Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
46/14.1GCPTM.E1
Relator: CARLOS JORGE BERGUETE
Descritores: DIREITO DE QUEIXA
LEGITIMIDADE
OFENDIDO
Data do Acordão: 07/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Perante vários possíveis interesses legítimos que sejam postos em causa pela prática de uma infração criminal, a lei reserva o conceito de «ofendido» para o titular dos interesses «especialmente» protegidos, com o sentido de interesses directa, imediata ou particularmente protegidos pelo tipo legal incriminador, ou seja, dos direitos ou interesses que constituem a razão directa e imediata, situada em primeira linha, que fundamenta a infração criminal.

II -A alegada fruição e disponibilidade das utilidades que as torneiras proporcionavam à queixosa não assenta na sua titularidade de interesse particular que o tipo legal directamente proteja e, por isso, não deve ser considerada como ofendida com legitimidade para queixa pelo crime de furto.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora


1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, da Instância Local de Portimão da Comarca de Faro, o Ministério Público deduziu acusação contra A., B. e C., imputando-lhes a prática, em co-autoria, de um crime de furto qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 26.º, n.º 3, e 204.º, n.º 2, alínea e), com referência aos arts. 202.º, alínea e), e 203.º, n.º 1, todos do Código Penal (CP).

Pela demandante VN foi deduzido pedido de indemnização civil, no qual peticionou a condenação dos arguidos/demandados no pagamento do valor de € 270,00.

O arguido B. apresentou contestação, oferecendo o merecimento dos autos.
Os restantes arguidos não apresentaram contestação.

Realizado o julgamento e proferida sentença, decidiu-se:
A) Julgar não provada a prática, pelos arguidos A., B. e C., do crime de furto qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 26.º, n.º 3, e 204.º, n.º 2, alínea e), com referência aos arts. 202.º, alínea e), e 203.º, n.º 1, todos do CP, de que vinham acusados;

B) considerar que os factos provados indiciam a prática do crime de furto simples, p. e p. pelo art. 203.º, n.º 1, do CP;

C) declarar verificada a falta de uma condição de procedibilidade - a existência de queixa validamente apresentada -, reconhecendo-se a falta de legitimidade do Ministério Público e, assim, declarar extinta a responsabilidade criminal dos arguidos;

C) julgar improcedente o pedido de indemnização cível formulado pela demandante e absolver os arguidos/demandados do peticionado.

Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões:

1- Por sentença proferida nestes autos, os arguidos A., B. e C. foram absolvidos da prática, em co-autoria do crime de furto qualificado p. p. pelo artigos 26º, nº 3, 204º,nº 2e) com referência ao artigo 202º, alínea e), 203º, nº 1 todos do C.P e embora tivesse considerado que os factos provados indiciavam a prática pelos arguidos do crime de furto simples, em co-autoria, p. e p. pelo artigo 203º do CP, a sentença declarou a extinção do procedimento criminal;

2- por entender que se verificava ilegitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal relativamente ao referido crime porquanto, nos termos dos arts. 203º, nº 2 do CP tal crime é semi-público, dependendo de queixa, inexistindo queixa validamente apresentada pelos proprietários dos bens furtados;

3- Entendemos, ao contrário da Mmª Juiz que a par do proprietário, quem aproveita validamente as utilidades da coisa também tem legitimidade para apresentar queixa.

4- O crime de furto simples visa não apenas proteger o titular do direito de propriedade, mas também aqueles que legitimamente gozam, usam e fruem o bem e, que deste modo, são titulares de interesses directos e imediatos na preservação da coisa como na fruição e disponibilidade das utilidades funcionais que a mesma proporciona.

5- Para efeitos do disposto no artigo 113 º, nº 1 do CP, o conceito de ofendido como titular dos interesses que a incriminação quis proteger pode assim abranger tanto o proprietário, como aquele que tem a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa, com um mínimo de representação jurídica que justifica a tutela penal, assistindo legitimidade aos titulares desses direitos e interesses legítimos, enquanto representantes de interesses especialmente tutelados pela incriminação, para apresentar queixa-crime;

6- Apurou-se em sede de Julgamento que VN residia na casa com os seus pais, proprietários da casa, tendo a disponibilidade de fruição das utilidades das coisas, usando as torneiras que foram retiradas pelos arguidos do anexo, sendo por isso, titular de interesses directos e imediatos quer na preservação dos objectos, como na fruição e disponibilidade das utilidades que aqueles proporcionavam.

7- Sendo VN titular dos interesses que a lei quis proteger, deveria tal queixa ter sido considerada validamente apresentada e consequentemente, os arguidos condenados pela prática, em co-autoria, de um crime de furto simples e, não ter sido julgada extinta a responsabilidade criminal dos arguidos pela sua prática.

8- Pelo exposto, ao decidir declarar extinta a responsabilidade criminal do arguido pela prática do aludido crime, por considerar inexistir queixa validamente apresentada, a decisão recorrida violou o disposto nos arts. 49 do CPP, 113, 203, nº 1 e 3 todos do C.P.

9- Assim, deve a decisão recorrida ser parcialmente revogada e substituída por outra que condene os arguidos pela prática, em co-autoria do referido crime de furto simples.

O recurso foi admitido.

O arguido C. apresentou resposta, sem extrair conclusões, pugnando pela manutenção do decidido na sentença.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, manifestando concordância com essa resposta e no sentido de que a decisão recorrida deve ser mantida.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), não foi apresentada resposta.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, de acordo com o art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas nos arts. 379.º, n.º 1, e 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, em sintonia, designadamente, com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995 (publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995).

Delimitando-o, reconduz-se, então, a apreciar da legitimidade da queixosa relativamente ao crime de furto em que os factos provados foram enquadrados e consequente fundamento para condenação dos arguidos.

No que releva, consta da sentença recorrida:

Matéria de facto provada:
1. Pelas 13h30 do dia 31 de Janeiro de 2014, os arguidos fizeram-se deslocar, na viatura de matrícula ---DP (um "Opel Astra" de cor vermelha), ao Sítio … em Montes de Alvor, Portimão, onde se situa a residência da queixosa VN;

2. Ali chegados, os arguidos B e C. ficaram no exterior do veículo e junto ao mesmo, numa posição de "vigia", de modo a alertar o arguido A. se vislumbrassem algo ou alguém que pudesse intercetá-los;

3. O arguido A. subiu pela rede que delimita a propriedade, com 2,50 metros de altura, e introduziu-se no anexo da residência. Ao ver no chão desse anexo duas loiças sanitárias - um bidé e um lavatório - o arguido partiu-as e retirou as respetivas torneiras, uma do lavatório e duas do bidé;

4. As torneiras referidas em 3 têm um valor total não concretamente apurado mas inferior a €102;

5. Nesse instante, a queixosa encontrava-se a almoçar com a família no interior da residência quando, ao ouvir cães a ladrar, veio ao seu exterior, tendo surpreendido o arguido A. ainda no anexo da propriedade identificada em 1;

6. Ao vê-la, o arguido A. saiu da propriedade, saltando a vedação, na posse das ditas torneiras. De seguida, todos os arguidos entraram no veículo e colocaram-se em fuga para parte incerta;

7. Porém, cerca de 1 hora depois, os arguidos A. e B. foram encontrados junto ao dito veículo no interior da sucateira "P.R. Sucatas", sita na zona industrial do Vale da Arrancada, em Portimão, por guardas da G.N.R. de Portimão.

8. No interior do veículo encontravam-se as torneiras referidas no ponto 3, as quais foram apreendidas e devolvidas àquela;

9. Os arguidos agiram de forma concertada e em comunhão de esforços, com o propósito de - através da introdução por escalamento no anexo a uma residência - se apoderarem de bens que pertenciam a terceiros, o que conseguiram;

10. Agiram conscientemente e sabiam que tal ação é punida por lei.

11. Mais se provou

12. O arguido A. vive com a companheira de 17 anos, estando ambos desempregados e sendo ajudados pelo pai da companheira, que é o arguido B.;

13. A. está atualmente a frequentar um curso para aprender a ler;

14. Foi elaborado o relatório social de fls. 178 a 180, relativamente ao arguido A., que aqui se dá por reproduzido;

15. O arguido B. vive com a companheira e com um filho com 10 anos de idade;

16. Não trabalha e os rendimentos que declarou auferir são o rendimento social de inserção, no valor de €130 e o abono do filho no valor de €40;

17. O arguido não frequentou a escola;

18. Foi elaborado o relatório social de fls. 154 a 155, relativamente ao arguido B, que aqui se dá por reproduzido;

19. O arguido C vive com uma companheira e com dois filhos de 1 e 3 anos de idade;

20. O arguido e a sua companheira não trabalham, vivendo com o abono dos filhos e com recurso à ajuda do pai da companheira;

21. O arguido andou na escola até à 3.a classe;

22. Foi elaborado o relatório social de fls. 158 a 160, relativamente ao arguido C, que aqui se dá por reproduzido;

23. O arguido A. não tem antecedentes criminais registados;

24. O arguido B. tem os seguintes antecedentes criminais:

Condenação pela prática do crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 203.º e 204.º, n.º 2 e n.º 4, do Código Penal, relativamente a factos praticados em 13/03/2012, por sentença datada de 12/07/2013, transitada em julgado em 27/09/2013, proferida no âmbito do processo n.º 59/12.8PAPBL, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Portimão, na pena de 3 anos e 8 meses de prisão, suspensa por igual período, sob regime de prova e sujeita a cumprimento de condição.

25. O arguido C. tem os seguintes antecedentes criminais:

Condenação pela prática do crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º do Código Penal, relativamente a factos praticados em 30/07/2012, por sentença datada de 09/10/2013, transitada em julgado em 08/11/2013, proferida no âmbito do processo n.º ---/12.0PFAMD, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Portimão, na pena de 25 dias de multa, à taxa diária de €5;

26. O imóvel e as torneiras, identificadas nos pontos 1 e 3 são propriedade dos pais da queixosa, FN e MN.

Matéria de facto não provada:
1.Que as torneiras identificadas no ponto 3 da factualidade provada tivessem, no seu conjunto, o valor de €120;

2. Que a residência identificada no ponto 1, ou as torneiras descritas no ponto 3 dos factos provados pertencessem à queixosa.

Motivação quanto à matéria de facto:
A convicção do Tribunal fundou-se na valoração crítica e conjugada da totalidade dos elementos de prova produzidos.

Assim, antes de mais e no que respeita à factualidade ínsita nos pontos 1, 2, 3, 5 e 6 da matéria de facto considerada provada, consideraram-se os seguintes meios de prova:

Em primeiro lugar, as declarações prestadas pelo arguido A. que admitiu ter praticado os factos constantes da acusação, dizendo, porém, que quem o acompanhou na realização do furto foi o arguido C e um indivíduo chamado PA não, o arguido B (seu sogro).

De acordo com as suas declarações o arguido B. limitou-se a acompanhá-los à sucata, onde se dirigiram para vender as torneiras, sem antes tenha estado presente na residência descrita na acusação.

Em segundo lugar, as declarações prestadas pelo arguido B que negou a prática dos factos, dizendo que se limitou a ir com os restantes arguidos à sucata (já que era o arguido o único dos três que conduzia), uma vez que aqueles pediram-lhe que ali os levasse a fim de venderem "umas coisas que eles tinham".

Em terceiro lugar, o depoimento da testemunha VN, queixosa e filha dos proprietários do imóvel descrito na acusação, que estava em casa no dia da prática dos factos e, tendo ouvido os cães a ladrarem, dirigiu-se ao quintal de casa, onde se deparou com o arguido A., dentro da propriedade, já com duas torneiras na mão e ainda a arrancar uma terceira torneira. A testemunha referiu ainda ter visto "um senhor mais velho" que identificou como sendo o arguido B. junto à vedação da propriedade, em posição de vigia, e um outro, que identificou como sendo o arguido C, do lado oposto da estrada.

Mais explicou que, após a sua chegada, o arguido A. acabou de arrancar a torneira e fugiu, juntamente com os demais arguidos e com o arguido B. a conduzir, no carro que se encontrava parado junto à propriedade.

Por último, consideraram-se as declarações prestadas por BG, militar da GNR que, logo após ter recebido a denúncia do furto deslocou-se à sucateira e, através da descrição física dos arguidos que lhe havia sido transmitida por VN, ao ver os arguidos A. e B., percebeu tratarem-se das mesmas pessoas, tendo acabado por apreender as torneiras em causa que se encontravam dentro do carro conduzido pelo arguido B..

Assim, das declarações confessórias de A, resulta, desde logo, que os factos ocorreram da forma como vêm descritos na acusação - modus operandi e objetos furtados - e que neles teve participação o referido A.

No que respeita à participação dos arguidos B. e C. nos precisos termos descritos na acusação, teve-se em conta o depoimento prestado por VN, que narrou com grande riqueza de detalhes tudo aquilo a que a terá assistido quando saiu à rua e se deparou com os arguidos, descrevendo os sítios onde cada um deles estava e a fazer o quê e chegando, inclusivamente, a referir-se às roupas que traziam vestidas. Esta testemunha também não teve qualquer dúvida ou hesitação em identificar, entre cada um dos arguidos, as pessoas que viu no local, distinguindo-os entre si.

Ora, o depoimento foi prestado de forma segura e objetiva, tendo a testemunha demonstrado a isenção necessária à credibilização dos factos por si descritos.

Assim, a convicção que para o tribunal resultou deste depoimento, não foi minimente abalada pelo facto de o arguido A, nas suas declarações, ter referido que não era o arguido B. que aí se encontrava, mas antes um outro indivíduo, ou pela negação da sua intervenção nos factos, por parte do arguido B. que, aliás, nos pareceu muito pouco convicta.

Convenceu-se assim o tribunal que, apesar de os três arguidos terem decidido praticar o crime em conjunto, combinaram entre si dizer que B. não interveio nos factos, já que este tem antecedentes criminais pela prática do mesmo crime, coincidindo os factos com o período de suspensão de uma pena de prisão em que o referido arguido já foi condenado.

Teve-se ainda em conta o auto de apreensão, fotografias e exames de fls. 9 a 17; o termo de entrega de fls. 18, o relatório de fls. 40 a 42.

Os pontos 7 e 8 resultaram provados em função do depoimento isento e objetivo prestado pela testemunha BG (militar da GNR), em conjunto com o auto de apreensão de fls. 9 a 11.

No que respeita à propriedade da casa identificada em 1 e dos objetos de que os arguidos se apropriaram teve-se em conta o seguinte:

Pese embora os presentes autos tenham prosseguido no pressuposto de que a queixosa, VN, fosse proprietária do imóvel e dos bens que do mesmo foram retirados - sendo essa a ilação que se retira das suas próprias declarações prestadas em sede de inquérito - na audiência de discussão e julgamento, a queixosa explicou que reside na casa em questão mas que esta pertence aos seus pais que também aí residem.

Tendo-se assim suscitado a dúvida quanto à propriedade dos bens furtados - o que desde já se adianta ter reflexos ao nível do direito de queixa - o tribunal entendeu, oficiosamente, determinar a inquirição dos pais da queixosa, FN e MN.

Ora, inquiridos como testemunhas, do seu depoimento não restaram dúvidas que, tanto a casa descrita nos factos provados, como as torneiras de que os arguidos se apropriaram, lhes pertencem.

O tribunal considerou, assim, não provada a matéria constante do ponto 2 dos factos não provados, já que se apurou que os bens em causa pertencem ao casal F e MN, pais da queixosa e com quem esta reside.

Foi ainda com base no depoimento conjugado de FN, MN e VN, que se concluiu que as torneiras em causa não têm o valor que lhes foi atribuído na acusação.

Com efeito, pese embora não se tenha conseguido apurar o valor pelo qual as referidas torneiras foram compradas, através dos depoimentos das testemunhas supra referidas, constatou-­se que foi indicado o valor de €120, por ser de €40 o valor de cada uma das torneiras, caso estas fossem adquiridas no seu estado de origem, ou seja, novas.

Conforme foi explicado pela testemunha FN, o orçamento de fls. 67, de onde consta o valor unitário das torneiras, foi pedido por referência a torneiras novas.

Agora, resultou ainda do depoimento desta testemunha que as torneiras de que os arguidos se apropriaram já tinham sido adquiridas há cerca de um ano, tendo sido colocadas nas loiças respetivas e tendo sido utilizadas.

Assim, tendo em conta a degradação normal deste tipo de material, tal como resulta das regras da experiência comum, não pode o tribunal dar como provado que o valor de cada uma das torneiras seja de €40, já que isso seria aquilo que custariam caso fossem novas.

Resulta ainda das regras da experiência comum que este tipo de artigos sofrem uma desvalorização comercial elevada após a sua colocação e utilização.

Em consequência, o tribunal não dispõe de elementos que lhe permitam fixar o valor concreto de cada uma das torneiras, não podendo, no entanto, deixar de considerar que, de acordo com as regras da experiência comum, no seu conjunto, têm valor inferior a €102.

A convicção do tribunal quanto aos factos provados integrantes do tipo objetivo de ilícito foi formada com base nas regras da experiência comum, sendo certo que ao adotarem a conduta que resultou provada, os arguidos pretendiam apropriar-se, como se apropriaram, de bens que sabiam não lhes pertencer, sabendo, ainda, que a sua conduta constitui um ilícito criminal.

Os factos respeitantes às condições sociais do arguido resultaram das declarações prestadas pelos próprios que não foram contrariadas por qualquer elemento de prova.

Consideraram-se ainda, os relatórios sociais juntos aos autos.

Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos teve-se em conta os respetivos certificados do respetivo registo criminal.

Da falta de legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação:
O processo penal inicia-se e desenvolve-se mediante impulsos provocados pelos participantes processuais, começando com a aquisição da notícia do crime pelo Ministério Público (cfr. artigo 241.º do Cód. Proc. Penal).

Atribui-se, pois, a uma entidade pública, a um órgão do Estado, a competência para investigar a notícia do crime, apurando se este foi praticado e submetendo o seu agente a julgamento (cfr. artigos 219.º da Constituição da República Portuguesa e 262.º do Código de Processo Penal), assim se consagrando o princípio da oficialidade.

No entanto, este princípio sofre exceções, Entre outras, quando estão em causa crimes semipúblicos ou particulares, a promoção do processo pelo Ministério Público depende, desde logo, do exercício do direito de queixa pelo respetivo titular.

Sendo o bem jurídico "a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso" (J. Figueiredo Dias, "Direito Penal, Parte Geral", Tomo I, 2004, p. 109-110), compreende-se que existam bens jurídicos protegidos pelo direito penal que são mais valiosos que outros e que a violação de uns e outros configure a prática de crimes cujo gravidade varia, justamente, em função da natureza e importância do bem jurídico-penal atingido.

A gravidade do crime é um dos fatores que determina a distinção entre crimes públicos (em que o Ministério Público desencadeia, oficiosamente, o procedimento criminal), semipúblicos (a legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal depende de uma queixa do ofendido ou de alguém que, legitimamente, o substitua) e particulares (o exercício da ação penal pelo Ministério Público depende de queixa e de acusação particular).

A queixa, nos crimes semipúblicos e nos crimes particulares, e, também, a acusação particular nos segundos, apesar de terem assento no Código Penal, são pressupostos processuais ou condições de procedibilidade, sem as quais o Ministério Público carece de legitimidade para promover o procedimento criminal (cfr. artigos 48.º, 49.º e 50.º do Código Processo Penal).

Transpondo estas considerações para o caso concreto, os factos considerados provados, tal como resultam elencados na respetiva matéria de facto provada, apenas são suscetíveis de integrar a prática, pelos arguidos, em coautoria material, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo disposto no artigo 203º, 1, do Código Penal.

Este crime tem a natureza de crime semipúblico (cfr. nº 3 do mesmo artigo),

Por conseguinte, os presentes autos corporizam um procedimento criminal, cuja validade está dependente de queixa e de uma queixa validamente apresentada.

No caso de inexistência desta, competia ao Ministério Público arquivar os autos na fase de inquérito (artigo 277º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), por ocorrer uma causa de inadmissibilidade legal do procedimento, por ilegitimidade do Ministério Público e, por conseguinte, compete agora a este tribunal conhecer de tal ilegitimidade.

ln casu mostra-se documentada nos autos o exercício tempestivo do direito de queixa por parte de VN, filha de F e MN.

No entanto, esta manifestação de desejo de procedimento criminal não foi feita em nome daqueles nem em sua representação, antes tendo VN, apresentado queixa em nome próprio, como se fosse a titular do direito de queixa, por ser a dona dos bens furtados.

Ora, apurou-se em sede de julgamento que os bens furtados não pertencem à queixosa, antes sendo propriedade dos seus pais, FN e MN, que não formularam qualquer queixa nos presentes autos.

Dispõe o artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal, sob a epígrafe "titulares do direito de queixa" que "Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresenta-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação."

No caso dos autos, tendo em vista que com a incriminação do furto se quis proteger o património - e considerando que não se suscitam questões referentes à utilização dos bens a qualquer outro título que não a propriedade (ou seja, a queixosa não é arrendatária, comodatária, usufrutuária, etc) é inequívoco que o direito de queixa pertencia, exclusivamente, aos proprietários da casa e das torneiras, F e MN.

Terá assim que considerar-se que a queixa nos presentes autos apresentada, não adveio do titular do direito de queixa, e, por conseguinte, esta não poderá considerar-se validamente apresentada.

Não há, tão pouco, que proceder à notificação aos titulares do direito de queixa para que ratifiquem a queixa apresentada, já que, mostra-se decorrido o prazo de seis meses, previsto pelo artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, para a extinção, por caducidade, do direito de apresentação de queixa.

Por conseguinte, dever-se-á aqui declarar a falta de uma condição de procedibilidade - a existência de queixa de validamente apresentada - e determinar que, não tendo o Ministério Público legitimidade para acusar, nos presentes autos, deverá declarar-se extinta a responsabilidade criminal dos arguidos.

Apreciando:
A matéria de facto considera-se como assente, uma vez que, manifestamente, não padece de qualquer vício da decisão nesse âmbito.

Enquadrada, como foi, e bem, no crime de furto p. e p. pelo art. 203.º do CP, por ter operado a desqualificação do mesmo por via do disposto no n.º 4 do art. 204.º do Código (a coisa furtada tinha diminuto valor), teve por consequência, na perspectiva do tribunal, a extinção da responsabilidade dos arguidos, decorrente de ausência de queixa validamente apresentada, ou seja, pelos proprietários da residência e das torneiras subtraídas por aqueles e de que se apropriaram nos termos que ficaram descritos.

Ao invés, o recorrente pretende seja revogada a sentença nesse aspecto, invocando que, a par do proprietário, quem aproveita validamente as utilidades da coisa, como é o caso de Verónica Nunes também tem legitimidade para apresentar queixa, com apoio em fundamentação constante do acórdão do STJ n.º 7/2011 (por lapso, mencionado como ac. STJ 7/2001) e nas posições doutrinárias de Figueiredo Dias e Faria Costa, transpostas para a situação concreta, segundo a qual, como refere, apurou-se que Verónica Nunes residia na casa com os seus pais, proprietários da casa, tendo a disponibilidade de fruição das utilidades das coisas, usando as torneiras que foram retiradas pelos arguidos do anexo, sendo por isso, titular de interesses directos e imediatos quer na preservação dos objectos, como na fruição e disponibilidade das utilidades que aqueles proporcionavam.

Vejamos.
Ora, conforme Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, pág. 51, Relativamente a algumas categorias de crimes, o procedimento só pode iniciar-se desde que certas pessoas manifestem ao MP a vontade de que seja aberto um processo, se queixem. São os crimes semipúblicos e os particulares (…) A queixa não é senão a transmissão ao MP da notícia de um crime semipúblico ou particular e da manifestação de vontade de que o MP abra um processo para o processamento do agente do crime.

Também, segundo Simas Santos/Leal-Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, 2.ª edição, vol. I, pág. 270, a queixa corresponde à comunicação à entidade que detém o poder/dever de accionar o respectivo procedimento, ou, dito de outro modo, é a declaração de vontade de que se pretende que seja levantado processo para esclarecimento e prova de determinada conduta tida como criminalmente ilícita com vista à punição do seu autor ou autores.

As limitações decorrentes quanto à legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal estão previstas nos arts. 49.º e 50.º do CPP, correspondendo a razões de política criminal em vista dos interesses e do significado destes a proteger com a respectiva incriminação.

E dependendo o procedimento criminal de queixa, como no caso presente sucede (n.º 3 do art. 203.º do CP), tem legitimidade para apresentá-la o ofendido, considerando-se, como tal, o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com essa incriminação, nos termos do art. 113.º, n.º 1, do CP.

Pela sua pertinência, na medida em que versou identicamente situação de legitimidade relativamente a crime contra o património (crime de dano), colhem-se aqui algumas passagens do invocado acórdão do STJ n.º 7/2011, de 27.04 (publicado in D.R. I Série de 31.05.2011), que fixou jurisprudência no sentido de que «No crime de dano, previsto e punido no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa ‘destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada’, e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição.»:

“O bem jurídico, como critério e fundamento de tutela penal (concepção teleológico-funcional e racional do bem jurídico), assume um conteúdo material de corporização de valores que possam servir de indicador útil do conceito material de crime.

O bem jurídico constitui a expressão de um interesse da pessoa ou da comunidade na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante, e por isso juridicamente reconhecido como valioso (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, t. I, 2.ª ed., pp. 114 e segs.).

A expressão da dignidade penal e da carência de tutela penal para determinados bens resulta da ordenação axiológica jurídico-constitucional, no sentido de que só bens jurídicos de valor constitucional podem ser legitimamente protegidos pelo direito penal.

A intervenção mínima do direito penal significa, pois, que só deve intervir quando a tutela conferida pelos outros ramos do ordenamento jurídico não for suficientemente eficaz para garantir a manutenção dos valores e bens considerados vitais ou fundamentais da pessoa ou da sociedade. Nesta relação está o carácter subsidiário do direito penal, que significa intervenção fragmentária no quadro do ordenamento jurídico instrumental — protecção dos valores e bens fundamentais, essenciais e necessários para garantir a preservação e integridade da axiologia constitucional.

Assim, só depois da análise concreta, caso a caso, da tipicidade da incriminação se pode chegar à identificação do ou dos bens jurídicos protegidos e consequentemente dos seus titulares.”.

O tribunal a quo entendeu que, protegendo-se, no crime furto, o património, não se suscitam questões referentes à utilização dos bens a qualquer outro título que não a propriedade (ou seja, a queixosa não é arrendatária, comodatária, usufrutuária, etc), por isso, tendo enveredado pela solução referida.

Implicitamente, não descurou que o bem jurídico aí protegido fosse a propriedade na ampla dimensão que este direito comporta, abarcando o gozo, a fruição e a disponibilidade das coisas.

A esse propósito, também, as considerações do recorrente são pertinentes, na esteira do que se escreveu naquele acórdão do STJ e do que a doutrina tem vindo crescentemente a sufragar.

Assim, apelando ao aludido acórdão, decorre, conforme citado pelo recorrente:

“Com efeito, «se em muitas circunstâncias na afectação de uma coisa, com ou sem des-apropriação, é a simples relação de propriedade que é ofendida pelo crime, porquanto coincidem no ofendido as qualidades de proprietário e fruidor do gozo (posse e mera posse) atinente às utilidades da coisa, não é menos certo verificar-se, em outros casos, uma separação ou um corte, juridicamente aceite e até tutelado, entre aquelas duas qualidades». Por isso, «em termos de lógica material, e não na base de uma pura e estéril relação jurídica formal, custe a admitir-se que, se entre o que tem a coisa e a própria coisa existe tão-só uma relação de mera posse, se diga que o bem jurídico violado tenha sido a propriedade.

Quem é ofendido na fruição das utilidades que da coisa podem ser retiradas é, [então], o mero possuidor. Daí que a relação jurídico-penalmente relevante seja a relação de gozo». Por outro lado, «se as qualificações legais têm ou podem ter um valor indiciário de correcção dogmática, não é menos verdadeiro não existir qualquer obrigação, para o intérprete, no sentido de seguir as orientações de qualificação dogmática, repete-se, do legislador». (cf., Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, t. II, pp. 30 e segs.).

A relação de gozo pode, pois, ser considerada como uma inequívoca realidade susceptível de protecção penal no âmbito de crime «contra a propriedade», ao lado ou concomitantemente com a relação típica ou jurídica formal de propriedade. A questão está em determinar «como qualificar aquela ou aquelas precisas relações», ou seja, se simples relações de facto com a coisa, especificamente implicadas na posse ou na mera posse ou, em outra perspectiva, «nas relações jurídicas decorrentes do direito de propriedade e nos direitos reais complexivamente considerados, ou em todos estes e ainda nos direitos pessoais de gozo».

A estrutura e a dimensão relacional entre a pessoa e a coisa para ter um mínimo de consistência e relevância juridicamente tutelada aponta para que o bem jurídico se identifique com uma especial relação de facto sobre a coisa — poder de facto sobre a coisa — tutelando -se, dessa maneira, a detenção ou mera posse como disponibilidade material da coisa; como disponibilidade da fruição das utilidades da coisa «com um mínimo de representação jurídica», quando esteja em causa uma «agressão ilegítima ao estado actual das relações, ainda que provisórias, dos homens com os bens materiais da vida na sua exteriorização material».

«Não tem sentido falar-se de que é protegida, in casu, a abstracção que o direito de propriedade qua tale, representa. Para ter valor dogmático, que não valor político-criminal, a noção de bem jurídico tem de ser vista como um pedaço da realidade merecedor de tutela jurídico-penal. Enquanto pedaço da realidade, não é tanto o direito de propriedade que interessa, mas antes a especial relação que intercede entre o detentor da coisa e a própria coisa. É esse pedaço relacional, essa especial ligação, esse domínio, que em princípio afasta o outro do gozo da própria coisa, que fazem com que essa concreta e viva relação seja objecto de tutela jurídico -penal. Se as mais das vezes essa relação está sustentada jurídico-civilmente pelo direito de propriedade, isto não significa que deva ser este o objecto de tutela.» (cf., Faria Costa, op. cit., pp. 31-32).”.

Deste modo, ainda com Faria Costa, ob. cit., pág. 32, pode considerar-se que o bem jurídico tutelado é a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica, em visão que desce à efectiva relação com a coisa, sem se limitar a formalidades conceituais de ordem civilista conducentes à restrição da titularidade da propriedade.

Dir-se-á, pois, que o bem jurídico em apreço é integrado, não só pela relação jurídico-formal de propriedade, mas também por direitos e interesses legítimos de uso, de gozo e de fruição da coisa, sendo que, por via disso, a determinação do ofendido na prática do crime não se basta com a aferição de quem seja o proprietário da coisa.

Sem prejuízo de que se deva adoptar um conceito estrito ou limitado de ofendido (cf. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra editora, 1974, págs. 509/510), como sendo aquele que particularmente é titular do interesse visado no tipo legal, isso não significa que tenha de ser titular de um específico direito, mas sim, do interesse em causa.

Como refere Faria Costa, ob. cit., pág. 33, claro que o legislador, pelo menos para efeitos da legitimidade quanto ao exercício do direito de queixa, elegeu, como figura central, e correctamente, acrescente-se, o titular do interesse que a incriminação quis proteger e não o titular do direito.

Todavia, esse interesse tem de assumir-se como directo e específico, sob pena de alargamento do conceito de ofendido que, crê-se, não foi querido pelo legislador.

Sobre isso, lê-se no acórdão em destaque:

“Efectivamente, «o ofendido [...] não é qualquer pessoa prejudicada com a perpetração da infracção, mas somente o titular do interesse que constitui o objecto jurídico imediato da infracção — [...] — os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os próprios e específicos daquele que requer a sua constituição como assistente.» (v. g., Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 145/06, de 22 de Fevereiro de 2006).

Há, assim, na integração conceptual uma marcada diferenciação qualitativa entre interesses directa e indirectamente (ou reflexamente) afectados pela incriminação como conditio da legitimidade do ofendido para exercer o direito de queixa.

Perante vários possíveis interesses legítimos que sejam postos em causa pela prática de uma infracção criminal, a lei reserva o conceito de «ofendido» para o titular dos interesses «especialmente» protegidos, com o sentido de interesses directa, imediata ou particularmente protegidos pelo tipo legal incriminador, ou seja, dos direitos ou interesses que constituem a razão directa e imediata, situada em primeira linha, que fundamenta a infracção criminal.”.

E acerca da relação de utilidade com representação jurídica, colhe-se do mesmo:

“Relação de utilidade, no entanto, com «representação jurídica», no sentido de juridicamente tutelada por instrumento ou modo consistente para o direito, que constitua o modelo de legitimação e de identificação dos direitos e inerentes poderes sobre a coisa.

As relações de facto sobre a coisa terão de estar enquadradas por um modo relevante para o direito, ou seja, por uma relação jurídica suficientemente precisa na definição dos direitos e consequentes poderes — a «representação jurídica».”.

E, mais adiante, “no que é relevante, o interesse protegido identifica-se com a garantia efectiva de preservação da substância ou da utilidade da coisa, e a concretização do interesse está, muito ou directamente, ligada com a natureza da agressão sobre a substância ou sobre a utilidade e funcionalidade que, em cada situação, ocorra em consequência da acção (…) e do resultado.”.

Revertendo à concreta situação:
A queixosa, VN, apresentou a queixa em nome próprio, aludindo à subtracção, na sua residência, das torneiras.

A propriedade da residência e das torneiras pertence a seus pais.

Esta circunstância, por si só, não afastaria a viabilidade de ser ofendida, dado que podem coexistir mais de um ofendido com a prática de um crime, uma vez que o sentido do advérbio «especialmente», desse art. 113.º, n.º 1, do CP, não é o de «exclusivamente», sob pena de desproporcional restrição, que a jurisprudência e a doutrina têm vindo a sublinhar.

Além de que, atentando na utilidade normal das torneiras e sua localização na residência daquela, se compreenderá, sem esforço, que VN (ainda que as torneiras estivessem num anexo à residência), tivesse sido afectada na fruição respectiva.

Contudo, essa relação de utilidade com as coisas carece de um mínimo de representação jurídica, uma vez que não legitimada por qualquer fonte senão a decorrente da situação familiar, sem outra acrescida concretização que permita, na circunstância, definir o seu interesse como directo ou especial.

Pese embora a pertinente argumentação expendida no recurso, entende-se que a alegada fruição e disponibilidade das utilidades que as torneiras proporcionavam à queixosa não assenta na sua titularidade de interesse particular que o tipo legal directamente proteja e, por isso, não deve ser considerada como ofendida com legitimidade para queixa pelo crime de furto.

De modo diverso, afigura-se que não se respeitaria a noção legal de ofendido, permitindo que este se confundisse, como no caso sucede, com aquele que apenas indirecta e reflexamente tinha essa fruição.

Em concreto, não obstante o invocado, esta é a interpretação que, conjugando e ponderando os aspectos relevantes, não põe em crise a fundada justificação da problemática inerente ao bem jurídico protegido em apreço, mas sem a dissociar da necessária adequação ao conceito de ofendido.

Bem andou, pois, o tribunal ao ter enveredado pela posição que fundamentou, redundando na extinção da responsabilidade dos arguidos.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:

- negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente,
- manter a sentença recorrida.

Sem custas, dada a isenção de que o recorrente beneficia.

Processado e revisto pelo relator.

Évora, 5 de Julho de 2016


Carlos Jorge Berguete

João Gomes de Sousa