Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2334/12.2TBPTM-B.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: FALTA DE CITAÇÃO
CONTRADITÓRIO
OMISSÃO DE FORMALIDADES
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - O desrespeito do princípio do contraditório, quando ele deva ser observado, constitui uma nulidade processual prevista no artigo 195.º do CPC, pois trata-se de omissão de uma formalidade que a lei prescreve destinada a evitar decisões-surpresa.
2 - Nos termos do artigo 201.º do CPC, a arguição de qualquer nulidade pode ser indeferida, mas não pode ser deferida sem prévia audiência da parte contrária, salvo caso de manifesta desnecessidade.
3 - A arguição da falta de citação da executada e, subsidiariamente, da nulidade da sua citação, não pode considerar-se como integrando «um caso em que a audição da parte contrária é manifestamente desnecessária» até por força das consequências da sua procedência numa fase do processo em que o imóvel penhorado já se encontra vendido porquanto a procedência da arguição de falta de citação implica a nulidade de tudo o que se processe depois da petição inicial (leia-se requerimento executivo), nos termos do disposto no artigo 187.º, alínea a), do CPC e a procedência da arguição da nulidade da citação por preterição de formalidades prescritas na lei pode implicar, também, a ineficácia de todo o processado posterior à petição inicial se a falta puder prejudicar a defesa do citado.
4 – A decisão que julga procedente a arguição da falta de citação da executada sem prévia audição da exequente, constitui, por conseguinte, uma decisão-surpresa, e, nessa medida, é uma decisão nula por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC), porquanto, através dela, o tribunal pronuncia-se sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes interessadas sobre a matéria.
5 – Pelo que a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso fundamentado na nulidade da própria decisão.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 2334/12.2TBPTM-B.E1
(1.ª Secção)

Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
Banco (…), SA, exequente na execução comum para pagamento de quantia certa que moveu contra (…) e (…), interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo de Execução de Silves, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o qual julgou procedente a arguição da falta/nulidade de citação da executada e, em consequência, anulou todos os atos praticados posteriormente à citação que julgou inválida.

O despacho sob recurso tem o seguinte teor:
«Compulsado o teor do processo:
Conclui-se pela procedência da arguição da falta de citação, na medida em que a morada na qual a citação veio a ser conseguida não é a que resulta das consultas efetuadas junto da ATA – veja-se as várias referências relativas a pesquisas junto da base de dados daquela – como sendo o seu domicílio fiscal.
De contrário, este é a morada na qual a mesma alega residir, na República da Irlanda.
Aliás, resulta da informação prestada pelo Sr. AE que a morada na qual foi efetuada a citação corresponde à morada que consta da caderneta predial do imóvel, e que não devia, por conseguinte, ter sido considerada como adequada à citação da Executada.
Por consequência, julga-se procedente, sem necessidade de ulterior produção de prova, a arguição de nulidade de citação, anulando-se todos os atos praticados posteriormente à citação inválida.
Sem custas.
Notifique».

I.2.
O recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«A. A Executada (…) veio arguir nulidade de citação, tendo o Douto Tribunal a quo proferido decisão que julgou procedente a referida nulidade, sem necessidade de ulterior produção de prova e sem prévia audiência da parte contrária.
B. Tal decisão violou o artigo 342.º do Código Civil, e os artigos 3.º, 4.º, 201.º e 230.º, n.º 1, do Código Processo Civil, uma vez que se impunha a produção de prova pela Executada do que foi por si alegado, bem como deveria ter sido concedido o contraditório ao ora Apelante.
C. Caso tivesse sido concedido o contraditório ao Apelante, poderia o mesmo ter feito prova de que o alegado pela Executada não correspondia à verdade.
D. Motivo pelo qual se requer a junção de 1 documento com a presente Apelação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 651.º, n.º 1, CPC.
E. Verifica-se ainda que o Tribunal a quo não apreciou a documentação que foi junta pelo filho da Executada aos autos, recaindo esse poder/dever sobre o Tribunal para a boa descoberta da verdade.
F. Sendo que a apreciação de tal documentação permitiria considerar provado que a atuação da Executada apenas teve por finalidade atrasar e “empatar” o processo, enquanto tentavam “resolver as coisas”, já que tinha sido citada e tinha perfeito conhecimento da pendência da Execução.
G. Foram expedidas várias citações via postal com aviso de receção para a morada dos Executados em Dublin, existindo apenas um comprovativo de receção de uma das citações ao Executado (…), assinado pela Executada (…).
H. Numa outra tentativa de citação da Executada (…), em 10/03/2016, a mesma foi devolvida com a indicação de “Not called for”.
I. Até 22/03/2016 foram enviadas para a morada Irlandesa da Executada 6 citações, tendo a mesma recebido e assinado pelo menos um dos avisos de receção, dirigido ao Executado.
J. Pelo que não é sequer razoável admitir que a Executada não foi igualmente citada e que não tinha conhecimento dos presentes autos.
K. Em 29/03/2016 foi expedida nova citação para a Rua do (…),n.º 75-R/C 8500-508 Carvoeiro, tendo essa morada sido identificada na caderneta predial do imóvel da Executada como sendo a sua morada fiscal à data da pesquisa.
L. A caderneta predial identifica os titulares do imóvel, indicando o seu nome completo, número de identificação fiscal e morada fiscal.
M. Para que seja atribuído número de contribuinte a cidadão estrangeiro não residente em território nacional, é obrigatória a designação de um representante com residência e território nacional.
N. Assim, não corresponde de todo à verdade que a Executada desconheça em absoluto a referida morada e que nunca tenha designado um representante fiscal em Portugal, já que a isso estava legalmente obrigada.
O. Esta última citação foi recebida em 05/04/2016 na referida morada, por um terceiro, devidamente advertido de que deveria proceder à entrega da citação à destinatária.
P. Foi posteriormente, em 07/04/2016, expedida notificação nos termos do disposto no artigo 233.º do CPC.
Q. Pelo que deve considerar-se validamente realizada a citação da executada.
R. Acresce que, em 09/06/2016 expedida a notificação pós penhora, nos termos do disposto nos artigos 784.º e 785.º do CPC.
S. Foi expedida nova notificação em 27/01/2017 para pronúncia sobre a modalidade de venda e valor do imóvel penhorado.
T. E em 27/02/2017 foi expedida a notificação de decisão de venda.
U. Todas as notificações expedidas para a morada do Carvoeiro foram recebidas.
V. Entretanto o Executado (…) faleceu, em 07/02/2017.
W. Estranhamente, apesar de a Executada alegar que desconhecia que sobre si impediam os presentes autos, a certidão de óbito do Executado foi enviada diretamente ao Senhor Agente de Execução em 14/03/2017.
X. Apenas a sentença de habilitação de herdeiros enviada à Executada em 07/11/2018 para a morada do Carvoeiro foi devolvida com a indicação “mudou-se”, pelo que até essa data a citação e todas as notificações foram recebidas.
Y. A Executada alegou ainda que desconhece a morada que consta na plataforma citius, Rua (…), Lote 2 – Loja C – Edifício (…), 8400-398 Lagoa.
Z. O que não se pode aceitar, já que em 24/05/2017 foi entregue no Banco uma carta onde foi identificada a Advogada da família e a respetiva morada, na Rua (…), Lote 2 – Loja C – Edifício (…), 8400-398 Lagoa e em 09/08/2019 o filho da Executada foi constituído fiel depositário do imóvel penhorado, indicando como morada para notificações a mesma.
AA. Já a caderneta predial junta aos autos pela Executada não faz prova de que a sua morada sempre foi na Irlanda, antes pelo contrário: demonstra que atualmente a sua morada fiscal é em Urbanização (…), lote 2-R/C, Dto., 8400-434 Lagoa e que a morada que afirma desconhecer é a morada fiscal do Executado, que foi também a sua.
BB. Acresce a já tudo o exposto, que desde 2014 foram realizados vários pagamentos, tendo em Fevereiro de 2019 sido acordado que seriam pagos € 45.600,00 relativos a prestações vencidas e não pagas para que o processo fosse extinto.
CC. Deste valor apenas foram pagos € 10.000,00, pelo que não restou outra alternativa ao Apelante senão a de prosseguir os autos, que já se encontram pendentes desde 2012.
DD. Toda a atuação da Executada foi uma opção da mesma, optando esta por não intervir no processo até ao momento que considerou mais oportuno, para alegar uma nulidade de citação que, cfr. supra exposto, não pode proceder.
Pelo que deve ser revogado o Douto Despacho recorrido e substituído por outro em conformidade com o supra exposto, considerando a Executada regularmente citada ou, caso assim não se entenda, que seja o Douto despacho de que se recorre revogado, concedendo ao ora Apelante o Direito à prévia audiência nos termos do disposto no artigo 201.º do CPC.

I.3.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
As questões que importa decidir são as seguintes:
1 – Questão prévia: admissibilidade da junção de documento em sede de recurso.
2 – Saber se se verifica uma nulidade da decisão decorrente da violação do princípio do contraditório.

II.3.
Questão prévia: admissibilidade da junção de documento em sede de recurso.
O apelante juntou, em sede de recurso e invocando o disposto no artigo 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, um documento que consiste num comprovativo emitido pelos correios, de cujo teor consta o seguinte: «a entrega do objeto n.º RN176979090PT, foi conseguida na data de 19.06.2012, pelas 10:51, em Dublin 24, e rececionado por (…)».
Importa, assim, aferir se se verificam os requisitos para a admissibilidade do documento junto pelo apelante em sede do recurso por si interposto.
Dispõe o artigo 651.º, n.º 1, do CPC, sob a epígrafe Junção de documentos e de pareceres, que: «As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância».
Por sua vez, o artigo 425.º do mesmo diploma normativo dispõe que «Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento». Este último normativo refere-se à «superveniência objetiva ou subjetiva», isto é, aos casos em que o(s) documento(s) só foi produzido depois do momento temporal ali referido – encerramento da discussão em 1.ª instância – e aos casos em que a parte só teve conhecimento da sua existência depois daquele limite temporal.
Os documentos apresentados ao abrigo do normativo em referência têm de ser relativos a factos já trazidos ao processo, nos articulados normais ou nos articulados supervenientes – Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, Almedina, p. 646.
Em qualquer das situações previstas no artigo 425.º do CPC, a parte que junta o(s) documento(s) para além daquele limite temporal tem de alegar e provar a impossibilidade de apresentação do(s) mesmo(s) no momento próprio para o efeito.
Relativamente ao segundo circunstancialismo previsto no artigo 651.º, n.º 1, do CPC, ele reporta-se aos casos em que a junção do documento se torna necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância, quando este introduz alguma questão nova que não seria expectável em face dos elementos constantes do processo – Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, p. 242. No mesmo sentido, escreveu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.11.2014, publicado em www.dgsi.pt. que: «o artigo 651.º, n.º 1, do CPC também admite, no seu trecho final, a junção de documentos com as alegações de recurso nos casos em que o julgamento proferido em primeira instância torne necessária a consideração desse documento. Pressupõe esta situação, todavia, a novidade da questão decisória justificativa da junção pretendida, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão, sendo que isso exclui que a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum».
No caso concreto, o recorrente limita-se a referir genericamente no seu articulado de recurso que a junção do documento em apreço «não foi possível em momento anterior», o que equivale a uma ausência de alegação da impossibilidade da respetiva junção até ao momento temporal previsto no artigo 425.º do CPC. Desta forma, mostra-se inviabilizada a junção do referido documento ao abrigo daquele normativo, sendo ainda de salientar que do documento em si mesmo não resulta sequer a data em que o mesmo terá sido rececionado ou obtido pelo apelante.
Terá introduzido o tribunal de primeira instância, na sua decisão, algum elemento de novidade que tornasse necessária a consideração de uma prova adicional, concretamente do documento junto em sede de recurso?
O despacho sob recurso respeita a uma suposta falta de citação da executada/apelada (…) e o documento em causa respeita à citação do executado (…). Ainda que na presente ação executiva movida contra os dois cônjuges, a executada/apelada haja recebido a carta de citação do marido a tal facto não pode ser atribuído o significado de que a mesma foi citada mas tão só, eventualmente, que a mesma tomou conhecimento de que estava pendente uma ação executiva – neste sentido, veja-se Ac. TRP de 23.10.90, CJ, 1990, IV, p. 236.
Por conseguinte, a necessidade de junção do documento em causa não foi gerada pela decisão do tribunal a quo.
Em face do exposto, não se admite a junção do documento supra referido.
Custas do incidente pelo apelante, que se fixam no mínimo legal.

II.4.
FACTOS
Resulta dos autos, com relevo para o presente recurso, a seguinte factualidade:
1 – A ação executiva foi proposta pelo Banco (…), SA contra (…) e (…), para pagamento da quantia de € 141.606,02, correspondente ao capital em dívida decorrente do incumprimento de um empréstimo contraído pelos executados no montante de € 144.000,00€, dos juros vencidos contados à taxa contratualmente acordada de 11,4% acrescida de uma sobretaxa de 4% devida pela mora, calculados até ao dia 06.06.2012, e do imposto de selo, e, ainda, dos juros vincendos calculados à mesmas taxa e sobretaxa, e respetivo imposto de selo, até ao dia do integral e efetivo pagamento.
2 – No requerimento executivo foi indicada como morada dos executados «(…) Dublin».
3 – No contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgado entre exequente e executados e outros consta como residência habitual dos executados a referida supra em 2.
4 – Com datas de 08.06.2012, 14.04.2014 e 26.05.2014, respetivamente, a agente de execução enviou cartas de citação para cada um dos executados endereçadas para a morada referida supra em 2.
5 – Com data de 03.04.2013, a mesma agente de execução enviou cartas para citação dos executados, respetivamente, para a seguinte morada: «(…), lote 5, 2.º-C, 8500-033 Alvor».
6 – Com data de 05.02.2016, voltou a ser enviada carta para citação da executada para a morada referida supra em 2, a qual foi devolvida com a menção «não reclamada».
7 – Com data de 29.03.2016, foi enviada carta de citação da executada para a seguinte morada «Rua do (…), n.º 75, r/c, 8400-508 Carvoeiro».
8 – No aviso de receção da carta referida supra em 7, mostra-se aposta uma assinatura, a data de 05/04/2016, os seguintes dizeres: «este aviso foi assinado por pessoa a quem for entregue a carta e que se comprometeu após a devida advertência a entrega-la prontamente ao destinatário» e na identificação da referida pessoa os seguintes dizeres «(…)».
9 – Com data de 07.04.2016, o agente de execução enviou à executada e para a morada referida supra em 7, uma carta registada com a advertência a que alude o artigo 233.º do CPC.
10 – Mediante requerimento datado de 21.11.2019, a executada (…) arguiu a falta da sua citação e, subsidiariamente, a nulidade da citação, requerendo a final a anulação de todo o processado posterior ao requerimento inicial, dando sem efeito a venda realizada do imóvel penhorado nos autos.
11 – Após, o tribunal a quo proferiu despacho ordenando a notificação do sr. Agente de execução para que informasse sobre a origem do conhecimento da morada na qual a executada foi considerada citada – Rua do (…), 75, r/c, Carvoeiro, 8400-508 Lagoa –, tendo o segundo informado que na sequência da frustração das citações postais efetuadas para a morada constante do requerimento executivo, «nas consultas efetuadas com vista ao apuramento de nova morada, foi efetuada pesquisa à autoridade tributária e apurada nova morada – Rua do (…), 75, r/c, Carvoeiro, 8400-508 Lagoa – constante da caderneta predial do imóvel. Assim foi emitida citação postal para a referida morada, tendo a mesma sido concretizada conforme comprovativo que se anexa».

II.5.
Apreciação do objeto do recurso
No presente recurso está em causa o despacho proferido pelo tribunal de primeira instância que julgou procedente a arguição de falta de citação da executada e, consequentemente, determinou a anulação de todos os atos praticados subsequentemente à «citação inválida» (sic).
O apelante defende que a decisão violou o artigo 3.º, n.º 3, do CPC, pois que o tribunal decidiu sem lhe conceder o contraditório, o que lhe teria permitido fazer prova de que o alegado pela executada não correspondia à verdade, consubstanciando tal decisão também uma violação do princípio da igualdade das partes plasmado no artigo 4.º do mesmo diploma legal, para concluir que o tribunal de segunda instância deve considerar a executada regularmente citada ou, caso assim não se entenda, revogar o despacho recorrido, concedendo ao apelante o direito à prévia audiência, nos termos do disposto no artigo 201.º do CPC.
O artigo 3.º, n.º 3, do CPC dispõe que «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
Explicam Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3.ª edição, Almedina, p. 7, que o referido preceito legal consagra o princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão-surpresa, acrescentando: «não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção. Este direito de fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão».
As partes devem, assim, ter sempre a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões a decidir pelo juiz, salvos os casos de «manifesta desnecessidade», isto é, quando se trata de questões cuja decisão não tem, em si mesma, qualquer repercussão sobre a instância, não sendo relevante para a decisão do litígio ou questões que, pela sua natureza não compreenda o contraditório prévio, como é o caso de decisões de mero expediente ou a decisão liminar do juiz convidando o autor a aperfeiçoar a petição inicial[1].
«Em qualquer circunstância, a dispensa de audiência prévia por “manifesta desnecessidade” é excecional: o seu uso deve ser parcimonioso; na dúvida, deve o tribunal ouvir antes de decidir»[2].
O desrespeito do princípio do contraditório, quando ele deva ser observado, constitui uma nulidade processual prevista no artigo 195.º do CPC, pois trata-se de omissão de uma formalidade que a lei prescreve destinada a evitar decisões-surpresa.
Anselmo de Castro[3] ensinava que, no que deva entender por “irregularidade suscetível de influir no exame (instrução e discussão) ou na decisão da causa”, «não restam quaisquer dúvidas de que a fórmula legal abrange todas as irregularidades ou desvios ao formalismo processual que atinjam o próprio contraditório» e que, para além disso, «só caso por caso a prudência e a ponderação dos juízes poderão resolver» (sublinhado nosso).
As nulidades processuais devem ser arguidas pelos interessados perante o juiz, como resulta do disposto nos artigos 196.º e 197.º do CPC, sendo a decisão que recair sobre a respetiva arguição impugnável por via recursiva.
Mas, uma decisão-surpresa é um vício que afeta a própria decisão, tornando-a nula, na medida em que através ela o tribunal pronuncia-se sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes interessadas sobre a matéria – assim, Teixeira de Sousa, https: //blogippc.blogspot.pt. Como assinala este autor ainda que a falta de audiência prévia constitua uma nulidade processual por violação do princípio do contraditório, aquele é consumida por uma nulidade de sentença por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão. Pelo que a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso fundamentado na nulidade da própria decisão.
No caso sub judice, a decisão recorrida surge na sequência da arguição, pela executada (…), da falta da sua citação – e, subsidiariamente, da nulidade da sua citação – e o tribunal julgou-a procedente sem que tivesse ouvido previamente o exequente (cfr. supra II.4).
Nos termos do artigo 201.º do CPC, a arguição de qualquer nulidade pode ser indeferida, mas não pode ser deferida sem prévia audiência da parte contrária, salvo caso de manifesta desnecessidade.
É para nós manifesto que a arguição da falta de citação da executada – e, subsidiariamente, da nulidade da sua citação – não pode considerar-se como integrando «um caso em que a audição da parte contrária é manifestamente desnecessária» até por força das consequências da sua procedência numa fase do processo em que o imóvel penhorado até já se encontra vendido porquanto a procedência da arguição de falta de citação implica a nulidade de tudo o que se processe depois da petição inicial (leia-se requerimento executivo), nos termos do disposto no artigo 187.º, alínea a), do CPC) e a procedência da arguição da nulidade da citação por preterição de formalidades prescritas na lei pode implicar também a ineficácia de todo o processado posterior à petição inicial se a falta puder prejudicar a defesa do citado, nos termos do disposto no artigo 191.º, n.ºs 1 e 4, do CPC.
Destarte, a omissão do dever de audição prévia do exequente em face da arguição da executada da respetiva falta de citação/nulidade de citação, constitui a violação do dever imposto pelo artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, nulidade que afeta a decisão sob recurso, tornando-a nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
Consequentemente, há que anular tal decisão e determinar que seja proferido o despacho omitido, isto é, o convite à exequente para se pronunciar, querendo, sobre as nulidades arguidas.
Procedendo este segmento da apelação, fica prejudicada a apreciação do mérito da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância.

SUMÁRIO: (…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam em julgar procedente a apelação e, em consequência, anulam a decisão recorrida, determinando que os autos voltem ao tribunal de primeira instância para que aí seja dado cumprimento ao disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, assegurando-se o contraditório quanto à arguição da falta de citação/nulidade de citação da executada.
Sem custas na presente instância de recurso porquanto o apelante procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso recursivo, não havendo lugar a custas de parte porque a apelada não apresentou resposta às alegações de recurso.
Notifique.
Évora, 14 de julho de 2021
Cristina Dá Mesquita
José António Moita
Silva Rato

__________________________________________________
[1] Paulo Ramos/Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, 2014, 2.ª Edição, Almedina, p. 31.
[2] Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, Almedina, p. 41.
[3] Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 109.