proporcionalidade e necessidade perante o concreto facto que está a ser sancionado.
64.ª Raciocínio este igualmente aplicável a determinação da coima resultante do concurso, pois esta não resulta de um jogo matemático, antes pressupõe um esforço ponderativo e justificativo acrescido ao anterior (de determinação das coimas parcelares), tratando-se de um plus.
65.ª Tais fundamentos recursivos não podem deixar de se invocar, mesmo quando a coima concreta aplicada a cada uma das infracções corresponde ao limite mínimo das molduras abstractas e o Tribunal diminuiu a coima resultante do concurso. E isto pela simples razão de que, em vez da mínima, nenhuma coima, nos termos em que a decisão recorrida o fez, poderá ser aplicada, por violação dos artigos 71.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 379.º, n.º 1, al. a) e 32.º da LQCOA, nulidade que aqui se invoca com todas as legais consequências.”
Termina pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que absolva a Recorrente das contraordenações por que foi condenada.
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O recurso foi admitido.
Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“1 - Inexiste contradição na fundamentação da decisão proferida, pelo Tribunal a quo, uma vez que, da sua leitura transparece, na análise e ponderação acerca da contraordenação em causa, e do seu preenchimento a título negligente, que a sentença se refere à deposição de resíduos no alvéolo 4, sem a instalação de poço ou dreno para
captação de biogás.
2- A referência ao lixiviado corresponde a mero lapso de escrita que, no nosso entendimento não afecta a fundamentação da decisão recorrida, desde logo, atento o demais referido a tal propósito na sentença recorrida e o que se refere, de seguida (a arguida agiu consciente do seu comportamento uma vez que conhecia e sabia que da violação das mesmas poderia resultar a prática de um ilícito contra-ordenacional, deste modo previu a possibilidade de cometer uma contra-ordenação, apesar de não se conformar com tal resultado, pelo que actuou sob negligência consciente).
3 – Também não se verifica omissão de pronúncia, uma vez que o tribunal só tem de se pronunciar sobre as questões que lhe foram submetidas e sobre as que podia conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir, o
que sucedeu, in casu.
4- O Tribunal a quo considerou as concretas e específicas questões a decidir, referindo-as na sentença, a saber: a data, local e circunstâncias da prática dos factos que consubstanciam a contra-ordenação por cuja prática a arguida foi condenada; os factos praticados; a actuação negligente da arguida; as contra-ordenações imputadas, as normas jurídicas aplicáveis, os elementos atinentes à sua situação económica.
5 - A omissão de pronúncia consiste, essencialmente, na ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei lhe imponha que tome posição, devendo ainda realçar-se que as questões que o juiz deve apreciar, são todas aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação.
6 - Se o Tribunal a quo não deu como provados os factos alegados pela recorrente, mas antes os que - em oposição àqueles - constavam da decisão administrativa, valendo como acusação, tal não pode significar que, em nome da fundamentação da decisão, tenha de explicar ponto por ponto das razões da sua discordância ou concordância com o alegado.
7 - Não é despiciendo salientar que o recurso para o Tribunal da Relação não é
um novo julgamento e que não estamos em face de ilícito com dignidade penal, mas antes no âmbito de um processo contra-ordenacional.
8 - Também quanto à determinação da medida concreta da coima aplicada, não se verifica no nosso entendimento, qualquer tipo de ausência de fundamentação, uma vez que, quanto às coimas aplicadas o Tribunal manteve-as no limite mínimo da respectiva moldura legal, reformulando a operação de cúmulo jurídico realizada, reduzindo a coima única para o montante de €30.000,00.
9 - Na determinação da medida da coima há que atender aos critérios constantes
do artigo 18.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, reproduzidos no artigo 20.º, n.º 1 da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, designadamente a gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou com a prática da contra-ordenação, havendo ainda que ponderar as necessidades de prevenção geral e especial de tais comportamentos.
10 - Ora, in casu, temos, porém, que as contra-ordenações praticadas pela arguida/recorrente assumem uma gravidade e ilicitude acentuadas, atenta a não observância de uma obrigação primordial que tem em vista proteger o meio ambiente e
o seu desenvolvimento sustentável, gravidade que é salientada pelo Tribunal a quo na análise que faz acerca dos valores a proteger em apreço, sendo ainda ponderada a culpa
da arguida considerando que os factos foram praticados a título de negligência.
11- Quanto à situação económica e benefício económico retirado da prática da contra-ordenação, a decisão sob censura concluiu que não se provou que a arguida tivesse retirado qualquer benefício económico com a prática da infracção.
12 - Foi justamente para corresponder às elevadas exigências de prevenção geral
que o legislador decidiu qualificar as contra-ordenações aqui em causa como “grave e muito grave” com uma moldura sancionatória bastante significativa, o que denota que se pretendeu penalizar de forma severa o incumprimento dos imperativos legais aqui violados, tanto assim é que, no âmbito das contra-ordenações ambientais, a lei não impõe a proibição de reformatio in pejus.
13 - Da sentença recorrida afere-se quais os critérios ponderados na determinação da medida concreta das coimas e da coima única, não se verificando, por
isso, a invocada nulidade.
14 - A decisão condenatória administrativa, proferida em sede de procedimento contra-ordenacional, vale como acusação.
15 - No elenco dos factos provados, consta de forma clara o preenchimento quanto ao elemento subjectivo, das contra-ordenações em referência.
16 - Da própria defesa apresentada pela recorrente em sede de impugnação judicial já se aferia, de forma manifesta, que a mesma teve um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram, da respectiva fundamentação e da coima e sanções aplicadas, portanto não lhe foi coarctada a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa.
17 - Com efeito, não obstante, sujeita a fundamentação, como imposto, designadamente, pelo art.º 205.º da CRP, a decisão judicial proferida no foro contraordenacional não está onerada com o mesmo grau de rigor e exigência de explanação, impostos à sentença penal. Não resulta do art. 32.º, n.º 10 da CRP, que o respectivo processo de contra-ordenação, enquanto processo sancionatório, assegure um conjunto de garantias equivalentes às previstas no processo criminal.
18 - Tendo em consideração que estamos perante um processo contraordenacional e face aos argumentos supra expendidos, entendemos que da decisão
proferida resulta, assim, uma descrição completa da factualidade imputada à arguida, quer ao nível do tipo objectivo, quer ao nível do tipo subjectivo, não se verificando, por
isso, a invocada nulidade.
19 - Não se verifica a violação do princípio da não auto incriminação no que respeita a uma das contra-ordenações em que foi condenada, mormente, a relativa ao incumprimento das condições impostas no título, p. e p. pelo artigo 81.º n.º 3, al. c) do DL n.º 226-A/2007 de 31 de Maio, sancionável nos termos da al. b) do n.º 4 do artigo 22 da Lei 50/2006 de 29 de Agosto republicada pela Lei n.º 114/2015 de 28 de Agosto.
20 - Aceitar-se o defendido pela arguida, seria admitir, que sempre que uma sociedade tivesse imposta uma obrigação legal de apresentar documentos, se poderia eximir à responsabilidade decorrente do incumprimento das normas legais.
21- In casu, também impede a abrangência do princípio da não autoincriminação, o facto da arguida ter pleno conhecimento da obrigatoriedade de cumprir as obrigações em causa, tendo em consideração o artigo 5º do D.L. n.º 226-A/2007, de 31 de Maio e o artigo 18.º da Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais (Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto).
22- A arguida sabia que tinha de fornecer os parâmetros em causa à entidade administrativa para efeitos inspectivos, contratou os serviços de um laboratório acreditado para proceder a essa recolha e análise, sabendo previamente e de antemão –
até porque o aludido laboratório havia sido por si contratado – quais as consequências dos valores de tais parâmetros, que os mesmos se encontravam desconformes e que seriam considerados pela entidade administrativa no âmbito de qualquer fiscalização.
23 - A arguida sabia quais os valores obtidos, conhecia a sua desconformidade com os parâmetros recomendados – até porque essa desconformidade se prolongou no tempo – e sabia quais as suas consequências, inexistindo qualquer surpresa na utilização dos valores fornecidos e qualquer ilegitimidade na sua utilização.
24 - Com efeito, a recorrente está obrigada à participação dos resultados laboratoriais em face da necessidade imposta legalmente de controlo e monitorização, da sua actividade, o que foi confirmado pela engenheira responsável pela secção do controlo ambiental que acompanhou a inspecção.
25 - Entendemos assim que, inexiste qualquer violação do princípio em apreço, pelo que, consequentemente a prova documental em referência não padece de qualquer
nulidade.”
*
O Exmo. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da sua improcedência.
*
Procedeu-se a exame preliminar.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação.
II.I Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.
*
O regime dos recursos de decisões proferidas em 1.ª instância em processo de contraordenação encontra-se estabelecido nos artigos 73.º a 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – Regime Geral das Contraordenações (RGC).
Importa convocar nesta sede o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 3/2019, in DR 124/2019, série 1 de 2019-07-02, no qual se estatuiu que:
“Em processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância o recorrente pode suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa”.
Da análise do regime legal acima referido e, bem assim, do estatuído no citado acórdão de fixação de jurisprudência decorrem, relativamente aos processos de contraordenação, duas conclusões:
- A impugnação da decisão da autoridade administrativa não assume a natureza de um verdadeiro recurso, sendo antes a causa retirada do âmbito administrativo e entregue a um órgão independente e imparcial, o tribunal;
- O Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista ampliada – podendo alterar a decisão do Tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido em que foi proferida, ou anulá-la e devolver o processo ao mesmo Tribunal, sempre sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410.º CPP, por força do disposto nos artigos 41.º, nº 1.º e 74.º, nº 4.º do RGC – e como última instância, conhecendo apenas da matéria de direito.
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Delimitado o âmbito dos recursos de contraordenação e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, todas invocadas pela arguida como causas de nulidades da sentença recorrida:
1 – Violação do direito à não autoincriminação, nemo tenetur se ipsum accusare e consequente valoração na decisão administrativa e na sentença recorrida de provas proibidas.
2 – Não individualização da pessoa singular cuja atuação configurou uma infração imputável à pessoa coletiva, aqui recorrente, para efeitos de responsabilização desta.
3 – Insuficiência dos factos e contradição entre os factos provados e a fundamentação de Direito (artigos 374º, nº 2, 379, nº 1, alínea a) do CPP e artigo 8º da LQCA).
4 – Omissão de pronúncia na sentença recorrida relativamente a factos e a argumentos invocados pela recorrente na impugnação da decisão administrativa.
5 – Falta de fundamentação no processo de determinação da medida da coima.

II.II - A decisão recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que conheceu das nulidades da decisão administrativa arguidas pela recorrente, julgando-as improcedentes e condenou a mesma pela prática das contraordenações que lhe vinham imputadas, com diminuição do montante da coima única que havia sido aplicada pela autoridade administrativa.

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Com base na documentação constante dos autos e na prova produzida em audiência, a sentença recorrida que deu como provados os seguintes factos:
1- No dia 1 de Outubro de 2015, pelas 9h30 foi efetuada uma ação inspectiva levada a cabo pela Inspeção–Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território nas instalações da Arguida/recorrente, (…), com sede na Rua (…), sita no (..).
2-A Arguida à data da acção inspectiva encontrava-se em pleno funcionamento.
3-A Arguida abrange a área geográfica dos Concelhos de Alcanena, Chamusca, Constância, Entroncamento, Ferreira do Zêzere, Golegã, Santarém, Tomar, Torres Novas e Vila Nova da Barquinha.

4-A actividade de deposição de resíduos urbanos em aterro está incluída na categoria 5.4 do Anexo I do DL n.º 127/2013 de 30 de Agosto.

5-A Arguida detém a Licença Ambiental n.º 81/0.1/2014 emitida em 31 de Janeiro pela Agência Portuguesa do Ambiente.

6-A Arguida é igualmente detentora da Licença de Utilização de Recursos Hídricos – Rejeição de Águas Residuais n.º L005222.2015.RH5, emitida em 30/04/2015 e válida até 30/04/2018 (que substituiu a Licença n.º 2011.002102.000.T.L.R.J.DAR, sendo mantidos os mesmos valores Limite de Emissão).

7-A deficiente gestão dos lixiviados neste aterro é uma situação que tem vindo a ser identificada pela Inspeção-Geral ao longo dos anos, motivada pela deficiente rede separativa entre as águas pluviais e o lixiviado; a deficiente colocação de telas provisórias (para minimizar a produção); e a dimensão excessiva da frente de trabalho.

8-Analisados os boletins analíticos do premiado da unidade de osmose inversa de Janeiro a Agosto de 2015, descarregado em meio hídrico (Ribeira das Fontaínhas) a coberto da Licença de Utilização dos Recursos Hídricos - Rejeição de Águas Residuais n.º L005222.2015.RH5, emitida em 30/04/2015 e válida até 30/04/2018 (que substituiu a Licença n.º 2011.002102.000.T.L.R.J.DAR, sendo mantidos os mesmos valores Limite de Emissão) a qual é parte integrante da Licença Ambiental, constata-se que foram ultrapassados os Valores Limite de Emissão (VLE) nas seguintes monitorizações:
1-Data da colheita: 23/01/2015, relatório n.º 1381
Azoto Amoniacal = 43 mg NH4/L (VLE = 10 mg NH4/L);
Azoto total = 48 mg N/L (VLE =15 mg N/L);
2-Data da colheita: 19/02/2015, relatório 2998
Azoto Amoniacal = 73 mg NH4/L (VLE = 10 mg NH4/L);
Azoto total = 110 mg N/L (VLE =15 mg N/L);
3-Data da colheita: 30/04/2015, relatório 7605 Azoto Amoniacal = 62 mg NH4/L (VLE = 10 mg NH4/L);
Azoto total = 60 mg N/L (VLE =15 mg N/L);
4-Data da colheita: 26/05/2015, relatório 9474
Azoto Amoniacal = 160 mg NH4/L (VLE = 10 mg NH4/L);
Azoto total = 250 mg N/L (VLE =15 mg N/L);
5-Data da colheita: 10/07/2015, relatório 12932
Azoto Amoniacal = 43 mg NH4/L (VLE = 10 mg NH4/L);
Azoto total = 40 mg N/L (VLE =15 mg N/L);
6-Data da colheita: 11/08/2015, relatório 15104
Azoto Amoniacal = 150 mg NH4/L (VLE = 10 mg NH4/L);
Azoto total = 140 mg N/L (VLE =15 mg N/L);
9-Não obstante constar da Licença que a avaliação da conformidade (n.º 6 do artigo 69.º do DL n.º 236/98 de 1 de Agosto) deve ter em conta a média mensal dos valores observados para cada uma das substâncias da respectiva condição de descarga, não deve ultrapassar o valor limite que ali lhe corresponde e o valor máximo observado durante o mês de laboração para cada uma das substâncias da condição de descarga não deve ultrapassar o dobro do valor limite que lhe corresponde.

10-Os resultados obtidos para os parâmetros monitorizados ultrapassam em muito o dobro do VLE registando em algumas monitorizações valores 10 e 15 vezes superiores aos VLE.

11-Para esta situação de (potencial) emergência, não foi adotado o procedimento previsto no ponto 4 da Licença Ambiental, que determina a comunicação à APA e Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, enquanto entidade coordenadora (EC) de qualquer registo de emissão que não cumpra com os requisitos da licença, determinando o referido ponto que o operador deveria ter notificado, tão rapidamente quanto possível e no prazo máximo de 24 horas.

12-No ponto 2.2.1.3. da Licença Ambiental é referido que a captação do biogás gerado no aterro é efetuado através de uma rede de drenos/poços verticais e horizontais, cujo raio de ação de cada dreno/poço é de 50m de diâmetro, assegurando a cobertura total das áreas de deposição.
13-A recolha de biogás é realizada de forma progressiva, com a montagem dos poços de aspiração em simultâneo com a deposição dos resíduos.

14-No entanto, no decorrer da acção inspectiva, constatou-se que no alvéolo 4 estava depositada uma altura de cerca de 7 metros de resíduos e ainda não estava instalado nenhum dreno ou poço para captação de biogás.

15-Foi contactada a técnica responsável pelo aterro (…).

16-Ao não cumprir com as condições impostas na Licença de Utilização de Recursos Hídricos - Rejeição de Águas Residuais n.º L005222.2015.RH5, emitida em 30/04/2015 e válida até 30/04/2018 (os resultados obtidos para os parâmetros monitorizados Azoto Total e Azoto Amoniacal ultrapassam em muito o dobro do VLE, registando em algumas monitorizações valores 10 a 15 vezes superiores aos VLE) a Arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada.

17- Ao não cumprir com as condições impostas na Licença Ambiental (2.2.1.3 da Licença Ambiental é referido que a captação do biogás gerado no aterro é efetuada através de uma rede de drenos/poços verticais e horizontais, cujo raio de ação de cada dreno/poço é de 50m de diâmetro, tendo sido verificado que no decorrer da acção inspectiva, constatou-se que no alvéolo 4 estava depositada uma altura de cerca de 7 metros de resíduos e ainda não estava instalado nenhum dreno ou poço para captação de biogás) a Arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada.

18- A Arguida exerce actividade regulada por lei e pelas licenças de que é titular, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito para o exercício da mesma.

19-Não o tendo feito não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, não resultando dos autos que retirem ilicitude aos factos ou à censurabilidade à sua conduta.

20- A sociedade Arguida não retirou qualquer benefício económico com a prática das contraordenações”.

II.III - Apreciação do mérito do recurso.
Registamos que serão absolutamente desvalorizados, por se apresentarem destituídos de fundamento e por se revelarem inócuos para a apreciação do presente recurso, as acusações de processos de intenção e de pré-juízos dirigidos pela recorrente quer à decisão administrativa, quer à sentença recorrida. O Tribunal considerará, obviamente, apenas e tão somente, a motivação por parte dos anteriores decisores que decorre do puro e simples exercício das respetivas competências.

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Vejamos então cada uma das questões acima enunciadas.
1Da alegada violação do direito à não autoincriminação, nemo tenetur se ipsum accusare, e consequente valoração na decisão administrativa e na sentença recorrida de provas proibidas.
Como parâmetro constitucional da questão em análise convocamos o artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa, que dispõe: “Nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”.
De tal preceito não decorre, porém, a exigência de que no processo contraordenacional, enquanto processo sancionatório, sejam assegurados, de forma exatamente igual, todos os procedimentos e todas as garantias previstas no processo criminal. “Na verdade, a menor ressonância ética do ilícito contra-ordenacional subtrai-o às mais “rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal”.[1]
A orientação do Tribunal Constitucional tem sido no sentido de evitar a inteira correspondência entre as normas processuais dos ilícitos contraordenacional e criminal, mas salvaguardando-se a defesa de princípios comuns a esses dois ramos do direito.
Em processo penal, o arguido pode resguardar-se no exercício do direito ao silêncio, direito reconhecido nos artigos 61.º, nº1, al. d), 132º, n.º 2, 141º, nº 4, a), e 343º, n. 1, do CPP e pacificamente considerado como de tutela constitucional implícita.
Em direito contraordenacional, não é permitida a aplicação de uma coima ou uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade, de num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre – cf. artigo 50.º RGCO.
O procedimento contraordenacional, com a subdivisão entre fase administrativa e fase judicial, mesmo nesta última fase, constitui um procedimento administrativo, ressalvadas as disposições legais específicas que remetem para o processo penal[2].
Consabidamente, o direito contraordenacional tem sofrido um incremento sancionatório que é necessário reequilibrar com o respeito pelos deveres e pelos direitos atribuídos aos arguidos durante as fases administrativa e judicial, aproximando-o das soluções e prerrogativas adotadas em direito penal. Assim, o direito de audiência do arguido no processo contraordenacional e no processo penal constitui a aproximação à tutela da reação individual contra os poderes públicos, expressão máxima do Estado de Direito Democrático.

Deveremos, porém, reter que “o processo contra-ordenacional tem […] uma estrutura complexa, porque, no essencial, resultou da fusão de um verdadeiro processo administrativo do tipo sancionador (desde a instauração até à decisão) com um autêntico processo jurisdicionalizado do tipo criminal (a partir da impugnação contenciosa da decisão administrativa).[3]
Com a consagração no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição do direito de defesa, com expressão na legislação ordinária, entre outros, no artigo 50.º do RGCO, o legislador pretendeu assegurar o conhecimento pelo arguido dos factos que lhes são imputados para o exercício pleno do referido direito.
Reporta-se o artigo 50.º do RGCO à prerrogativa de conformação subjetiva da decisão sancionatória ao abrigo do ius imperii, impondo a necessidade de audição prévia do arguido antes de ser proferida a decisão, competindo, porém, à autoridade administrativa realizar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade.
É à entidade que dirige a investigação e instrução do processo contraordenacional que cabe escolher quais os meios de prova a utilizar para prova dos factos cujo conhecimento releve para a decisão. E, como contraponto, conforme se estabelece no artigo mencionado 50.º do RGCO, pode o arguido requerer a realização de diligências.
A questão da escolha dos meios de prova a utilizar no processo contraordenacional entronca no cerne da questão suscitada pelo recorrente e que agora constitui o objeto da nossa análise, pois que, se por um lado é certo que a competência para tal decisão pertence à autoridade administrativa, é também verdade que o aproveitamento de provas obtidas através do arguido pressupõe ainda que tal não contenda com o princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
A respeito de tal princípio encontramos vasta doutrina e jurisprudência, aliás abundantemente citada na decisão recorrida, nas alegações do recorrente e nas contra-alegações do recorrido. Destacamos, pela sua clareza e pela similitude com a situação dos presentes autos, o Acórdão desta Relação datado de 07.01.2020, que teve como relator o Desembargador João Gomes de Sousa disponível em www.dgsi.pt, citado e transcrito na sentença recorrida.
Ao nível da Jurisprudência do Tribunal Constitucional destacamos, com especial relevo na abordagem do tema em apreciação o Acórdão nº 461/2011, relatado pela Conselheira Catarina Castro, o Acórdão nº 340/2013, que teve como relator o Conselheiro Cura Mariano, o Acórdão nº 360/2016, relatado pela Conselheira Ana Guerra Martins e, mais recentemente, o Acórdão nº 298/2019 do Conselheiro Pedro Machete.
O princípio nemo tenetur se ipsum accusare abrange o direito ao silêncio propriamente dito e desdobra-se em diversos corolários, designadamente nas situações em que estejam em causa a prestação de informações ou a entrega de documentos autoincriminatórios no âmbito de um processo sancionatório, situações diretamente relacionadas com o direito à não autoincriminação.
As referências ao direito ao silêncio e ao direito à não autoincriminação remetem para o disposto nos artigos 61.º, n.º 1, alínea d) do CPP (disposição que prevê o direito do arguido a não responder a perguntas feitas sobre os factos que lhe são imputados) e 125.º do mesmo diploma (disposição sobre a legalidade da prova: «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei»), visto que está em causa a admissão de prova resultante de documentos disponibilizados pelo arguido.
O primeiro daqueles direitos traduz-se na faculdade reconhecida ao arguido de não se pronunciar sobre os factos que lhe são imputados e encontra também consagração expressa em instrumentos jurídicos internacionais[4].
O direito à não autoincriminação, entendido como direito a não contribuir para a própria incriminação relaciona-se, em primeira linha, com o respeito pela vontade do arguido em «permanecer em silêncio», não prestando declarações, impedindo por essa via uma colaboração involuntária para a obtenção de meios de prova contra si.
“O princípio do nemo tenetur visa, pois, assegurar a autodeterminação do arguido na condução da sua defesa no processo e, nessa medida, a garantia da sua posição enquanto sujeito processual. O respetivo conteúdo material é depois assegurado mediante a imposição de deveres de esclarecimento ou de advertência e pela nulidade das provas proibidas em virtude de terem sido obtidas mediante a colaboração involuntária do arguido em consequência do uso ilegítimo de meios coercivos ou de meios enganosos.
É de acordo com esta teleologia que o âmbito de proteção daquele princípio deve ser determinado, seja quanto aos modos de colaboração forçada e seus limites, seja quanto ao momento a partir do qual aquela garantia se torna operante.”[5]
A Constituição não consagra expressamente o princípio nemo tenetur se ipsum accusare. Porém, o mesmo é pacificamente reconhecido como um princípio constitucional implícito a que corresponde um direito fundamental não escrito.
É também por todos aceite que tal princípio não tem um caráter absoluto, podendo
ser legalmente restringido, no próprio processo penal, em determinadas circunstâncias.
Também no âmbito da regulação económica e social do Estado são frequentes as limitações a tal princípio traduzidas na imposição de deveres de colaboração, acompanhados da previsão de sanções em caso de incumprimento. Tais imposições consubstanciam-se amiúde nos deveres de prestação de informações e de disponibilização de documentos a autoridades administrativas com competências não só de fiscalização, mas também sancionatórias.
Uma vez respeitados os requisitos constitucionais e legais, as informações prestadas, em especial a disponibilização de documentos, são exigíveis no âmbito de procedimentos de fiscalização de natureza administrativa ao abrigo dos mencionados deveres de cooperação. Nas condições referidas, os mesmos contributos não constituem prova proibida, podendo ser considerados e valorados em processo sancionatório posterior, entendendo-se que a mencionada colaboração, assentando num quadro legal que deverá ser conhecido daqueles que interagem com a Administração, se justifica por razões de interesse público e de eficiência.
De outra sorte, se sairmos do âmbito das fiscalizações de rotina e entrarmos no domínio da investigação com vista ao apuramento de responsabilidades, a lealdade na relação entre a Administração fiscalizadora e quem é fiscalizado imporá que o início de um procedimento sancionatório seja sinalizado mediante uma comunicação expressa por forma a tornar manifesta a alteração do paradigma de relacionamento[6].
É esta a abordagem que perfilhamos, em tudo coincidente com a “jurisprudência Orkem” do Tribunal de Justiça da União Europeia (mencionada na sentença recorrida) e com a jurisprudência do TEDH relativa aos direitos ao silêncio e à não autoincriminação, entendidos como dimensão do direito ao processo equitativo e exigências da presunção de inocência, tal como consagrados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

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Para a decisão do presente recurso interessa considerar os deveres de colaboração previstos no quadro da inspeção administrativa e, sobretudo, as condições de utilização dos documentos obtidos na sequência de tal atividade inspetiva como prova num processo contraordenacional subsequentemente instaurado à empresa inspecionada.
Tal dever de colaboração resulta expressamente do disposto no artigo 18º da LQCO, que dispõe da seguinte forma:

“Artigo 18.º
Direito de acesso
1 - Os procedimentos de inspeção e de fiscalização ambientais não devem ser antecedidos de comunicação ou notificação às entidades visadas ou aos responsáveis pelas instalações e locais a inspecionar.
2 - Excetuam-se do número anterior os casos em que, justificadamente, a comunicação prévia constitua um requisito fundamental para que a atividade de inspeção ou de fiscalização não fique condicionada ou prejudicada, nomeadamente:
a) Quando se tratem de procedimentos de inspeção ou fiscalização que impliquem a consulta de elementos documentais, ou outros, que devam ser previamente preparados pelos responsáveis dos espaços referidos no número anterior;
b) Quando seja necessário à entidade realizar diligências, com vista à preparação da inspeção ou fiscalização.
3 - Sempre que existir comunicação prévia, nos termos do número anterior, esta deve ser fundamentada por escrito.
4 - Às autoridades administrativas, no exercício das funções inspetivas, de fiscalização ou vigilância, é facultada a entrada livre nos estabelecimentos e locais onde se exerçam as atividades a inspecionar.
5 - Os responsáveis pelos espaços referidos no número anterior são obrigados a facultar a entrada e a permanência às autoridades referidas no número anterior e a apresentar-lhes a documentação, livros, registos e quaisquer outros elementos que lhes forem exigidos, bem como a prestar-lhes as informações que forem solicitadas.
6 - Em caso de recusa de acesso ou obstrução à ação inspetiva, de fiscalização ou vigilância, pode ser solicitada a colaboração das forças policiais para remover tal obstrução e garantir a realização e segurança dos atos inspetivos.
7 - O disposto neste artigo é aplicável a outros espaços afetos ao exercício das atividades inspecionadas, nomeadamente aos veículos automóveis, aeronaves, comboios e navios.”
Importa, assim, sobremaneira, ter em conta, conforme é expressamente referido na sentença recorrida e nas contra-alegações do Ministério Público, que os documentos em causa nos presentes autos, isto é, aqueles que foram obtidos pela Administração Pública e posteriormente valorados pelo Tribunal no processo contraordenacional, são documentos sujeitos ao dever legal de entrega à Autoridade Administrativa e que, estando na posse da empresa, lhe foram solicitados no âmbito de um procedimento inspetivo e voluntariamente entregues ao abrigo do dever de cooperação. A própria recorrente assim o reconhece, ao consignar no corpo do seu requerimento de interposição de recurso “As empresas (no que aqui importa a Recorrente) têm o dever de colaborar com a IGAMAOT, fornecendo-lhe, a pedido, os documentos e as informações necessárias.
Com efeito, sobre as mesmas recai um dever de monitorização e reporte mensal, cujo não cumprimento origina, por si só, o incumprimento das condições estipuladas na
Licença de Utilização dos Recursos Hídricos. Em suma, sobre a Recorrente recai o dever de enviar à entidade administrativa os relatórios de cumprimento dos Valores Limite de Emissão.”
Nenhuma relevância se nos afigura ser de atribuir à circunstância de a documentação em causa ter sido entregue no dia da inspeção por uma trabalhadora da recorrente sem poderes de representação da mesma, pois que, conforme expressamente estabelece o nº 5 da norma transcrita a obrigação de colaboração impende sobre “os responsáveis pelos espaços” nos quais decorre a inspeção, entendendo-se como tal qualquer pessoa que no momento assuma tais funções, quer se trate de um trabalhador da empresa ou do seu legal representante. No caso dos autos foi precisamente a trabalhadora que se encontrava nas instalações inspecionadas – engenheira ambiental, responsável pelo aterro – que procedeu à entrega da documentação, sendo, pois, certo que sobre a mesma recaia a obrigação de a apresentar em virtude de a mesma lhe ter sido solicitada pela autoridade inspetivas.
Difere em absoluto a situação aqui em análise daquela que foi objeto do Acórdão do TC nº 298/19, relatado pelo Conselheiro Pedro Machete, que veio a declarar a inconstitucionalidade da interpretação normativa dos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), 125.º e 126.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, segundo a qual os documentos fiscalmente relevantes obtidos no decurso de uma inspeção tributária realizada a um contribuinte, durante a fase de inquérito de um processo criminal pela prática de crime fiscal movido contra o contribuinte inspecionado e sem o prévio conhecimento ou decisão da autoridade judiciária competente, podem ser utilizados como prova no mesmo processo.
Diferentemente, verificamos existir, na situação dos autos, uma interligação entre o processo inspetivo e o processo contraordenacional, já que a documentação obtida é relevante, não apenas para efeitos do processo de inspeção, podendo dar lugar à correção da situação da empresa fiscalizada, mas também para efeitos do procedimento contraordenacional, enquanto prova da sua responsabilidade nesse âmbito.
No fundo, está em causa apreciar a legitimidade de restrições ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare com referência aos deveres de cooperação legalmente previstos no âmbito do procedimento de inspetivo e a documentos disponibilizados ou obtidos no seu decurso.
Recordemos que na situação subjacente à apreciação feita nos presentes autos, os documentos em causa foram obtidos em resultado de uma inspeção realizada antes de estar indiciada a prática de qualquer contraordenação e, portanto, antes de ter sido instaurado o correspondente procedimento contraordenacional.
Recordemos ainda que que a compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare e a consequente admissibilidade da utilização dos documentos obtidos em resultado da inspeção como prova em processo sancionatório subsequente foi já várias vezes considerada constitucionalmente admissível, entre outros nos Acórdão do TC acima indicados, atendendo a um juízo positivo quanto à verificação dos requisitos de legitimidade das restrições a direitos, liberdades e garantias.
Desde logo tal compressão encontra justificação na relevância constitucional dos fins servidos pela atividade inspetiva, “in casu” a proteção do ambiente e da saúde pública.
Por outro lado, tal como se considerou no Acórdão do TC, 340/2013, relatado pelo Conselheiro Cura Mariano, reportando-se precisamente à finalidade da restrição, “como a aplicação duma sanção penal exige a prova da prática do ilícito imputado ao arguido, a inutilização dos elementos recolhidos durante a inspeção à situação tributária conduziria a uma quase certa imunidade penal, como resultado da colaboração verificada na fase inspetiva […]: o cumprimento da lei na fase de inspeção acabaria por impedir o cumprimento da lei na fase sancionatória, não sendo possível que um sistema jurídico racional subsistisse com uma antinomia desta natureza».
No que diz respeito à ponderação da proporcionalidade, consignou-se no mesmo Acórdão, com toda a clareza – aí relativamente a uma situação de justiça penal tributária, mas cuja argumentação se mostra igualmente adequada à situação dos presentes autos– que “(…)A restrição em causa respeita o critério da proporcionalidade, sendo adequada, isto é, constituindo um meio idóneo para a prossecução e proteção dos referidos interesses merecedores de proteção constitucional, e necessária, em virtude da mesma corresponder quer a um meio exigível no sentido de obter o fim da eficiência do sistema fiscal, objetivo esse que não se mostra que seria alcançável através de mecanismos alternativos que se revestiriam de excessiva onerosidade para a administração tributária, quer pelo dispêndio de recursos e de tempo, quer pelo risco de ineficácia, face à complexidade, dimensão e multiplicidade de atividades e situações a que têm de responder os modernos sistemas fiscais, no quadro de uma “Administração de massas”.
Questão diferente daquela que agora nos ocupa, é a da possibilidade de utilização, como prova no processo penal ou contraordenacional a correr paralelamente, da documentação entregue pelo próprio fiscalizado no cumprimento do seu dever de colaboração num momento em que em relação ao mesmo já existem indícios de que cometeu um crime ou uma contraordenação, situação relativamente à qual o Tribunal Constitucional se pronunciou desfavoravelmente, concretamente no Acórdão 298/19, relatado pelo Conselheiro Pedro Machete.
Clarificando a posição que aqui propugnamos, amplamente explanada na Jurisprudência acima referida, importará reter as seguintes conclusões:
- Antes de instaurado o processo sancionatório (penal ou contraordenacional), os documentos disponibilizados ao abrigo do dever de colaboração podem ser aproveitados para a sua instrução atendendo às razões justificativas da restrição ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare;
- Depois de iniciado o processo sancionatório (penal ou contraordenacional), o eventual aproveitamento de tais informações nesse processo, já não poderá considerar-se justificado, pois que utilizar no mencionado processo sancionatório documentos obtidos coativamente por via da inspeção, que não poderiam ser obtidos do mesmo modo seguindo a via do processo penal, significaria transformar a colaboração dos cidadãos ou das empresas num meio de obtenção de prova contra si próprios e, consequentemente, violaria o princípio constitucional nemo tenetur se ipsum accusare.
Assim, seguindo de perto a jurisprudência do Tribunal Constitucional acima analisada, entendemos que a restrição ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare imposta no caso concreto não se revela desproporcionada, tendo por referência os valores constitucionais que se pretendem salvaguardar, pelo que improcederá a nulidade atinente à violação do direito à não incriminação e à utilização de provas proibidas pelo Tribunal “a quo”.

2Da não individualização da pessoa singular cuja atuação configurou uma infração imputável à pessoa coletiva, aqui recorrente, para efeitos de responsabilização desta.
Nenhum fundamento vislumbramos que sustente a nulidade alegada pela recorrente consubstanciada na não individualização na decisão administrativa e na sentença recorrida da pessoa singular cuja atuação configurou uma infração imputável à pessoa coletiva.
A responsabilidade das pessoas coletivas pela prática de contraordenações encontra suporte legal expresso no artigo 7º do RGCO, que dispõe:
“Artigo 7.º
(Da responsabilidade das pessoas coletivas ou equiparada)
1 - As coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas coletivas, bem como às associações sem personalidade jurídica.
2 - As pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.”
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Por seu turno e especificamente no que às contraordenações ambientais diz respeito, preceituava o artigo 8º da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais, na redação em vigor à data da prática dos factos, ou seja, na redação conferida pela Lei nº Lei n.º 89/2009, de 31 de agosto ao artigo 8º da Lei nº 50/2006, de 29 de agosto, que:
Artigo 8.º
Responsabilidade pelas contraordenações
1 - As coimas podem ser aplicadas às pessoas coletivas, públicas ou privadas, independentemente da regularidade da sua constituição, bem como às sociedades e associações sem personalidade jurídica.
2 - As pessoas coletivas e as entidades que lhes são equiparadas no número anterior são responsáveis pelas contraordenações previstas na presente lei quando os factos tiverem sido praticados, no exercício da respetiva atividade, em seu nome ou por sua conta, pelos titulares dos seus órgãos sociais, mandatários, representantes ou trabalhadores.
3 - Os titulares do órgão de administração das pessoas coletivas e entidades equiparadas, bem como os responsáveis pela direção ou fiscalização de áreas de atividade em que seja praticada alguma contraordenação, incorrem na sanção prevista para o autor, especialmente atenuada, quando, conhecendo ou devendo conhecer a prática da infração, não adotem as medidas adequadas para lhe pôr termo imediatamente, a não ser que sanção mais grave lhes caiba por força de outra disposição legal.
4 - A responsabilidade prevista no n.º 2 é excluída se a pessoa coletiva provar que cumpriu todos os deveres a que estava obrigada, não logrando, apesar disso, impedir a prática da infração por parte dos seus trabalhadores ou de mandatários sem poderes de representação”
*
A imputação da prática de um ilícito contraordenacional a uma pessoa coletiva não pressupõe, a nosso ver e ao contrário do que propugna a recorrente, que se indague qual ou quais as pessoas singulares que em concreto levaram a cabo as condutas geradoras de responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva.
A referida imputação demandará apenas que se apurem condutas, por ação ou por omissão, que possam ser atribuídos à pessoa coletiva – e a atribuição à pessoa coletiva resulta da circunstância de se haver concluído que tais condutas são da responsabilidade da mesma e, portanto, que foram praticados pelos seus órgãos no exercício das respetivas funções, independentemente da individualização das pessoas concretas que integram tais órgãos – sendo certo que a referida entidade, conforme já referimos, é legalmente tratada como um centro autónomo de imputação de ilícitos contraordenacionais.
De facto, quanto ao modelo de imputação consagrado no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO, perfilhamos o entendimento segundo o qual o mesmo prevê uma imputação autónoma ou direta da infração à pessoa coletiva, pelo que não é necessária a identificação concreta do agente singular que cometeu a infração para que a mesma seja imputável àquela. E, assim sendo, as pessoas singulares representantes da pessoa coletiva infratora e responsáveis pelas infrações, não têm que ser indicadas na decisão condenatória proferida na fase administrativa do processo.[7]
Foi o que sucedeu na situação vertente, sendo certo que sempre poderia a arguida ter feito prova dos fundamentos que, nos termos do nº 2 da norma transcrita, teriam permitido excluir a sua responsabilidade, provando que cumprira todos os deveres a que estava obrigada e que, ainda assim, não lograra impedir a prática da infração por parte dos seus trabalhadores, o que manifestamente não fez.
Questão diferente tem que ver com a representação das pessoas coletivas nos processos que lhe são movidos. Aí sim, as mesmas são representadas por quem legal ou estatutariamente as deva representar, concretizando-se a notificação da arguida através da notificação do seu representante legal. Da mesma forma que a audição da pessoa coletiva como arguida de responsabilidade contraordenacional se considera sempre cumprida desde que ao seu representante legal seja dada a possibilidade de se pronunciar sobre a imputação concreta que lhe é feita, por qualquer forma segura de comunicação.
Improcede assim a nulidade em referência invocada pela recorrente.

3Da insuficiência dos factos e da contradição entre os factos provados e a fundamentação de Direito (artigos 374º, nº 2, 379, nº 1, alínea a) do CPP e artigo 8º da LQCA).
A) Da alegada insuficiência dos factos.
Nas suas conclusões alega a recorrente que: “30.ª Sem prescindir, a sentença recorrida é igualmente nula porque os factos provados são insuficientes para imputar, ainda que forma negligente, as duas contraordenações à Recorrente” e que 31.ª A decisão recorrida limita-se a concluir que a Recorrente agiu com culpa, sem, no entanto, explicar tal conclusão, de tal forma que esta não percebe porquê, e em que grau, pois desse grau resultará a medida da coima a aplicar” e ainda que 41.ª Assim, dúvidas não subsistem que os factos fixados na decisão recorrida são manifestamente insuficientes para condenar a Recorrente pela prática de duas contra-ordenações ambientais.”
Parece-nos pretender a recorrente invocar que a sentença recorrida não contém os factos necessários à integração quer dos elementos objetivos, quer do elemento subjetivo dos ilícitos contraordenacionais que lhe são imputados.
Não assiste, a nosso ver, razão à recorrente.
O elenco dos factos provados integra claramente todos os factos necessários à integração da previsão legal dos tipos contraordenacionais em causa, concretamente, a contraordenação ambiental muito grave relativa ao incumprimento das condições impostas no título, prevista e punida pelo artigo 81.º n.º 3, al. c) do DL n.º 226-A/2007 de 31 de maio, sancionável mos termos da al. b) do n.º 4 do artigo 22º da Lei 50/2006 de 29 de agosto, republicada pela Lei n.º 114/2015 de 28 de Agosto e a contraordenação ambiental grave relativa ao funcionamento de uma instalação abrangida pelo DL n.º 127/2013 de 30 de Agosto, sem as licenças previstas no presente DL previsto e punido pela al. e) do n.º 2, do artigo 111º do DL n.º 127/2013 de 30 de Agosto, sancionável nos termos da al. b) do n.º 3 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto, republicada pela Lei n.º 114/2015 de 28 de Agosto.
Efetivamente, nos pontos 5. a 15. da matéria de facto provada consignam-se todos os factos necessários ao preenchimento dos elementos objetivos dos tipos, sendo certo que os pontos 16. a 19. contêm a factualidade integradora do respetivo elemento subjetivo.
Recordamos a argumentação acima expendida relativamente às especificidades do ilícito contraordenacional quando comparado com o direito penal, das quais resulta que, não obstante enquanto processo sancionatório o mesmo dever assegurar ao arguido um conjunto de garantias equivalentes às previstas no processo criminal, como bem sinaliza o Ministério Público nas suas contra-alegações, tal processo não se encontra “onerado com o mesmo grau de rigor e exigência de explanação, impostos à sentença penal”.
Quanto ao elemento subjetivo, em sede de factos provados é usual o recurso a expressões vagas e diretamente reconduzíveis à norma de imputação subjetiva da contraordenação. Logo, para a determinação do elemento subjetivo de uma infração contraordenacional, é necessário que dos factos se consiga retirar o alcance subjetivo da conduta, o que, inquestionavelmente, sucede na decisão sindicada no presente recurso.
A este respeito convocamos o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2003, do qual não decorre a obrigatoriedade de especificação dos factos concretos em que se traduz a negligência, uma vez que só considera ferida de nulidade a notificação ao arguido que “...não lhe oferecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito[8]
Reiterando que em sede de ilícito contraordenacional não se colocam com a mesma profundidade e grau de exigência as necessidades de fundamentação impostas à elaboração da sentença penal, citamos o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.09.2007, lavrado no Proc. 0711693 e disponível em www.dgsi.pt, no qual podemos ler:
«Tal decisão insere-se numa fase administrativa do processo de contra - ordenação, razão pela qual lhe são aplicáveis os princípios fundamentais de direito e do processo administrativo. Com efeito, o legislador ao distinguir duas fases - a administrativa e a judicial - certamente, não teve em mente a aplicação dos princípios processuais penais à fase administrativa. Por outro lado, atentos os princípios fundamentais do direito administrativo e o disposto no artº 58º do RGCOC, o que se deve exigir numa decisão administrativa (…), é o respeito por três princípios essenciais, que são: a suficiência, a clareza e a congruência.
Assim, o que se impõe é que a correspondente fundamentação, de facto e de direito, ainda que sucinta ou por remissão para todos os factos do processo contraordenacional, transcreva a respetiva factualidade, indique as normas jurídicas violadas e a coima aplicada, possibilitando, assim, um conhecimento perfeito dos factos e normas imputadas. Acresce, que a culpa nas contraordenações não se baseia em qualquer censura ético - penal, mas tão só na violação de certo procedimento imposto ao agente, bastando-se por isso com a imputação do facto ao agente.”
De acordo com Simas Santos e Lopes de Sousa, [9] “os requisitos previstos neste artigo para a decisão condenatória visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efetivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão. Por isso as exigências aqui feitas deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos.
Sufragando este entendimento, entendemos que, quer a decisão administrativa, quer a sentença impugnada estão suficientemente fundamentadas, dentro da lógica processual que as enforma, peças que a arguida recorrente revelou ter entendido, o que resultou demonstrado pela interposição do presente recurso, não se mostrando, pois, afetado o exercício do seu direito de defesa.
Tendo presentes tais especificidades e escusando-nos a novas considerações sobre tal matéria, diremos apenas que a factualidade provada constante da sentença recorrida se nos afigura suficiente para proceder à imputação de ambas as contraordenações à arguida, encontrando-se preenchidos os elementos objetivos e o elemento subjetivo dos tipos, improcedendo a nulidade invocada.

B) Da alegada contradição entre a fundamentação de facto e a fundamentação de Direito.
Nas suas conclusões alega a recorrente relativamente à decisão recorrida que “4.ª (…) dá como provados os factos constantes da decisão administrativa e, em sede de motivação de direito, a decisão recorrida limita-se a transcrever os preceitos jurídicos aplicáveis, sem qualquer subsunção ao caso concreto.” e que “42.ª Para além disso, a decisão recorrida encerra uma manifesta contradição entre os factos provados (insuficientes) e a fundamentação de direito.(…) 43.ª Na verdade, a Recorrente foi condenada por duas contraordenações distintas, sendo uma delas relativa à ultrapassagem dos VLE impostos no título de utilização dos recursos hídricos e outra relativa à não instalação de poços para captação do biogás no alvéolo 4. 44.ª E o Tribunal a quo, em sede de fundamentação, estatui que que «Relativamente à culpa da Arguida esta não agiu com a diligência necessária para cumprir as obrigações legais inerentes ao exercício da sua atividade de que era capaz ao ter depositado o lixiviado no alvéolo 4 da célula 2 sem a devida autorização da entidade competente.45.ª Em momento nenhum a decisão administrativa questionou acerca da deposição de lixiviado no alvéolo 4, não tendo sido essa matéria objeto do processo. 46.ª Assim, a fundamentação utilizada para fundamentar a culpa da Recorrente, para alem de insuficiente, é impercetível, inteligível, e sem qualquer respaldo na realidade dos factos julgados.
Nas conclusões da recorrente que acabamos de transcrever descortinamos a alegação de dois tipos de vícios imputados à sentença recorrida: o vício consubstanciado na falta de subsunção da matéria de facto provada às normas jurídicas aplicáveis e que suportaram a condenação e o vício resultante da contradição entre os factos provados e a fundamentação de Direito. Nenhum de tais vícios, porém, a nosso ver, se verifica.
No que diz respeito à falta de subsunção da matéria de facto provada às normas jurídicas aplicáveis, basta atentarmos no texto da decisão recorrida, analisado de forma global, para concluirmos que tal subsunção foi efetivamente realizada. De facto o Tribunal “a quo”, depois de elencar os factos tidos por provados e de explicitar de forma clara e pormenorizada a sua convicção probatória, explicitou as normas jurídicas às quais se subsumem as condutas da arguida, referindo de seguida que face à factualidade dada como provada dúvidas não restam que a recorrente praticou as contraordenações que lhe são imputadas”. Se é certo que a fórmula encontrada pelo julgador para realizar a integração das condutas da arguida nas previsões das normas legais que contêm as contraordenações é genérica, não é menos verdade que a descrição factual antes inserida na decisão se revela suficientemente elucidativa para podermos concluir pela subsunção dos factos ao Direito.
Relativamente à alegada contradição entre os factos provados e a fundamentação de Direito – resultante da circunstância de na sentença sob recurso se ter consignado em sede de fundamentação que «Relativamente à culpa da Arguida esta não agiu com a diligência necessária para cumprir as obrigações legais inerentes ao exercício da sua atividade de que era capaz ao ter depositado o lixiviado no alvéolo 4 da célula 2 sem a devida autorização da entidade competente”, sendo certo que a decisão administrativa nada questionou acerca da deposição de lixiviado no alvéolo 4 – subscrevemos inteiramente a posição assumida nos autos pelo Ministério Público nas suas contra-alegações de recurso.
Efetivamente, analisado o teor global da sentença e, em particular a ponderação que na mesma é feita relativamente ao preenchimento dos tipos na sua forma negligente, não restam, quanto a nós, quaisquer dúvidas de que não se verifica a invocada contradição na fundamentação, pois que, no trecho transcrito, a sentença se refere à deposição de resíduos no alvéolo 4 sem a instalação de poço ou dreno para captação de biogás, conforme resulta amplamente dos factos provados e da respetiva motivação. Pelas razões sobreditas – e levando em conta todas as demais referências à atuação da arguida, quer no que diz respeito aos elementos objetivos e objetivos e subjetivos do tipo, quer em relação à ilicitude e à culpa, constantes da sentença – não poderemos deixar de entender a referência ao “lixiviado” como um lapso de redação (querendo significar-se resíduos), lapso que, de forma alguma terá a virtualidade de inquinar a fundamentação da decisão e, muito menos de a tornar nula.
Improcede assim também a nulidade invocada pela arguida consubstanciada na contradição entre a fundamentação de facto e a fundamentação de Direito.

4Da omissão de pronúncia na sentença recorrida relativamente a factos e a argumentos invocados pela recorrente na impugnação da decisão administrativa.
No seu requerimento de interposição de recurso, alega a recorrente que “Na impugnação judicial apresentada, a Recorrente alegou, para além do mais, o seguinte:
146º.
«Quanto à segunda contraordenação imputada à Recorrente, a saber, “a construção, alteração ou laboração de uma instalação que explore uma ou mais atividades constantes do anexo I com inobservância das condições fixadas na LA”, sempre se dirá que a licença ambiental titulada pela Recorrente não refere, no seu entender, que os poços de biogás tivessem de ser realizados durante a exploração.
147º.
E, pela experiência obtida nas células que, entretanto, se encerraram, verificou a Recorrente que, se tivesse feito os poços na fase de exploração, só teria graves e pesados inconvenientes com o procedimento:
148º.
Verificou a Arguida, quando iniciou a exploração do biogás com a instalação dos equipamentos, que nenhum desses poços funcionava.
149º.
Os poços tiveram de ser realizados todos do início, através do sistema de perfuração no local.
150º.
Assim, optou-se nesta nova célula por não se fazer a instalação dos poços na fase de exploração (os quais são feitos de acordo com as fases de encerramento).
151º.
Esta opção tem ganhos ambientais significativos, uma vez que se diminuem as fontes de difusão;
152º.
A existência de poços sem captação aumenta as fontes de difusão, libertando dessa forma mais biogás para a atmosfera.»
Nas suas conclusões do recurso alega-se ainda, relativamente à decisão recorrida, que a mesma não se pronunciou sobre tal alegação factual e que não valorou o depoimento da testemunha da recorrente (…).
Nenhuma razão assiste novamente à arguida, pois que a leitura da motivação da convicção probatória permite claramente constatar que o tribunal “a quo” analisou o depoimento da mencionada testemunha, engenheira ambiental e responsável técnica pelo aterro, tendo entendido que a mesma prestou um depoimento pouco isento e marcadamente assumido para beneficiar a tese da Arguida” e terminando por concluir que “concatenando toda a prova produzida diremos que a tese aqui trazida pela Arguida é de todo ilógica e inverosímil.”, ao que fez seguir a explicação subjacente a ta conclusão.
Acresce que na decisão sob recurso podemos ainda ler que “O demais explanado na decisão administrativa e na impugnação judicial apresentada porque relativa a matéria de direito, conclusiva ou sem interesse para a boa decisão da causa, não foi incluída na factualidade supra.” Daqui resulta que se o tribunal não deu como provados os factos alegados pela recorrente, tal decisão ficou a dever-se a uma de duas circunstâncias: ou o fez porque deu como provados os factos da decisão administrativa que estavam em oposição com aqueles ou porque considerou tais factos sem interesse para a boa decisão da causa.
Nenhuma omissão de pronúncia descortinamos assim no caso concreto, devendo, pi improceder igualmente a arguição de tal nulidade.

5Da falta de fundamentação no processo de determinação da medida da coima.
Nas suas conclusões alega a recorrente relativamente à decisão recorrida que (…) e repete a nulidade assacada à decisão administrativa no que tange à falta de fundamentação da determinação da coima concreta, sendo por essa razão também ela própria nula, nos termos dos arts. 374.º, n.º 2 e 3/b), 375.º, n.º 1, e 379.º do Código de Processo Penal.”
Recordemos o que a tal respeito se escreveu na sentença sob recurso:
“Da determinação da coima a aplicar:
À Arguida/recorrente, são-lhe imputadas a título de negligência as seguintes contraordenações:
Uma contraordenação ambiental muito grave relativa ao incumprimento das condições impostas no título, prevista e punida pelo artigo 81.º n.º 3, al. c) do DL n.º 226-A/2007 de 31 de Maio, sancionável nos termos da al. b) do n.º 4 do artigo 22 da Lei 50/2006 de 29 de Agosto republicada pela Lei n.º 114/2015 de 28 de Agosto.
Uma contraordenação ambiental grave relativa ao funcionamento de uma instalação abrangida pelo DL n.º 127/2013 de 30 de Agosto, sem as licenças previstas no presente DL previsto e punido pela al. e) do n.º 2, do artigo 111.º do DL n.º 127/2013 de 30 de Agosto sancionável nos termos da al. b) do n.º 3 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto republicada pela Lei n.º 114/2015 de 28 de Agosto.
**
Ora, a medida da sanção a aplicar é determinada nos termos do disposto no Artigo 18.º do Decreto-lei 433/82 de 27 de Outubro, segundo os seguintes critérios: a gravidade da contra-ordenação, a culpa, a situação económica do agente e do benefício económico, que este retirou da prática da contra-ordenação.
Resulta do disposto no n.º 2, do artigo 18.º do RGCO que, se o agente retirou da infracção um benefício económico calculável superior ao limite máximo da coima e não existir outros meios de o eliminar pode elevar-se até ao montante do benefício.
Deste modo, tendo em conta os factos que resultaram provados, a gravidade da infracção, ao facto de não se ter provado que a arguida tivesse retirado qualquer benefício económico com a prática da infracção, decide-se, condenar a arguida/recorrente, nas seguintes coimas, as quais se situam dentro do limite mínimo legal previsto:
- 24.000,00 euros pela prática de uma contraordenação ambiental muito grave prevista e punida pelo artigo 81.º n.º 3, al. c) do DL n.º 226-A/2007 de 31 de Maio, sancionável nos termos da al. b) do n.º 4 do artigo 22 da Lei 50/2006 de 29 de Agosto republicada pela Lei n.º 114/2015 de 28 de Agosto.
- 12.000,00 euros pela prática de uma contraordenação ambiental grave relativa ao funcionamento de uma instalação abrangida pelo DL n.º 127/2013 de 30 de Agosto, sem as licenças previstas no presente DL previsto e punido pela al. e) do n.º 2, do artigo 111.º do DL n.º 127/2013 de 30 de Agosto sancionável nos termos da al. b) do n.º 3 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto republicada pela Lei n.º 114/2015 de 28 de Agosto.
Totalizando o montante de 36.000.00 euros.
Sabendo que a arguida/recorrente foi condenada em concurso de infracções temos de apreciar o disposto no artigo 19.º do DL 433/82, de 27/10 e o disposto no artigo 27.º da LQCOA.
Esta conclusão implica que se refaça o cúmulo jurídico das coimas a aplicar ao Recorrente. Tal cúmulo efectua-se nos termos do disposto no artigo 19.º do RGCO em conjugação com o disposto no artigo 27.º da LQCOA. O art. 19.º do DL 433/82, de 27/10, na redacção que lhe foi dada pelo DL 244/95, de 14/09, estabelece o seguinte: “1. Quem tiver praticado várias contra-ordenações é punido com uma coima cujo limite máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infracções em concurso.2. A coima aplicável não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contra-ordenações em concurso.3. A coima a aplicar não pode ser inferior à mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contra-ordenações”. Decorre do disposto no artigo 27.º da LQCOA sob a epígrafe “concurso de contraordenações” que “1 - Quem tiver praticado várias contra-ordenações ambientais é punido com uma coima cujo limite máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infracções em concurso. 2 - A coima a aplicar não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contra-ordenações ambientais em concurso. 3 - A coima a aplicar não pode ser inferior à mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contra-ordenações ambientais.” Este artigo estabelece o regime da punição do concurso de contra-ordenações, que se concretiza na aplicação de uma única coima. O limite máximo da moldura legal desta coima única é formado pela soma das coimas concretamente aplicadas a cada uma das infracções que integram o concurso, mas sem exceder o dobro do limite máximo da contra-ordenação a que corresponder coima com um limite mais elevado. E, o limite mínimo da coima única é constituído pela coima concreta mais elevada. É, dentro destes limites, máximo e mínimo que o tribunal tem de se movimentar para determinar o montante da coima única a aplicar pelo concurso de infracções. Como, a soma das coimas concretamente aplicadas, a cada uma das referidas contra-ordenações, totaliza o montante de €36.000,00 e, como a coima concreta mais elevada aplicada no referido concurso à arguida/recorrente, foi de €24.000,00 será este o limite mínimo, da coima única, abstractamente aplicável. A moldura da coima abstractamente aplicável ao referido concurso de infracções tem, assim, como limite mínimo €24.000,00 e como limite máximo €36.000,00 euros. É dentro desta moldura que o tribunal tem de se movimentar para determinar o montante da coima única a aplicar pelo concurso de infracções, de harmonia com os critérios definidos no art. 18.º do RGCO e 27.º da LQCOA.
Resulta do disposto no n.º 2, do artigo 18.º do RGCO que, se o agente retirou da infracção um benefício económico calculável superior ao limite máximo da coima e não existir outros meios de o eliminar pode elevar-se até ao montante do benefício. No caso em apreço, há que ponderar que a Arguida incorreu na prática de duas contraordenações ambientais. O regime geral das contra-ordenações no art. 21.º refere que para a determinação das sanções acessórias aplicáveis é tido em conta a gravidade e a culpa do agente. Certo é que a gravidade da contra-ordenação depende, por um lado, do bem ou interesse jurídico que a mesma visa tutelar e, por outro lado, do eventual benefício retirado pelo agente da prática daquela e do resultado ou prejuízo causado. A gravidade da contra-ordenação pode ainda depender ou aferir-se a partir directamente da lei. Quanto à gravidade da culpa do agente ela depende, fundamentalmente, da forma como o mesmo agiu, isto é, com dolo ou negligência, bem como do grau de dolo – directo, necessário e eventual – e da negligência – simples ou grosseira. Atendendo, a que no caso em apreço a arguida actuou com negligência entendemos que a coima única que lhe foi aplicada é excessiva e desproporcional.
Deste modo, tendo em conta os factos que resultaram provados, nomeadamente que não foi possível apurar da situação económica da Arguida uma vez que a mesma não trouxe aos processo qualquer facto relativo à sua situação económica tal como lhe competia, à gravidade das infracções e que a mesma não retirou qualquer benefício económico da prática das mesmas, decide-se condenar a Arguida/Recorrente, (…), na coima única de 30.000,00 euros (trinta mil euros).”
*
Também quanto à determinação da medida concreta da coima aplicada, não se verifica, em nosso entender, qualquer tipo de ausência de fundamentação.
Efetivamente, conforme se afere pela leitura do excerto transcrito, a sentença recorrida aplicou os critérios constantes dos artigos 18.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro e 27.º da LQCOA, tendo atendido, designadamente, à gravidade das contraordenações, à medida da culpa e ao benefício económico que o agente retirou da prática da contraordenação (“in casu” tendo concluído que a arguida não retirou qualquer benefício da prática da contraordenação) e tendo terminado por concluir, fundamentadamente, que coima única que lhe fora anteriormente aplicada na decisão administrativa é excessiva e desproporcional, pelo que decidiu reduzi-la para 30.000,00 euros (trinta mil euros).
Não concordamos igualmente com a recorrente quando afirma nos pontos 59. e 60. das suas conclusões que “No caso sub iudice, é manifesto que a sentença não explica a(s) razão(ões) concretas que estiveram na génese das coimas aplicadas à Recorrente e, por isso, a mesma é nula, por falta de fundamentação; pelo contrário, limitou-se a concluir “a arguida incorreu na prática de duas contraordenações ambientais” e que “a gravidade pode ainda depender ou aferir-se a partir diretamente da Lei”; e que “Esta última conclusão configura uma flagrante violação do princípio da proibição da dupla valoração ínsito no artigo 71.º, n.º 2, do CP, de acordo com o qual o aplicador da coima não poderá ter em conta circunstâncias que já foram tidas em conta pelo legislador na determinação da coima aplicável”.
Conforme consignou a sentença recorrida, reportando-se a tal vício já alegado pela arguida relativamente à decisão administrativa, «O princípio da proibição da dupla valoração, segundo o qual não devem ser valorados pelo juiz na determinação da medida da pena, circunstâncias já consideradas pelo legislador ao estabelecer a moldura penal do facto, “não obsta em nada, porém, que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de elemento típico e, portanto, da concretização deste, segundo as especiais circunstâncias do caso”»
Não vislumbramos que a sentença tenha valorado duplamente qualquer circunstância em concreto, sendo certo que as referidas circunstâncias que tenham sido objeto de uma primeira valoração, apenas não poderão ser novamente valoradas em novo juízo para a quantificação da culpa e da medida concreta da coima se já tiverem servido para determinar a moldura abstrata aplicável ou para escolher o tipo de sanção, o que na situação dos autos, manifestamente se não verificou.
Concluindo, considerando que da leitura da sentença recorrida se afere quais os critérios ponderados na determinação da medida concreta das coimas parcelares e da coima única – ponderação que consideramos corretamente realizada, assim como adequadas se mostram as medidas concretas das coimas parcelares e a coima única fixada – inexistido qualquer violação do princípio da proibição da dupla valoração, não se verifica, pois, a nulidade arguida pela recorrente.
***
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, julgando inexistentes as nulidades arguidas pela recorrente e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.
*
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).
(Processado em computador e revisto pela relatora)
Évora, 26 de outubro de 2021
Maria Clara Figueiredo
Maria Margarida Bacelar

Sumário
I - Antes de instaurado o processo sancionatório (penal ou contraordenacional), os documentos disponibilizados ao abrigo do dever de colaboração podem ser aproveitados para a sua instrução, atendendo às razões justificativas da restrição ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare
II - Depois de iniciado o processo sancionatório (penal ou contraordenacional), o eventual aproveitamento de tais informações nesse processo já não poderá considerar-se justificado, pois que utilizar no mencionado processo sancionatório documentos obtidos coativamente por via da inspeção, que não poderiam ser obtidos do mesmo modo seguindo a via do processo penal, significaria transformar a colaboração dos cidadãos ou das empresas num meio de obtenção de prova contra si próprios e, consequentemente, violaria o princípio constitucional de proibição da autoincriminação, nemo tenetur se ipsum accusare.

____________________________________________
[1] cf. Maria Fernanda Palma e Paulo Otero “Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social in “Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XXXVII 2. 1996. pág. 564.
[2] Acórdão RE de 28 de outubro de 2008, relatado pelo Desembargador João Gomes de Sousa, proferido no processo 1441/08-1, disponível www.dgsi.pt.
[3] cf. Mário Gomes Dias, Contra-Ordenações, Notas e Comentários, Escola Superior de Polícia, pp. 130-133.
[4] cf. o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artigo 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
[5] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 298/19, relatado pelo Conselheiro Pedro Machete, disponível no site oficial to TC.
[6] Vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 461/2011, relatado pela Conselheira Catarina Castro.
[7] Neste sentido se pronunciou expressamente o Acórdão do TC nº 566/2018, relatado pelo Conselheiro Pedro Machete, no âmbito do Processo nº processo n.º 336/18, disponível no site do Tribunal Constitucional, tendo decidido “Não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, e artigo 45º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, e dos artigos 50.º e 58º do citado Decreto-Lei n.º 433/82, igualmente aplicáveis por força do referido artigo 45.º, segundo a qual «em decisão condenatória proferida na fase administrativa de processo contraordenacional não carecem de ser indicadas as pessoas singulares representantes da pessoa coletiva infratora e responsáveis pelas infrações».
[8] Acórdão RC de 21 de agosto de 2008, de Azevedo Mendes, proferido no processo 574/06.2TTLRA.C1 disponível em www.dgsi.pt.
[9] Contra-Ordenação – Anotações ao Regime Geral”, em anotação ao artº 58º.