Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
14/16.9ZCLSB.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: TRÁFICO DE PESSOAS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
CRIME CONTINUADO
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 10/18/2018
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSOS PENAIS
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Reunidos os pressupostos processualmente exigidos para a respetiva produção, as declarações para memória futura constituem um modo de produção de prova pessoal submetido a regras específicas, visando acautelar, bem vistas as coisas, o respeito pelos princípios estruturantes do processo penal, designadamente (e sobretudo) pelo princípio do contraditório, não se impondo a sua leitura em audiência de julgamento para que possam ser valoradas.

II – No crime de tráfico de pessoas, com diversidade de vítimas, está afastada a figura do crime continuado, por estarem em causa bens eminentemente pessoais
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO.

Nos autos de Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 14/16.9ZCLSB, da Comarca de Santarém (Juízo Central Criminal de Santarém - Juiz 4), e por acórdão datado de 21-09-2017, o tribunal decidiu:

“Termos em que julgam a acusação parcialmente provada e procedente e, em consequência:

Absolvem o arguido NB do crime de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo art. 183º nºs 2 e 3 da Lei 23/2007 de 04/07;

Absolvem o arguido NB do crime de angariação de mão-de-obra ilegal, p. e p. pelo art. 185º nºs 1 e 2 da Lei 23/2007 de 04/07; e

Absolvem o arguido UP do crime de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo art. 183º nºs 2 e 3 da Lei 23/2007 de 04/07;

Absolvem o arguido UP do crime de angariação de mão-de-obra ilegal, p. e p. pelo art. 185º nºs 1 e 2 da Lei 23/2007 de 04/07;

Absolvem a arguida E...,Lda. do crime de auxílio à imigração ilegal, P: e p. pelos arts. 182º nº 1 e 183º nºs 2 e 3 da Lei 23/2007 de 04/07;

Absolvem a arguida E...,Lda. do crime de angariação de mão-de-obra ilegal, p. e p. pelos arts. 182º nº 1 e 185º nºs 1 e 2 da Lei n.º 23/2007 de 04/07; e

Absolvem o arguido PSV do crime de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo art. 183º nºs 2 e 3 da Lei 23/2007 de 04/07;

Absolvem o arguido PSV do crime de utilização da atividade de cidadão estrangeiro em situação ilegal, p. e p. pelo art. 185º-A nºs 2, 4 e 5 da Lei nº 23/2007 de 04/07;

Absolvem a arguida HM, Lda. do crime de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo art. 183º nºs 2 e 3 da Lei 23/2007 de 04/07;

Absolvem a arguida HM, Lda. do crime de utilização da atividade de cidadão estrangeiro em situação ilegal, p. e p. pelo art. 185º-A nºs 2, 4 e 5 da Lei nº 23/2007 de 04/07;

Condenam o arguido NB como coautor material, em concurso real, de vinte e três crimes de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160º nº 1 als. b), c) e d) do Código Penal, nas penas parcelares de quatro anos de prisão, para cada um deles;

Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, condenam o arguido NB, na pena única de catorze anos de prisão;

Condenam o arguido UP como coautor material, em concurso real, de vinte e três crimes de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160º nº 1 als. b), c) e d) do Código Penal, nas penas parcelares de quatro anos de prisão, para cada um deles;

Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, condenam o arguido UP, na pena única de treze anos de prisão;

Condenam a arguida E...,Lda. pela prática, em concurso real, de vinte e três crimes de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 11º nº 2 al. a) e 160º nº 1 als, b), c) e d) do Código Penal, na pena de dissolução, nos termos dos arts. 90º-J e 90º-M do CP;

Condenam o arguido PSV como coautor material, em concurso real, de vinte e três crimes de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160º nº 1 als. b), c) e d) do Código Penal, nas penas parcelares de quatro anos de prisão, para cada um deles;

Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, condenam o arguido PSV, na pena única de catorze anos de prisão;

Condenam a arguida HM, Lda pela prática, em concurso real, de vinte e três crimes de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 11º nº 2 al. a) e 160º nº 1 als, b), c) e d) do Código Penal, na pena de dissolução, nos termos dos arts. 90º-J e 90º-M do CP;

Ao abrigo do disposto no art. 90º-M do CP, determinam a publicitação da presente decisão de determinar a dissolução das sociedades E…, Lda. e HM, Lda., no jornal de tiragem local, nesta cidade de Santarém e, ainda, num jornal de tiragem nacional, com a observância das formalidades previstas nos nºs 2 e 3 do citado art. 90º-M do CP.

Mais condenam os arguidos nas Custas, sendo a Taxa de Justiça para cada um deles, no montante equivalente a 6 Ucs, para cada um deles arts. 513º e 514º do CPP e art. 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais.

Boletins à DSIC.

Comunique à Conservatória do Registo Comercial e ao Registo Nacional de Pessoas Coletivas, a pena de dissolução das sociedades E..., Lda. e HM, Lda., agora imposta.

Julgam os pedidos cíveis e de reparação prevista no art. 82º-A do CP deduzidos nos autos parcialmente provados e procedentes e, em consequência:

Condenam solidariamente, todos os arguidos NB; UP; E…, Lda.; PSV e HM, Lda. a pagarem aos lesados RKS, BKP, KBT, SBA, SA, DRT, DK, PG, TBP, BRK, PJL, Dipak K, AB, KRS, PBB e TP, a título de indemnização por danos patrimoniais, as quantias que vierem a ser liquidadas em incidente próprio.

Condenam solidariamente, todos os arguidos NB; UP; E..., Lda.; PSV e HM, Lda. a pagarem a cada um dos lesados RKS; PG e TBP, as quantias € 5.000,00, a título de compensação por danos não patrimoniais.

Condenam solidariamente, todos os arguidos NB; UP; E..., Lda.; PSV e HM, Lda. a pagarem a cada um dos lesados BKP; KBT e SA as quantias de € 8.000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais.

Condenam solidariamente, todos os arguidos NB; UP; E..., Lda.; PSV e HM, Lda. a pagarem a cada um dos lesados SBA; DRT; DK; BRK; PJL; AB; KRS; PBB e TP, as quantias de € 2.500,00, a título de compensação por danos não patrimoniais.

Custas em cada uma das instâncias cíveis, referentes a cada um dos pedidos formulados, a cargo dos lesados e dos responsáveis civis, na proporção dos respetivos decaimentos, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido - art. 527º do CPC”.

Inconformados com a decisão condenatória, dela interpuseram recurso os arguidos NB, UP e PSV, formulando as seguintes conclusões:

A - Arguido NB.
1ª - O acórdão recorrido enferma de nulidade, por omissão de pronúncia (artigo 379º, nº 1, al. c), do C. P. Penal), uma vez que, na parte da fundamentação (na “motivação da decisão de facto”), pode ler-se que a motivação do tribunal se baseou ou nas declarações de arguidos e nos depoimentos de testemunhas, sem se especificar o conteúdo de tais declarações e depoimentos, ou na “análise comparada e conjugada” entre uns e outros, não se explicitando em que consistiu a análise ou a comparação.

2ª - Na fundamentação da matéria de facto alude-se ao conteúdo das declarações do arguido PSG (e ao depoimento dos pais do arguido SL, quando não existe nenhum arguido com tal nome), sendo que a análise dos depoimentos dos inspetores do SEF é quase sempre remetida para o conteúdo do anteriormente considerado provado nos factos nºs 1 a 5.

3ª - O mesmo sucede no tocante à fundamentação onde se considera, sem qualquer apreciação crítica, o conteúdo das declarações para memória futura (constantes de fls. 2128 a 2692 - mais de 500 páginas -).

4ª - De igual forma, quando, na fundamentação, se vem esclarecer, mais adiante, que a convicção do tribunal também radica nas declarações prestadas pelos arguidos NB e UP, acrescentando-se que as testemunhas ouvidas em depoimento para memória futura relataram de forma circunstanciada e em grande parte coincidente com as versões dos próprios arguidos, não se apontando qual a coincidência ou qual a “grande parte” da apontada coincidência.

5ª - Também na fundamentação (itens 116 a 128) se aponta unicamente o conteúdo dos depoimentos para memória futura e os depoimentos de três senhoras psicólogas, e, quanto ao item 128, a análise conjugada e comparada destas três psicólogas e a Srª Inspetora do SEF ACC, que terão descrito “desânimo daqueles trabalhadores”, mas não explicitando em que consiste a conjugação ou a comparação.

6ª - Na decisão recorrida existe, pois, uma insuficiência quanto à alegada razão de ciência dos intervenientes inquiridos na audiência, deixando o tribunal de se pronunciar sobre questões pertinentes para a validade da prova produzida, ou seja, a explicação ou análise crítica das provas produzidas que determinaram a condenação, tendo, por isso, sido cometida uma omissão de pronúncia (que configura nulidade - artigo 379º, nº 1, al. c), do C. P. Penal -).

7ª - O acórdão recorrido enferma de nulidade, por excesso de pronúncia (artigo 379º, nº 1, al. c), do C. P. Penal), porquanto, sob o item 112 da matéria de facto, considera-se provado que o arguido NB já vinha desenvolvendo (juntamente com outro arguido) esta atividade anteriormente.

8ª - Ora, o conteúdo dessa matéria de facto carece, em absoluto, de suporte fáctico, pois que nenhum suporte probatório é encontrado pelo tribunal para sustentar tal imputação.

9ª - O acórdão recorrido enferma de nulidade, por insuficiência de fundamentação (insuficiência de exame crítico da prova - artigos 374º, nº 2, e 379º, nº 1, al. a), do C. P. Penal -), pois que devia o tribunal recorrido, em sede de fundamentação, proceder ao exame crítico da prova, ou seja, elaborar uma exposição completa dos motivos (de facto e de direito) que fundamentaram a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, o que o tribunal não fez, violando, assim, o disposto no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal.

10ª - O arguido ora recorrente não assistiu aos depoimentos para memória futura, embora a estes tenha assistido um Ilustre defensor, o qual, na verdade, não se encontrava em condições de poder assegurar a defesa.

11ª - Os depoimentos para memória futura constantes dos autos violam assim o princípio do contraditório, constituindo um meio enganoso de prova, sendo prova proibida, nos termos do artigo 126º, nº 2, al. a), do C. P. Penal.

12ª - O artigo 271º, nº 3, do C. P. Penal, se interpretado no sentido (com a dimensão normativa) de que o defensor nomeado ao arguido pode nunca ter tido contacto com este, encontra-se ferido de inconstitucionalidade material, por violação do artigo 32º, nºs 1, 3 e 5, da Constituição da República Portuguesa, e dos princípios gerais de defesa dos arguidos, constitucionalmente consagrados, neles se incluindo o princípio do contraditório.

13ª - Ao não decidir inquirir os cidadãos nepaleses que prestaram depoimento para memória futura, o tribunal violou o preceituado no artigo 355º do C. P. Penal, uma vez que deveria ter optado pela sua audição, nos termos do disposto no artigo 340º, nº 1, do mesmo diploma legal.

14ª - O arguido ora recorrente cometeu um crime de tráfico de pessoas, na sua forma continuada, e não 23 crimes autonomizados, uma vez que o seu agir ilícito provém de uma só resolução criminosa, no quadro de uma só solicitação e de uma mesma situação exterior.

15ª - A pena aplicada ao arguido ora recorrente (14 anos de prisão) é exagerada e desproporcionada para o caso dos autos, tenho o acórdão recorrido violado o disposto nos artigos 40º, nº 2, e 71º do Código Penal.

16ª - Tudo bem ponderado, a pena a aplicar ao arguido ora recorrente não deverão exceder os 5 anos de prisão, tanto que o relatório social efetuado até refere que a atuação ilícita deste arguido constituiu um caso isolado na sua vida, sendo, por isso, possível a aplicação do regime de prova, conforme o disposto no artigo 53º do Código Penal (suspensão da execução da pena de prisão, com sujeição a regime de prova).

B - Arguido UP.
1ª - Ocorre nulidade do julgamento, já que foram valorados os depoimentos para memória futura dos vinte e três (23) ofendidos/trabalhadores, vítimas de tráfico de pessoas, sem o necessário direito ao contraditório.

2ª - Com efeito, tais depoimentos foram prestados em sede de inquérito, e nem sequer foram reproduzidos em sede de discussão e julgamento, como o deveriam ter sido.

3ª - Não houve o necessário contraditório, o que, em bom rigor, deveria ter sucedido, já que o douto tribunal entendeu que essas testemunhas/ofendidos não poderiam prestar depoimento, dado o seu estatuto de assistentes.

4ª - Sabemos que o depoimento para memória futura visa salvaguardar os testemunhos de pessoas que se podem “ausentar” do país, questão que aqui estaria prejudicada à partida, já que estes cidadãos nepaleses nunca se ausentaram - nem queriam -, pelo contrário, foi-lhes concedida a autorização de residência, por força da sua “colaboração” com o SEF, como de uma encapotada “dilação premiada” se tratasse.

5ª - A verdade é que esses depoimentos não puderam ser contraditados, nem os seus depoentes foram ouvidos em sede de audiência de julgamento, e nem mesmo esses depoimentos para memória foram reproduzidos em sede de discussão e julgamento.

6ª - Quod non est in actiis, nom est in mundi (o que não está nos autos não existe).

7ª - Consequentemente, e em circunstância alguma, os aludidos depoimentos para memória futura poderão ser usados, nos presentes autos, como prova válida.

8ª - Com efeito, os direitos constitucionalmente consagrados da reserva da intimidade da vida privada e da privacidade das comunicações são invioláveis, a todos vinculam, e importa respeitá-los.

9ª - No caso dos autos, nem sequer é possível avaliar se os mesmos foram minimamente respeitados nas iniciais interceções autorizadas no processo.

10ª - O que acarreta a sua nulidade, nos termos do disposto nos artigos 187º, 188º e 189º do CPP, e 32º, nºs 1 e 8, 34º, nºs 1 e 4, da CRP, estes preceitos de aplicação imediata, ex vi artigo 18º da mesma Lei Fundamental.

11ª - O que implica também a nulidade de toda a prova posteriormente recolhida, devido ao chamado efeito à distância, já que foi obtida a partir de provas proibidas.

12ª - O mesmo princípio está salvaguardado no artigo 327º do CPP, ao ressalvar-se que os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao princípio do contraditório.

13ª - No caso dos autos, resulta violado o princípio do contraditório, logo deve ser declarado nulo o Julgamento.

14ª - Quanto à qualificação jurídica, levanta-se a questão da inexistência do crime de “tráfico de pessoas”, pelo menos no que ao aqui arguido UP concerne.

15ª - É que, por força da matéria de facto considerada provada pelo tribunal a quo, encontra-se o recorrente UP condenado pela prática de um crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos artigos 160º, nº 1, b), c) e d), do C. P., na pena de 13 anos de prisão, quando tal crime nem sequer existe.

16ª - O tráfico de pessoas é um crime que tem a ver essencialmente com a liberdade e a dignidade humanas.

17ª - Conforme decorre do próprio artigo 160º do CP, incorre neste crime aquele que (...) oferecer, entregar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extração de órgãos ( .. .), através de ardil ou manobra fraudulenta, com abuso de autoridade, de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar; ou aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima.

18ª - No caso sub judice entendeu-se que existiu um “ardil ou manobra fraudulenta”, já que os arguidos prometiam que se os assistentes trabalhassem naquelas condições poderiam obter a Autorização de Residência. E isto sabendo nós que o “ardil ou manobra fraudulenta” é a ação pela qual o agente engana outrem sobre o significado, o propósito e as consequências da sua ação.

19ª - Neste ponto crucial, para criminalizar a conduta do arguido UP, não se percebe onde se pode subsumir a conduta deste arguido a este tipo de crime, quando o próprio arguido acreditava que, tendo um contrato de trabalho e descontando para a Segurança Social, lhe seria permitido igualmente obter o ambicionado titulo de Residência, já que estava exatamente nas mesmas condições e expectativas que os outros 23 trabalhadores.

20ª - Aliás, o arguido ora recorrente tinha um agendamento para o dia 18-11-2016, pelas 11h00m, no Posto de Atendimento DR Lisboa, no SEF, relacionado com a sua Autorização de Residência.

21ª - O ora recorrente foi condenado só porque trabalhava diretamente com o seu patrão, numa dependência hierárquica, e era amigo dele, como se fosse possível tal interpretação extensiva e como se a culpa fosse transmissível por osmose.

22ª - Além disso, para existir crime teria que haver dolo, ou seja, a intenção de o arguido cometer aqueles factos criminosos, o que nunca existiu.

23ª - Nem se percebe como, se foi dado como provado que o ora recorrente trabalhava sob ordens e instrução do arguido NB. A verdade é que, ao contrário do afirmado no acórdão recorrido, o arguido não obteve qualquer lucro com a sua alegada atuação, a não ser exercer a sua atividade de administrativo da sociedade arguida E..., e daí o seu salário ser o resultado do seu trabalho, que era legítimo e devido.

24ª - Nada do tipificado no crime acusado sucedeu: os ofendidos podiam deixar de trabalhar quando bem entendessem, já que ninguém os impedia disso ou os retinha contra a sua vontade; em momento algum lhes foi retido qualquer tipo de documentação pessoal; nunca houve qualquer ameaça de represálias ou do que quer que seja; as condições de alojamento, tão debatidas, eram de carácter provisório, e porque os ofendidos não queriam pagar o preço de arrendamento de apartamentos, e se os que lhes era retirado do seu ordenado era exagerado ou não, nunca foi decisão do ora recorrente, já que não tinha voto na matéria, nem era ele que retirava o que quer que fosse; o mesmo sucedia com a alimentação, pois o ora recorrente, simplesmente, ia levar mantimentos, quando era ordenado pelo seu patrão, não por sua iniciativa ou com o propósito de obter para si qualquer lucro; na realidade, tudo o que fez foi na base de uma relação de dependência hierárquica de patrão-empregado;

25ª - Posto isto, entende o recorrente que erra o tribunal a quo quando o condena pelo crime de tráfico de pessoas.

26ª - Está errada a condenação do ora recorrente por 23 crimes, de forma autónoma, pois que, quando muito, estaríamos perante um crime na forma continuada, e o próprio JIC assim o entendeu em sede de “primeiro interrogatório”, quando, no despacho de aplicação das medidas de coação, “reduziu” esses 23 crimes a um único.

27ª - Nesta conformidade, caso se entenda condenar o arguido ora recorrente, deveria também aqui o recorrente ter visto a sua pena especialmente atenuada nos termos do nº 2 do artigo 23º do CP, com a redução dos limites máximo e mínimo da pena, em consonância com o disposto no artigo 73º do CP, o que não aconteceu, já que última instância, a conduta do arguido é muito menos grave do que a dos restantes arguidos - e diz-se isto só no plano meramente comparativo - já que a dar-se como provado tudo, não se vê qualquer diferenciação de penas na diferença mínima de um ano.

28ª - Decidindo como decidiu, o tribunal a quo violou claramente as normas constantes dos artigos 22º, 23º, 71º, 72º, 73º e 160º, nº1, als. b), c) e d), do CP.

29ª - Para a prova dos factos não bastam meras suposições, cenários hipotéticos, descrições genéricas (não concretizadas), ou presunções não confirmadas, mas deduzidas pelo tribunal.

30ª - Certas conclusões do tribunal são mais resultado de uma interpretação extensiva e abstrata, de quem a faz, do que a aplicação de regras da experiencia.

31ª - Assim, ocorre insuficiência de prova, designadamente ninguém falou do lucro que alegadamente o ora recorrente teve ou teria, e nem sequer foi vertida, no acórdão recorrido, qualquer prova nesse sentido.

32ª - Existe, por isso, insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova

33ª - O ora recorrente deve ser absolvido da prática do crime de tráfico de pessoas.

34ª - Não foi feita qualquer prova, em audiência de discussão e julgamento, sobre o crime de tráfico de pessoas, tendo sido violado o preceituado no artigo 355º do C. P. Penal.

35ª - Ou, no mínimo, foi violado o princípio in dubio pro reo.

36ª - O tribunal julgou incorretamente os pontos números 13, 23 a 27, 35, 57, 68, 71, 85 a 88, 91, 95 e 96, 99 a 114, dos factos provados - crime de tráfico de pessoas -.

37ª - Pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados: pontos 13 e 17; 71 e 72; 96 e 97; 101 e 111 e 102; 137 e 151, da matéria dada como provada, existindo nítidas contradições na matéria dada como provada, logo dizem-nos as ditas “regras da experiência”, que, então, no caso vertente, seria pacífico interpretar que o arguido não ganhou nada com o supostamente alegado e dado como provado em sede de acórdão, sendo certo que nem isso teria que o provar, já que o ónus dessa prova pertence à acusação, e, nesse sentido, nada foi feito que possa demonstrar que tenha beneficiado um cêntimo que seja, nada mesmo.

38ª - A primeira contradição, entre os pontos 13 e 17, já que, dá-se como provado no ponto 13 que “o arguido NB e, sob suas ordens e instruções, o arguido UP, em representação ou em nome da arguida E...,Lda., estabeleceram contacto e contrataram, através desta empresa arguida, cada um daqueles cidadãos nepaleses, quando estes se encontravam em território nacional”.

39ª - Mas que entra em contradição com o ponto 17 que diz: “NB celebrou com cada um deles, por si mesmo ou através do seu empregado, UP, ambos em representação e no exercício da atividade diária da arguida E...,Lda., contratos de trabalho, redigidos em língua portuguesa”.

40ª - Ou seja, afinal quem contratava não era o arguido UP, mas sim o arguido NB, face à sua situação de gerente e sócio da arguida E....

41ª - Outra contradição se verifica entre os pontos 95, 96, 101 e 111 com o ponto 102.

42ª - Veja-se: no ponto 95 diz-se que “ambos os arguidos NB e UP se aproveitaram das circunstâncias, por si conhecidas, de estes cidadãos nepaleses não compreenderem a língua portuguesa, nem conheciam a legislação portuguesa e de precisarem de trabalhar e de ganhar dinheiro para si próprios e para as suas famílias, para celebrarem com cada um deles um contrato de trabalho, fazendo-os assinar um documento escrito em português, com cláusulas cujo teor é completamente desconhecido por cada um daqueles cidadãos nepaleses”.

43ª - No ponto 96 diz-se que “Os arguidos atuaram com a intenção de obterem proventos monetários para si próprios e para a E...,Lda. (...), resultantes da prestação de trabalho por estes trabalhadores nepaleses”.

44ª - No ponto 101: “Bem como, no caso dos arguidos NB e UP, do engano que neles causaram ao fazê-los crer que o facto de os contratarem os auxiliava no seu processo de legalização, para obterem ilicitamente lucros para si mesmos”.

45ª - E no ponto 111: “Atuando sempre com uma intenção lucrativa para si e para as empresas de que são sócios gerentes e funcionário.

46ª - Mas que entra em contradição com o ponto 102: “Por seu lado, os arguidos NB e UP, agindo no propósito concretizado de obtenção de lucro para o primeiro e para a sociedade E...,Lda”.

47ª - Ou seja: tudo o que fez o aqui Recorrente foi sempre sob ordens e instruções e ordens do arguido NB e no interesse do arguido NB (seu patrão) e a E...,Lda, sua entidade empregadora e nunca em benefício próprio.

48ª - A última contradição, é a existente entre os pontos 137 e 151 da matéria dada como provada.

49ª - Veja-se: é dado como provado no ponto 137 que “Tendo em mente a obtenção de título de residência”, criando a ideia que era esse o objetivo, e que sabia que não poderia conseguir a AR e, no ponto 151 diz-se que “Não conseguiu regularizar a sua permanência em Portugal”.

50ª - Ora, tal não é correto, já que o arguido tinha um agendamento para Novembro/16, relacionado com a sua possível AR, não havendo ainda qualquer decisão definitiva sobre essa questão. E este ponto é importante, por causa da tal questão inerente ao tráfico de pessoas - o ardil que criaram nas expectativas dos 23 trabalhadores - já que, á semelhança desses 23 trabalhadores/ofendidos, o arguido também acreditava que poderia obter essa AR.

51ª - Não existe qualquer prova, digna desse nome, além dos depoimentos para memória futura e das regras da experiência.

52ª - Não se nega que possa haver indícios (não conclusivos), mas daí a retirar-se a conclusão que os arguidos tenham atuado da maneira descrita é ilação exagerada, quando se sabe que, no caso vertente, face às incertezas de certos factos, nomeadamente a questão laboral de dependência hierárquica do arguido UP ao arguido NB, tal implicaria, aqui, que deveria ter imperado o princípio in dubio pro reo.

53ª - Deste modo, violou-se o princípio in dubio pro reo e violou-se também o artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o princípio da presunção da inocência.

54ª - Já que os indícios que existem são insuficientes para condenar o ora recorrente, e, muito menos, para se ter a certeza que os arguidos, no que concerne ao crime de tráfico de pessoas, “terão agido de comum acordo e em conjugação de esforços e vontades”.

55ª - Assim, só resta um resultado: absolvição, por falta de prova e pelas dúvidas que forçosamente se colocam.

56ª - Há que pôr em dúvida a racionalidade e a coerência do juízo (ou processo lógico-indutivo) que terá conduzido à convicção dos julgadores, ponderado que terá sido o conjunto de toda a prova produzida, na estrita obediência ao mandamento do artigo 127º do C. P. Penal.

57ª - A decisão recorrida não oferece detalhes do raciocínio dos julgadores, que permitam aferir da sua coerência lógica.

58ª - Os elementos concretos de prova, disponíveis nos autos, e no que concerne ao ora recorrente, não apoiam, de forma cabal e segura, a conclusão decisória.

59ª - As provas que impõem decisão diversa da recorrida: não resultaram provas que o arguido ora recorrente tenha atuado na forma descrita e em conluio com os coarguidos.

60ª - O acórdão recorrido enferma do vício prevenido no artigo 410º, nº 2, al. a), do Cód. Proc. Penal: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

61ª - O vício previsto no artigo 410º, nº 2, al. a), do Cód. Proc. Penal, pode ser conhecido se resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

62ª - O tribunal julgou incorretamente os pontos números 13; 23 a 27; 35; 57; 68; 71; 85 a 88; 91; 95; 96;99;110 a 102, e 109 a 114, dos factos provados, condenando indevidamente o arguido pela prática de um crime de tráfico de pessoas, violando o princípio in dubio pro reo e violando também o artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o princípio da presunção da inocência.

63ª - Em suma: o recorrente deve ser absolvido da prática do crime de tráfico de pessoas.

64ª - O acórdão recorrido enferma do vício do erro notório na apreciação da prova, não se percebendo a condenação do arguido ora recorrente quanto ao crime de tráfico de pessoas, face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento.

65ª - Mal andou o tribunal quando, erradamente, deu como provado um crime que nunca existiu (pelo menos no que ao arguido aqui recorrente concerne).

66ª - Aliás, parece que, praticamente, o que serviu de suporte à convicção do tribunal foi a acusação, os depoimentos dos ofendidos para memória futura e as “regras de experiência”.

67ª - Existem várias contradições que deveriam levar à aplicação do princípio in dubio pro reo – nomeadamente nos factos dados como provados sob os nºs 13 e 17; 71 e 72; 96 e 97; 101 e 111 e 102; 137 e 151.

68ª - Aqui deparámos com um “erro notório”. É jurisprudência corrente no S.T.J. que existe erro notório na apreciação da prova, vício previsto na al. c) do nº 2 do artigo 410º do CPP, quando se dão como provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica do homem médio, não se teriam podido verificar.

69ª - Por outro lado, como é entendimento pacífico face à expressa e inequívoca exigência da lei (artigo 410º, nº 2, citado), este vício tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Ora, no caso vertente, além de não haver nenhuma prova cabal no sentido de que o arguido tenha cometido um crime de tráfico de pessoas, também não há ninguém que o diga com toda a certeza, a não serem as convicções criadas pelo raciocínio formulado pelo tribunal de 1ª Instância, resultantes das “regras da experiência”.

70ª - Com base na matéria dada como provada consegue-se deduzir - pelo menos é o que resulta da leitura e análise dos pontos 13 e 17; 71 e 72; 96 e 97; 101 e 111 e 102; 137 e 151, da matéria dada como provada - que existem nítidas contradições na matéria dada como provada, logo dizem-nos as ditas “regras da experiência” que, então, no caso vertente, seria pacífico interpretar que o arguido não ganhou nada com o supostamente alegado e dado como provado em sede de acórdão, sendo certo que nem isso teria que o provar, já que o ónus dessa prova pertence à acusação e, nesse sentido, nada foi feito que possa demonstrar que tenha beneficiado um cêntimo que seja.

71ª - Mais: socorrendo-nos das regras da experiência e da lógica do homem médio, face aos elementos carreados para os autos e ao tipo de crime em questão, não é minimamente previsível que os factos pudessem ter sucedido como o tribunal concluiu e afirmou no acórdão, pelo menos sem uma prova mínima a sustentar essa convicção.

72ª - Assim, no caso em apreço, é manifesto o erro que o recorrente põe em causa tem a ver com este vício elencado no artigo 410º, nº 2, do CPP, o que transparece do texto da decisão recorrida, quer por si só quer conjugada pelas regras da experiência.

73ª - Quanto à medida da pena, entendemos que a pena aplicada ao crime de tráfico de pessoas foi exagerada e inadequada, tendo em atenção o que se passa na normalidade das decisões aplicadas nos tribunais.

74ª - Ora vejamos: (13) treze anos de prisão para (23) vinte e três crimes de tráfico de pessoas, em cúmulo jurídico, entendemos ser exagerado para o caso.

75ª - É que, se atentarmos ao grau de participação dos três arguidos – UP, NB e PSV – parece-nos que a diferença de apenas de um ano de prisão nas penas é IRRELEVANTE e DESPROPORCIONAL.

76ª - Esta circunstância (o grau de participação de cada um dos arguidos) é importantíssima e dever-se-á ter em conta na aplicação da medida da pena, o que parece não foi feito no caso dos autos, já que a pena é elevadíssima, talvez se entendendo pela pressão mediática do caso e, assim, fazer deste caso um caso exemplar em termos da medida da pena.

77ª - Assim, houve um desfasamento em desfavor do ora arguido, sendo igualmente certo que a referida pena de prisão efetiva do arguido poderia ter sido mais baixa, e suspensa na sua execução (entendendo-se até que estamos perante um único crime de tráfico de pessoas e não perante 23).

78ª - É que, se fizermos uma comparação com a pena a que os arguidos foram sujeitos, facilmente se verifica que a mesma é desproporcional e injusta em comparação com outros processos idênticos, e dizemos isto em termos meramente comparativos, muito mais no caso do aqui arguido, face aos restantes arguidos, em que só mediou uma diferença de um ano a favor do arguido.

79ª - Assim, a pena aplicada é exagerada e inadequada, não tendo sido levados em consideração os critérios enunciados no nº 2 do artigo 71º do CP, nomeadamente no que diz respeito ao disposto na sua alínea d).

80ª - A própria condição pessoal do agente é de molde a decidir-se por medida que contribua para a reintegração e não para a segregação, cumprindo-se assim o disposto no artigo 40º do CP.

81ª - Tão pouco foram levadas em consideração as circunstâncias pessoais que, depondo a favor do recorrente, concorriam para uma suspensão da pena.

82ª - O doseamento da pena arbitrada pelo tribunal a quo denuncia uma nítida violação do princípio da proporcionalidade das penas.

83ª - A este respeito, foram violadas as seguintes normas constitucionais: nº 2 do artigo 32º, nº 6 do artigo 29º e nº 4 do artigo 30º da Constituição da R. Portuguesa.

84ª - Estão reunidas as condições de facto e de direito para uma efetiva atenuação da pena e a sua eventual suspensão.

85ª - É forçoso colocar a hipótese de suspensão da pena, ao abrigo do artigo 50º, nº 1, do CP, concluindo-se, como pugnamos, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão efetiva, aliada a um rigoroso regime de prova, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

86ª - Quanto aos PICs formulados pelos ofendidos, por tudo o atrás dito, e face ao entendimento por nós perfilhado de que o arguido não cometeu nenhum crime, entendemos que os mesmos estão assim prejudicados.

87ª - Sendo que acreditamos na inocência do arguido UP e na sua ABSOLVIÇÃO.

Nestes termos deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão recorrido e, em última instância, sendo-lhe reduzida a sua pena, e aplicada a figura da suspensão da pena, nos termos e para os efeitos do artigo 50º do CP.

C - Arguido PSV.
1ª - A decisão recorrida enferma de vícios, revela manifestos erros de julgamento, e procede a erradas conclusões de Direito (quer no que toca ao número de crimes praticados, quer quanto ao preenchimento do elemento objetivo do tipo de crime por que condena o recorrente, quer no que concerne às medidas das penas parcelares e única, e quer no que toca à condenação no pagamento de danos patrimoniais).

2ª - A decisão recorrida enferma da nulidade prevista no art. 379º/1/a) do C.P.P. – por falta/insuficiência de fundamentação.

3ª - Na verdade, o acórdão recorrido não indica quais os elementos de prova que serviram para fundamentar a convicção do tribunal no que concerne aos factos dados como provados entre 59 e 95 – muito menos expondo o caminho lógico que levou à formação de tal convicção.

4ª - Pois que, “salta” da análise/fundamentação da factualidade que deu como provada entre 56 a 58 para a que deu como provada entre 96 e 114.

5ª - O que acaba por relevar também para os factos provados entre 96 e 114, visto que estes foram dados como provados por presunção, tendo por base, também, os factos provados entre 59 e 95.

6ª - Ora, faltando a fundamentação em causa, evidente se torna a existência da referida nulidade – que deve ser declarada, com as necessárias consequências.

7ª - Enferma ainda o acórdão recorrido dos vícios previstos em duas das alíneas do art. 410º/2 C.P.P.

8ª - Desde logo, enferma do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.

9ª - Pois que, no que concerne à personalidade do Recorrente e às suas condições pessoais (até contrariamente ao que sucedeu com os coarguidos NB e UP), o tribunal recorrido não dá como provado qualquer facto.

10ª - Isto porque, salvo melhor entendimento, se furtou a garantir que teria na sua posse elementos suficientes que lhe permitissem dar como provados factos atinentes a tais matérias – indispensáveis em caso de condenação, seja nos termos do art. 40º/2 C.P., seja nos termos do art. 71º/2/d) C.P.

11ª - É verdade que consta de ofício de fls. 2693 que o Recorrente não compareceu às entrevistas que se deveriam realizar nos dias 23 e 30 de Março para elaboração do relatório social.

12ª - Não obstante, não procurou, sequer, o tribunal recorrido perceber o porquê dessa não comparência (cujos motivos podiam até estar subtraídos à vontade do Recorrente) – também não procurando promover a dita elaboração durante a fase de julgamento.

13ª - Como não procurou, através da prova testemunhal produzida (concretamente dos pais do Recorrente) ou questionando diretamente o Recorrente (que não só esteve presente em todas as seis sessões de julgamento, como prestou extensas declarações), colmatar a falta de relatório social.

14ª - Ora, como entende a jurisprudência citada no corpo do presente recurso, ao proferir decisão condenatória com omissão de factos relevantes para a determinação da sanção, tal decisão está ferida do vício plasmado no art. 410º/2/a) C.P.P. – o qual deve ser declarado e expurgado nos termos do art. 426º/1 C.P.P.

15ª - Mas a decisão recorrida enferma ainda do vício ínsito na alínea b) do referido art. 410º/2 C.P.P.

16ª - Concretamente, porque existe contradição insanável – e que resulta expressamente do texto daquela decisão – entre o que foi dado como provado em 47 e 49 e em 50 a 53.

17ª - Pois que dar-se simultaneamente como provado que “não havia água canalizada” (facto 47) e que “Não era fornecida água aos trabalhadores” (facto 49) é manifestamente contraditório com dar-se também como provado que tais trabalhadores utilizavam, para beber, tomar banho, cozinhar ou despejar a sanita água que também servia o sistema de rega da herdade e água “contida num depósito ali existente” (factos 50 a 53).

18ª - Ora, para sanação deste vício, como entende pacificamente a jurisprudência e a doutrina, já é possível lançar-se mão da prova produzida – sob pena de ter que se proceder ao reenvio nos termos do art. 426º/1 C.P.P.

19ª - E os elementos de prova consistentes nas declarações do Recorrente, do seu coarguido NB e nas declarações para memória futura prestadas pelos 23 cidadãos nepaleses permitem concluir que, efetivamente, ERA FORNECIDA ÁGUA e que HAVIA ÁGUA CANALIZADA.

20ª - Pelo que, firmando V. Exas. a existência do vício ora em apreço, deverão, para sua sanação, passar os factos 47 e 49 para a factualidade dada como não provada.

21ª - Além destes vícios, é entendimento do Recorrente que inúmeros dos factos dados como provados (pelo menos quanto a si) foram incorretamente julgados.

22ª - Em concreto, foram incorretamente julgados os factos provados em: 37, 46 a 50, 53, 62, 63, 78, 84, 99, 100, 103 a 110 e 113.

23ª - Quanto aos elementos de prova que impunham que tais factos fossem julgados de forma diversa da constante do acórdão recorrido, são eles as declarações do Recorrente, as declarações do arguido NB, as declarações do arguido UP, os depoimentos das testemunhas AR, OR e TMF, os contratos de prestação de serviços celebrados entre E... e HM de apenso B e as declarações para memória futura prestadas pelos 23 cidadãos nepaleses transcritas em apensos de transcrição JurisHelp de dias 11, 12, 13 e 14 de Julho de 2016.

24ª - Começando pelos factos provados em 99, 100, 103 a 110 e 113.

25ª - Estes factos, que, na nossa ótica, acabam por ser os mais relevantes para que tenha sido decidida a condenação do Recorrente, como consta do acórdão ora sob escrutínio, foram dados como provados, não com base em prova direta, mas com base em presunções judiciais – que o tribunal a quo refere ter retirado da demais factualidade que deu como provada.

26ª - Porém, a prova por presunção judicial obedece a apertados critérios que, salvo melhor entendimento, não se verificam in casu.

27ª - Primeiro, o raciocínio presuntivo tem que ser lógico e razoável, assentando na “experiência comum”; depois, exige-se uma relação direta, segura e imediata entre os factos conhecidos e os que se pretendem provar por presunção e que o operar da presunção conduza a uma única conclusão e não múltiplas possibilidades; finalmente, a presunção não pode contrariar o princípio do in dubio pro reo.

30ª - Quanto ao Recorrente saber que os cidadãos nepaleses estavam ilegalmente em Portugal, dir-se-á que não resulta de qualquer dos demais factos dados como provados.

31ª - Não se perca de vista que se deu como provado que foi a E... (através dos coarguidos com ela relacionados) quem contratou os ditos cidadãos e com eles celebrou contratos de trabalho, sendo também a E... que, ao abrigo do contrato de prestação de serviços celebrado com a HM, colocou tais trabalhadores nas estufas do Recorrente.

32ª - Ademais, eram os coarguidos NB e UP (não o Recorrente) quem mantinha contacto regular com tais cidadãos, bem como eram aqueles que tinham conhecimento que os trabalhadores tinham vontade e esperança em obter uma autorização de residência em Portugal, tendo-lhes prometido, embora bem sabendo que não correspondia à verdade, que a conseguiriam se aceitasse trabalhar para a E..., sabendo que esses cidadãos haviam chegado a Portugal contornando a legislação nacional e europeia e tendo-lhes dito, após a primeira fiscalização do SEF, para não se preocuparem e para não revelarem as suas condições de vida (factos provados 85, 88 a 91, 93 e 94).

33ª - Sendo que a prova produzida até vai em sentido contrário.

34ª - Vejam-se as declarações do Recorrente, do coarguido NB e da testemunha OR (todas concretamente identificadas no corpo do presente recurso) e as declarações para memória futura transcritas nos apensos de transcrição de declarações para memória futura dos dias 11, 12, 13 e 14.

35ª - Mas a presunção de que o Recorrente sabia tratarem-se de emigrantes iligais também contraria as regras da experiência comum.

36ª - Pois que, se o Recorrente soubesse tal facto, com certeza que entre a primeira e a segunda inspeção do SEF (efetuadas em Maio e Junho de 2016) teria retirado da sua herdade todos os cidadãos nepaleses que aí laboravam – o que não se verificou.

37ª - Na verdade, resulta da experiência comum que se alguém labora com trabalhadores ilegais e é alvo duma inspeção do SEF, ao invés de manter tais trabalhadores e de modo a furtar-se a qualquer responsabilidade criminal ou laboral, vai mandá-los imediatamente embora.

38ª - Mais, diz-nos a experiência comum que se alguém contrata, como fez o Recorrente, uma empresa de trabalho (devidamente registada e a operar num dado sector do mercado), seguindo os mais elementares princípios da boa-fé contratual, não vai duvidar que os trabalhadores que tal empresa forneça tenham a sua situação regularizada, bem como sejam tecnicamente aptos a desempenhar a tarefa para que são pretendidos.

39ª - Do exposto, resulta que, neste particular, não podia operar a presunção de que o tribunal recorrido se socorreu para dar a respetiva factualidade como provada, porquanto não era direto, nem seguro (até menos verosímil que a alternativa), que o Recorrente soubesse que se tratavam de cidadãos ilegalmente em Portugal – pelo que tinha que ter valido a presunção de inocência.

40ª - O mesmo quanto à existência dum plano prévio traçado entre o Recorrente e os demais coarguidos para que aquele acolhesse nos anexos às suas estufas os cidadãos nepaleses, para explorar o seu trabalho.

41ª - Tal plano NÃO RESULTA DOS DEMAIS FACTOS PROVADOS.

42ª - O Recorrente (no seu depoimento identificado e transcrito acima) nega-o e explica que nunca combinou encarregar-se de alojar os ditos cidadãos, antes, fê-lo apenas porque constatou que estes não tinham onde pernoitar e para não os deixar ao relento – assim acedendo a que, provisoriamente e até que a E... arranjasse uma solução, permanecessem nos referidos anexos.

43ª - O que só é reforçado pela prova produzida no sentido dos cidadãos nepaleses poderem livremente abandonar a herdade do Recorrente e irem trabalhar para outros locais – como resulta cabalmente quer dos depoimentos do coarguido NB e da testemunha AJR (concretamente identificados e parcialmente transcritos no corpo da presente peça recursiva), quer do que foi declarado em sede de declarações para memória futura por SBA, SA, TBP ou PBB (tendo-se supra especificamente identificado as concretas os concretos apensos e respetivas folhas onde se encontram transcritos os depoimentos destes cidadãos nepaleses).

44ª - Mas da leitura das transcrições dos depoimentos para memória futura, constata-se que não foi perguntado aos depoentes uma questão que era essencial para que se alcançasse a verdade material. A saber, se aceitaram ou não ficar nos anexos.

45ª - Pelo que tinha o tribunal recorrido que ter ido mais fundo no esclarecimento desta matéria, até tendo em conta o teor dos depoimentos do Recorrente e do coarguido NB.

46ª - Sendo que, por tudo o exposto, tinha que se ter conformado com o princípio do in dubio pro reo, dando tal facto (ou parte de facto) como não provado – uma vez que, de acordo com tal princípio, se da análise dos factos conhecidos e da prova produzida se perfilharem como possíveis, no tocante ao facto desconhecido, diversas possibilidades, então terá que se optar pela mais favorável ao arguido.

47ª - Até porque se esse plano existisse, não se compreenderia que o Recorrente tivesse tentado (como afirmou) encontrar/contratar trabalhadores sem ser através da E... – nomeadamente através do Centro de Emprego.

48ª - Ora, tendo o Recorrente deposto no sentido de ter feito essa procura (o que, na sua fundamentação, o tribunal recorrido não refere não lhe ter merecido credibilidade), então tinha que ter daí retirado as devidas consequências.

49ª - Ou, no limite, tinha que ter ordenado as diligências possíveis para esclarecer se o Recorrente efetivamente procurou mão-de-obra através do Centro de Emprego.

50ª - Pois que é hoje pacificamente aceite que para se conformar com a exigência de alcançar a verdade material, recai sobre o juiz de julgamento o poder-dever de garantir que são produzidas todas as provas necessárias para alcançar tal desiderato – pelo que criou o legislador o art. 340º C.P.P.

51ª - Ora, sendo necessário esclarecer esta situação, deveria o tribunal recorrido ter oficiado o Instituto de Emprego e da Formação Profissional (ou o competente serviço de emprego do Centro de Emprego e Formação Profissional da área onde se situa a herdade) para que prestasse, quanto a isto, os esclarecimentos devidos.

52ª - Não o tendo feito, omitiu o tribunal a quo a prática de diligências essenciais para descoberta da verdade material – o que se traduz na nulidade prevista no art. 120º/2/d) C.P.P., ou, no limite, em irregularidade nos termos do art. 123º do mesmo diploma legal.

53ª - Nulidade (ou irregularidade) que deve ora ser reconhecida, com as necessárias consequências.

54ª - Já quanto aos factos 100 e 103, embora sendo certo que os trabalhadores nepaleses não recebiam a prestação justa pelo seu trabalho, não só não era ao Recorrente (mas à E...) que competia remunerá-los, como é falso que para a HM, Lda. pudessem ser considerados mão-de-obra barata.

55ª - Em primeiro lugar, de qualquer dos factos provados resulta que o Recorrente soubesse qual o vencimento (contratado ou efetivamente recebido) dos cidadãos nepaleses – o que competia, EM EXCLUSIVO, à E... e aos demais arguidos a esta associados.

56ª - Depois, sendo os cidadãos nepaleses livres de abandonar a exploração do Recorrente ou de a trocar por outro qualquer local, não se aceita ou compreende que o recorrente soubesse ou julgasse que tais cidadãos, por motivos de necessidade económica, estavam obrigados a permanecer na sua exploração.

57ª - Ainda, se considerarmos o valor que a HM gastava com cada trabalhador (ou por cada hora por estes trabalhada), não podemos aceitar que se considere que se tratava, para o Recorrente, de mão-de-obra barata.

58ª - Com efeito, como melhor calculámos no corpo deste recurso, cada hora trabalhada por cada cidadão nepalês custava à HM um total de €4,905 – num total mensal, para uma média de 8h/dia e 5 dias/semana, de € 839,52 (com IVA incluído).

59ª - Sendo que se fossem trabalhadas mais horas correspondentemente maior seria o pagamento à E... (até porque não se deu como provado que existia um qualquer desvio ou redução deliberada no número de horas trabalhadas – mas apenas “descontos” injustificados feitos pela E...).

60ª - O que, como está bom de ver, implica que cada trabalhador nepalês representava um custo significativo à HM (e ao Recorrente), superior, por exemplo, ao que custaria um outro trabalhador diretamente contratado e a receber o salário mínimo (como foi o caso e resulta do depoimento da testemunha TLF, acima concretamente identificado e parcialmente transcrito).

61ª - Assim, é evidente que, para o Recorrente, estes trabalhadores NÃO ERAM MÃO-DE-OBRA BARATA.

62ª - Pelo que o respeito pelas regras de operação e consideração das presunções judiciais que acima enunciámos não permitiam dar tal factualidade como provada.

63ª - Como não permitiam dar-se como provado o que se provou entre 105 e 107 ou entre 108 e 110.

64ª - Já expusemos que não era vontade do Recorrente alojar nos anexos às suas estufas os trabalhadores que lhe eram enviados pela E..., os quais até eram livres de deixar a exploração da HM (o que muitos fizeram).

65º - E se é certo que as condições existentes naqueles anexos não eram as melhores (de acordo com os nossos padrões ocidentais), não é menos certo que se tratou duma solução provisória.

66ª - Mostrando a prova produzida que é falso que o Recorrente se alheasse da situação dos ditos cidadãos nepaleses – nomeadamente porque instou o coarguido NB a resolver a situação de precaridade dos mesmos (como resulta do seu depoimento acima parcialmente transcrito) ou porque respondia às solicitações que estes lhe faziam (fosse para resolver problemas com o abastecimento de água, fosse dando-lhes folgas, ou permitindo-lhes horários mais alargados para almoçarem).

67ª - Pelo que também estes factos não podiam ter sido provados por presunção.

68ª - Quanto ao facto 113 (que corresponde à alegada consciência da ilicitude do Recorrente), a mesma conclusão tem que ser alcançada.

69ª - Pois que a conduta do Recorrente (que se consubstanciou em ter permitido que os cidadãos nepaleses se alojassem nos anexos às estufas e usufruindo da força laboral destes) não permite concluir que aquele sabia estar a violar a lei.

70ª - Note-se que nem sequer resulta dos factos provados ou da prova produzida que os cidadãos nepaleses fossem verdadeiramente explorados laboralmente – visto que não eram sujeitos a jornadas de trabalho excessivas ou a trabalharem em condições anormais/desumanas.

71ª - Ora, se o Recorrente se limitou a, no âmbito de um contrato de prestação de serviços celebrado com a E..., a laborar (de forma normal) com os cidadãos nepaleses, como se pode retirar o elemento subjetivo que o tribunal recorrido dá como provado?

72ª - Assim, quanto a todos e cada um dos factos acima escalpelizados não podiam ter sido provados por presunção judicial – quer porque os factos conhecidos não permitem, de forma lógica e direta, concluir nesse sentido, quer porque se opõem à experiência comum, quer porque não sendo a conclusão alcançada a única (ou até mesmo a mais verosímil) o princípio do in dubio pro reo impunha que não fossem dados como provados.

73ª - Assim, urge corrigir o erro de julgamento que incide sobre a matéria de facto que vimos tratando.

74ª - Nesse sentido:
- Deverá a referência ao Recorrente constante dos factos 99 e 100 passar para a matéria de facto dada como não provada;
- Deve ser expurgado do facto 103 o vocábulo “barata”;
- Deve ser expurgado do facto 104 a expressão “sabia serem imigrantes ilegais”;
- Devem ser passados para a matéria de facto dada como não provada os factos 105, 106 e 107, e
- Deve ser expurgada dos factos 109, 110 e 113 a referência ao Recorrente.

75ª - Quanto ao facto 37, não podia ter-se dado como provado que era o Recorrente quem desligava a eletricidade.

76ª - Antes, esta desligava-se automaticamente, por volta das 22h, para salvaguardar o fornecimento de energia às arcas frigoríficas onde eram acondicionados os morangos apanhados.

77ª - O que é imposto pelas declarações do Recorrente (acima identificadas e transcritas) e também pelo que foi declarado, para memória futura, pelos cidadãos nepaleses (nomeadamente por KJK - na transcrição das suas declarações supra identificada -, que afirmou perentoriamente que a eletricidade se desligava SEMPRE às 21:56), conjugado com as regras da experiência comum.

78ª - O mesmo quanto aos factos provados entre 46 a 50 e 53.

79ª - Com efeito, o que resultou da prova produzida era que os anexos tinham água canalizada (oriunda dum furo que servia também o sistema de rega), estando os chuveiros funcionais e existindo sistema de saneamento e esgotos.

80º - E resultou, em concreto, quer do depoimento do Recorrente (devidamente identificado e transcrito acima), quer do que foi declarado, para memória futura (e acima concretamente identificado) por SBA, KJK, PG, NBS, KBT, ADK, KRS, RC e TBP.

81ª - Sendo que estes elementos de prova, por refletirem o conhecimento de quem 24 sobre 24 horas ali permanecia têm que se considerar inultrapassáveis – e isto mesmo que alguns dos inspetores do SEF ouvidos tenham declarado que aquando da sua deslocação à Herdade para as inspeções que ali realizaram a água não estava ligada.

82ª - Pelo que devem ser feitas as seguintes correções aos factos que vimos analisando:

- O facto 37 deve passar a ter a seguinte redação: “37. No mencionado anexo a eletricidade desligava-se cerca das 22 horas”;
- Dos factos 46 e 47 deve deixar de constar a palavra “não”;
- Do facto 48 deve deixar de constar a expressão “Também não“ e a palavra “qualquer”;
- Do facto 49 deve deixar de constar a palavra “não”;
- Dos factos 50 e 53 deve deixar de constar a expressão “desviada do”, que deverá ser substituída por “proveniente de um furo que também servia”.

83ª - Também os factos 62, 63 e 84 estão incorretamente julgados.

84ª - Com efeito, resulta da prova produzida que era o Sr. SA quem, tomando nota das horas trabalhadas pelos cidadãos nepaleses, as fazia chegar/transmitia ao coarguido NB.

85ª - Neste particular, tem que prevalecer o que foi dito pelo próprio SA, por PG, por AB ou por PBB (declarações concretamente identificadas no corpo do recurso) e pelos coarguidos NB e UP (cujos depoimentos foram já concretamente identificados e transcritos nos segmentos relevantes).

86ª - Resultando, assim, que o Recorrente apenas ia controlando o número de horas trabalhadas, para efeitos de perceber quanto deveria haveria a pagar à E....

87ª - Em face do manifesto erro de julgamento acima apontado, deve o facto 62 ser alterado, sugerindo-se a seguinte redação: “62. SA entregava o registo de horas ao arguido NB ou ao arguido UP”.

88ª - Devendo o facto dado como provado em 63 passar para a matéria de facto dada como não provada.

89ª - Já o facto dado como provado em 84 deve passar a ter a seguinte redação: “E tomando nota das horas prestadas, conferindo-as, no final do mês, com o arguido NB”.

90ª - Ainda com base nos elementos de prova a que nos vimos referindo, também o facto 78 não podia ter sido dado como provado com a redação com que foi.

91ª - Pois, claramente, a redação feita constar pelo tribunal recorrido, pretende inculcar a ideia de que era suposto os cidadãos nepaleses passarem a viver nos anexos às estufas – o que, como vimos, não corresponde à verdade.

92ª - Assim, deve ser alterada a redação do facto em apreço, que deverá passar a ser a seguinte: “78. Só quando para ali foram transportados é que se depararam com as condições dos referidos anexos”.

93ª - No que concerne à análise da correção jurídica da decisão recorrida, cumpre, em primeiro lugar, referir que o Recorrente nunca poderia ter sido condenado pela prática de 23 crimes.

94ª - Com efeito, o entendimento de facto do tribunal recorrido devia ter levado a concluir que o Recorrente havia praticado um crime, porquanto estamos apenas perante uma única resolução criminosa – ainda que um crime de execução continuada ou de trato sucessivo, que não se confunde com a figura do crime continuado.

95ª - Pois que, de acordo com o critério teleológico que vem sendo firmado pelo STJ para distinguir entre situações de unidade ou pluralidade de crimes, existirá unidade criminosa quando, em conformidade com o senso comum relativo à normalidade dos fenómenos psicológicos, se conclua que dada conduta (mesmo que encerrando em si a prática de diversos atos) é o resultado dum só processo de deliberação.

96ª - Assim, no caso do Recorrente, a dar-se como provada uma atuação ilícita, a mesma corresponderia apenas a um crime e não a vinte e três – pelo que nunca se poderia manter a condenação por este número de crimes.

97ª - E, nesse caso, a concreta pena nunca poderia ser superior a 5 anos de prisão, exigindo-se a respetiva suspensão.

98ª - Mas mesmo o quantum punitivo alcançado (quer para as penas parcelares, quer para a única) é injustificadamente excessivo – e mesmo considerando a omissão do tribunal recorrido no que toca a dar como provada matéria suficiente e relativa à personalidade e condições do Recorrente.

99ª - Pois que o grau de “participação” do Recorrente, tal como foi dado como provado, bem como o dolo e o desvalor da sua conduta, por tudo quanto acima se deixou já exposto, é significativamente menor que o dos coarguidos NB e UP – exigindo que essa menor gravidade tivesse reflexo na medida das penas aplicadas.

100ª - Assim, encontra-se o acórdão recorrido em violação dos arts. 40º, 71º e 77º do C.P. – pelo que as concretas penas parcelares e única aplicadas sempre teriam que ser significativamente mais baixas.

101ª - Caso V. Exas. entendam ser procedente a impugnação de facto efetuada (ou, pelo menos, a impugnação relativa aos factos provados por presunção), a consequência única e lógica é a absolvição do Recorrente.

102ª - Mas, seja como for, sempre tal absolvição se impunha.

103ª - Pois que, na verdade, quanto ao Recorrente, não se acha preenchido o elemento objetivo do tipo de crime de tráfico de pessoas.

104ª - Nos termos do art. 160º/1 do C.P., o Recorrente só cometeria o crime aí previsto se, efetivamente e considerando que “alojou” os cidadãos nepaleses, tivesse atuado com o fito de explorar o seu trabalho – tendo que se entender o “explorar” não apenas como utilizar a sua força laboral, mas, nomeadamente, retendo salários ou recusando pagamento, ou sujeitando-os a uma grande desproporção entre o trabalho efetuado e o salário recebido ou, ainda, obrigando-os a laboral em condições demasiado pesadas ou sem condições de higiene ou segurança.

105ª - Ora, de tudo o que acima dissemos, o Recorrente não só desconhecia (nem tinha que conhecer, visto que era da responsabilidade da E...) qual o salário auferido pelos 23 cidadãos nepaleses, como não sujeitou tais pessoas a trabalharem em condições tidas por desumanas, sequer desadequadas.

106ª - Ou seja, O RECORRENTE NÃO EXPLOROU (nem pretendeu explorar) O TRABALHO DOS CIDADÃOS NEPALESES.

107ª - Pelo que se não verifica o preenchimento do tipo objetivo, sempre se impondo a sua absolvição.

108ª - Finalmente, não faz qualquer sentido que o Recorrente tenha sido condenado a pagar aos cidadãos nepaleses danos patrimoniais relacionados com parcelares de salários, subsídios de refeição, de férias ou de Natal.

109ª - Muito simplesmente porque, e sendo até discutível se a discussão dessas obrigações contratuais/laborais tem cabimento neste processo crime, OS VALORES DEVIDOS A ESSE TÍTULO ERAM DA EXCLUSIVA RESPONSABILIDADE DA E....

110ª - Pelo que, mesmo a ter existido uma qualquer conduta ilícita do Recorrente, nunca se poderia considerar que foi essa conduta que resultou na omissão desses pagamentos – assim estando excluído o nexo causal.

111ª - Pelo que sempre se impunha a absolvição do Recorrente deste pagamento.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser dado provimento ao recurso ora interposto.
*
O Exmº Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância, e, bem assim, os assistentes, apresentaram respostas aos recursos, concluindo pela improcedência dos mesmos.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, entendendo, também, que deve ser negado provimento aos recursos.

Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO.

1 - Delimitação do objeto dos recursos.

Em muito breve síntese, são as seguintes as questões suscitadas nos recursos interpostos pelos arguidos, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, as quais delimitam o objeto dos recursos e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal:

I - Recurso do arguido NB.
1ª - Nulidade do acórdão revidendo, por omissão de pronúncia e por excesso de pronúncia (artigo 379º, nº 1, al. c), do C. P. Penal).

2ª - Nulidade do acórdão recorrido, por insuficiência de fundamentação (insuficiência de exame crítico da prova - artigos 374º, nº 2, e 379º, nº 1, al. a), do C. P. Penal -).

3ª - Invalidade e valor probatório dos depoimentos para memória futura (violam o princípio do contraditório, constituem um meio enganoso de prova, são prova proibida, a sua validação padece de inconstitucionalidade material, e tal validação viola, ainda, o preceituado no artigo 355º do C. P. Penal).

4ª - Qualificação jurídica dos factos, porquanto, com a sua atuação, o recorrente cometeu um único crime de tráfico de pessoas, na forma continuada, e não 23 crimes autonomizados.

5ª - Medida concreta da pena (única) aplicada.

6ª - Suspensão da execução da pena de prisão a aplicar, com sujeição a regime de prova.

II - Recurso do arguido UP.
1ª - Nulidade do julgamento, por valoração dos depoimentos para memória futura sem direito ao contraditório e sem os mesmos terem sido reproduzidos na audiência de discussão e julgamento (com violação do preceituado no artigo 355º do C. P. Penal).

2ª - Nulidade, invalidade e falta de força probatória dos depoimentos para memória futura, e nulidade de toda a prova posteriormente recolhida, já que foi obtida a partir de provas proibidas.

3ª - Existência dos vícios prevenidos no artigo 410º, nº 2, als. a) e c), do C. P. Penal (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova).

4ª - Impugnação (alargada) da matéria de facto (insuficiência de prova - direta - sobre os factos, uso indevido de presunções judiciais, violação do princípio in dubio pro reo, e desrespeito pelo disposto no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa - princípio da presunção da inocência -).

5ª - Qualificação jurídica dos factos (não estão preenchidos os elementos objetivos do crime de tráfico de pessoas - nomeadamente, não existiu qualquer “ardil ou manobra fraudulenta”, nem existiu “lucro” -, bem como não estão preenchidos os elementos subjetivos de tal crime, pois não existe dolo).

6ª - Qualificação jurídica dos factos, no tocante ao número de crimes cometidos (com a sua atuação, o recorrente cometeu um único crime de tráfico de pessoas, na forma continuada, e não 23 crimes).

7ª - Atenuação especial da pena (com a redução dos limites mínimo e máximo da pena, em consonância com o disposto no artigo 73º do Código Penal).

8ª - Medida concreta das penas (quer das penas parcelares, quer da pena única), designadamente ocorrendo uma desproporcional e desadequada diferença mínima (de apenas um ano) nas penas únicas fixadas para os três arguidos, e, além disso, sendo a pena (de 13 anos de prisão) manifestamente exagerada face ao que se passa na normalidade das penas aplicadas pelos tribunais portugueses.

9ª - Suspensão da execução da pena de prisão a aplicar (entendendo-se que estamos perante um único crime de tráfico de pessoas e não perante 23), com sujeição a regime de prova.

III - Recurso do arguido PSV.

1ª - Nulidade do acórdão recorrido, por insuficiência de fundamentação (artigo 379º, nº 1, al. a), do C. P. Penal).

2ª - Nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, al. d), do C. P. Penal (ou irregularidade nos termos do artigo 123º do mesmo diploma legal), por omissão da prática de diligências essenciais para a descoberta da verdade material.

3ª - Existência dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, als. a) e b), do C. P. Penal (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - no tocante à personalidade e condições de vida do ora recorrente -, e contradição insanável da fundamentação).

4ª - Impugnação alargada da matéria de facto (ausência de prova direta sobre certos factos, uso errado da prova por presunção judicial, e violação do princípio in dubio pro reo).

5ª - Qualificação jurídica dos factos (não se acham preenchidos os elementos objetivos do tipo de crime de tráfico de pessoas).

6ª - Qualificação jurídica dos factos, no tocante ao número de crimes cometidos (o ora recorrente praticou um único crime - ainda que um crime de execução continuada ou de trato sucessivo, que não se confunde com a figura do crime continuado -).

7ª - Medida concreta das penas (penas parcelares e pena única).

8ª - Suspensão da execução da pena de prisão a aplicar.

9ª - Indemnização aos ofendidos por danos patrimoniais (relacionados com salários, subsídios de refeição, de férias ou de Natal), que não é devida pelo ora recorrente.

2 - A decisão recorrida.
O acórdão revidendo é do seguinte teor (quanto aos factos, provados e não provados, e quanto à motivação da decisão fáctica):

“2.1 MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Da discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 16 de Junho de 2016, foram identificados pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, vinte e três cidadãos de nacionalidade nepalesa;

2. Estes cidadãos nepaleses são SBA, SA, KJK, PG, TP, BKP, DK, TBK, BRK, RKS, NBS, KBT, AD, KRS, AB, PJL, DR, UP, Dipak K, RC, TBP, PBB e SB;

3. Os quais se encontravam em Portugal, sem qualquer visto de entrada, autorização de residência, ou qualquer outro documento que legalmente lhes permitisse entrar e permanecer neste país;

4. Estes vinte e três cidadãos nepaleses estavam a residir e a trabalhar, nas estufas exploradas pelo arguido PSV, sitas em Paço dos Negros, Almeirim;

5. Local onde foram encontrados pelo SEF, no referido dia 16 de Junho de 2016;

6. O arguido PSV, na qualidade de sócio gerente da sociedade por quotas, também arguida, HM, Lda., dedica-se profissionalmente à produção e comercialização de produtos hortícolas, nomeadamente, morangos;

7. Que é a atividade à qual esta sociedade HM, Lda. também se dedica;

8. Os cidadãos nepaleses identificados em 2., que se encontravam a trabalhar e a residir naquela exploração agrícola, foram ali colocados pela sociedade por quotas arguida E..., Lda.;

9. Sociedade esta, que se dedica à prestação de serviços de trabalho temporário, sobretudo, em atividades agrícolas;

10. Cujo único sócio e gerente é o arguido NB;

11. Sendo o arguido UP (conhecido como "Upen"), funcionário da E..., Lda.;

12. Foram os arguidos NB e UP, quem transportou os cidadãos nepaleses SBA, SA, KJK, PG, TP, BKP, DK, TBK, BRK, RKS, NBS, KBT, AD, KRS, AB, PJL, DR, Ujjwal P, Dipak K, RC, TBP, PBB e SB para as estufas de morangos pertencentes à HM, Lda. sitas em Paço dos Negros, Almeirim;

13. O arguido NB e, sob as suas ordens e instruções, o arguido UP, em representação ou em nome da arguida E..., Lda. estabeleceram contacto e contrataram, através desta empresa arguida, cada um daqueles cidadãos nepaleses, quando estes se encontravam já em território nacional;

14. O que foi feito, através de intermediários de nacionalidade nepalesa cuja identidade não foi possível apurar, mas que faziam publicidade ao serviço da E..., Lda. junto dos seus compatriotas que procuram emprego em Lisboa;

15. Estes cidadãos nepaleses identificados em 2. chegaram a território nacional em circunstâncias variadas, tendo em comum entre si a entrada no nosso país sem qualquer visto, ou qualquer outro documento que legalmente os habilitasse a entrarem em Portugal;

16. E após cada um deles ter pago vários milhares de euros a um passador, no Nepal, para o fazer chegar a Portugal;

17. NB celebrou com cada um deles, por si mesmo ou através do seu empregado UP, ambos em representação e no exercício da atividade diária da arguida E..., Lda., contratos de trabalho, redigidos em língua portuguesa;

18. Desses contratos consta, como entidade empregadora, a sociedade E..., Lda. e, como trabalhador, cada um daqueles cidadãos nepaleses identificados em 2.;

19. Nos termos desses contratos, cada um desses cidadãos obrigou-se a prestar trabalho, no local e no horário estabelecido pela E..., Lda., na apanha de frutas e legumes;

20. Em contrapartida, a E..., Lda. comprometia-se a pagar ao trabalhador a remuneração mensal ilíquida de € 530,00 (quinhentos e trinta euros), sujeita aos descontos legais e acrescida da quantia de € 1,70 (a título de subsídio de refeição);

21. Nenhum destes cidadãos nepaleses falava ou escrevia português, aquando da celebração destes contratos;

22. Nem sabiam, nem sabem, ao certo, qual o conteúdo e significado dos contratos que celebraram;

23. Aquando da celebração destes contratos de trabalho, ora o arguido NB, ora o arguido UP exigiram a todos os trabalhadores que lhes entregassem uma quantia entre os € 200,00 (duzentos euros) e os € 250,00 (duzentos e cinquenta euros);

24. Alegando que seria o pagamento devido pela inscrição dos mesmos trabalhadores, na Segurança Social;

25. Os trabalhadores pagavam este valor, entregando tais quantias a NB ou a UP;

26. Ou, de imediato, quando contactaram com os arguidos e foram contratados pela E..., Lda.;

27. Ou, caso não tivessem esse valor disponível, mediante o desconto na primeira remuneração devida pelas suas horas de trabalho;

28. Por seu lado, a sociedade E..., Lda., gerida pelo arguido NB, celebrou em 28 de Março de 2015, 15 de Outubro de 2015 e 1 de Fevereiro de 2016 com a HM, Lda., da qual o arguido PSV é sócio gerente, três contratos de prestação de serviços;

29. Nos termos dos quais, a E..., Lda. se comprometeu a fornecer à HM, Lda. um número mínimo de 81 trabalhadores, divididos pelos três períodos mencionados;

30. Em contrapartida do que a HM, Lda. pagaria à E..., Lda. o valor de € 4,5 (quatro euros e cinquenta cêntimos) acrescidos de IVA à taxa reduzida por hora, na forma de 8 horas por dia, 5 dias por semana;

31. Os serviços contratados foram prestados;

32. Em resultado do que a E..., Lda. recebeu, pelo menos, três cheques emitidos pela HM, Lda., no valor total de € 40.807,21 (quarenta mil oitocentos e sete euros e vinte e um cêntimos), entre Abril e Junho de 2016;

33. Correspondendo a um cheque no valor de € 9.700,00 (nove mil e setecentos euros) emitido a 06/04/2016; outro cheque de € 21.107,21 (vinte e um mil cento e sete euros e vinte e um cêntimos) emitido a 10/05/2016 e o terceiro cheque de € 10.000,00 (dez mil euros), emitido a 07/06/2016;

34. Foi, no âmbito desta relação contratual entre a E..., Lda. e a HM, Lda., que os arguidos NB e UP transportaram os mencionados trabalhadores para as estufas exploradas pelo arguido PSV, sitas em Paço dos Negros, Almeirim, entre Fevereiro e Maio de 2016;

35. O anexo às estufas de PSV, em que residiam os vinte e três cidadãos nepaleses identificados em 2., não tinha nenhuma janela;

36. O chão é em cimento, sem qualquer revestimento;

37. No mencionado anexo, o arguido PSV desligava a eletricidade, cerca das 22 horas;

38. E quando os trabalhadores ali se encontravam;

39. Que assim passavam as noites inteiras, sem eletricidade;

40. Estes trabalhadores estavam divididos por três camaratas;

41. Cada uma destas camaratas era composta por uma sala comum/cozinha e um quarto;

42. Onde os trabalhadores dormiam em beliches, sem qualquer privacidade;

43. A cozinha tinha um fogão, que os trabalhadores utilizavam para cozinhar as suas refeições;

44. No local, existia uma única casa de banho para os vinte e três trabalhadores;

45. Essa casa de banho dispunha de dois duches;

46. Que não funcionavam;

47. Porque não havia água canalizada;

48. Também não existia qualquer sistema de saneamento e esgotos;

49. Não era fornecida água aos trabalhadores;

50. Sendo toda a água que estes utilizaram, durante meses, desviada do sistema de regas das estufas do arguido PSV;

51. Fosse para beber, para tomar banho, para cozinhar ou despejar na sanita;

52. Os trabalhadores tomavam banho com baldes de água fria;

53. E bebiam água, desviada do sistema de rega das estufas e contida num depósito ali existente;

54. Não existia qualquer móvel onde estes cidadãos pudessem colocar os seus pertences pessoais;

55. Que assim permaneceram, durante meses, dentro de malas espalhadas pelo chão;

56. Os arguidos NB e UP deslocavam-se àquela exploração agrícola cerca de uma vez por mês;

57. Para trazerem alguma comida, àqueles trabalhadores, designadamente batatas, arroz, cebolas, lentilhas e massa;

58. Produtos pelos quais NB efetuava descontos diretos nas remunerações dos trabalhadores;

59. Apesar de constar do contrato de trabalho que cada trabalhador teria direito ao pagamento do vencimento mensal de 530€ (quinhentos e trinta euros), acrescido do subsídio de refeição, o pagamento efetuado pela empresa era feito, consoante as horas de trabalho que cada trabalhador efetivamente prestava;

60. Estando estipulado que cada trabalhador receberia € 3,06 (três euros e seis cêntimos) à hora;

61. As horas de trabalho prestado por cada um destes trabalhadores identificados em 2., constavam de uma folha que estava na posse de um trabalhador escolhido pelos restantes, SA;

62. SA entregava o registo de horas ao arguido PSV;

63. O qual, por seu lado, o comunicava ao arguido NB;

64. Porém, no vencimento de cada um destes trabalhadores, eram descontados, todos os meses, pelo arguido NB, as seguintes quantias:

a) € 55,00 (cinquenta e cinco euros) para custear a dormida;

b) Uma quantia não exata, que variava entre os € 40,00 (quarenta euros) e os € 60,00 (sessenta euros), para pagamento dos bens alimentares que o arguido NB fornecia, nas circunstâncias descritas em 56. e 57.;

65. Por estes motivos, os trabalhadores recebiam uma quantia variável, não concretamente determinada, em cada mês;

66. E não sabiam prever quanto iriam auferir ao final de um mês de trabalho;

67. Pois que estavam dependentes dos descontos que o arguido NB entendesse fazer nas suas remunerações;

68. Os arguidos NB e UP entregavam por vezes, embora nem sempre, recibos de vencimento aos trabalhadores;

69. Mas tais recibos omitem as quantias dos descontos efetuados pelo alojamento e pela alimentação;

70. Nenhum dos trabalhadores recebeu qualquer subsídio de refeição, ao contrário do estipulado contratualmente;

71. Os trabalhadores limitavam-se a receber o dinheiro que os arguidos NB e UP Paudel entendiam dar-lhes;

72. De acordo com as contas que o primeiro fazia, após a dedução já acima referida em 64., das quantias para pagamento do alojamento e alimentação;

73. Nenhum destes trabalhadores possuía forma própria de se deslocar;

74. Pelo que só abandonavam as instalações da estufa a pé, até à aldeia próxima de Paço dos Negros;

75. A fim de comprarem galinhas que cozinhavam posteriormente;

76. Por forma a completar a alimentação que lhes era fornecida pelo arguido NB;

77. Os cidadãos nepaleses não conheciam previamente o local onde foram encontrados no dia 15 de Junho de 2016, anexo às estufas do arguido PSV, onde se dedicavam à apanha de morangos;

78. Só quando para ali foram transportados é que se depararam com as condições em que iriam passar a viver;

79. A jornada de trabalho, na apanha de morangos, começava às 6h30 da manhã e decorria, normalmente, até às 15h30;

80. Numa média de 7h30m por dia;

81. Folgando, por vezes, ao Domingo;

82. Durante o horário de trabalho, quem dava instruções diretas aos trabalhadores era o dono das estufas, o arguido PSV;

83. Sendo este quem decidia o horário e o local exato onde cada trabalhador deveria desenvolver a sua atividade;

84. E quem controlava as horas que cada trabalhador prestava, comunicando-as, no final do mês, ao arguido NB;

85. Após a fiscalização do SEF, os arguidos NBe UP deslocaram-se ao local onde trabalhavam e se encontravam alojados os cidadãos identificados em 2.;

86. Dizendo a estes para não se preocuparem mais, porque o SEF já tinha conhecimento da situação documental em que se encontravam;

87. E que iriam ser encetadas as diligências para a concessão de autorização de residência a cada um deles;

88. Mas que nada deviam dizer acerca das suas verdadeiras condições de vida e trabalho;

89. Todos os trabalhadores de nacionalidade nepalesa manifestavam vontade e esperança de obter uma autorização de residência em Portugal;

90. O que era do conhecimento dos arguidos NB e UP;

91. Tendo-lhes sido prometido, tanto pelo arguido NB, como pelo arguido UP, que conseguiriam tal autorização, caso aceitassem trabalhar para a empresa E..., Lda., nas condições atrás descritas;

92. Promessas em que os trabalhadores nepaleses acreditaram;

93. E que ambos os arguidos NB e UP sabiam não serem verdadeiras;

94. Sendo também do seu conhecimento que os trabalhadores da E..., Lda., identificados em 2., viajaram para Portugal contornando a legislação nacional e europeia relativa à possibilidade de concessão de autorização de residência em Portugal, nas circunstâncias descritas em 15. e 16.;

95. Ambos os arguidos NB e UP se aproveitaram das circunstâncias, por si conhecidas, de estes cidadãos nepaleses não compreenderem a língua portuguesa, nem conhecerem a legislação portuguesa e de precisarem de trabalhar e de ganhar dinheiro para si próprios e para as suas famílias, para celebrarem com cada um deles um contrato de trabalho, fazendo-os assinar um documento escrito em português, com cláusulas cujo teor é completamente desconhecido por cada um daqueles cidadãos nepaleses;

96. Os arguidos atuaram com a intenção de obterem proventos monetários para si próprios e para a E..., Lda e para a HM, Lda., resultantes da prestação de trabalho por estes trabalhadores nepaleses, nas condições descritas em 21. a 27. e 35. a 95.;

97. Sendo que o arguido NB, apenas através dos valores que o deduzia e cobrava mensalmente a este universo de vinte e três trabalhadores da sua empresa, conseguiu beneficiar de mais de dois mil euros por mês (€ 60,00 (dormida) x 23 + € 55,00 (alimentação) x 23 = € 2.645,00);

98. Além dos € 200,00 a € 250,00 que foram inicialmente cobrados a cada um dos trabalhadores, alegadamente devidos pela sua inscrição na Segurança Social;

99. O arguido PSV, ao acolher nos anexos às suas estufas, sem quaisquer condições de salubridade e habitabilidade, ao dirigir e beneficiar do trabalho destes vinte e três cidadãos nepaleses, pago de forma irregular, conforme os demais arguidos estabeleciam, e NB e UP, ao recrutarem, transportarem, alojarem e efetuarem pagamentos aos mencionados trabalhadores nas condições atrás descritas, atuaram de acordo com um plano previamente combinado entre todos;

100. E aproveitando-se da situação de dependência económica, da vontade que aqueles cidadãos tinham de trabalhar e residir em Portugal e das condições descritas em 21. a 27; 35. a 78.; 81. e 85. a 95.;

101. Bem como, no caso dos arguidos NB e UP, do engano que neles causaram ao fazê-los crer que o facto de os contratarem os auxiliaria no seu processo de legalização, para obterem ilicitamente lucros para si mesmos;

102. Por seu lado, os arguidos NB e UP, agindo no propósito concretizado de obtenção de lucro para o primeiro e para a sociedade E..., Lda. (da qual o primeiro é sócio gerente e o segundo é funcionário), angariaram e contrataram, pelo menos, vinte e três trabalhadores estrangeiros que bem sabiam não serem titulares de autorização de residência ou visto que os habilitasse a exercer uma atividade profissional, e introduziram-nos ilicitamente no mercado de trabalho.

103. Por outro lado, o arguido PSV agiu com intenção exclusiva de obter lucro para si e para a sua sociedade HM, Lda., explorando-a com recurso a mão-de-obra barata composta por vinte e três pessoas;

104. Que bem sabia serem imigrantes ilegais, sem compreensão da língua portuguesa e totalmente dependentes economicamente daquela atividade;

105. E quis mantê-los nos anexos às estufas que explora;

106. E nas condições descritas em 35. a 55.;

107. Sem a menor preocupação pela saúde, bem-estar, conforto e dignidade daquelas vinte e três pessoas;

108. E estando todos os arguidos cientes de que os factos descritos em 21. a 27 e em 35. a 78. são abusivos e indevidos a qualquer ser humano;

109. Ao contratarem, transportarem, alojarem, explorarem e beneficiarem do trabalho dos 23 cidadãos estrangeiros em questão, mantendo-os naquelas condições referidas em 35. a 78., os três arguidos NB, PSV e UP favoreceram o trânsito e a permanência ilegais dos mencionados cidadãos estrangeiros em território nacional;

110. Como pretendiam;

111. Atuando sempre com uma intenção lucrativa para si e para as empresas de que são sócios gerentes e funcionário, respetivamente, E..., Lda. e HM, Lda.

112. Os arguidos NB e UP já vinham desenvolvendo esta atividade anteriormente, tendo em ocasiões anteriores atuado de forma idêntica relativamente ao recrutamento, contratação, alojamento e utilização do trabalho de outros cidadãos nepaleses não identificados nos autos;

113. Os arguidos sabiam que a sua conduta é proibida e punida por lei penal;

114. E tinham capacidade e liberdade para se determinarem de acordo com esse conhecimento;

115. Em virtude dos factos descritos e, 17. a 20. e em 59. a 72., RKS, BKP, KBT, SBA, SA, DRT, DK, PG, TBP, BRK, PJL, Dipak K, AB, KRS, PBB e TP ficaram destituídos de quantias referentes a salários, subsídios de refeição e outras quantias atinentes a subsídios de férias e de Natal de valor não concretamente apurado;

116. Em consequência das condutas dos arguidos, descritas em 17. a 114., RKS, foi acometido dos seguintes sentimentos:

a) Temeu pela sua segurança;
b) Sentiu-se diminuído, envergonhado e culpado;
c) Aquando da operação de fiscalização e resgate levada a cabo pelo SEF, teve dificuldade em relatar o que lhe aconteceu;
d) Sentiu-se aterrorizado e desamparado, aquando dos factos referidos em 17. a 114;

117. RKS começou a trabalhar ao serviço dos arguidos em Abril de 2016;

118. Em resultado das condutas acima descritas em 18. a 114., o lesado BKP foi acometido dos seguintes sentimentos:

a) Sofreu dores e passou fome;
b) Sentiu-se humilhado, sem dignidade e sem esperança;
c) Ficou com medo de se relacionar com terceiros;
d) Sem ânimo para enfrentar a vida;
e) Sentiu forte abalo psicológico;

119. BKP começou a trabalhar ao serviço dos arguidos em Fevereiro de 2016;

120. Em resultado das condutas acima descritas em 18. a 115., o lesado KBT sofreu;

a) Dores e passou fome;
b) Sentiu-se humilhado, sem dignidade e sem esperança;
c) Ficou com medo de se relacionar com terceiros;
d) Sem ânimo para enfrentar a vida;
e) Sentiu forte abalo psicológico;

121. KBT começou a trabalhar ao serviço dos arguidos em Fevereiro de 2016;

122. Em resultado dos factos descritos em em 18. a 114., o lesado SA foi acometido dos seguintes sentimentos:

a) Sentiu-se deprimido e entristecido;
b) Sofreu abalo psicológico pela forma como foi explorado pelos arguidos;
c) Sentindo-se paralisado, sem forças para reagir e desamparado;
d) As ameaças e as privações que passou e infligidas pelos arguidos causaram-lhe profunda angústia;

123. SA começou a trabalhar ao serviço dos arguidos em Fevereiro de 2016;

124. Em resultado das condutas dos arguidos descritas em 17. a 114., o lesado PG sentiu angústia e medo;

125. PG começou a trabalhar ao serviço dos arguidos em Fevereiro de 2016;

126. Em resultado das condutas dos arguidos descritas em 17. a 114., o lesado TBP foi acometido dos seguintes sentimentos:

a) Temeu pela sua segurança;
b) A tal ponto que, aquando da operação de fiscalização e resgate do SEF, teve dificuldade em relatar os acontecimentos;
c) Sentiu-se desamparado e com medo, aquando dos factos descritos em 17. a 114.;
d) Sentiu angústia pela forma como foi tratado pelos arguidos;

127. TBP trabalhou ao serviço dos arguidos durante cerca de dois meses;

128. Em consequência das condutas dos arguidos, descritas em 17. a 114., SBA; DRT; DK; BRK; PJL; AB; KRS; PBB e TP, aquando dos factos a que se referem os pontos 1. a 5., estavam tristes e assustados;

129. O arguido UP nasceu e cresceu no Nepal;

130. No seio de uma família composta pelos pais e três filhos, dos quais o arguido é o mais velho;

131. Existindo entre todos uma ligação afetiva coesa;

132. Concluiu o equivalente ao ensino secundário, em Portugal;

133. Quando tinha vinte e dois anos e no intuito de alcançar melhores condições de vida, UP emigrou para Inglaterra;

134. Nesse país, deu continuidade aos estudos, tendo completado um curso de Business Management promovido pela faculdade de ensino North West College;

135. Também nesse país e após conclusão do curso, o arguido veio a dar início ao seu percurso laboral tendo exercido funções como gestor/supervisor na empresa farmacêutica denominada Farmacy Lloyds;

136. Pelas dificuldades com que se viu confrontado na aquisição de documentação de permanência nesse país, UP viria a optar por emigrar para Portugal;

137. Tendo em mente a obtenção de título de residência;

138. Durante a sua permanência no nosso país, destaca-se o seu alojamento no agregado familiar do amigo, NB;

139. Onde residia também a mulher deste e os dois filhos menores do casal;

140. Sendo que nesse agregado era habitual residirem outros concidadãos ainda que de forma temporária;

141. Também em Portugal o arguido iniciou-se laboralmente, numa primeira fase, a trabalhar numa mercearia gerida pelo arguido NB;

142. E, posteriormente passou a exercer funções como auxiliar administrativo na empresa E..., Lda, igualmente gerida por esse arguido;

143. Do seu percurso vivencial em Portugal destaca-se a manutenção da atividade laboral junto do amigo acima mencionado;

144. O qual é descrito pelo arguido como de algum equilíbrio económico;

145. O arguido UP ocupa os tempos livres na companhia da namorada de há já alguns anos, sua concidadã que conhecera no país de origem;

146. Partilhando, o tempo de convívio com o seu primo Suraj P;

147. Ambos laboralmente ativos no sector da restauração;

148. Com exceção do primo acima mencionado, este arguido não tem outros familiares de referência no nosso país;

149. Sendo que os familiares de origem e do núcleo familiar alargado mantêm residência no Nepal, excetuando um dos seus irmãos, residente nos Estados Unidos da América;

150. Com os quais o arguido mantém contacto regular;

151. Não conseguiu regularizar a sua permanência em Portugal;

152. Em privação de liberdade, o arguido tem vindo a beneficiar de algum apoio por parte da namorada e primo, residentes em Portugal;

153. Bem como do suporte disponibilizado pelo irmão residente nos EUA;

154. Dos planos mencionados pelo arguido releva-se a sua intenção em permanecer em Portugal;

155. Tenciona residir com a namorada, que presentemente vive sozinha e que se disponibiliza para o apoiar;

156. UP refere planos que passam por procurar um trabalho estável logo que lhe seja permitido;

157. Ambicionando poder conseguir um trabalho na área da gestão em empresa farmacêutica, onde detém experiência adquirida durante a sua anterior estadia em Inglaterra;

158. No Estabelecimento Prisional de Lisboa, o arguido tem mantido um comportamento institucional correcto;

159. Embora, até ao momento presente não se encontre laboralmente ativo;

160. O arguido denota uma postura aparentemente calma;

161. Mas apresenta traços de alguma imaturidade pessoal;

162. E uma postura de nervosismo;

163. Reconhecendo e tendo consciência da gravidade dos atos de quem vem acusado e demais implicações nas vítimas e sociedade;

164. O arguido NB é o mais velho de uma fratria de três;

165. Cresceu no seio de uma família estruturada e funcional, onde existiriam laços de afetividade e entreajuda entre todos os elementos do agregado;

166. Os progenitores trabalhavam por conta própria, pelo que os proventos eram suficientes para o sustento do agregado;

167. O arguido completou o ensino superior na área de informática aos vinte anos de idade;

168. Após o término dos estudos, iniciou o seu percurso laboral como docente do ensino básico;

169. Profissão que desempenhou durante dois anos;

170. A expectativa de melhorar as suas condições socioeconómicas determinaram a sua opção de emigrar para Israel;

171. Onde obteve colocação como motorista num lar de idosos;

172. E onde permaneceu durante cinco anos;

173. Após o término do contrato veio para Portugal, onde tinha alguns amigos que o apoiaram na sua integração laboral num mini-mercado;

174. Posteriormente adquiriu uma loja, onde instalou o mesmo ramo de negócio, obtendo proventos na ordem dos 1000/1500 euros mensais;

175. Mais tarde, decidiu vender a loja;

176. E constituiu um novo negócio na área da restauração, especializado em alimentação nepalesa e indiana;

177. Como não obteve o lucro desejado, vendeu o restaurante;

178. Tendo iniciado uma empresa de prestação de serviços, vocacionada para recrutamento na área da agricultura;

179. Contraiu casamento em 2011, com uma cidadã nepalesa;

180. Tendo nascido desta união dois filhos, de quatro anos e quinze meses, respetivamente.

181. O arguido mantém com a cônjuge uma relação gratificante, de coesão e entreajuda;

182. Nas suas relações sociais, o arguido convivia com cidadãos nepaleses e portugueses, pessoas inseridas socialmente;

183. Passando a maior parte dos tempos livres com a família;

184. O arguido evidencia uma postura adequada e colaborante, com um temperamento sociável;

185. Em relação aos factos que determinaram este processo, revelou que desconhecia que as atividades a que se dedicava seriam ilegais;

186. Desculpabilizando-se com o desconhecimento da lei portuguesa;

187. E alegando que apenas tomou conhecimento da realidade quando foi confrontado com a sua detenção;

188. A situação jurídico-penal está a ser vivida pelo arguido com sentimentos de preocupação;

189. Encontrando-se abalado a nível emocional, com a privação da liberdade, com o fecho da empresa, centrando de forma mais incisiva a sua preocupação pelo cônjuge e filhos se encontrarem a passar por dificuldades económicas;

190. A nível institucional mantém um comportamento adequado e normativo, sem sanções disciplinares;

191. Tendo verbalizado que pretende integrar as atividades laborais no estabelecimento prisional;

192. Tem recebido visitas da família que lhe tem proporcionado apoio a nível emocional;

193. Que o arguido valoriza;

194. Futuramente pretende voltar a empreender uma mercearia num dos bairros típicos de Lisboa e levar uma vida dentro das normas;

195. Nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais.

2.2. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do Tribunal, quanto aos factos considerados provados, teve por base os seguintes fundamentos:

No que se refere aos factos descritos em 1. a 5., a análise comparada das declarações dos três arguidos NB, UP e PSV e os depoimentos das testemunhas EMFe ACC, ambas Inspetoras da Unidade Anti-Tráfico de Pessoas do SEF, que levaram a cabo a ação de fiscalização a que aludem aqueles pontos da matéria de facto e que descreveram, de forma circunstanciada e clara e com preocupação de rigor, tudo o que viram, na exploração da HM, Lda., o modo como procederam à identificação dos cidadãos mencionados em 2., as características do alojamento ali existente, depoimentos estes, conjugados com os depoimentos das testemunhas AJR, Inspetor-Chefe do SEF, Delegação de Santarém, que prestou colaboração na realização da ação de fiscalização a que se referem os pontos 1. a 5. da matéria de facto provada; JCB, Inspetor do SEF que procedeu à recolha dos passaportes de todos os cidadãos identificados em 2., tendo feito a conferência, através das bases de dados informáticos do SEF por referência a tais passaportes, da situação irregular, quanto à estada de todos eles em Portugal;

No que concerne aos descritos em 6. e 7., a análise conjugada das declarações do próprio arguido PSV, com a certidão permanente emitida pela Conservatória do Registo Comercial quanto ao pacto social da arguido HM, Lda., de fls. 447 e 448, conjugado com o teor do auto de apreensão de fls. 543 a 549, especialmente, com o teor dos seguintes documentos resultantes dessa apreensão: Dezenas de Curriculum Vitae e fotocópias de páginas de dados biográficos de cidadãos nepaleses; fotocópias de páginas de dados biográficos de passaportes tailandeses e vistos emitidos para os titulares dos mesmos; listagens de movimentos de cheques creditados nas empresas PSG, Unipessoal, Lda. e HM, Lda., no decurso do ano de 2015; assim como o teor do auto de apreensão de fls. 537 e 538, referente à busca realizada em 05/07/2016 nas instalações das estufas sitas em Paços dos Negros, Almeirim, do arguido PSV e onde este detinha um dossier de formato A4, no interior do qual se encontram diversas folhas impressas com os títulos "Regras da casa" e "Regras do trabalho", documentos com os quais foi, aliás, confrontado na audiência de discussão e julgamento.

Por fim, foram também relevantes, em complemento dos meios de prova indicados, os depoimentos das testemunhas AV e DSV, pais do arguido SCL, que conhecem bem aquelas estufas de morangos explorada pela arguida HM, Lda., assim como a atividade profissional do seu filho; TLF que trabalhou ao serviço dos arguidos PSV e HM, Lda. durante vários anos; SCL; ACC, JML, MCP e JOC, todos Inspetores da ACT de Santarém, que participaram das diligências de fiscalização da iniciativa do SEF e a que se referem os pontos 1. a 5.;

Em relação aos descritos em 8., a análise conjugada das declarações dos arguidos NB, UP e PSV, base nas declarações para memória futura (transcritas a fls. 2128 a 2692 – novo, décimo e parte do décimo primeiro volumes) prestadas, então, ainda, na qualidade de testemunhas, por SBA; SA; KJK; PG; TP; BKP; DK;TBK; BRK; RKS; NBS; KBT; AD; Uljwal P.; Dipak K; Rabindra C.; TBP; PBB e BS, todos cidadãos nepaleses que são as pessoas identificadas no ponto 2. da matéria de facto provada e com os depoimentos das testemunhas EMF e ACC, ambas Inspetoras da Unidade Anti-Tráfico de Pessoas do SEF, que levaram a cabo a ação de fiscalização a que aludem os pontos 1. a 5., da matéria de facto SCL; ACR, JML, MCP e JOC, todos Inspetores da ACT de Santarém, que participaram das diligências de fiscalização da iniciativa do SEF e a que se referem aqueles pontos 1. a 5.;

No que se refere aos descritos em 9. e 10., o teor das declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento, pelo arguido NB, conjugadas com o depoimento da testemunha Filipe S., que entre Dezembro de 2014 e Fevereiro de 2015, trabalhou ao serviço da E..., Lda., seguindo as ordens e instruções do arguido NB e que descreveu, como pormenor e preocupação de veracidade, como é que era desenvolvida a atividade daquela sociedade, no que se refere ao modo como eram angariados e contratados os trabalhadores, o conteúdo dos contratos, as condições de trabalho e alojamento que lhes eram fornecidas pela mesma sociedade arguida e o teor de parte dos documentos apreendidos nas instalações da E..., Lda., em 5 de Julho de 2016, assim como o auto de apreensão de fls. 502 a 510, de que resultou a obtenção de tais documentos para os autos e que são, concretamente, os seguintes:

i. 32 contratos de trabalho celebrados entre a empresa E..., Lda. e trabalhadores estrangeiros, admitidos ao serviço daquela para desempenhar as funções de apanha de frutas e legumes, acompanhados de cópia dos Passaportes dos respetivos cidadãos;

ii. 37 registos de manifestações de interesse ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, ao abrigo do artigo 88º nº 2 da Lei de Estrangeiros, apresentadas por trabalhadores de origem nepalesa, com a finalidade de se legalizarem em Portugal;

iii. Folhas de registo de horas de trabalhadores colocados nas seguintes empresas/unipessoais: Morango Oeste, no Ameal, em Torres Vedras, Horticultura e Artefactos, no Ameal, em Torres Vedras, F, H., CT, Cadaval e PSG;

iv. 22 declarações e 18 comunicações da empresa E..., Lda à Segurança Social, relativas à inscrição dos seus trabalhadores;

v. Faturação da empresa E..., Lda às empresas Morango Oeste, Lda., HM, Lda., Horticultura e Artefactos, Lda., e Beirabaga, Lda., no valor de milhares de euros;

vi. 26 recibos comprovativos da inscrição e do pagamento das quotas dos meses de maio a outubro de 2016 de vários cidadãos nepaleses à Associação Solidariedade Imigrante, com sede na Rua da Madalena, 8 - 2.2 andar, em Lisboa;

vii. 1 livro de registo relativo à E..., Lda. e aos seus trabalhadores, contendo o registo relativo a datas, horas de trabalho e quantias pagas;

viii. 1 carimbo da empresa E..., Lda.;

ix. 25 fichas de inscrição de trabalhadores de origem nepalesa, na empresa E..., Lda. e respetivas cópias dos seus documentos de identificação;

x. Listagem de trabalhadores da empresa E..., Lda., horas de trabalho, pagamentos realizados e descontos efetuados, nomeadamente os relativos ao alojamento no valor de € 55/mês;

xi. Recibos de vencimento dos trabalhadores da empresa E..., Lda., guias de pagamento e extratos de remunerações relativos à Segurança Social;

xii. 10 fichas de inscrição de trabalhadores de origem nepalesa, na empresa E..., Lda;

xiii. 28 contratos de trabalho celebrados entre a empresa E..., Lda. e cidadãos de nacionalidade nepalesa, acompanhados de documentação pessoal relativa a estes;

xiv. 28 contratos de trabalho datados de 15 de Janeiro de 2016, celebrados entre a empresa HM e vários cidadãos de nacionalidade nepalesa, assinados pelo arguido PSV e carimbados pela empresa referida;

xv. 97 recibos de vencimento emitidos em nome de vários cidadãos nepaleses pela empresa E..., Lda;

xvi. Um Passaporte nepalês, um documento de identificação nepalês e uma carta internacional, todos emitidos em nome do cidadão Rhigendra G, com morada na Praça Sócrates da Costa,... em Lisboa;

xvii. Uma transferência bancária realizada para uma conta do Novo Banco em nome de Rashmi S., no valor de € 2.000;

xviii. Diversas transferências bancárias realizadas para trabalhadores de nacionalidade nepalesa que oscilam entre os € 68 e os € 400;

xix. 2 transferências bancárias para os cidadãos de nacionalidade presumivelmente portuguesa MDM e AJH;

xx. 2 comprovativos de depósito em numerário no Novo Banco, titulada por Rashmi S. no valor total de € 5.970;

xxi. 1 recibo comprovativo de transferência via MoneyGram, no valor de € 2.010, efetuada por UP para Shankar K;

xxii. 1 recibo comprovativo de transferência via MoneyGram, no valor de € 4.020, efetuada por NB para Svetlana B, residente em Israel;

xxiii. 1 Balancete geral financeiro da empresa E..., Lda., relativo ao mês de dezembro de 2015, apresentando um saldo de crédito final de € 59.167,96.

No que se refere aos descritos em 11.; 14. a 16.; 21. a 27.; 31.; 56. a 59.; 70. a 95., as declarações para memória futura (transcritas a fls. 2128 a 2692 – novo, décimo e parte do décimo primeiro volumes) prestadas, então, ainda, na qualidade de testemunhas, por SBA; SA; KJK; PG; TP; BKP; DK;TBK; BRK; RKS; NBS; KBT; AD; Uljwal P; Dipak K; Rabindra C; TBP; PBB e Bhandaria S, todos cidadãos nepaleses que são as pessoas identificadas no ponto 2. da matéria de facto provada, tendo, portanto, conhecimento direto de tais factos, que relataram de forma, essencialmente, coincidente, de forma serena, clara e credível;

Quanto aos referidos em 12.; 13.; 17. a 20.; 59. a 69., a análise conjugada das declarações do arguidos NBe UP, com os depoimentos prestados em memória futura, como testemunhas, de SBA; SA; KJK; PG; TP; BKP; DK;TBK; BRK; RKS; NBS; KBT; AD; Uljwal P.; Dipak K; Rabindra C.; TBP; PBB e Bhandaria S., com os contratos de trabalho de fls. 44 a 47, 53 a 56, 70 a 73, 83 a 86, 95 a 98, 103 a 106, 121 a 124, 131 a 134, 146 a 149, 156 a 159, 169 a 172, 179 a 182, 194 a 197, 205 a 208, 228 a 231, 239 a 242, 253 a 256, 266 a 269, 277 a 280,293 a 296, 304 a 307, 319 a 322, nos quais figuram como partes contratantes, na qualidade de trabalhadores e com os recibos de vencimento de fls. de fls. 40, 41, 74, 92, 102, 135 a 137, 151, 218, 325;

Em relação aos descritos em 28.; 29.; 30.; 32.; 33., a análise conjugada das declarações do próprio arguido PSV, com o teor do auto de apreensão de fls. 543 a 549, realizada no dia 05/07/2016, pelas 10:00, na residência do arguido PSV, que é também a sede social da sociedade arguida HM, Lda., bem assim de parte dos documentos apreendidos em resultado da busca a que se refere tal auto de apreensão e que são os seguintes: 3 (três) contratos de prestação de serviços celebrados entre a sociedade comercial HM, Lda. e a sociedade comercial E..., Lda., datados de 28MAR15, 150UT15 e 01FEV16; Três comprovativos de cheques emitidos pela HM, Lda., em nome da E..., Lda., no valor total de 40.807,21€ (quarenta mil oitocentos e sete euros e vinte e um cêntimos), relativos a pagamentos efetuados entre Abril e Junho de 2016 e, ainda, o auto de apreensão de fls.

No que se refere aos descritos em 34., a análise conjugada das declarações dos arguidos NB, UP e PSV, com os depoimentos das testemunhas EMF e ACC, SCL; ACC, JML, MCP e JOC, com as razões de ciência já indicadas, tudo concatenado com os documentos apreendidos em resultado da busca a que se refere o auto de apreensão de fls. 543 a 549 e descritos a propósito da motivação da decisão de facto quanto aos pontos 28.; 29.; 30.; 32.; 33., da matéria de facto provada;

Em relação aos descritos em 35. a 55., as fotografias de fls. 26 a 31 que ilustram o anexo à exploração da HM, onde os cidadãos nepaleses identificados em 2., foram alojados, conforme esclarecimentos prestados pelas testemunhas EMF e ACC, SCL; ACC, JML, MCP e JOC, com as razões de ciência já indicadas, aceites pelos três arguidos NB, UP (embora estes dois, querendo fazer passar a mensagem de que estas são condições de habitabilidade normais para os padrões de qualidade de vida no Nepal, circunstância completamente contrariada pelos depoimentos para memória futura e por aquilo que se pode ver nas fotografias, pois que não há padrão algum, no Nepal ou em qualquer outro local do planeta, ao abrigo do qual aquelas condições possam ser consideradas aceitáveis, sequer para animais, muito menos para pessoas) e PSV (que quis passar a ideia de que se tratava de uma situação transitória e de emergência, perante a alternativa de os trabalhadores não terem onde dormir, o que foi completamente posto em crise, quer pelas versões dos dois coarguidos, quer por depoimentos como o de SA que viveu cinco meses, naquele local).

Estes meios de prova foram conjugados e analisados criticamente com os depoimentos prestados em memória futura, como testemunhas, de SBA; SA; KJK; PG; TP; BKP; DK;TBK; BRK; RKS; NBS; KBT; AD; Uljwal P; Dipak K; Rabindra C.; TBP; PBB e Bhandaria S., pessoas que têm conhecimento diretos destes factos, uma vez que foram elas quem foram forçadas a suportar estas condições de alojamento e descreveram-nas de forma coerente e consistente com o que consta das mesmas fotografias;

No que se refere aos descritos em 56. a 58., as declarações dos arguidos NBe UP, conjugadas com declarações para memória futura (transcritas a fls. 2128 a 2692 – novo, décimo e parte do décimo primeiro volumes) prestadas, então, ainda, na qualidade de testemunhas, por SBA; SA; KJK; PG; TP; BKP; DK;TBK; BRK; RKS; NBS; KBT; AD; Uljwal P; Dipak K; Rabindra C.; TBP; PBB e Bhandaria S., todos cidadãos nepaleses que são as pessoas, por tais descontos que relataram de forma circunstanciada e, em grande parte coincidente com as versões dos próprios arguidos;

Em relação aos descritos em 96. a 114., por presunção judicial resultante da aplicação das regras de experiência comum aos factos conhecidos que são os enumerados e descritos em 1. a 13 e 17. a 95. da matéria de facto provada e, ainda de que todos os arguidos NB; UP e PSV são imputáveis, tudo, conjugado com as declarações prestadas por estes mesmos arguidos;

Em relação aos descritos em 115., com base nas declarações para memória futura (transcritas a fls. 2128 a 2692 – novo, décimo e parte do décimo primeiro volumes) prestadas, então, ainda, na qualidade de testemunhas, por SBA; SA; KJK; PG; TP; BKP; DK;TBK; BRK; RKS; NBS; KBT; AD; Uljwal P.; Dipak K; Rabindra C.; TBP; PBB e Bhandaria S., todos cidadãos nepaleses que são as pessoas identificadas no ponto 2. da matéria de facto provada, tendo, portanto, conhecimento direto de tais factos, embora nenhum deles tenha conseguido precisar com rigor quis os montantes que deviam ter recebido e quais os que efetivamente lhes foram pagos pelos arguidos, conjugadas com as declarações dos arguidos NB e UP que assumiram proceder a descontos nos salários destes trabalhadores, em função das despesas de alojamento e alimentação, bem como do número de hora de trabalho prestado, embora como o mesmo grau de imprecisão, que as testemunhas, quanto aos valores exatos descontados;

No que se refere aos descritos em 116., a análise conjugada do depoimento da testemunha SCL, Psicóloga ao serviço da APF, organização que, a solicitação do SEF, na sequência das ações de fiscalização levadas a cabo na exploração agrícola da HM, Lda. providenciou pelo acolhimento de parte dos cidadãos nepaleses identificado em 2., entre os quais, RKS e com quem a mencionada testemunha tem contactado para lhe prestar assistência e apoio, conjugado com o relatório psicossocial de elaborado pelo APF e junto a fls. 1662 e 1663;

Quanto ao descrito em 117., o depoimento prestado para memória futura por RKS, na qualidade de testemunha;

Em relação aos descritos em 118., os depoimentos das testemunhas SCL e RMM, ambas Psicólogas ao serviço da APF, organização que ajudou o SEF a encontrar alojamento para os vinte e três cidadãos nepaleses identificados em 2., tendo sido elas quem tem dado apoio psicológico a BKP, bem como ajudado a tratar de assuntos burocráticos e de organização da sua vida;

No que se refere ao descrito em 119., o depoimento de BKP, então, ainda na qualidade de testemunha, prestado para memória futura;

Quanto aos descritos em 120., os depoimentos das testemunhas SCL e RMM, ambas Psicólogas ao serviço da APF, organização que ajudou o SEF a encontrar alojamento para os vinte e três cidadãos nepaleses identificados em 2., tendo sido elas quem tem acompanhado KBT, dando-lhe apoio psicológico e ajudando-o a tratar dos assuntos correntes da sua vida;

Em relação aos descritos em 121., o depoimento prestado para memória futura por KBT, então, ainda, como testemunha;

Quanto aos descritos em 122., os depoimentos das testemunhas SCL e RMM, ambas Psicólogas ao serviço da APF, organização que ajudou o SEF a encontrar alojamento para os vinte e três cidadãos nepaleses identificados em 2., tendo sido elas quem tem acompanhado SA, dando-lhe apoio psicológico e ajudando-o a tratar dos assuntos correntes da sua vida;

Em relação aos descritos em 123., o depoimento prestado para memória futura por SA, então, ainda, como testemunha;

No que concerne aos descritos em 124., o depoimento da testemunha SNP, Psicóloga Social na APF e que providenciou um acolhimento de emergência por duas semanas para PG, com quem contactou durante esse período e a quem prestou apoio;

Em relação aos descritos em 125., o depoimento prestado para memória futura por PG, então, ainda, como testemunha;

Quanto aos descritos em 126., o relatório social de fls. 2897 e 2898;

Quanto ao descrito em 127., o depoimento prestado para memória futura por TBP, então, ainda, como testemunha;

No que se refere aos descritos em 128., a análise conjugada e comprada dos depoimentos das testemunhas SCL e RMM; SNP; Psicólogas na Associação APF que acolheu EMF, e ACC, ambas Inspetoras da Unidade Anti-Tráfico de Pessoas do SEF, que descreveram, de forma circunstanciada e clara que todos aqueles cidadãos nepaleses, identificados em 2. se encontravam, naqueles estados de espírito, por seu turno conjugados com o depoimento da testemunha AJR, Inspetor-Chefe do SEF, Delegação de Santarém, que prestou colaboração na realização da ação de fiscalização a que se referem os pontos 1. a 5. da matéria de facto provada e que transmitiu ao Tribunal, também com preocupação de rigor e com clareza, o desânimo daqueles trabalhadores, ao se encontrarem, naquelas condições de alojamento, na exploração agrícola da HM, Lda.;

No que se refere aos factos descritos em 129. a 163., o relatório social às condições de vida do arguido UP de fls. 2048 a 2051;

Em relação aos descritos em 164. a 194., o relatório social às condições de vida do arguido NB de fls. 2076 a 2081;

Em relação aos descritos em 195., os certificados de registo criminal dos arguidos de fls. 1240; 1820; 1821; 1822; 2125 e 2126.

Todas as restantes testemunhas inquiridas, que não foram mencionadas, na exposição antecedente, ou revelaram não ter conhecimento direto dos factos, ou nada de novo ou relevante acrescentaram aos depoimentos das testemunhas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal, quanto aos factos acima considerados provados, sendo que todas estas prestarem depoimentos isentos, com evidente preocupação de afirmarem apenas aquilo sobre que tinham certezas, de forma clara, firme e desassombrada, pelo que mereceram credibilidade ao Tribunal.

2.3. FACTOS NÃO PROVADOS
Por falta de produção de meios de prova esclarecedores e concludentes, não se provaram quaisquer outros factos que estejam em oposição com a matéria de facto acima dada como provada ou não tenham sido incluídos nela, designadamente, que o arguido UP também tenha redigido os contratos de trabalho mencionados, por exemplo, em 17. a 20., porquanto resultou do depoimento da testemunha APM, contabilista da empresa E..., Lda., que tais contratos obedeciam a uma minuta previamente concebida e redigida por uma outra pessoa;

Para além dos factos descritos em 115. a 128., não se provaram quaisquer outros factos de entre os alegados nos diversos pedidos cíveis ou de reparação formulados ao abrigo do disposto no art. 82º A do CPP.

Isto porque, além de em parte destes pedidos cíveis terem sido indicados como testemunhas, pessoas que vieram, numa fase posterior do processo a constituir-se assistentes e elas próprias a deduzirem pedidos de indemnização contra os arguidos, neste processo, ficando assim impedidas de deporem como testemunhas, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 133º; 346º e 347º do CPP, como foi o caso de SA; KBT e BKP (cfr. róis de testemunhas de fls.1660; 1676; 1697; 1691 e 2831), sendo certo que, como se pode ler nas transcrições dos seus depoimentos prestados para memória futura, numa fase anterior do processo em que ainda eram testemunhas, nada de elucidativo resultou quanto aos estados de alma, sentimentos ou outro tipo de impacto emocional ou comportamental que os crimes cometidos pelos arguidos tenham tido na esfera de cada um dos cidadãos nepaleses que apresentou ou pedido de indemnização civil ou pedido de reparação nos termos previstos no art. 82º A do CPP.

Noutros desses pedidos, foi reproduzido o rol de testemunhas da acusação ou a prova a produzir em audiência de discussão e julgamento (cfr. fls. 2801; 2853; 2861; 2933; 3073; 3250 e 3269).

Porém, com exceção das testemunhas SCL, RMM e SNP, todas Psicólogas ao serviço da APF, organização que colaborou com o SEF na retirada dos cidadãos identificados em 2.,das instalações da HM, Lda. e pelo seu acolhimento temporário que esclareceram, com conhecimento direto dos factos, o estado emocional e anímico em que se encontravam os cidadãos que acompanharam de perto, nos termos expostos na motivação acerca dos factos considerados provados nos pontos 116. a 127., nenhuma outras das várias testemunhas inquiridas revelou ter qualquer conhecimento dos factos invocados em tais pedidos cíveis e de reparação formulados.

Mais nenhum elemento de informação foi obtido, na medida em que não forma carreados aos autos quaisquer relatórios periciais de avaliação psicológica ou psiquiátrica aptos a permitir determinar quais as consequências, a nível de danos não patrimoniais que os crimes praticados pelos arguidos causaram aos demais demandantes cíveis, a mesmo tempo que, de todas as testemunhas inquiridas, nem tendo sido produzidos quaisquer outros meios de prova, quanto a tais aspetos factuais, pelo que os mesmos têm de se considerar não provados.

Há ainda algumas expressões usadas na acusação que, ou por reproduzirem o texto da lei, ou tecerem considerações jurídicas ou meras conclusões, não foram incluídas na decisão da matéria de facto.

Apenas por uma questão de clareza na exposição, aqui se transcrevem e são as seguintes:

A menção contida, no artigo 39. da acusação, «(…) com dispensa de visto, ao abrigo do estipulado no nº 2 do art. 88º da Lei n.º 23/2007 de 4 de Julho, ou seja, através do mecanismo excecional que permite a concessão de autorização de residência a quem tenha entrado legalmente em Portugal, e no nosso país permaneça legalmente»;

O artigo 41. Da mesma acusação «como decorrência deste facto, a permanência destes cidadãos em Portugal é também ilegal, e não há sequer possibilidade, face à lei, de ultrapassar este impedimento. Assim sendo, e de acordo com a lei portuguesa, será impossível a concessão de autorização de residência às vítimas» que é conclusivo;

Por fim, no que se refere à matéria alegada nos artigos 46. a 51. integra os resultado das diligências de busca realizadas no decurso da investigação, limitando-se a descrever os documentos apreendidos em resultado dessas buscas e que não integra, pois, quaisquer factos, apesar de que aqueles que oferecem relevo para a decisão da causa, foram referenciados na motivação da decisão de facto que é o seu lugar próprio de ponderação”.

3 - Apreciação do mérito dos recursos.

I - Recurso do arguido NB.

a) Da nulidade do acórdão revidendo, por omissão de pronúncia e por excesso de pronúncia (artigo 379º, nº 1, al. c), do C. P. Penal).

Sob a epígrafe “nulidade da sentença, estabelece o artigo 379º, nº 1, do C. P. Penal:

1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

A nulidade prevenida na alínea c) do transcrito preceito legal não se traduz, como nos parece evidente, numa nulidade por omissão de diligências (prevenida no artigo 120º, nº 1, al. d), do C. P. Penal) - essa não é uma nulidade da sentença, mas sim uma nulidade do procedimento, que, por isso, não está sujeita ao regime do artigo 379º do C. P. Penal -, nem se traduz, minimamente, na verificação de um qualquer erro de julgamento, nem se compagina com uma qualquer errada e/ou deficiente fundamentação probatória.

Ora, e com o devido respeito, o recorrente NB confunde tudo isso.

Ou seja, carece totalmente de sentido a alegação de tal recorrente segundo a qual ocorre nulidade, por omissão de pronúncia e por excesso de pronúncia, porquanto na “motivação da decisão de facto” pode ler-se que a motivação do tribunal se baseou ou nas declarações de arguidos e nos depoimentos de testemunhas, sem se especificar o conteúdo de tais declarações e depoimentos, ou na “análise comparada e conjugada” entre uns e outros, não se explicitando em que consistiu a análise ou a comparação, o mesmo sucedendo quando se considera, sem qualquer apreciação crítica, o conteúdo das declarações para memória futura, assim acontecendo também quando se diz que a convicção do tribunal radica nas declarações prestadas pelos arguidos NB e UP, acrescentando-se que as testemunhas ouvidas em depoimento para memória futura relataram de forma circunstanciada e em grande parte coincidente com as versões dos próprios arguidos, não se apontando qual a coincidência ou qual a “grande parte” da apontada coincidência, e assim sucedendo ainda quando se aponta unicamente o conteúdo dos depoimentos para memória futura e os depoimentos de três senhoras psicólogas, e quando se faz a análise conjugada e comparada destas três psicólogas e da Srª Inspetora do SEF ACC, que terão descrito desânimo dos trabalhadores, mas não explicitando em que consiste a conjugação ou a comparação.

Em suma: a nulidade da sentença prevenida no artigo 379º, nº 1, al. c), do C. P. Penal, não tem a ver, minimamente, com as alegações do recorrente NB nesta matéria, pois nada tem a ver com a insuficiência da prova ou da fundamentação probatória, com a validade da prova produzida, ou com a explicitação e a análise crítica das provas produzidas.

Assim, e manifestamente, não se configura a existência da invocada nulidade, por omissão de pronúncia e/ou por excesso de pronúncia (artigo 379º, nº 1, al. c), do C. P. Penal).

Alega ainda o recorrente NB que, na fundamentação da matéria de facto, se alude ao conteúdo dos depoimentos de AMV e de DSV, “pais do arguido SCL”, quando não existe nenhum arguido com tal nome.

Trata-se, como é bom de ver, de um manifesto lapso de escrita, pois essas duas testemunhas são pais do arguido PSV, o que resulta inequívoco do sentido em que foram valorados os seus depoimentos.

Por isso, deixa-se aqui corrigido o referido lapso de escrita, ao abrigo do disposto no artigo 380º, nº 1, al. b), e nº 2, do C. P. Penal.

Face ao predito, não merece provimento, nesta primeira vertente, o recurso do arguido NB.

b) Da nulidade do acórdão recorrido, por insuficiência de fundamentação (artigos 374º, nº 2, e 379º, nº 1, al. a), do C. P. Penal).

Dispõe o artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, sobre os “requisitos da sentença”: “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que, conjugadamente, determinaram o sentido da decisão (isto é, que a “fundamentaram”).

A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos - para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo -.

Por sua vez, o “exame crítico” das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que, em tal exame crítico, estejam exteriorizadas as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.

O que não se exige, na fundamentação da decisão fáctica (quer na enunciação das provas produzidas, quer no exame crítico das mesmas), é uma qualquer operação épica, em que o juiz tenha de expor, um a um, passo por passo, com inteiro detalhe, todo o seu percurso lógico dedutivo.

Não se exige, pois, que o juiz explane todas as possibilidades teóricas de conceptualizar a forma como se desenvolveu a dinâmica dos factos em determinada situação, e, muito menos, que o juiz equacione todas as possibilidades (muitas delas até desrazoáveis, e, mesmo, absurdas) suscitadas, ao sabor das suas conveniências, pelos diferentes sujeitos processuais.

Exige-se, isso sim, a enunciação, especificada, dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, a referência à credibilidade que os mesmos mereceram ao tribunal, e o exame do seu valor e relevância probatórios, permitindo-se, assim, no contexto ambiental, de espaço e de tempo dos factos delitivos em apreço, compreender os motivos e a construção do percurso lógico da decisão segundo as aproximações permitidas razoavelmente pelas regras da experiência comum.

Ora, foi isto que aconteceu na fundamentação da decisão fáctica constante do acórdão revidendo.

Na verdade, o tribunal a quo fundamentou a sua decisão fáctica de forma clara e transparente, sendo apreensível o processo da sua convicção, ou seja, permitindo-nos acompanhar, de forma linear, os raciocínios explicitados no acórdão revidendo.

O que acontece é que o recorrente NB não concorda com tais raciocínios.

Só que, esta discordância do ora recorrente, como é evidente, não configura a existência da invocada nulidade por falta de fundamentação.

Em conclusão: o acórdão recorrido não enferma de nulidade, por insuficiência de fundamentação (insuficiência de exame crítico da prova - artigos 374º, nº 2, e 379º, nº 1, al. a), do C. P. Penal -), ao contrário do que alega o recorrente NB.

Por conseguinte, e também neste segundo ponto, é de improceder o recurso do arguido NB.

c) Da validade dos depoimentos para memória futura.
Sob a epígrafe “declarações para memória futura”, preceitua o artigo 271º do C. P. Penal:

1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.

3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.

4 - Nos casos previstos no nº 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.

5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.

6 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352º, 356º, 363º e 364º.

7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações.

8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar”.

Reunidos os pressupostos processualmente exigidos para a respetiva produção (nos termos enunciados no preceito legal acabado de transcrever), as declarações para memória futura constituem um modo de produção de prova pessoal submetido a regras específicas, visando acautelar, bem vistas as coisas, o respeito pelos princípios estruturantes do processo penal, designadamente (e sobretudo) pelo princípio do contraditório (como resulta, claramente, do disposto no nº 3 do preceito legal em análise).

Ora, os depoimentos para memória futura efetuados no âmbito do presente processo obedeceram a todos os requisitos legais e salvaguardaram todos os aludidos princípios norteadores do processo penal, nomeadamente o princípio do contraditório.

É que, o ora recorrente foi representado, no ato processual onde decorreu a prestação dos depoimentos para memória futura, pelo seu Ilustre defensor, pelo que, e com o devido respeito, carece totalmente de sentido a alegação segundo a qual esse Ilustre defensor, presente aquando da prestação dos aludidos depoimentos, não pode ser considerado defensor do recorrente.

Do mesmo modo, é (a nosso ver) absolutamente despida de fundamento a alegação segundo a qual o Ilustre defensor do ora recorrente não se encontrava, na altura, em condições de poder assegurar a defesa.

Assim sendo, os depoimentos para memória futura constantes dos autos não violam o princípio do contraditório, nem constituem um meio enganoso de prova, nem são prova proibida (nos termos do preceituado no artigo 126º, nº 2, al. a), do C. P. Penal) - não se vislumbrando, minimamente, que esses depoimentos ofendam a integridade física ou moral de qualquer pessoa, ou que perturbem a liberdade de vontade ou de decisão de quem quer que seja, ou que tenham algo a ver com a reserva da intimidade da vida privada -.

Mais: também não vislumbramos, minimamente, que o disposto no artigo 271º, nº 3, do C. P. Penal, se interpretado com a dimensão normativa de que o defensor nomeado ao arguido pode nunca ter tido contacto com este, padeça de inconstitucionalidade material, por violação do artigo 32º, nºs 1, 3 e 5, da Constituição da República Portuguesa, e dos princípios gerais de defesa dos arguidos, constitucionalmente consagrados, neles se incluindo o princípio do contraditório.

Por outro lado, ao considerar os depoimentos para memória futura em questão, o tribunal não violou o preceituado no artigo 355º do C. P. Penal, nada impondo a reinquirição dos depoentes na audiência de discussão e julgamento (ao abrigo do disposto no artigo 340º, nº 1, do mesmo diploma legal) e nada impondo também que o conteúdo dos depoimentos oportunamente prestados fosse lido em audiência.

A atuação do tribunal a quo não envolve a violação do disposto no artigo 355º do C. P. Penal, porquanto a circunstância de os depoimentos para memória futura não terem sido lidos em audiência de discussão e julgamento não impede que os mesmos sejam tomados em consideração, quer por banda desse tribunal (para efeitos de formação da sua convicção), quer por parte deste tribunal ad quem.

Neste mesmo sentido foi decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência nº 8/2017 (publicado no D.R., nº 224, 1ª Série, de 21-11-2017), onde se fixou a seguinte jurisprudência: “as declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º e 356º, nº 2, alínea a), do mesmo Código”.

Perante o que vem de dizer-se, o recurso do arguido NB é de improceder também nesta terceira vertente.

d) Do crime continuado.
Sob a epígrafe “concurso de crimes e crime continuado”, estabelece o artigo 30º do Código Penal:

1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”.

Analisando esta disposição legal (no seu nº 1), a regra geral é a seguinte: a violação de mais do que um interesse jurídico ou a repetida violação do mesmo interesse jurídico conduz a outros tantos juízos de censura, porquanto cada violação brotou de uma resolução criminosa, autónoma, o que dá lugar a um concurso de crimes (real ou ideal).

Contudo, pode suceder, nos termos do preceituado no nº 2 do transcrito artigo 30º do Código Penal, que as diversas violações de bens jurídicos, nascidas de diferentes resoluções criminosas, apenas conduzam a um único juízo de censura, assim acontecendo quando a atividade do agente se mostra unificada por fatores que lhe são exteriores e contribuam para a diminuição considerável da culpa, dando lugar a um crime continuado.

Esta última hipótese constitui a exceção.

E tal exceção nunca poderá ocorrer, por expresso impedimento legal (consignado no nº 3 do preceito legal em análise), quando estejam em causa “crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”.

Mais: diz a lei (nº 2 do mesmo preceito legal) que, para haver continuação criminosa (ou seja, um único crime, executado na forma continuada), tem de ser o mesmo o “bem jurídico” protegido nas plúrimas ações do agente.

Como bem esclarece o Prof. Faria Costa (in “Formas de Crime”, nas Jornadas de Direito Criminal, CEJ, 1983, pág. 182), “o cerne da questão é aqui, como em muitas outras circunstâncias, o bem jurídico. O ataque sucessivo pode ser contra o mesmo bem jurídico ou contra bens jurídicos fundamentalmente idênticos. Há, porém, que levar a cabo neste contexto pequenos afeiçoamentos, nomeadamente quando se está em face de bens jurídicos eminentemente pessoais. Enquanto que, para os bens jurídicos não eminentemente pessoais, v. g. o património, é suficiente que a conduta vise bens jurídicos fundamentalmente idênticos, não sendo exigível a identidade da vítima, o mesmo se não passa relativamente aos bens jurídicos eminentemente pessoais, em que é de exigir a identidade da vítima”.

Dito de outro modo: para que se possa configurar um crime continuado, nos delitos que violam bens jurídicos eminentemente pessoais, é necessário, para além de outros requisitos, que não existam diferentes ofendidos.

Ou, ainda por outras palavras: quando os bens jurídicos violados são inerentes à pessoa, não se verifica, nunca, uma situação de continuação criminosa, se as vítimas forem várias.

Assim, e no nosso entender, estando em causa, nestes autos, crimes que violam bens jurídicos eminentemente pessoais, e sendo os ofendidos pessoas diversas, é, sem mais, de afastar a figura do crime continuado.

E, também a nosso ver, é inquestionável que o crime de tráfico de pessoas (p. e p. pelo artigo 160º do Código Penal) protege bens jurídicos eminentemente pessoais (o bem jurídico tutelado com tal incriminação, e como resulta, desde logo, da sua inserção sistemática, é a liberdade pessoal - e a liberdade pessoal vista numa perspetiva e numa forma especialmente grave e censurável de violação da mesma, por o delito em questão atentar, diretamente, contra a própria dignidade humana -).

É que, e como bem escreve Pedro Vaz Patto (in “O Crime de Tráfico de Pessoas no Código Penal Revisto - Análise de Algumas Questões”, nas Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, CEJ, 2008, pág. 182), “o próprio conceito de tráfico de pessoas evoca este sentido de mercantilização dessas pessoas, reduzidas a um objeto, quando lhes é inerente (…) uma dignidade, e nunca, como em relação às coisas, um preço”.

Perante o que vem de dizer-se, é de concluir, sem necessidade de mais considerandos, que, no caso, não se verifica a existência de crime continuado (visto serem 23 os ofendidos).

Por conseguinte, e também neste segmento, é de improceder o recurso do arguido NB.

e) Da medida concreta da pena (única).
A moldura abstrata da pena do concurso tem como limite máximo a soma das penas de prisão concretamente aplicadas aos vários crimes (não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e 900 dias, tratando-se de pena de multa), e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77º, nº 2, do Código Penal).

No caso destes autos, o limite máximo da pena de prisão a ponderar é de várias dezenas de anos (soma das penas parcelares aplicadas ao recorrente NB), e o limite mínimo dessa mesma pena é de 4 anos de prisão (pena parcelar mais elevada).

Dentro da moldura abstrata assim encontrada, é determinada a pena do concurso, para a qual a lei estabelece que se considere, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º, nº 1, do Código Penal), sem embargo, obviamente, de ter-se também em conta as exigências gerais da culpa e da prevenção a que manda atender o artigo 71º, nº 1, do mesmo Código Penal, bem como os fatores elencados no nº 2 deste artigo, referidos agora à globalidade dos crimes (e porque aqui se atende a tais fatores referidos ao conjunto dos factos, enquanto que nas penas parcelares esses fatores foram considerados em relação a cada um dos factos singulares, intocado fica o princípio da proibição da dupla valoração).

Como bem salienta o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, § 421, págs. 291 e 292), tudo deve passar-se, por conseguinte, “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade; só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.

No caso, é muito acentuada a gravidade do ilícito global (além do mais, os factos praticados pelo arguido NB e ora em apreciação ocorreram num período de tempo de vários meses, e, além disso, tiveram como ofendidos mais de duas dezenas de cidadãos nepaleses).

No contexto da personalidade unitária do arguido, os elementos conhecidos permitem dizer que a globalidade dos factos não é reconduzível a um desvalor que radique, pelo menos claramente, na personalidade do arguido NB, porquanto o mesmo não possui anteriores condenações criminais, não denotando também tal arguido, ao que consta dos autos, problemas de integração pessoal e social.

Pelo que fica exposto, e tendo também em devida conta os elementos diretamente conexionados com as condições de vida do arguido NB, tem-se como adequada a pena única fixada em primeira instância - 14 (catorze) anos de prisão -.

Improcede, assim, também neste ponto, o recurso do arguido NB.

f) Da suspensão da execução da pena.

Requer o recorrente NBa suspensão da execução da pena de prisão aplicada.

Nos termos do disposto no artigo 50º, nº 1, do Código Penal, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Ou seja, no caso dos autos, a pena aplicada ao recorrente NB não admite a ponderação da sua suspensão.

Com efeito, tal recorrente fica condenado na pena de 14 anos de prisão (excedendo, por isso, o limite máximo de 5 anos imposto pelo transcrito artigo 50º, nº 1, do Código Penal).

Assim sendo, a pena de prisão aplicada ao recorrente NBtem de ser de execução efetiva.
Perante tudo o que fica dito, é de manter a decisão revidenda, sendo de improceder (na sua totalidade) o recurso do arguido NB.

II - Recurso do arguido UP.

a) Da nulidade do julgamento.
Entende o recorrente UP Paudel que ocorre nulidade do julgamento, e em breve resumo, porquanto o tribunal de primeira instância teve em conta, indevidamente, os depoimentos para memória futura (violando o direito ao contraditório, sem reprodução dos mesmos na audiência de discussão e julgamento, etc.).

Conforme acima já dito, o Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte jurisprudência (Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 8/2017, in D.R., nº 224, 1ª Série, de 21-11-2017): “as declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º e 356º, nº 2, alínea a), do mesmo Código”.

Acerca da eficácia dos acórdãos de uniformização de jurisprudência, fora dos processos em que tenha lugar a respetiva prolação, dispõe o artigo 445ºº, nº 3, do C. P. Penal: “a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão”.

Este regime legal procura estabelecer um ponto de equilíbrio entre, por um lado, a desejável uniformidade, segurança e previsibilidade do Direito, e, por outro lado, o princípio da independência dos tribunais e da sua vinculação exclusiva à lei, tal como estabelecido no artigo 203º da Constituição da República Portuguesa.

Ao contrário do antigo instituto dos Assentos, que se caracterizava pela sua obrigatoriedade para a generalidade dos tribunais e cuja compatibilidade com o postulado constitucional da vinculação exclusiva destes à lei era, por isso, muito duvidosa e questionável, os atuais Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência possuem uma força vinculativa tendencial, ou seja, os tribunais podem divergir da orientação neles consagrada, mas, fazendo-o, ficam sujeitos a um especial dever de justificar a divergência.

A esta luz, e a nosso ver, sob pena de se esvaziar de conteúdo útil a institucionalização dos Acórdãos de uniformização de jurisprudência, os tribunais só devem afastar-se da doutrina acolhida nessas decisões perante razões ponderosas, como seja, por exemplo, a convicção de que orientação jurisprudencial preferida pelo Supremo Tribunal de Justiça é manifestamente incompatível com algum princípio jurídico fundamental, comumente aceite, ou violadora de normas constitucionais expressas.

Ora, nada disso sucede com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 8/2017 (acima citado), que tratou, diretamente, de uma situação idêntica àquela com que estamos confrontados nos presentes autos, e que nenhuma dúvida nos suscita, quer sobre uma possível violação de algum princípio jurídico essencial, quer sobre o desrespeito por qualquer norma constitucional.

Isto é, nenhuma razão existe, em nosso entender, para não ser acolhida a decisão constante do aludido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência.

Perante o decidido em tal Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, vista a concreta situação posta nestes autos, e analisando os argumentos do recorrente UP Paudel, cumpre deixar consignado o seguinte:

1º - Não houve qualquer violação do princípio do contraditório ou do direito ao contraditório, uma vez que o arguido, no ato processual da prestação dos depoimentos para memória futura, esteve sempre representado por Advogado.

2º - É irrelevante a circunstância de os ofendidos terem sido ouvidos, na fase de inquérito, na qualidade de testemunhas (nos depoimentos para memória futura em questão), e, depois, com o desenrolar do processo, terem adquirido o estatuto de assistentes (aliás, e em bom rigor, as testemunhas estão até sujeitas a um mais apertado e exigente dever de relatar a verdade dos factos, do que o estão, propriamente, os assistentes).

3º - É irrelevante determinar, agora (a posteriori), se os cidadãos nepaleses ouvidos para memória futura se ausentaram ou não de Portugal, ou se queriam ausentar-se ou aqui permanecer, pois que, na altura, estavam em situação irregular em Portugal.

4º - É ainda menos relevante, com o devido respeito, saber se aos aludidos cidadão nepaleses foi concedida autorização de residência, em virtude da sua colaboração com o SEF, como de uma “dilação premiada” se tratasse.

Face ao que vem de dizer-se, não ocorre a nulidade do julgamento invocada pelo recorrente UP, improcedendo o respetivo recurso neste primeiro aspeto.

b) Da nulidade, invalidade e falta de força probatória dos depoimentos para memória futura, e da nulidade de toda a prova posteriormente recolhida.

Na sequência do já explanado no ponto anterior, os depoimentos para memória futura constantes deste processo não enfermam de qualquer nulidade, não são inválidos e possuem força probatória.

Na verdade, esses depoimentos puderam ser contraditados (foram produzidos na presença dos sujeitos processuais), e, mesmo em sede de audiência de discussão e julgamento, todos os sujeitos processuais deles tinham conhecimento e sobre os mesmos se puderam pronunciar.

Nesta perspetiva, carece de sentido a alegação do recorrente UP segundo a qual os depoimentos para memória futura em análise não estão nos autos (quod non est in actiis, nom est in mundi).

Nada impede, assim, que os aludidos depoimentos para memória futura possam ser usados, como o foram na decisão revidenda, como prova inteiramente válida.

Carece também de sentido, com o devido respeito, a alegação do recorrente nos termos da qual os depoimentos para memória futura em causa violam os direitos, constitucionalmente consagrados, da reserva da intimidade da vida privada e da privacidade das comunicações.

Não vislumbramos, minimamente, existir qualquer fundamento válido para uma tal alegação, porquanto, e além do mais, não vemos existirem quaisquer conexões entre os depoimentos em questão e eventuais interceções telefónicas (autorizadas, ou não, no processo).

Em suma: não ocorre qualquer nulidade dos depoimentos para memória futura que foram prestados nestes autos.

Consequentemente, não se verifica também a invocada nulidade de toda a prova posteriormente recolhida (na opinião do recorrente UP, tal prova posterior foi obtida a partir de provas proibidas).

Posto o que precede, não merece provimento, também nesta segunda vertente, o recurso do arguido UP.

c) Dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova.

Dispõe o artigo 410º, nº 2, do C. P. Penal: “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova”.

A insuficiência a que se reporta a citada al. a) é um vício que ocorre quando a matéria de facto é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal deixou de apurar a matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objeto do processo, tal como este está circunscrito pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique. Tal vício consiste na formulação incorreta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.

Ao invocar que o acórdão sub judice enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o recorrente UP, em substância, fundamenta tal asserção no facto de o tribunal a quo ter efetuado uma incorreta valoração das provas produzidas em audiência de discussão e julgamento.

Constata-se assim, neste ponto, que o recorrente confunde a impugnação da matéria de facto, tal como previsto no artigo 412º, nºs 1 e 3, do C. P. Penal, com a invocação dos vícios da decisão elencados no artigo 410º, nº 2, do mesmo C. P. Penal - esquecendo que, em sede de apreciação destes vícios, a matéria de facto só é sindicável quando o vício de que a mesma possa enfermar “resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” (corpo do nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal).

Na verdade, como resulta expressamente da letra da lei, qualquer dos vícios a que alude o nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal tem de dimanar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a quaisquer elementos externos à decisão, designadamente às declarações ou aos depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo durante o julgamento.

Ora, conforme se pode constatar do teor da motivação do recurso (e suas conclusões) apresentado pelo arguido UP, este confunde os vícios previstos no nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal com a forma como foi valorada pelo tribunal a quo a prova produzida em audiência de discussão e julgamento.

Alega o recorrente UP, para concluir pela existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que o tribunal a quo não poderia ter dado como provado ter aquele cometido os crimes em causa, uma vez que tal conclusão não se baseou em prova bastante.

Em grande confusão, salvo o devido respeito, incorre o aludido recorrente nesta sua alegação.

Com efeito, nada disso tem a ver com insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

É que, o recorrente não invoca a falta de factos necessários para a decisão, que o tribunal devesse averiguar, desta forma confundindo (estranhamente, diga-se) uma situação de apreciação da prova com o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Aquilo que o recorrente pretende não é invocar o vício da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal, mas antes que o tribunal de recurso sindique a forma como o tribunal de primeira instância apreciou a prova produzida em audiência.
O recorrente limita-se, pois, a pôr em causa a suficiência dos meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, confundindo o vício a que se refere a alínea a) do nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal (insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito) com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida.

Tal como o recorrente põe a questão, o que o mesmo diz é que há insuficiência de prova para a matéria de facto dada como provada. Ora, essa invocação, assim formulada, e manifestamente, não consubstancia o vício agora em apreciação.

Como bem esclarecem Simas Santos e Leal Henriques (in “Recursos em Processo Penal”, Editora Rei dos Livros, 7ª ed., 2008, págs. 72 e 73), ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada “quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher”.

Ainda no dizer dos mesmos autores (ob. e local citados), ocorre o vício em análise quando “a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.

Dito de modo simples: ocorre o vício em questão quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito.

Ora, nada disso coincide com a alegação do recorrente UP neste ponto, nem nada disso se nos vislumbra estar patente no acórdão sub judice.

Não ocorre, por conseguinte, o invocado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

O erro notório na apreciação da prova, por seu lado, é prefigurável quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum.

Na sucinta (mas claríssima) exposição de Simas Santos e Leal Henrique (ob. citada, pág. 77), existe erro notório na apreciação da prova quando ocorre “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou (…). Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis”.

Quanto ao erro notório na apreciação da prova, vem sendo entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que ele apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias.

Tal vício nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta, face à prova produzida; ele só pode ter-se como verificado quando o conteúdo da respetiva decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, patenteie, de modo que não escaparia à análise do homem comum, que no caso se impunha uma decisão de facto contrária à que foi proferida.

O recorrente UP considera ter existido erro notório na apreciação da prova, e em resumo, porque o tribunal a quo não valorou as provas nos termos em que o devia ter feito, designadamente dando credibilidade aos ofendidos (que prestaram depoimentos para memória futura), quando não o devia ter feito, e usando de presunções judiciais, que o recorrente entende serem erradas e ilegítimas - por exemplo, entende o recorrente que ninguém falou do “lucro”, que o mesmo teve (ou teria), não tendo sido produzida qualquer prova direta nesse sentido -.

Na opinião do recorrente UP, e em suma, não foi feita qualquer prova, na audiência de discussão e julgamento, sobre os crimes de tráfico de pessoas pelos quais vem condenado.

Simplesmente, o recorrente UP, com tais alegações (e nos termos em que as faz), limita-se a trazer aos autos a perceção que teve da prova (prova que também nós, mais adiante neste acórdão, apreciaremos).

A esta luz, a discordância do recorrente UP perante a matéria de facto é inócua para os fins aqui em apreciação, uma vez que, objetivamente, nada resulta do teor da decisão sub judice que constitua erro notório na apreciação da prova (bem como não há qualquer insuficiência da matéria de facto provada, conforme acima exposto).

Nesta parte é, por conseguinte, totalmente de improceder o recurso interposto pelo arguido UP.

d) Da impugnação (alargada) da matéria de facto.
Alega o recorrente UP que a prova produzida é insuficiente para a condenação, que o tribunal a quo fez uso indevido e errado de presunções judiciais, que ocorreu violação do princípio in dubio pro reo, e que existiu desrespeito pelo disposto no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (princípio da presunção da inocência).

Desde logo, tem de assinalar-se que os recursos são legalmente definidos como juízos de censura crítica sobre concretos pontos de facto (e/ou matéria de direito) de que conheceu ou deveria ter conhecido a decisão impugnada.

Lendo (e relendo) a motivação do recurso do arguido UP, dela decorre, a nosso ver, que o recorrente apenas questiona, naquilo que é essencial, a circunstância de o tribunal a quo ter valorado os depoimentos para memória futura (cujo conteúdo o recorrente, direta e claramente, não questiona) - questão acima por nós já tratada -, e ainda a circunstância de o tribunal a quo ter retirado ilações da prova direta produzida, com as quais o recorrente, manifestamente, não concorda.

Ou seja, naquilo que nos cabe agora apreciar, e bem vistas as coisas, o recorrente UP questiona o uso de presunções, mediante as quais, a partir de determinados factos e de determinadas provas (provas diretas), o tribunal concluiu pela existência de outros factos (não diretamente provados), com base nos quais procedeu à condenação.

No fundo, e dito de outro modo, o recorrente UP pretende que este tribunal ad quem proceda à reapreciação da validade e da consistência das referidas presunções judiciais.

É, pois, essa tarefa (averiguação e decisão sobre a validade e a força probatória das presunções judiciais utilizadas na decisão fáctica revidenda) que, de seguida, passamos a empreender.

Ao contrário do que parece entender o recorrente UP, os factos dados por provados não têm, necessariamente, de se basear em prova direta dos mesmos.

Ainda que os arguidos neguem certos factos (nomeadamente na vertente subjetiva dos ilícitos praticados), e ainda que nenhuma prova (direta) seja produzida sobre tais fatos (também necessários para a incriminação), o julgador pode (e deve) recorrer à prova por presunção judicial (ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido - artigo 349º do Código Civil).

Como bem escreve o Prof. Cavaleiro Ferreira (in “Curso de Processo Penal”, 1986, Vol. II, págs. 289 e 290), “(...) a verdade final, a convicção, terá que se obter (neste caso) através de conclusões baseadas em raciocínios, e não diretamente verificadas; a conclusão funda-se no juízo de relacionação normal entre o indício e o facto probando (…). Por outro lado, um indício revela com tanto mais segurança o facto probando, quanto menos consinta a ilação de factos diferentes".
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis:

Num primeiro aspeto, trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova. Tal depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (por exemplo, a credibilidade que se concede a um certo meio de prova).

Num segundo nível, referente à valoração da prova, intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios. Agora, as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”.

Neste segundo nível, é legítimo o recurso às referidas presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125º do C. P. Penal), e o artigo 349º do Código Civil prescreve que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351º deste mesmo diploma legal).

Depois, as presunções simples ou naturais (as aqui em causa) são meros meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indireta se faz valer através desta espécie de presunções.

As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção.

As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência. O juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto.

No lapidar dizer do Prof. Vaz Serra (in “Direito Probatório Material”, B.M.J. nº 112, pág. 190), “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (...) ou de uma prova de primeira aparência”.

A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros.

No valor da credibilidade do “id quod”, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção. A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (cf. Prof. Vaz Serra, ibidem).

Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.

A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência, da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros. A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal, em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.

Há de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.

No caso sub judice, perante o imenso rol dos factos conhecidos (existência de dezenas de cidadãos nepaleses, com os quais o recorrente UP contatou, e os quais “contratou”, ao serviço e sob as ordens do arguido NB), olhando à natureza de alguns desses factos (condições de alojamento e de trabalho dos aludidos cidadãos nepaleses, remunerações por estes auferidas, partes dessas remunerações retidas - e objeto de apropriação - pelos arguidos NB e UP), ponderando os lucros e os proventos, de relativamente elevado valor, com o uso e a exploração dessa mão-de-obra, e atendendo aos estratagemas utilizados pelos arguidos NB e UP para convencerem os referidos cidadãos nepaleses a virem para Portugal, e com o devido respeito por diferente opinião, verificam-se todos os pressupostos acabados de expor relativos à validade e legitimidade do uso de presunções.

Este tribunal de recurso, como, aliás, qualquer cidadão de média formação e de são entendimento, subscreve, com total segurança, os factos dados por provados na decisão recorrida quanto à autoria dos factos por parte do arguido UP (agindo em coautoria com os demais arguidos) - ou seja, e no essencial, que os cidadãos nepaleses em causa foram vítimas de crime, por terem sido “enganados” (nas promessas feitas pelos arguidos, com o objetivo de os fazerem vir para Portugal), por terem sido objeto de “exploração” da respetiva força de trabalho, por essa “exploração” ter revertido em lucro ilícito para os arguidos, e por o arguido UP conhecer tudo isso, agindo ainda com o propósito de obter vantagens patrimoniais indevidas (advenientes da “exploração” laboral desses mesmos cidadãos nepaleses).

É linear, por resultar inequivocamente das regras da experiência, a conclusão acabada de retirar. O arguido UP, por si e/ou em conjugação com os demais arguidos, “explorou”, repetidamente e de diversos modos, a mão-de-obra dos cidadãos nepaleses em causa, auferindo lucros (relativamente avultados) dessa atividade delitiva, e sabendo, claramente, que toda essa sua atuação era feita de forma ilícita, proibida e criminalmente punível.

Resulta das regras da experiência comum que nenhum cidadão, nessa situação (na qual estava posto, e estava a agir, o arguido UP), poria hipótese diferente dessa.

E, uma vez que o arguido UP, quanto a esses seus concidadãos nepaleses, em parte os “contratava”, em parte os “iludia” com promessas não cumpridas, e, noutra parte, deles recebia fatias consideráveis das respetivas remunerações, por forma a, assim, obter proventos indevidos, resulta inequívoca a conclusão que incorreu na prática dos factos delitivos tidos como provados em primeira instância.

Aliás, e seguindo de perto a motivação de recurso do arguido UP, parece que tal recorrente pretende que este tribunal ad quem acredite nas suas próprias declarações (negatórias dos factos delitivos em apreço e “justificativas” de toda a sua atuação), não dando crédito aos demais elementos de prova, designadamente às declarações para memória futura dos cidadãos nepaleses ofendidos, e aos elementos documentais juntos ao processo, e, sobretudo, parece que o recorrente UP nega a possibilidade de o tribunal (quer o tribunal a quo, quer este tribunal ad quem) procederem à valoração e à apreciação da prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (como está preceituado no artigo 127º do C. P. Penal).

Face ao que vem de dizer-se, e muito embora privado da imediação, este tribunal ad quem nada vislumbra de errado na apreciação dos elementos probatórios constante do acórdão revidendo.

Com efeito, e como se impunha, o tribunal de primeira instância analisou todos os elementos de prova de que dispunha, e sopesou-os de modo conjunto, claro e objetivo, valorando-os à luz das regras da experiência comum (da lógica, da razão, da normalidade das coisas) e encontrando-se os seus raciocínios devidamente explicitados (sendo percetíveis por qualquer cidadão comum) - ou seja, e indo ao essencial, explicando o tribunal recorrido as razões pelas quais conferiu credibilidade ao conteúdo dos depoimentos para memória futura e ao teor dos demais elementos probatórios constantes dos autos, e não acreditou nas declarações “justificativas” do arguido UP (bem como não acreditou nas declarações “justificativas” dos demais arguidos).

A esta luz, de nada relevam (com o devido respeito) as insuficiências, as contradições, as omissões e as incoerências da decisão fáctica tomada no acórdão revidendo, salientadas na motivação do recurso do arguido UP, porquanto traduzem, a nosso ver, um exercício meramente formal e totalmente inócuo (com o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente UP).

É que, essas invocadas imprecisões, contradições, omissões e incoerências respeitam, sem mais, ou a questões laterais ao essencial da factualidade (por exemplo, a questão de o arguido UP ter um agendamento para o dia 18-11-2016, pelas 11h00m, num Posto de Atendimento do SEF, em Lisboa, relacionado com a sua Autorização de Residência), ou a meros pormenores e minudências totalmente inócuos e irrelevantes nesta sede (por exemplo, alega o recorrente UP que do segmento fáctico “NB celebrou com cada um deles, por si mesmo ou através do seu empregado, UP, ambos em representação e no exercício da atividade diária da arguida E...,Lda., contratos de trabalho, redigidos em língua portuguesa” tem de retirar-se a conclusão que, afinal, quem contratava não era o arguido UP, mas sim o arguido NB, face à sua situação de gerente e sócio da arguida “E...” - como se a questão posta nestes autos fosse uma questão cível, relativa à gerência de uma qualquer sociedade ou atinente à existência de mera responsabilidade contratual -).

Além disso, o recorrente UP, na motivação do seu recurso, faz diversas proclamações conclusivas, misturadas com a impugnação fáctica, sem o mínimo de sentido e que não nos cabe, sequer, rebater, pois esta instância recursória não tem de decidir sobre argumentos dos recorrentes, nem sobre visões parcelares trazidas pelos mesmos, competindo-lhe, isso sim, analisar e decidir questões (por exemplo, alega o recorrente UP que “foi condenado só porque trabalhava diretamente com o seu patrão, numa dependência hierárquica, e era amigo dele, como se fosse possível tal interpretação extensiva e como se a culpa fosse transmissível por osmose”; ou, ainda, que “para existir crime teria que haver dolo, ou seja, a intenção de o arguido cometer aqueles factos criminosos, o que nunca existiu, nem se percebe como, se foi dado como provado que o ora recorrente trabalhava sob ordens e instrução do arguido NB”).

Em conclusão: ao contrário do que invoca o recorrente UP, não existe in casu qualquer errada apreciação da prova produzia na audiência de discussão e julgamento.

Por último, alega o recorrente UP que ocorreu violação do princípio in dubio pro reo, e que existiu desrespeito pelo disposto no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (princípio da presunção da inocência).

O princípio in dubio pro reo (um dos princípios básicos do processo penal) significa, em síntese, que, para conduzir à condenação, a prova deve ser plena, sendo imprescindível que o tribunal tenha formado convicção acerca da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, isto é, a formação da convicção é um processo que “só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse” (Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1981, Vol. I, pág. 205).

Quando o tribunal não forma convicção, a dúvida determina inelutavelmente a absolvição, de harmonia com o princípio in dubio pro reo, o qual consubstancia princípio de direito probatório decorrente daqueloutro princípio, mais amplo, da presunção da inocência (constitucionalmente consagrado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa).

Com efeito, dispõe a C.R.P. (no nº 2 do seu artigo 32º) que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”, preceito que se identifica genericamente com as formulações do princípio da presunção de inocência constantes, além do mais, do artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e do artigo 6º, nº 2, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

Assim, “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed., pág. 203).

Este princípio tem aplicação na apreciação da prova, impondo que, em caso de dúvida insuperável e razoável sobre a valoração da prova, se decida sempre a matéria de facto no sentido que mais favorecer o arguido.

É evidente que as dúvidas do julgador quanto à prova produzida têm de ser racionais, por forma a ilidirem a certeza contrária (cfr. Ac. do S.T.J. de 01-07-2004, Processo nº 4P2791, in www.dgsi.pt), jamais podendo assentar na mera existência de versões contraditórias entre si ou na mera negação dos factos por parte dos arguidos.

Revertendo ao caso em apreço, e apesar das considerações constantes da motivação do recurso do arguido UP, o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida quanto à prática, por tal arguido, da totalidade dos factos que foram dados como provados no acórdão revidendo, e atinentes ao mesmo, bem como também este tribunal de recurso, perante a prova produzida, com nenhuma dúvida fica relativamente à prática dos factos em causa por parte do arguido UP (conforme acima exposto).

Dito de outro modo: a fundamentação da decisão de facto constante do acórdão sub judice não evidencia a existência de qualquer dúvida que tenha sido solucionada em desfavor do arguido UP, e, por outro lado, face à prova produzida, resulta, também para nós, a certeza da prática pelo referido arguido dos ilícitos pelos quais foi condenado (e pelos exatos factos, e nas precisas circunstâncias, tidos como provados em primeira instância).

Por conseguinte, não existindo dúvidas no espírito do julgador, afastada está, obviamente, a possibilidade de aplicação do princípio in dubio pro reo.

Assim sendo, o acórdão recorrido não merece, também neste aspeto, a censura que lhe foi dirigida pelo recorrente (violação do princípio in dubio pro reo, e violação do princípio da presunção de inocência - constitucionalmente consagrado -).

Face ao predito, é de improceder toda esta vertente do recurso interposto pelo arguido UP (impugnação alargada da matéria de facto).

e) Da qualificação jurídica dos factos (preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime de tráfico de pessoas).

O artigo 160º do Código Penal prevê (e pune) o crime de tráfico de pessoas nos seguintes termos:

1 - Quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos ou a exploração de outras atividades criminosas:

a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave;
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar;
d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou
e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.

2 - A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, recrutar, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos, a adoção ou a exploração de outras atividades criminosas.

3 - No caso previsto no número anterior, se o agente utilizar qualquer dos meios previstos nas alíneas do nº 1 ou atuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de três a doze anos.

4 - As penas previstas nos números anteriores são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a conduta neles referida:
a) Tiver colocado em perigo a vida da vítima;
b) Tiver sido cometida com especial violência ou tenha causado à vítima danos particularmente graves;
c) Tiver sido cometida por um funcionário no exercício das suas funções;
d) Tiver sido cometida no quadro de uma associação criminosa; ou
e) Tiver como resultado o suicídio da vítima.

5 - Quem, mediante pagamento ou outra contrapartida, oferecer, entregar, solicitar ou aceitar menor, ou obtiver ou prestar consentimento na sua adoção, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.

6 - Quem, tendo conhecimento da prática de crime previsto nos nºs 1 e 2, utilizar os serviços ou órgãos da vítima é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

7 - Quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima de crime previsto nos nºs 1 e 2 é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

8 - O consentimento da vítima dos crimes previstos nos números anteriores não exclui em caso algum a ilicitude do facto”.

Com o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente UP, tendo ficado provado, relativamente aos 23 trabalhadores em causa (de nacionalidade nepalesa), que tal recorrente tratou (em conjunto com outro arguido) da sua angariação e “contratação”, que providenciou pelo respetivo transporte e alimentação, que esses trabalhadores desconheciam a língua portuguesa, que lhes foi prometido, falsamente, a obtenção de autorizações de residência em Portugal, que, dos seus salários, o arguido UP (em conjunto com outro arguido) retirava parcelas significativas e indevidas, das quais se apropriava, atuando com dolo e sabendo a sua conduta proibida, não nos restam dúvidas de que incorreu na prática do crime de tráfico de pessoas pelo qual vem condenado.

É que, em face dos factos dados como provados, de nada servem as alegações do ora recorrente segundo as quais os trabalhadores nepaleses em questão podiam deixar de trabalhar quando bem entendessem (ninguém os impedia disso, ou os retinha contra a sua vontade), em momento algum lhes foi retido qualquer tipo de documentação pessoal, e nunca houve qualquer ameaça de represálias (ou do que quer que seja).

Na verdade, o crime verificou-se, sem necessidade da existência de tais requisitos, quando o arguido UP (agindo em coautoria), mediante ardil ou manobra fraudulenta, com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência económica, e aproveitando-se de uma situação de especial vulnerabilidade das vítimas, explorou o trabalho dos aludidos cidadãos nepaleses, retendo parte significativa do seu salário e apropriando-se dela (ainda que como forma de pagamento de supostas dívidas, ou de garantir supostas condições de alojamento e de alimentação).

Subscreve-se, assim, inteiramente, a propósito da questão que agora nos ocupa, o que se deixou escrito no acórdão revidendo: “a ação típica do tráfico de pessoas adultas pode revestir várias modalidades, segundo a previsão normativa contida no art. 160º, nº 1, do CP: oferta, entrega, aliciamento, aceitação, transporte (por meio próprio do agente ou de terceiro, mas custeado pelo agente), alojamento ou acolhimento de uma pessoa. (…) As modalidades de ação executiva - recrutar, aliciar, transportar, alojar ou acolher - não revestem qualquer dificuldade interpretativa, pois estão aqui mencionadas em conformidade com o sentido literal dos correspondentes verbos. Trata-se de um delito de intenção (“para fins de”), na medida em que visa a realização de um resultado que não faz parte do tipo, justamente, a exploração sexual, a exploração do trabalho, a extração de órgãos, ou outras atividades desumanas ou degradantes. (…) O tráfico de seres humanos é, não obstante, um crime de execução vinculada, porquanto cada uma destas modalidades de ação típica tem, forçosamente, de ser levada a cabo através de violência, rapto ou ameaça grave, de ardil ou manobra fraudulenta, com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar, mediante o aproveitamento da incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima, ou através da obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima. O tipo subjetivo exige o dolo, em conformidade com o princípio geral da excecionalidade da punição a título negligente, consagrada no art. 13º do CP”. (…) Nenhuma dúvida se suscita, na matéria de facto provada, no que concerne ao modo como todos estes vinte e três trabalhadores foram contratados pela E..., Lda., através dos arguidos NB e UP, para prestarem serviços agrícolas, na exploração de morangos sita em Paço dos Negros em Almeirim, explorada pelos arguidos PSV e HM, Lda. e, sobretudo, ao modo como foi executada a relação laboral e como estas pessoas viveram naquela exploração, que estão consumados os vinte e três crimes de tráfico de seres humanos. Com efeito, além da celebração de contratos de trabalho redigidos em língua portuguesa, que estes cidadãos nepaleses outorgaram e assinaram sem que dominassem o português e que soubessem qual o conteúdo correspondente, a retenção abusiva e ilegal de quantias monetárias dos salários dos trabalhadores e do desconto ilegal de outras, como é o caso das que alegadamente seriam necessárias para efetuar as inscrições na Segurança Social, bem assim dos montantes cobrados pelo alojamento e pela alimentação, apesar da remuneração mensal ilíquida prometida e exarada nos contratos de trabalho de € 530,00 (quinhentos e trinta euros), sujeita aos descontos legais e acrescida da quantia de € 1,70 (a título de subsídio de refeição), quantias que nunca foram pagas, na totalidade e que eram entregues aos trabalhadores em montantes variáveis, de mês para mês, segundo o que o arguido NB, em seu livre arbítrio entendia pagar, a ponto de os trabalhadores nunca saberem, afinal, qual iria ser o seu salário, no final de cada mês, nem conseguirem prever qual seria esse valor, circunstâncias estas que, conjugadas com a situação irregular em que esta pessoas se encontravam em Portugal e com a vontade que todos tinham em estabelecer residência em Portugal, constituem, outros tantos indícios empíricos de especial vulnerabilidade, de acordo com a Convenção nº 29 da OIT e no Human Trafficking and Forced Labour Exploitation: Guidance for Legislation and Law Enforcement, Genebra, 2005, págs. 107 a 110. Também as condições em que os arguidos forçaram estes trabalhadores a viver, enquanto se mantiveram ao serviço da E..., Lda. e da HM, Lda., por tão desumanas e degradantes, são claramente ofensivas dos direitos fundamentais destas pessoas ao sossego, à intimidade, à sua liberdade pessoal, até, à sua saúde, em suma, da sua dignidade enquanto seres humanos”.

Ao contrário do que alega o recorrente UP, não releva, a nosso ver, o facto de o mesmo ser, tão-só, funcionário da arguida “E..., Ldª”, e trabalhar sob os poderes de direção do arguido NB (sócio único e gerente de tal empresa).

Não é isso que retira ao arguido UP a ilicitude, a culpa, ou a qualidade de coautor.
É que, tal arguido, muito embora não recebesse diretamente os proventos da exploração exercida sobre os cidadãos nepaleses, agia, profissionalmente, para a prossecução da atividade mediante a qual se materializava essa exploração, sendo, a final, pago pela estrutura empresarial que explorava essa mesma atividade.

E, tal como os demais arguidos/recorrentes, tinha o domínio do facto, porquanto ele próprio fez contratações, efetuou pagamentos, e fez falsas promessas de legalização aos aludidos cidadãos nepaleses, mediante a condição de estes se sujeitarem a trabalhar em condições degradantes e desumanas.

Questiona o recorrente UP, sobretudo, a existência, in casu, de um “ardil ou manobra fraudulenta”, por si utilizado (no entender de tal recorrente, “ardil ou manobra fraudulenta” é a ação pela qual o agente engana outrem sobre o significado, o propósito e as consequências da sua ação, o que não aconteceu no caso destes autos).

Com o devido respeito, tal alegação carece de sentido, porquanto, sendo o arguido UP conhecedor das “fragilidades” dos seus concidadãos nepaleses, do desconhecimento, por banda dos mesmos, da língua portuguesa, da precariedade económica de tais cidadãos nepaleses, do seu desenraizamento, e da evidente predisposição para aceitarem condições de trabalho como aquelas que lhes foram oferecidas e que encontraram, fez, a tais concidadãos seus, promessas falsas, de legalização em Portugal, e de, com adequadas condições de vida e de trabalho, se instalarem no nosso país.

Face ao exposto, é de improceder, também neste segmento, o recurso do arguido UP.

f) Do crime continuado.
Alega o recorrente UP que está errada a sua condenação por 23 crimes, de forma autónoma, pois que, quando muito, estaríamos perante um crime, na forma continuada.

A mesma questão já foi acima tratada e decidida (a propósito do recurso interposto pelo arguido NB) - em termos para os quais aqui se remete -, sendo que, e resumidamente, não se pode configuar, in casu, a existência de crime continuado, face ao preceituado no artigo 30º, nº 3, do Código Penal (não pode verificar-se um crime continuado quando estejam em causa “crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”).

Ou seja, para que se possa configurar um crime continuado, nos delitos que violam bens jurídicos eminentemente pessoais, é necessário, para além de outros requisitos, que não existam diferentes ofendidos.

Por conseguinte, estando em causa, nestes autos, crimes que violam bens jurídicos eminentemente pessoais, e sendo os ofendidos pessoas diversas - são 23 pessoas -, é de afastar, liminarmente, a figura do crime continuado.

Assim sendo, e também nesta vertente, é de improceder o recurso do arguido UP.

g) Da atenuação especial da pena.
Entende o recorrente UP que a sua pena tem de ser especialmente atenuada, com redução dos limites máximo e mínimo da moldura abstrata da pena aplicável, em consonância com o disposto no artigo 73º do Código Penal, já que a sua conduta delitiva é muito menos grave do que a dos restantes arguidos.

Dispõe o artigo 72º, nº 1, do Código Penal, que “o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente ou a necessidade da pena”.

Por sua vez, o nº 2 do mesmo artigo elenca exemplificativamente circunstâncias várias que, correlacionadas com os requisitos contidos no nº 1, ainda do mesmo normativo, potenciam a atenuação especial da pena.

Deste modo, foi criada pelo legislador uma válvula de segurança para situações particulares, que se justifica de acordo com o seguinte, seguindo a exposição do Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2011, § 444, pág. 302): “quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo “normal” de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respetiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena. Hipóteses que, em muitos casos, o próprio legislador prevê, mas que a apontada incapacidade de previsão leva ainda a suprir com uma cláusula geral de atenuação especial”.

O funcionamento de uma tal válvula de segurança obedece a dois pressupostos essenciais, a saber:

- Diminuição acentuada da ilicitude e da culpa, ou da necessidade da pena, e, em geral, das exigências de prevenção;

- A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá considerar-se relevante para tal efeito (isto é, só poderá ter-se como acentuada), quando a imagem global do facto, resultante da atuação das circunstâncias atenuantes, se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respetivo.

O que, por outras palavras, significa que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar. Para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, “vulgares” ou “comuns”, lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios (cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. citada, § 444, § 451 e § 454).

A via trilhada pelo legislador, ao elaborar as aludidas normas, foi a de elencar exemplificativamente circunstâncias atenuantes de especial valor, a fim de dar ao juiz critérios mais rigorosos de avaliação do que aqueles que seriam dados através de uma cláusula geral. Ou seja, sem criar obstáculo à necessária liberdade do juiz, põem-se à disposição deste princípios delimitadores mais sólidos e facilmente apreensíveis para que, em cada caso concreto, se decida pela aplicação ou não do instituto em causa.

Porém, há que evidenciar que as situações a que aludem as diversas alíneas do nº 2 do citado artigo 72º do Código Penal não têm, por si só, a virtualidade de conferir poder atenuativo especial, impondo-se o seu relacionamento com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena.

No caso sub judice, alega o recorrente UP que as penas a si aplicadas devem ser especialmente atenuadas, devido à circunstância de a sua conduta delitiva ser muito menos grave do que as dos restantes arguidos.

Com o devido respeito por tal alegação, a mesma carece totalmente de sentido (em sede de “atenuação especial da pena”).

É que, a invocada circunstância (menor gravidade da sua conduta delitiva, quando comparada com as dos demais arguidos) não cabe na previsão (exemplificativa) do nº 2 do artigo 72º do Código Penal, nem é de integrar na previsão (geral) do nº 1 do mesmo preceito legal (porquanto ela não diminui, minimamente, a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena).

Mais: no quadro do circunstancialismo global que a matéria de facto revela, não existem circunstâncias ligadas à ilicitude do facto, à culpa do agente ou à necessidade da pena, que importem a impossibilidade da adequação concreta das penas dentro das molduras normais estabelecidas para os crimes em análise, não se justificando, deste modo, a atenuação especial das penas, ao contrário da pretensão do recorrente UP.

O recurso do arguido UP é, pois, também neste aspeto (atenuação especial da pena), de improceder.

h) Da medida concreta das penas.
Entende o recorrente UP que as penas aplicadas (desde logo, as penas parcelares) o foram em medida excessiva.

Preceitua o artigo 40º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2).

O artigo 71º do mesmo diploma estipula, por outro lado, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (nº 2 do mesmo dispositivo).

Dito de uma outra forma, a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspetos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim o delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa proteção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Como refere Claus Roxin (in “Derecho Penal - Parte General”, Tomo I, tradução da 2ª edição alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas, págs. 99 e 100), em asserção perfeitamente consonante com os princípios basilares do direito penal português, “a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada”.

Mais refere o mesmo autor (ob. citada, pág. 101) que “a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva”.

Por fim, escreve ainda Claus Roxin (ob. citada, pág. 103), “a pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais”.

No caso em apreciação, há que considerar:
- O elevado grau de ilicitude dos factos, revelado pelas circunstâncias em que o arguido UP atuou (sendo certo, por um lado, que se a atuação do arguido não sai do habitual - em situações do mesmo género -, não é menos certo, por outro lado, que essa atuação se prolongou por muitos meses, e, além disso, envolveu uma estrutura organizativa já bastante sofisticada).
- O dolo, que se expressa na sua forma mais intensa (dolo direto).
- A condição pessoal e a condição económica do arguido.
- A conduta anterior do arguido (ausência de condenações criminais anteriores).
- Ainda, e finalmente, as necessidades de prevenção geral positiva ou de integração, que são acentuadas, num contexto temporal em que, cada vez mais, se intensificam fluxos migratórios (sobretudo para a Europa), muitos deles de índole ilegal, e alguns deles com exploração, degradante e desumana, dos migrantes.

Da análise conjugada de todos os descritos elementos, afigura-se-nos que as penas parcelares em causa (4 anos de prisão) estão criteriosamente fixada pelo tribunal a quo, não merecendo, deste modo, e também nesta parte, a decisão recorrida qualquer censura - atente-se que a moldura penal abstrata prevista para cada um dos crimes praticados é pena de prisão de 3 a 10 anos -.

Soçobra, pois, a pretensão do recorrente UP consistente em ver reduzida a medida concreta das penas parcelares de prisão aplicadas em primeira instância.
*
Questiona ainda o recorrente UP a pena única (13 anos de prisão) aplicada, em cúmulo jurídico, pela prática dos 23 crimes de tráfico de pessoas, que entende ser exagerada e desproporcional, não se justificando, atendendo ao grau de participação dos três arguidos nos factos delitivos, uma diferença de apenas 1 ano de prisão nas penas únicas fixadas.

Em primeiro lugar, e ao contrário do que invoca o recorrente UP, não houve qualquer desproporcionalidade na aplicação das penas únicas, em desfavor do mesmo, pois foi condenado na pena única de 13 anos de prisão e os outros dois arguidos foram condenados em 14 anos de prisão, o que, a nosso ver, é diferença suficiente para assinalar o diferente grau de participação dos três arguidos no cometimento dos delitos em causa.

Em segundo lugar, e ao invés do que também alega o recorrente UP, a pena (única) de 13 anos de prisão não é desproporcional nem injusta, em comparação com outros processos idênticos, porquanto, por um lado, não existem processos como iguais concretas características (nem o ora recorrente os identifica), e, por outro lado, essa circunstância não é, sem mais, critério para estabelecer a medida concreta das penas.

Por último, a pena (única) aplicada ao arguido UP não é exagerada, nem inadequada, teve em consideração os critérios legalmente previstos para a sua fixação, não evidencia qualquer violação do princípio da proporcionalidade das penas, nem viola qualquer preceito legal ou constitucional.

É que, a moldura abstrata da pena do concurso aqui em análise tem como limite máximo da pena de prisão várias dezenas de anos (soma das penas parcelares aplicadas ao recorrente UP), e o limite mínimo dessa mesma pena é de 4 anos de prisão (pena parcelar mais elevada) - conforme disposto no artigo 77º, nº 2, do Código Penal -.

Dentro da moldura abstrata assim encontrada, é determinada a pena do concurso, para a qual a lei estabelece que se considere, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º, nº 1, do Código Penal), sem embargo, obviamente, de ter-se também em conta as exigências gerais da culpa e da prevenção a que manda atender o artigo 71º, nº 1, do mesmo Código Penal, bem como os fatores elencados no nº 2 deste artigo, referidos agora à globalidade dos crimes (e porque aqui se atende a tais fatores referidos ao conjunto dos factos, enquanto que nas penas parcelares esses fatores foram considerados em relação a cada um dos factos singulares, intocado fica o princípio da proibição da dupla valoração).

No caso, é acentuada a gravidade do ilícito global (além do mais, os factos praticados pelo arguido UP e ora em apreciação ocorreram num período de tempo de vários meses, e, além disso, tiveram como ofendidos mais de duas dezenas de cidadãos nepaleses).

No contexto da personalidade unitária do arguido, os elementos conhecidos permitem dizer que a globalidade dos factos não é reconduzível a um desvalor que radique, pelo menos claramente, na personalidade do arguido UP, porquanto o mesmo não possui anteriores condenações criminais, não denotando também tal arguido, ao que consta dos autos, problemas de integração pessoal e social.

Assim, e tendo também em devida conta os elementos diretamente conexionados com as condições de vida do arguido UP, a pena única fixada em primeira instância - 13 anos de prisão -, mostra-se inteiramente correta.

Improcede, assim, também nesta matéria, o recurso do arguido UP.

i) Da suspensão da execução da pena.
Invoca o recorrente UP a existência de diversas circunstâncias pessoais que, depondo a seu favor, concorreriam para uma suspensão da execução da pena.

Porém, não estão reunidas as condições de direito necessárias para a pretendida suspensão da execução da pena de prisão, porquanto a pena (única) encontrada (13 anos de prisão) excede o limite máximo estabelecido no artigo 50º, nº 1, do Código Penal, para a possibilidade de suspensão da execução da pena (5 anos).

Como tal, a pena de prisão aplicada ao arguido UP tem de ser de execução efetiva.

Face ao predito, é de improceder, na sua totalidade, o recurso do arguido UP.

III - Recurso do arguido PSV.

a) Da nulidade do acórdão recorrido, por insuficiência de fundamentação (artigo 379º, nº 1, al. a), do C. P. Penal).

Alega o recorrente PSV que o acórdão recorrido não indica quais os elementos de prova que serviram para fundamentar a convicção do tribunal no que concerne aos factos dados como provados entre 59 e 95, muito menos expondo o caminho lógico que levou à formação de tal convicção, saltando da análise/fundamentação da factualidade que deu como provada entre 56 a 58 para a que deu como provada entre 96 e 114; o mesmo sucede para os factos provados entre 96 e 114, visto que estes foram dados como provados por presunção, tendo por base, também, os factos provados entre 59 e 95.

Com o devido respeito por tal alegação, a mesma carece de sentido, por vários motivos:

1º - O próprio recorrente PSV, na motivação do seu recurso, e por forma a tentar excluir a ilicitude da sua conduta, raciocina com base nos factos tidos como assentes no acórdão revidendo sob os nºs 59 a 95, e questiona, com argumentos contrários, as presunções que estão na base da prova dos factos nºs 96 a 114.

2º - Os factos nºs 59 a 95 estão provados pelos depoimentos prestados para memória futura, em conjugação com as próprias declarações dos três arguidos.

3º - Foi isso mesmo que ficou consignado na motivação da decisão fáctica constante do acórdão sub judice (independentemente da questão, meramente “formal” e absolutamente inócua, de nem sempre o tribunal a quo ter reportado os elementos probatórios, que analisa e pondera detalhadamente, a este ou àquele facto, a este ou àquele grupo de factos).

4º - A motivação da decisão de facto, em geral, e ao contrário do que parece entender o recorrente PSV, não tem de ser especificada passo a passo, facto a facto, como se de um formulário ou de um ritual se tratasse, numa operação épica e inexigível, em que o juiz, ponto por ponto, tem de descrever, até à exaustão, tudo o que analisou, tudo o que pensou e tudo o que concluiu.

5º - Na motivação da decisão fáctica constante do acórdão recorrido, o tribunal a quo explicitou, abundantemente, as razões da sua convicção, quanto aos factos considerados provados (a todos eles).

6º - Essa fundamentação consistiu numa análise exaustiva de todos os meios de prova, e abarcou toda a factualidade considerada provada, e foi feita de tal modo que os arguidos (entre eles o recorrente PSV) a entenderam, e, por isso, especificadamente, a questionam e impugnam.

O acórdão sub judice não padece, por via do exposto, de falta ou de insuficiência de fundamentação, pelo que, neste primeiro ponto (nulidade da decisão recorrida, por insuficiência de fundamentação - artigo 379º, nº 1, al. a), do C. P. Penal -), o recurso do arguido PSV não merece provimento.

b) Da nulidade (ou irregularidade) por omissão da prática de diligências essenciais para a descoberta da verdade material.
O processo penal deve configurar-se, também do ponto de vista da atuação processual dos arguidos, como um due process of law, sendo de considerar inconsequentes, inócuos, e sem consequências anulatórias, procedimentos em que o arguido, furtando-se, por exemplo, a notificações para comparência, venha, depois, invocar a omissão da realização das diligências a que, injustificadamente, faltou.

Ora, a esta luz, não tendo o arguido PSV comparecido às entrevistas, cujo agendamento lhe foi comunicado, com vista à elaboração do relatório social, nem tendo justificado tais faltas, e nada tendo trazido aos autos, por sua iniciativa, para apurar das suas condições de vida, nem sequer as alegando minimamente, não faz qualquer sentido invocar agora, em sede de recurso, que o tribunal recorrido devia averiguar o porquê da não comparência do arguido às aludidas entrevistas, ou promover a elaboração do relatório social durante a fase do julgamento, ou esclarecer, por qualquer outro modo, as circunstâncias de vida do arguido.

Depois, em que medida, com a descrita atuação do tribunal a quo, a decisão condenatória omitiu factos relevantes para a determinação da sanção?

Quais são esses factos?

Qual a relevância dos mesmos na determinação da medida concreta da pena?

Sobre isso, nada é alegado pelo ora recorrente, pelo que, legitimamente, é de concluir que a sua pretensão consiste apenas (com o devido respeito) em procurar na decisão revidenda irregularidades, nulidades e vícios, com o único objetivo de a invalidar, mas, bem vistas as coisas, sem qualquer fundamento, material e claro, para o efeito.

Num outro momento da motivação do recurso (no meio da impugnação da decisão fáctica), o arguido PSV alega ainda que o tribunal a quo devia ter oficiado ao Instituto de Emprego e Formação Profissional (ou ao competente serviço de emprego do Centro de Emprego e Formação Profissional da área onde se situa a herdade do arguido), para que este prestasse, quanto a determinado assunto, os esclarecimentos devidos, o que se impunha a tal tribunal, nos termos do disposto no artigo 340º do C. P. Penal, sendo que, não tendo feito essa diligência, o tribunal a quo omitiu a prática de diligências essenciais para descoberta da verdade material - o que se traduz na nulidade prevista no artigo 120º nº 2, al. d), do C. P. Penal, ou, no limite, em irregularidade nos termos do artigo 123º do mesmo diploma legal -.

Também aqui valem as considerações antes tecidas.

Se, na audiência de discussão e julgamento, estava presente o arguido PSV (e o seu Ilustre mandatário), se havia necessidade de realizar uma qualquer diligência probatória, por que razão o arguido não requereu a sua realização?

Ou seja, devendo o processo penal configurar-se, também do ponto de vista da atuação processual dos arguidos, como um due process of law, é totalmente inconsequente e inócua a alegação agora feita (em sede de recurso), segundo a qual o tribunal omitiu a realização de uma determinada diligência probatória, que devia ter feito ex officio.

Mais: se a alegada omissão da prática de diligências essenciais para a descoberta da verdade material configura a invocada nulidade, prevista no artigo 120º nº 2, al. d), do C. P. Penal (ou uma simples irregularidade, nos termos do disposto no artigo 123º do mesmo diploma legal), devia ter sido tempestivamente arguida pelo ora recorrente, nos prazos legalmente previstos para o efeito (conforme preceituado nos artigos 120, nº 3, e 123º, nº 1, do C. P. Penal), e não (apenas) em sede do presente recurso.

Assim, a invocação agora feita é, manifestamente, extemporânea.

Posto o que precede, é de improceder, também neste segmento, o recurso do arguido PSV.

c) Dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da contradição insanável da fundamentação.

Invoca o recorrente PSV a existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porquanto não existem factos, dados como provados, relativos às suas condições de vida.

O arguido PSV nasceu em 18-12-1975, é empresário agrícola (como tal está identificado nos autos), explorava uma herdade no Ribatejo (a “HM, Ldª”), “empregava”, na sua herdade, trabalhadores estrangeiros (os cidadãos nepaleses em causa nestes autos) - factos que ressaltam, inequivocamente, de toda a factualidade provada -, e não possui antecedentes criminais (facto provado no acórdão revidendo sob o nº 195).

Foi condenado na pena de 4 anos de prisão por cada crime de tráfico de pessoas cometido (numa moldura penal de vai de 3 a 10 anos de prisão), e foi condenado na pena única de 14 anos de prisão (começando a moldura do cúmulo em 4 anos de prisão, e terminando, abstratamente, em 92 anos).

Ora, perante o que acaba de dizer-se, quais são os factos, que deviam ter sido averiguados e considerados como provados - relativos às condições de vida do arguido PSV -, relevantes para a decisão (por exemplo, para a determinação da medida concreta das penas), cuja omissão possa configurar o invocado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada?

Não vislumbramos, nem o recorrente PSV no-lo diz na motivação do seu recurso.

Assim, e repetindo-se o acima já dito, a invocação do vício agora em apreço tem por único objetivo (a nosso ver, e com o devido respeito) tentar invalidar ou protelar a decisão deste processo, não possuindo tal invocação qualquer pertinência, fundamento substantivo ou relevância visível.

Alega ainda o recorrente PSV que a decisão recorrida enferma também do vício prevenido no artigo 410º, nº 2, al. b), do C. P. Penal (contradição insanável da fundamentação).

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ocorre quando se dá como provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando, simultaneamente, se dão como provados factos contraditórios.

No dizer de Simas Santos e Leal Henrique (in “Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 75), existe contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão quando ocorre “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”.

Referem os mesmos autores (ob. e local citados) que “há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada”.

Só pode falar-se no vício da contradição insanável da fundamentação, quando um determinado facto provado seja logicamente contraditório com outro dado factual que serviu de base à decisão final, ou quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida por haver colisão entre os fundamentos.

Revertendo ao caso sub judice, o recorrente PSV entende que o vício da contradição insanável da fundamentação afeta múltiplas passagens da decisão revidenda, porquanto muitos factos e inúmeras circunstâncias, tidos como provados, são contraditórios entre si.

Com o devido respeito, não assiste qualquer razão a tal recorrente nessas suas invocações, que, no fundo, mais não traduzem do que meras divergências entre a convicção obtida pelo tribunal a quo sobre a prova (e os factos) e a convicção que o ora recorrente tem (ou melhor: diz ter) sobre a prova e os factos.

Nomeadamente, não existe qualquer contradição entre o que foi dado como provado em 47 e 49 e em 50 a 53.

É que, dar-se como provado que “não havia água canalizada” (facto 47), e que “não era fornecida água aos trabalhadores” (facto 49), não é, minimamente, contraditório com dar-se também como provado que tais trabalhadores utilizavam, para beber, tomar banho, cozinhar ou despejar a sanita, água que servia o sistema de rega da herdade, e água “contida num depósito ali existente” (factos 50 a 53).

Com efeito, uma coisa é água potável, tratada, segura, bebível, e outra, bem diferente, é água utilizada para rega, contida num qualquer “depósito”.

No mais, e repete-se, as alegações do recorrente PSV, em toda esta vertente, traduzem uma impugnação (alargada) da matéria de facto (que trataremos de seguida), não sendo enquadráveis em qualquer dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do C. P. Penal.

Em conclusão: o acórdão recorrido não enferma dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou da contradição insanável da fundamentação.

Por isso, o recurso do arguido PSV não merece, também aqui, provimento.

d) Da impugnação alargada da matéria de facto.
Numa visão niilista da decisão fáctica tomada em primeira instância, o recorrente PSV impugna toda a factualidade dada como provada no acórdão revidendo, e relevante para o preenchimento dos elementos dos tipos legais de crime pelos quais foi condenado, como se o julgamento em primeira instância não tivesse existido e como se este tribunal de recurso estivesse obrigado a levar a cabo um novo (e integral) julgamento fáctico, com ponderação, bem vistas as coisas, de toda a prova produzida.

Ora, os recursos são legalmente definidos como juízos de censura crítica (sobre concretos pontos de facto e matéria de direito de que conheceu ou deveria ter conhecido a decisão impugnada), e não como “novos julgamentos”.

Mais: lendo a motivação do recurso interposto pelo arguido PSV, dela decorre, claramente, que o recorrente apenas questiona, naquilo que é essencial, a circunstância de o tribunal a quo ter seguido um processo de convicção diferente do do recorrente, pedindo-se, em conformidade, a reapreciação da prova na (quase) totalidade desta.

Aquilo que o recorrente PSV pretende, no fundo, é que este tribunal de recurso proceda a um novo julgamento, analisando toda a prova produzida na primeira instância, e, é óbvio, fixando depois a matéria de facto de acordo com uma convicção que o recorrente pretende seja idêntica à dele próprio.

Aliás, e seguindo de perto a motivação de recurso, o recorrente pretende até que este tribunal ad quem acredite nas suas próprias declarações (negatórias e “explicativas” dos factos delitivos em apreço) - cujo teor transcreveu, na íntegra, em anexo à motivação do recurso - não dando crédito aos demais elementos de prova, designadamente às declarações para memória futura e aos elementos documentais juntos ao processo.

Esquece o recorrente, desde logo, que as suas declarações, transcritas em anexo à motivação do recurso, devem ser valoradas conjugadamente com a restante prova, tendo de ser sopesados, nessa valoração, outros elementos de prova, objetivos e inequívocos, que permitam atribuir, ou não, credibilidade a tais declarações.

Ora, lendo as aludidas transcritas declarações (transcrição constante de fls. 3579 a 3625 dos autos), constatamos, sem hesitações, que as mesmas não nos merecem credibilidade, já que, com o devido respeito, é nítida a permanente inconsistência das mesmas, estando, manifestamente, afastadas da lógica normal das coisas (ou seja, a versão dada pelo arguido desrespeita as elementares regras da experiência comum e contraria a demais prova produzida - o que analisaremos já de seguida -).

Por outro lado, esquece ainda o recorrente PSV que, na valoração da prova pessoal, é decisiva a imediação e a oralidade, pois a perceção da postura e do modo como tal arguido prestou declarações é fundamental para a formação da convicção do juiz.

À luz dos anteriores considerandos, e revertendo ao caso sub judice, verifica-se:

- Não havia água canalizada, potável e bebível, o que decorre, claramente, das declarações para memória futura, prestadas pelos 23 cidadãos nepaleses, sem embargo das declarações, em sentido contrário, do arguido PSV (e, bem assim, do coarguido NB).

- E eletricidade, nas instalações onde pernoitavam os 23 cidadãos nepaleses, era desligada, todos os dias, à mesma hora (cerca das 22 horas), e as condições de acomodação dos referidos cidadãos nepaleses eram, nos seus precisos termos, as tidas como provadas em primeira instância, o que decorre, nitidamente, das declarações para memória futura, prestadas pelos 23 cidadãos nepaleses, sem embargo das declarações, em sentido contrário, dos arguidos e de algumas testemunhas que, baldadamente, vieram à audiência de discussão e julgamento tentar fazer valer a versão dos arguidos.

- O pagamento das horas de trabalho, os termos em que o trabalho era prestado, e a participação do arguido PSV em tudo isso, nos termos tidos como assentes no acórdão recorrido, resulta do teor das declarações para memória futura, prestadas pelos 23 cidadãos nepaleses, sem embargo das declarações, em sentido contrário, dos arguidos.

- O conhecimento e a intenção com que o arguido PSV cometeu os factos delitivos em questão resultam provados, a nosso ver, por legítimo e adequado uso das presunções judiciais.

Aliás, é aqui - no uso de presunções judiciais - que incide a tónica dominante do recurso interposto pelo arguido PSV, discordando o recorrente do modo como o tribunal a quo formulou tais presunções.

Contudo, nenhuma razão assiste ao recorrente nessas suas alegações.

Na verdade, através de raciocínios presuntivos inequívocos, baseados na lógica normal das coisas (isto é, sustentados na experiência comum), é possível, de forma segura e imediata, e com base nos factos conhecidos, dar como assentes, sem margem para dúvidas, os factos agora em apreço (questionados pelo recorrente).

Senão vejamos:
- O arguido PSV, como qualquer cidadão de média formação colocado na sua posição, sabia, perfeitamente, que aqueles cidadãos nepaleses estavam ilegalmente em Portugal (quer pela sua quantidade, quer pelas pessoas que lhos “angariaram”, quer pelas demais circunstâncias inerentes aos mesmos e à situação em que estavam, esta nossa conclusão, coincidente com a conclusão do tribunal de primeira instância, afigura-se-nos inteiramente correta).

- Assim, o arguido PSV sabia, como sabe qualquer cidadão português de média formação, que os trabalhadores em causa tinham vontade e esperança de obter uma autorização de residência em Portugal, bem como sabia que, para serem deslocados do Nepal para Portugal, lhes havia sido prometida a sua “legalização” no nosso país, contra a verdade, pois que a imigração dos mesmos para Portugal contornava a legislação nacional e europeia, e que tudo isso, como sempre sucede neste tipo de situações, tinha de ser “iludido” das autoridades de fiscalização portuguesas. Não são as previsíveis declarações, em sentido contrário, do recorrente PSV, ou do coarguido NB, ou de uma qualquer testemunha (a testemunha OR) - que tentou “fazer passar” em tribunal a versão dos arguidos -, que, minimamente, beliscam a validade de tais presunções judiciais.

- A experiência comum não nos diz que, se alguém labora com trabalhadores ilegais e é alvo duma inspeção do SEF, os “manda imediatamente embora” (como se alega na motivação do recurso). Bem pelo contrário: muitos “empregadores” do sector agrícola (senão mesmo a maioria dos mesmos), na necessidade premente de mão-de-obra e na ânsia do lucro, não “mandam embora”, em circunstância alguma, os trabalhadores.

- A experiência comum também não nos diz que, se alguém contrata trabalhadores numa “empresa de trabalho”, siga princípios de boa-fé contratual e pense que os trabalhadores estão “legais”. Bem pelo contrário: atendendo à natureza e às características de muitas dessas “empresas de trabalho”, um cidadão de média formação duvida sempre, legitimamente, que os trabalhadores que tal “empresa” forneça tenham a sua situação “regularizada”.

- À luz do que vem de dizer-se, é de presumir, sem margem para dúvidas, que existiu um plano prévio (expresso, ou meramente tácito), traçado entre o arguido PSV e os demais coarguidos, para que o primeiro acolhesse, nos anexos às suas estufas, os cidadãos nepaleses, com vista a explorar o trabalho de tais cidadãos. São irrelevantes, não possuindo qualquer consistência nem aderência à realidade das coisas, as declarações do arguido PSV em sentido contrário (na versão de tal arguido, acolheu os cidadãos nepaleses, nas referidas instalações, apenas porque constatou que estes não tinham onde pernoitar e para não os deixar ao relento, acedendo a tal provisoriamente - até que a “empresa de trabalho” arranjasse uma solução definitiva para os mesmos -).

- Não obsta às anteriores conclusões a circunstância de os cidadãos nepaleses poderem abandonar a herdade do arguido PSV quando quisessem, podendo ir trabalhar para outros locais.

- Não obsta às anteriores conclusões a circunstância de não ter sido perguntado aos cidadãos nepaleses, quando ouvidos para memória futura, se aceitaram ou não ficar nos aludidos anexos (além do mais, essa questão é irrelevante para a decisão da causa, pois que o consentimento das vítimas, no tipo legal de crime em análise, não exclui, em caso algum, a ilicitude dos factos - cfr. o disposto no artigo 160º, nº 8, do Código Penal).

- O tribunal recorrido não tinha de ir “mais fundo” no esclarecimento dessa matéria, até porque as declarações do arguido PSV e do coarguido NB são totalmente inverosímeis.

- O tribunal a quo não violou, nesta ou noutras matérias, o princípio in dubio pro reo, porquanto não ficou em aberto uma qualquer hipótese factual alternativa à dada como provada.

- As declarações do arguido PSV são, todas elas, absolutamente inconsistentes e inverosímeis, não merecendo a mínima credibilidade, designadamente quando afirmou que tentou contratar trabalhadores através do Centro de Emprego.

- O tribunal a quo não omitiu a realização de quaisquer diligências probatórias, necessárias para alcançar a verdade material, nos termos do disposto no artigo 340º do C. P. Penal, nomeadamente oficiado ao Instituto de Emprego e Formação Profissional.

- Os trabalhadores nepaleses, pela remuneração que auferiam e pelas condições em que estavam alojados e prestavam trabalho, eram mão-de-obra barata.

- A experiência comum diz-nos, sem dúvida e sem margem mínima para hipóteses alternativas, que o arguido PSV sabia qual era o vencimento, contratado e efetivamente recebido, dos cidadãos nepaleses.

- A experiência comum também nos diz, inequivocamente, que o arguido PSV (como, aliás, qualquer cidadão de média formação e de são entendimento) sabia que os cidadãos nepaleses, por motivos de necessidade económica, estavam, na prática, obrigados a permanecer na sua herdade.

- Nada nos diz, a não ser as inverosímeis declarações do próprio arguido PSV (e dos demais coarguidos) - que não nos merecem qualquer credibilidade -, que os anexos em causa, onde estavam “instalados” os cidadãos nepaleses, fossem provisórios.

- Do mesmo modo, é, para nós, absolutamente evidente (com o devido respeito pela opinião contrária), que o arguido PSV se alheou da situação e das condições de vida dos cidadãos nepaleses na sua herdade.

- De igual forma, é de presumir, direta e necessariamente, a partir de toda a materialidade fáctica objetiva apurada, que o arguido PSV sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

- Esta nossa última conclusão é a única possível face às regras da lógica e da experiência comuns, não restando nenhuma hipótese (verosímil) alternativa, pelo que o tribunal de primeira instância, ao formular também idêntica conclusão, não desrespeitou qualquer regra relativa ao uso de presunções judiciais, nem violou o princípio in dubio pro reo.

Em suma: não ocorreu qualquer erro de julgamento, nem há nada a apontar ou a corrigir à decisão fáctica tomada em primeira instância.

- É irrelevante saber (cfr. facto 37) se era o próprio arguido PSV quem desligava a eletricidade, ou se esta se “desligava automaticamente” - obviamente, por instruções ou prévio comando de tal arguido (ou seja, o arguido era, de qualquer forma, o “autor moral” de tal facto).

- O mesmo se diz relativamente ao funcionamento das casas de banho (cuja reparação competia ao arguido em causa), e, bem assim, ao fornecimento de água (o modo de fornecimento e a qualidade da água eram, evidentemente, da responsabilidade do arguido PSV)

- A água fornecida aos trabalhadores nepaleses não era água potável, mas sim água “depositada” e não analisada, que servia o sistema de rega, como decorre, inequivocamente, dos depoimentos para memória futura que foram prestados nestes autos, e, ainda, dos depoimentos dos inspetores do S.E.F. que foram ouvidos na audiência de discussão e julgamento.

Assim, também nestas matérias não ocorreu qualquer erro de julgamento, nem há nada a apontar ou a corrigir à decisão fáctica tomada em primeira instância.

- Quanto ao registo das horas de trabalho prestadas pelos cidadãos nepaleses, quanto ao controlo de tais horas, e quanto ao tratamento “burocrático” de tudo isso, além de ser matéria, essencialmente, instrumental, nada há a apontar também à decisão fáctica revidenda, que está baseada na prova (direta) produzida e na utilização das elementares regras da experiência (como se nos afigura evidente, o arguido PSV, que era quem pagava as horas de trabalho em questão, controlava, de um modo ou de outro, as mesmas).

- Como é também evidente (a nosso ver), e não deixa margem para hipóteses factuais alternativas, os cidadãos nepaleses só depararam com as condições em que iriam viver (de forma definitiva, e não provisória) quando chegaram à herdade do arguido PSV.

Por conseguinte, e ainda nestas matérias não ocorreu qualquer erro de julgamento, nem há nada a apontar ou a corrigir à decisão fáctica tomada em primeira instância.

Em conclusão: a impugnação da matéria de facto efetuada na motivação do recurso do arguido PSV é totalmente de improceder, não merecendo provimento, em toda esta vertente, esse mesmo recurso.

e) Do preenchimento dos elementos objetivos do tipo de crime de tráfico de pessoas.

Alega o recorrente PSV que não está preenchido o elemento objetivo do tipo de crime de tráfico de pessoas, porquanto só cometeria tal crime se, efetivamente, e considerando que “alojou” os cidadãos nepaleses, tivesse atuado com o fito de explorar o seu trabalho (tendo que se entender o “explorar” não apenas como utilizar a sua força laboral, mas, nomeadamente, retendo salários ou recusando pagamento, ou sujeitando-os a uma grande desproporção entre o trabalho efetuado e o salário recebido ou, ainda, obrigando-os a laboral em condições demasiado pesadas ou sem condições de higiene ou segurança).

Assim, e desde logo, verifica-se que o recorrente PSV entende que não está preenchido o elemento objetivo do tipo de crime de tráfico de pessoas a partir do pressuposto da procedência da impugnação fáctica que empreendeu.

Ora, como tal impugnação fáctica não obteve provimento, prejudicada fica, em grande medida, a alegação agora em apreço, relativa à qualificação jurídica dos factos.

Nomeadamente, ficou provado que o arguido PSV sabia qual era o salário auferido pelos 23 cidadãos nepaleses, ficou provado que sujeitou tais pessoas a trabalharem em condições manifestamente desumanas e que as alojou em instalações absolutamente inadequadas e degradantes, ficou provado que explorou o seu trabalho, ficou provado que atuou com o fito de explorar esse trabalho, e ficou ainda provado que agiu sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Mais: “explorou” esses trabalhadores não apenas utilizando a sua força laboral, mas, também, retendo salários (ou sabendo que os mesmos eram retidos por terceiras pessoas), sujeitando-os a uma grande desproporção entre o trabalho efetuado e o salário recebido, e, ainda, obrigando-os a trabalhar e a viver, para execução desse trabalho, sem condições mínimas de higiene, de privacidade, de conforto, ou até de segurança.

Em suma: ao contrário do que alega na motivação do seu recurso, o arguido PSV explorou, e pretendeu explorar, à margem da lei e em condições criminalmente puníveis, o trabalho dos cidadãos nepaleses.

Pelo que se verifica o preenchimento do tipo objetivo do crime em causa.
Assim sendo, e também aqui, é de improceder o recurso do arguido PSV.

f) Da unidade ou pluralidade de crimes.
Alega o recorrente PSV que, face aos factos provados, praticou um único crime de tráfico de pessoas (um crime de execução continuada ou de trato sucessivo - que não se confunde com a figura do crime continuado -), e não 23 crimes.

Para se poder concluir pela existência do invocado crime de execução continuada (ou crime prolongado, ou crime de trato sucessivo) é necessário, a nosso ver, verificar-se uma unidade resolutiva (que não deve confundir-se com uma única resolução), uma homogeneidade na conduta do agente (conduta que se prolonga no tempo), uma unidade nos tipos legais de crime violados (individualmente considerados) - ou, sendo os tipos de crime diferentes, devendo os mesmos proteger, essencialmente, um bem jurídico semelhante -, e além disso, nos casos de crimes contra as pessoas (crimes que protejam bens jurídicos pessoais), a vítima tem de ser a mesma.

Ora, e conforme já acima dito (a propósito dos recursos dos demais arguidos), in casu existem diferentes vítimas (23 pessoas distintas), pelo que, manifestamente, não pode configurar-se a existência de um único crime de tráfico de pessoas (um único crime - prolongado no tempo, de execução continuada ou de trato sucessivo -), mas sim 23 crimes.

Por outras palavras: cada um dos vários atos do recorrente PSV, muito embora levado a cabo num idêntico contexto situacional, e ainda que comandado por uma só unidade resolutiva, traduziu-se, necessariamente, relativamente a cada um dos ofendidos, numa autónoma lesão do bem jurídico protegido.

Cada um desses atos não constituiu, portanto, um momento ou uma parcela de um todo (como poderia parecer, à primeira vista), não sendo esse “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível, devendo antes, isso sim, entender-se que, relativamente a cada concreto ofendido, existe uma pluralidade de sentidos de ilicitude típica, e, por isso, para cada ofendido existe um crime próprio e distinto.

Em suma: nos crimes contra valores pessoais (a integridade corporal, a vida, a honra, a liberdade, etc.), como é o caso dos crimes destes autos (crimes de tráfico de pessoas), é de excluir a relação de continuidade quando se trata, como também sucede neste caso, de distintos titulares de bens jurídicos concretos, devido, precisamente, à referência pessoal do bem jurídico em questão.

Nestes termos, é de improceder, neste segmento, o recurso do arguido PSV.

g) Da medida concreta das penas.
Entende o recorrente PSV que as penas aplicadas (desde logo, as penas parcelares) o foram em medida excessiva.

Preceitua o artigo 40º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2).

O artigo 71º do mesmo diploma estipula, por outro lado, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (nº 2 do mesmo dispositivo).

No caso em apreciação, há que considerar:
- O elevado grau de ilicitude dos factos, revelado pelas circunstâncias em que o arguido PSV atuou (sendo certo, por um lado, que se a atuação do arguido não sai do habitual - em situações do mesmo género -, não é menos certo, por outro lado, que essa atuação se prolongou por muitos meses).

- O dolo, que se expressa na sua forma mais intensa (dolo direto).

- A circunstância de o arguido PSV, nomeadamente nas declarações que prestou na audiência de discussão e julgamento, ter, sempre, assumido uma postura de desvalorização da gravidade das suas condutas, não denotando a mínima sensibilidade aos valores jurídicos que estão na base do tipo legal de crime de tráfico de pessoas, e considerando tudo o que fez “normal” - ou seja, sem qualquer “desvalor” jurídico-penal intrínseco, e, até, eticamente adequado -.

- A conduta anterior do arguido (ausência de condenações criminais anteriores).

- Ainda, e finalmente, as necessidades de prevenção geral positiva ou de integração, que são acentuadas, num contexto temporal em que, cada vez mais, se intensificam fluxos migratórios (sobretudo para a Europa), muitos deles de índole ilegal, e alguns deles com exploração, degradante e desumana, dos migrantes.

Da análise conjugada de todos os descritos elementos, afigura-se-nos que as penas parcelares estabelecidas no acórdão revidendo para o arguido PSV (4 anos de prisão) estão criteriosamente fixada pelo tribunal a quo, não merecendo, deste modo, e também nesta parte, a decisão recorrida qualquer censura - atente-se que a moldura penal abstrata prevista para cada um dos crimes praticados é pena de prisão de 3 a 10 anos -.

É despida de sentido (com o devido respeito) a alegação, constante da motivação do recurso agora em apreço, segundo a qual o grau de “participação” do arguido PSV, bem como o dolo e o desvalor da sua conduta, são significativamente menores do que os dos coarguidos NBe UP, e, por isso, impondo-se que a medida concreta das penas reflita essa diferença, ou seja, devendo o arguido PSV ser condenado em penas inferiores às dos demais arguidos.

E tal alegação não possui fundamento válido e atendível (não faz qualquer sentido) na medida em que não vislumbramos a existência de diferença, relevante, entre quem utiliza trabalho prestado em condições desumanas e ilegais (como é o caso do ora recorrente) e quem angaria os trabalhadores para esse efeito (como acontece com os coarguidos/recorrentes), todos eles, a seu modo, e com igual grau de ilicitude e de culpa, praticando o mesmo delito.

Soçobra, por conseguinte, a pretensão do recorrente PSV consistente em ver reduzida a medida concreta das penas parcelares de prisão aplicadas em primeira instância.
*
Questiona ainda o recorrente PSV a pena única (14 anos de prisão) aplicada, em cúmulo jurídico, pela prática dos 23 crimes de tráfico de pessoas, que entende ser exagerada, não se justificando a aplicação de pena superior a 5 anos de prisão.

A nosso ver, e ao contrário do que alega o recorrente PSV, a pena (única) de 14 anos de prisão não é excessiva, nem injusta, nem inadequada, teve em consideração os critérios legalmente previstos para a sua fixação, e não evidencia qualquer desrespeito por normas legais.

Com efeito, a moldura abstrata da pena do concurso aqui em análise tem como limite máximo da pena de prisão várias dezenas de anos (soma das penas parcelares aplicadas ao recorrente PSV), e o limite mínimo dessa mesma pena é de 4 anos de prisão (pena parcelar mais elevada) - conforme disposto no artigo 77º, nº 2, do Código Penal -.

Dentro da moldura abstrata assim encontrada, é determinada a pena do concurso, para a qual a lei estabelece que se considere, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º, nº 1, do Código Penal).

No caso, é acentuada a gravidade do ilícito global (além do mais, os factos praticados pelo arguido PSV e ora em apreciação ocorreram num período de tempo de vários meses, e, além disso, tiveram como ofendidos mais de duas dezenas de cidadãos nepaleses).

No contexto da personalidade unitária do arguido, os elementos conhecidos permitem dizer que a globalidade dos factos não é reconduzível a um desvalor que radique na personalidade do arguido PSV, porquanto o mesmo não possui anteriores condenações criminais, não denotando também tal arguido, ao que consta dos autos, problemas de integração pessoal e social.

Contudo, não se pode esquecer, ainda aqui, a circunstância de o arguido PSV ter, ao longo do processo, assumido uma postura de desvalorização da gravidade das suas condutas, não denotando qualquer sensibilidade aos valores ético-jurídicos que estão na base na incriminação.

Assim, a pena única fixada em primeira instância - 14 anos de prisão -, mostra-se inteiramente correta.

Improcede, assim, também nesta matéria, o recurso do arguido PSV.

h) Da suspensão da execução da pena.
O recorrente PSV requer a suspensão da execução da pena de prisão aplicada.

Porém, não estão reunidas as condições, legalmente necessárias, para a pretendida suspensão da execução da pena de prisão, porquanto a pena (única) encontrada (14 anos de prisão) excede o limite máximo estabelecido no artigo 50º, nº 1, do Código Penal, para a possibilidade de suspensão da execução da pena (5 anos).

Como tal, a pena de prisão aplicada ao arguido PSV tem de ser de execução efetiva, sendo de improceder, também nesta vertente, o recurso de tal arguido.

i) Da indemnização por danos patrimoniais.
Falta, por último, apreciar a questão suscitada pelo recorrente PSV, relativamente à vertente civil da decisão (e restringida aos danos patrimoniais sofridos pelos demandantes).

A este respeito, importa que tenhamos presente o disposto no artigo 400º, nº 2, do C. P. Penal: “sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”.

Os artigos 427º e 432º do mesmo C. P. Penal dispõem sobre as competências das Relações e do Supremo Tribunal de Justiça respetivamente, em matéria de recursos, não relevando para a questão que agora nos cumpre apreciar.

O nº 1 do artigo 31º da Lei nº 52/08, de 28/08, fixou em € 5.000 a alçada dos tribunais de primeira instância em matéria cível, valor que foi mantido inalterado pelo nº 1 do artigo 44º da Lei nº 62/13, de 26/08, atualmente em vigor.

Nos presentes autos, foram deduzidos pedidos de indemnização civil contra os arguidos, por danos patrimoniais (únicos danos que são questionados na motivação do recurso interposto pelo arguido PSV), mas em nenhum desses pedidos se obteve vencimento por montante superior a € 2.500.

Mais: todos os arguidos foram condenados a pagar, solidariamente, a título de indemnização por danos patrimoniais, as quantias que vierem a ser liquidadas em incidente próprio.

Assim sendo, não se mostra, a nosso ver, que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente PSV em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido (€ 2.500).

A esta luz, situando-se o valor da sucumbência do ora recorrente abaixo dos parâmetros fixados pelo transcrito nº 2 do artigo 400º do C. P. Penal, a vertente civil do acórdão revidendo não é suscetível de impugnação por meio de recurso autónomo, nos termos em que o foi pelo arguido PSV (e sendo ainda certo que a impugnação cível, levada a cabo por tal arguido, não é mera decorrência da procedência da pretensão recursiva em matéria penal).

Consequentemente, está vedado a este Tribunal da Relação a cognição da pretensão formulada pelo recorrente PSV, relativamente ao montante da indemnização civil (devido a título de danos patrimoniais) em que foi condenado em primeira instância.

Em jeito de síntese de tudo o que ficou dito (relativamente aos três recursos interpostos):

1º - Não é de conhecer (por irrecorribilidade) do recurso interposto pelo arguido PSV na parte relativa aos pedidos de indemnização civil.

2º - Quanto a tudo o mais, é de negar provimento aos três recursos, sendo, assim, de manter, em toda a sua plenitude, o decidido no acórdão sub judice.

III - DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

a) Não conhecer do recurso interposto pelo arguido PSV na parte relativa aos pedidos de indemnização civil.

b) Negar provimento aos três recursos, mantendo-se integralmente o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 18 de outubro de 2018
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(João Manuel Monteiro Amaro)
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(Maria Filomena de Paula Soares)
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(Fernando Ribeiro Cardoso), com voto de vencido quanto à pena única ou conjunta aplicada aos arguidos recorrentes, nos termos e com os fundamentos que seguem.

Conforme é pacificamente entendido, o cúmulo jurídico de penas previsto no art. 77.º do Código Penal não se reconduz a uma operação aritmética, mas antes pressupõe a formulação pelo Tribunal de um juízo de valor assente na reconsideração global dos factos e da personalidade do arguido.

Como salienta o Senhor Conselheiro Rodrigues da Costa, no seu estudo “O Cúmulo Jurídico Na Doutrina e na Jurisprudência do STJ” A medida concreta da pena do concurso, dentro da moldura abstracta aplicável, a qual se constrói a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico, constante do art. 77.º, n.º 1 do CP: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido. À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.

Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detectar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da actuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”, a que se refere CRISTINA LÍBANO MONTEIRO em anotação ao acórdão do STJ de 12/07/05. Ou, como diz FIGUEIREDO DIAS: «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.»

Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.

De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização.» Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita.”

E mais adiante: “- A medida da pena do concurso no caso concreto é determinada dentro da moldura penal abstracta, entre um mínimo e um máximo, com a mesma liberdade com que se determina a unicidade de pena – culpa e prevenção, relacionadas com a gravidade do ilícito global em conjugação com a personalidade unitária revelada pelo agente, e não por adição das penas parcelares (ou de uma dada porção ou fracção delas), só sendo de agravar a pena no caso de se concluir pela radicação da multiplicidade delituosa na personalidade daquele, em termos de constituir uma tendência ou carreira criminosa.”

Dos factos deve poder saber-se os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência, bem como a tendência para a actividade criminosa expressa pelo número de infracções, pela sua permanência no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade.

Ponderando o que se referiu supra em relação a cada um dos recorrentes (NB, UP e PSV), a ilicitude global dos factos, entendida como juízo de desvalor da ordem jurídica sobre um comportamento, por este lesar e pôr em perigo bens jurídico-criminais, é muito elevada, marcada por vários crimes da mesma natureza (exploração de 23 trabalhadores) que formam um episódio na vida dos recorrentes, sem que se possa falar a este respeito em carreira criminosa. Não estamos, porém, perante crimes de execução instantânea, mas crimes que se prolongaram no tempo, mais concretamente vários meses, com as mesmas vítimas. Houve sobretudo a exploração da vulnerabilidade das vítimas, seja pela sua pobreza, pelo distanciamento do local de origem, pela sua permanência precária ou ilegal em território nacional e pela perspectiva de alcançarem, por via da prestação de trabalho, a sua regularização.

No que toca às necessidades de prevenção, quer geral, quer especial, dúvidas não há de que são elevadíssimas: os crimes em questão contendem com os mais altos valores de qualquer sociedade civilizada e os arguidos/recorrentes carecem de socialização.

Quanto à personalidade dos arguidos/recorrentes, nada mais haverá a acrescentar ao que atrás se disse, a não ser salientar a circunstância de serem delinquentes primários e que o arguido UP reconheceu e manifestou consciência da gravidade dos atos por que foi acusado e demais implicações nas vítimas e sociedade;

Apesar de tudo isto, perspectivando o ilícito global perpetrado, a proporcionalidade entre a gravidade do feito e a gravidade da pena, por um lado, e a satisfação do fim último da pena, que é a protecção dos bens jurídicos violados e a reintegração do agente na sociedade, e porque os arguidos têm apoio familiar e, à data dos factos, estavam socialmente integrados, considero que a pena única escolhida para cada um deles se encontra um pouco inflacionada e que a pena que se mostra justa, adequada às finalidades de prevenção e proporcional à culpa de cada um daqueles arguidos/recorrentes, tendo em conta a actividade desenvolvida por cada um deles (constante da factualidade dada como provada), deveria situar-se entre os 9 e os 10 anos de prisão, já de si penas de longa duração.

Assim, reduziria a pena única aplicada ao arguido UP de 13 anos para 9 anos de prisão e as penas únicas aplicadas aos arguidos NBe PSV, de 14 anos para 10 anos de prisão.

Em tudo o mais manteria o decidido no acórdão recorrido.

Fernando Ribeiro Cardoso