Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
325/15.0T8TMR.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: ARRENDAMENTO PARA FINS NÃO HABITACIONAIS
DENÚNCIA
PRAZO
REGIME APLICÁVEL
Data do Acordão: 12/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I. Os recursos visam apenas a impugnação das decisões judiciais, não sendo lícito às partes a invocação, em sede de recurso, de questões novas, que não tenham sido objecto de apreciação na decisão sobre a qual incide o recurso.
II. Na acção de reivindicação compete ao autor o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou na detenção do demandado, mas é sobre este que recai, se for o caso, o ónus de provar que é titular de um direito que legitima a recusa da restituição.
III. Os contratos de arrendamento, para fins habitacionais e não habitacionais, celebrados antes e na vigência do RAU e do Decreto - Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, sem duração limitada, não obstante se lhes aplicar o regime do NRAU, não são, em regra, livremente denunciáveis pelo senhorio, por força do disposto nos artigos 26.º, n.º 4, e 28.º, ambos da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.
IV. Porém, tal proibição não tem aplicação quanto aos arrendamentos para fins não habitacionais, nas situações previstas nas alínea a) e b) do n.º 6 do artigo 26º da Lei n.º 6/2006, ou seja, quando ocorra trespasse ou locação do estabelecimento após a entrada em vigor desta lei, ou, sendo o arrendatário uma sociedade, ocorra transmissão inter vivos de posição ou posições sociais que determine a alteração da titularidade em mais de 50% face à situação existente aquando da entrada em vigor da mesma lei.
V. Em face das alterações introduzidas no regime do arrendamento pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, nos arrendamentos para fins não habitacionais, celebrados antes do Decreto - Lei n.º 257/95, em regra, o senhorio também não goza do direito de denúncia livre. Tal direito só lhe será conferido quando se verifique alguma das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 28º, correspondentes às anteriores alíneas a) e b) do artigo 26º da Lei n.º 6/2006.
VI. Nestes casos tem o senhorio a possibilidade de denunciar livremente o contrato, mas terá, todavia, de observar um prazo de pré-aviso de 5 anos, em relação ao momento em que se produz o efeito extintivo, e não de 2 anos como prevê a alínea c) do artigo 1101º do Código Civil, embora sem necessidade de qualquer confirmação posterior, já que o artigo 1104º do Código Civil foi revogado.
VII. Verificando-se que à data da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, que é aplicável às relações contratuais constituídas que subsistam na data da sua entrada em vigor, sem prejuízo das normas transitórias, ainda não havia decorrido o prazo exigido no anterior artigo 1104º do Código Civil para a confirmação da denúncia, com a revogação desta norma tal confirmação deixou de ser exigível.
Decisão Texto Integral:

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. BB intentou contra CC, Lda., acção de processo comum pedindo a condenação da R.:
a) A reconhecer que a A. é a legítima proprietária do prédio urbano sito na Rua J… n.º …, 2300-… Tomar, inscrito na matriz com o artigo … (antigo …), União das Freguesias de Tomar, concelho de Tomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar com o n.º …; e
b) A restituir à A. o referido prédio urbano, livre de pessoas e bens, mas com os nove depósitos em cimento para armazenar vinho e a garrafeira existentes no prédio.

2. Para tanto alegou, em síntese: – que é dona de um prédio urbano sito na Rua J… n.º …, em Tomar, inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …; – em Dezembro de 2009 a Ré tomou o referido prédio de trespasse, através de contrato de trespasse, tendo dado o direito de preferência à herança indivisa aberta por óbito de DD, representada pela cabeça de casal, EE, por ser a proprietária do imóvel em causa à data; – em 21 de Dezembro de 2009, a referida herança (representada pela cabeça de casal) enviou uma carta à Ré, onde na parte final da mesma denunciou o contrato de arrendamento celebrado em 19 de Agosto de 1970, denúncia essa efectuada com base na redacção à data do artigo 1101.° alínea c) do Código Civil, aplicável por força do artigo 26.° n.º 6, al. a) da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, igualmente em vigor à data do trespasse; e – como tal, a denúncia iria operar no prazo de cinco anos a contar dessa data, ou seja, em 22 de Dezembro de 2014.
Mais alegou que, de acordo com o mencionado regime legal, a denúncia teria de ser confirmada pelo senhorio, o que deveria ser feito através de comunicação com a antecedência máxima de 15 meses e mínima de um ano relativamente à data da sua efectivação, mas que, tendo o artigo 1104.° do Código Civil, que previa tal comunicação, sido entretanto revogado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, que entrou em vigor em 12/11/2012, à míngua de qualquer regime transitório, a mesma deixou de ser exigível.
Acrescentou que passou a ser proprietária do prédio a partir de 22 de Maio de 2012, sendo que a Ré, muito embora aí exerça actividade de restauração, não possui licença de utilização, pagando uma renda mensal de 0,85€, até porque o prédio foi arrendado para arrecadação, e que chegados a 22 de Dezembro de 2014, a Ré não entregou o locado (livre de pessoas e bens, mas com todos os bens que fazem parte do mesmo, nomeadamente nove depósitos em cimento para armazenar vinho e um conjunto de garrafeiras que ocupam uma parede), não obstante interpelada para esse efeito.

3. Citada, a Ré veio contestar, alegando, em prol da improcedência da acção, em síntese: – que a denúncia operada pela Herança nunca seria válida, porque fundada num “trespasse” que, do ponto de vista de cada um dos senhorios era parcial, não podendo dar lugar ao exercício do direito de preferência separado sobre a parte do estabelecimento em funcionamento no local por si arrendado, mas quanto muito sobre a totalidade do estabelecimento, pelo que concomitantemente, também a denúncia parcial de um dos arrendamentos estaria eivada de abuso de direito; – ao questionar o uso que vinha sendo dado ao imóvel, a senhoria fingia ignorar uma realidade que é do conhecimento geral, ou seja, o facto dos imóveis em causa serem utilizados há décadas como casa de comidas e petiscos referenciada como “Casa R…”, um verdadeiro ex-libris da cidade de Tomar e, como tal, integrada nos roteiros turísticos.
Acrescentou que o conjunto de locais arrendados situa-se de um lado e do outro da Rua Dr. J…, em Tomar, constituindo um estabelecimento comercial de “restaurante, café e bebidas” instalado e em funcionamento como uma unidade nos prédios com os números de polícia 7, 7-A, 6, 4 e s/n, e que com vista à aquisição dessas diversas posições contratuais, o seu gerente negociou com os vários senhorios os valores das rendas, o que não foi possível quanto ao local aqui em causa, visto as senhorias se terem mostrado indisponíveis para negociar fosse o que fosse.
Alegou ainda: – que as duas “casas” que compõem o estabelecimento – “Casa R…” e “Casa M…” -, estão em lados opostos da mesma rua, mas têm os mesmos pratos e até a mesma cozinha, sendo a “Casa R…” como que uma esplanada coberta, sem cozinha própria, sendo as refeições aí servidas confeccionadas na Casa M…, no prédio fronteiro do outro lado da rua; – que o estabelecimento a que se referia o contrato de trespasse celebrado pela Ré e no qual foi facultado o exercício da preferência ocupa diversos espaços pertencentes a diferentes senhorios que, no seu conjunto, constituem um único estabelecimento comercial, mas a sua viabilidade depende da manutenção desta agregação de espaços, com partilha dos custos de funcionamento (gestão conjunta, cozinha única, mesmo empregados), sem a qual nenhuma das casas por si só teria viabilidade; – que seria manifestamente abusiva a invocação do direito de denúncia por parte do senhorio de alguns dos espaços arrendados afectos ao dito estabelecimento, inviabilizando dessa forma o seu funcionamento global como unidade produtiva; – nestas condições também nunca seria viável o trespasse parcial, de uma parte do conjunto porque essa divisão inviabilizaria cada uma das partes daí resultantes; e –que também não seria aceitável o senhorio pudesse, através da denúncia dos contrato de arrendamento respeitantes a apenas uma parte dos espaços afectos ao estabelecimento, inviabilizar o funcionamento global deste, sendo tal procedimento ofensivo do fim social e económico visado pelo direito de denúncia e, como tal, proibido por força do instituto do abuso de direito.
Mais aludiu que a eficácia da denúncia - feita aparentemente por quem não tinha a legitimidade necessária - esteve sempre dependente de confirmação, por comunicação do senhorio com antecedência máxima de 15 meses e mínima de um ano relativamente à data da sua efectivação, nos termos do artigo 1104.º do Código Civil, o que não foi feito no presente caso, e que o preceito legal em que se fundamentou foi revogado e deixou de ser possível com a alteração legislativa.

4. Findos os articulados foi designada data para audiência prévia, na qual a A. foi admitida a pronunciar-se sobre a matéria de excepção aduzida em sede de contestação, a qual referiu não ocorrer a “abuso de direito”, porquanto o imóvel em apreço foi objecto de arrendamento autónomo, sendo certo que o outro espaço explorado pela Ré denominado “Casa M…” respeita a um contrato de arrendamento celebrado noutra data (ano de 1963) e está fisicamente separado do imóvel objecto dos presentes autos, tendo autonomia comercial, pois é no mesmo que se situa a cozinha e a grande parte das mesas e cadeiras disponíveis para exploração comercial da actividade da R., não obstaculizando a denúncia o exercício da actividade comercial da R..

5. Foi proferido despacho saneador tabelar, tendo sido dispensada a definição do objecto do litígio e a fixação dos temas da prova, designando-se data para audiência final.
Efectuado o julgamento veio a ser proferida sentença, na qual se decidiu:
Julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenar a Ré CC., a reconhecer que a Autora BB é a legítima proprietária do prédio urbano sito na Rua J… n.º …, em Tomar, inscrito na matriz sob o artigo … (sendo anterior artigo …), da União das Freguesias de Tomar e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o n.º …, e a proceder à sua restituição à Autora livre de pessoas e bens.

6. A R. interpôs recurso da sentença, nos termos e com os fundamentos seguintes [segue transcrição das conclusões do recurso]:
1.ª A remissão constante do ponto 8. dos factos provados deve considerar-se feita para o ponto 7. e não para o ponto 6, por tal corresponder a simples rectificação de erro de escrita.
2.ª Por outro lado a expressão “assumindo as vestes de Cabeça da Casal” constante do ponto 7. é ambígua, devendo ser substituída por “invocando que fazia a comunicação como cabeça de casal da Herança Indivisa de DD”.
3.ª Estando a presente acção configurada como acção de reivindicação e respeitando a mesma a prédio reconhecidamente arrendado à R., não podia o tribunal apreciar a validade da denúncia sem que tivessem enunciados na p.i. todos os factos susceptíveis de demonstrar a validade e eficácia da denúncia, nomeadamente a data da celebração do contrato, o respectivo prazo de vigência e de renovação e os factos atinentes à respectiva denúncia.
4.ª Não era aplicável no caso sub judice em qualquer caso a alínea c) do artigo 1101º do Código Civil uma vez que da conjugação dos artigos 26°, 27° e 28° do NRAU na redacção anterior à Lei nº 31/2012 resulta que o legislador pretendeu que aos contratos de arrendamento para fins não habitacionais anteriores ao D.L. n.º 257/95, de 30/9, não se aplicasse a regra da denúncia livre por parte do senhorio, mantendo em vigor sobre tal contrato o antigo regime vinculístico.
5.ª Efectivamente aos arrendamentos vinculísticos, celebrados no âmbito da legislação pretérita à Lei 6/2006, não é aplicável o constante da al. c) do citado artigo 1101º, ou seja, tais contratos não são livremente denunciáveis pelo senhorio, impondo-se-lhe a sua renovação.
6.ª Tais contratos de arrendamento só são denunciáveis justificadamente nas situações previstas nas alíneas a) e b) desse artigo 1101º.
7.ª Pelo que se invoca a ilegalidade das normas legais constantes da alínea c) do artigo 1101º do Código Civil conjugada com as dos artigos 26°, 27° e 28° do NRAU na redacção anterior à Lei nº 31/2012 no sentido em que o tribunal as aplicou, ou seja, no sentido da aplicabilidade da denúncia injustificada aos contratos de arrendamento não habitacionais anteriores ao DL nº 257/95 de 30/09 em caso de trespasse.
8.ª EE não era por designação legal cabeça de casal da herança de DD por não ser a filha mais velha nem viver com o falecido, atento o disposto no artigo 2080º do Código Civil.
9.ª Carecia pois aquela de legitimidade para comunicar à ora recorrente a denúncia do contrato de arrendamento desacompanhada da outra herdeira, sendo ineficaz a comunicação que fez invocando a qualidade de cabeça de casal.
10.ª E sendo sintomático o facto de quando aos outros prédios cujos contratos de arrendamento também foram denunciados na mesma carta e que vieram a ser atribuídos na partilha à herdeira Luísa C… prosseguir normalmente a relação de arrendamento.
11.ª Mesmo que a denúncia fosse válida jamais se teria tornado eficaz visto nunca ter sido confirmada nos termos do artigo 1104º do Código Civil, sendo que a confirmação seria sempre uma condição de eficácia, continuando por isso a ser obrigatória nas situações pendentes mesmo depois da revogação daquele preceito legal.
12.ª Ao considerar válida a denúncia a douta sentença violou as normas dos artigos 1101º e 2091º do Código Civil bem como as dos artigos 26º, 27º e 28º do NRAU.
13.ª A decisão recorrida ao considerar desnecessária a confirmação violou o disposto no artigo 12º do Código Civil, desde já se invocando a ilegalidade da norma do artigo 1104º do CC no sentido em que o tribunal a interpretou ou seja da sua inaplicabilidade após a vigência da Lei nº 31/2012 às situações criadas anteriormente ou seja às situações de denúncia já comunicadas e ainda não confirmadas.
14.ª Pertencendo à A. apenas uma parte das instalações em que funciona o estabelecimento e pertencendo os outros locais a outros proprietários; não consentindo a autarquia o funcionamento separado da parte do estabelecimento instalada no prédio da A.; e tendo o antecessor da A. contribuído para a criação da realidade que constitui o estabelecimento assim repartido por diversos locais tal como a R. o adquiriu, fazendo um investimento com vista à continuação da mesma actividade e aceitando actualizar significativamente as rendas, constitui abuso de direito a cessação injustificada do arrendamento relativo ao prédio da A., que implica o desmantelamento de uma parte do dito estabelecimento.
15.ª Mais notório se tornando esse abuso com fundamento em denúncia injustificada tendo em conta o facto de a parte do estabelecimento a desmantelar, conhecido por “Casa R…”, constituir um ex-libris da cidade de Tomar, cuja preservação é de interesse sócio-económico e cultural, e que separada do conjunto do estabelecimento não terá qualquer viabilidade.
16.ª Pelos fundamentos expostos deverá a sentença ser revogada na parte em que decretou a restituição do prédio à Autora.

7. Contra-alegou a A., pugnando pela confirmação da sentença recorrida e pedindo o desentranhamento dos autos dos documentos juntos pela recorrente com as alegações de recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II – Questão Prévia
8. Com as alegações de recurso a R. juntou documentos (habilitação de herdeiros e certidões de nascimento) dizendo que a junção dos tidos documentos é necessária em virtude do julgamento em 1ª instância, onde se considerou que era válida a denúncia operada pela comunicação efectuada pela herdeira EE invocando a qualidade de cabeça de casal, que não tinha como agora se demonstra.
Como se sabe, na fase de recurso, “[a]s partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância” (cf. artigo 651º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
E, como se prescreve no artigo 425º do Código de Processo Civil. “[d]epois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Na interpretação do regime previsto nos artigos 425.º e 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, deve atentar-se que a necessidade da junção de um documento que pode derivar do julgamento em primeira instância não corresponde à necessidade de suprir uma insuficiência instrutória anterior, revelada pela própria decisão da primeira instância.
Ora, no caso concreto, a junção dos ditos documentos não deriva do julgamento em 1ª instância, como invoca a recorrente.
Na verdade, a recorrente na contestação não pôs sequer em causa que Rosa Correia não fosse cabeça de casal na herança falecido DD, qualidade que invocou aquando da comunicação da denúncia do contrato de arrendamento aqui em causa. O que diz é que a mesma subscreveu a carta de denúncia “aparentemente sem a legitimidade necessária”, depreendendo-se da sua alegação que tal “ilegitimidade” decorria do facto de existir outra “co-proprietária” do imóvel.
Assim, com a junção dos ditos documentos a recorrente pretende discutir questão nova, que antes não foi apreciada por não ter sido suscitada e que agora também o não pode ser em recurso, pois os recursos não se destinam, em regra, a apreciar questões novas.
Acresce, que também não resulta das alegações que só após o julgamento tivesse advindo ao conhecimento da recorrente que a dita EE não era cabeça de casal na herança de DD, sendo certo que resulta da própria contestação que a recorrente sabia da existência de outra co-proprietária do local arrendado, para a qual dirigia também as suas comunicações, pelo que, se dúvidas tivesse quanto à qualidade de cabeça de casal de EE, devia ter suscitado expressamente tal questão na contestação, o que não fez.
Deste modo, não se admite a junção dos ditos documentos e determina-se o seu desentranhamento dos autos.
*
III – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as questões relativas à alteração da matéria de facto e reapreciação jurídica da causa, como abaixo se enunciarão.
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IV – Fundamentação
A) - Os Factos
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Encontra-se descrito na CRP de Tomar, sob o n.º …211 - freguesia de S. João Batista, o prédio seguinte, situado na Rua Dr. J… n.º …, em Tomar: urbano, com área total coberta de 64 m2, inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias de Tomar sob o n.º … (anterior artigo ….º, da freguesia de S. João Batista), composto por casa de habitação composta de rés-do-chão amplo e 1.º andar amplo [art. 1.º da P.I.];
2. Sobre o prédio mencionado em 1.º, pela Apresentação n.º 727, de 22 de Maio de 2012, encontra-se inscrita a aquisição, por partilha de Herança, a favor da Autora BB, sendo sujeito passivo DD [art. 1.º da PJ.];
3. Por escrito particular denominado “Contrato de Arrendamento” datado de 19 de Agosto de 1970, constante de fls. 75 e 76, Maria …, na qualidade de senhoria, e José …, na qualidade de arrendatário, acordaram entre si o seguinte, além do mais que aqui se dá por reproduzido:
(…)
Os abaixo assinados, Maria … como senhorio, e José … como arrendatário, fazem, entre si, um contrato de arrendamento de uma loja de arrecadação sita na Rua Dr. J… n.º …, em Tomar, cujo prédio se acha inscrito na matriz urbana sob o artigo … da freguesia de São João Batista do concelho de Tomar com as cláusulas seguintes:
1.ª - O prazo da sua duração é de três meses a contar de 1 de Setembro de 1970, prorrogável por iguais e sucessivos períodos de tempo, nos termos da lei;
2.ª - A renda anual é de dois mil e quarenta escudos a pagar em duodécimos de 170$00, na morada do senhorio no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito;
3.ª - A loja arrendada destina-se a arrecadação, não lhe podendo ser dado qualquer outro destino, nem ser sublocado, total ou parcialmente, sem autorização, por escrito do senhorio;
4.ª - Todas as obras de conservação e de reparação de que a loja arrendada interiormente carecer ficam a cargo do inquilino que responderá por toda e qualquer deterioração nele causada por sua culpa ou negligência;
5.ª - O inquilino não poderá fazer na loja arrendada, sem o consentimento, por escrito, do senhorio, quaisquer benfeitorias, não lhe assistindo o direito de retenção ou indemnização por elas ou por quaisquer outras que faça, pois, desde logo serão consideradas pertenças do prédio.
(…)
7.ª - Findo o arrendamento, seja qual for o motivo o inquilino é obrigado a entregar a loja arrendada limpa e reparada com todos os respectivos pertences em bom estado de conservação e funcionamento;
(…)
4. Em Dezembro de 2009 a Ré CC Lda. ocupou o prédio mencionado em 1.º por via de um contrato de trespasse de estabelecimento comercial celebrado com José … [art. 2.º da PI.];
5. Com data de 16 de Fevereiro de 2009, José … remeteu a EE e Luísa … as missivas de fls. 55 e 59, que foram recebidas, com o seguinte teor, além do mais que aqui se dá por reproduzido [art. 2.º da PJ.]:
(…)
Assunto: Notificação para a preferência (trespasse) Exma. Senhora
Comunico a V Exa., na qualidade de co-proprietária (herdeira de DD) e senhoria dos Rés-do-chão servidos pelos números de policia …, … e s/n (sem número), da Rua Dr. J…, em Tomar, onde, na qualidade de arrendatário tenho instalado parte do meu estabelecimento comercial de “restaurante, café e bebidas”, que ajustei o trespasse do referido estabelecimento, nas condições e cláusulas constantes da minuta do contrato a celebrar e que ora junto á presente comunicação para dela ficar a fazer parte integrante, e que aqui dou por reproduzidas.
O contrato será celebrado por escrito particular a ser outorgado no próximo dia 10 de Março de 2009, pelas 14.30horas, no escritório do advogado (…)
Assim, atento o direito de preferência no trespasse que assiste aos senhorios face ao disposto no n.º 4 do art. 1112.º do Código Civil, deverá V Exa. caso pretenda exercer tal direito, dar-me conhecimento desse facto no prazo de 8 (oito) dias.
(…)
6. Em anexo às missivas mencionadas em 4.° seguiu minuta do contrato de trespasse constante de fls. 56 a 58, dando-se o seu teor aqui por reproduzido;
7. Em resposta à missiva mencionada em 4.°, EE, assumindo as vestes de Cabeça de Casal da Herança de DD, remeteu a José … a carta de fls. 16, recebida pelo destinatário, com o seguinte teor, além do mais que aqui se dá por reproduzido:
(…)
Ex.mo Senhor
Acuso, na qualidade de Cab. de Casal da Herança supra referida, a carta para notificação de preferência pelo trespasse, que acompanha a minuta do respectivo contrato, relativo aos prédios urbanos inscritos na matriz predial sob os arts. … e … da freguesia de S. João Batista -Tomar, n.ºs de policia …, … e s/n, os quais foram dados de arrendamento para fins de arrecadação, conforme melhor consta dos contratos.
Ora, desconheço e não reconheço a licença que menciona existir na sua minuta de contrato de trespasse.
Assim, para além de não ter de preferir, desde já lhe comunico que me irei opor ao anunciado trespasse.
Sem outro assunto, subscrevo-me.
(…)
8. Na data mencionada em 5.° o prédio referido em 1.º integrava a Herança de DD [art. 3.º da PI.]; - cf. rectificação abaixo ordenada.
9. Com data de 21 de Dezembro de 2009, EE remeteu à Ré, que a recebeu, a missiva de fls. 17, com o seguinte teor, além do mais que aqui se dá por reproduzido [art. 4.º da PI.]:
(…)
Ex.mos Senhores
Dou antes de mais em referência, cópia da carta/resposta enviada em 25 de Fevereiro de 2009 ao Sr. José …, e por este recebida em 26 de Fevereiro de 2009, após nos ter notificado para preferência quanto ao trespasse que viria a celebrar com essa firma, da qual nos foi dado conhecimento por carta de 11 de Março de 2009. Reitero o que foi dito na minha anterior carta, ou seja:
a) Os N° …, … e s/n (arts. … e … urbanos) haviam sido todos dados, através de contrato de arrendamento escrito, para a finalidade comum de “arrecadação” e não qualquer outra.
b) Desconhece-se e não se reconhece a Licença de Utilização enunciada no projecto de trespasse e no documento que o viria a titular, cuja validade se não aceita.
c) Irei opor-me ao trespasse, com a competente acção de despejo, pois não existiu nunca autorização por escrito para qualquer alteração de utilização dos espaços, conforme consagrado nos contratos de arrendamentos.
d) Além disso, os espaços relativos aos n.ºs de policia … e s/n não oferecem condições para continuar arrendados, não oferecendo também as necessárias condições de higiene. Agradeço, pois, que procedam V Exas. a desocupação de tais espaços até ao final do ano, com entrega das respectivas chaves.
Em todo o caso, sem condescender, por mera cautela e independentemente do direito à resolução dos contratos de arrendamento em causa, desde já venho ao abrigo dos artigos 1101.º al. c) do Código Civil ex vi do art. 26.º n.º 6 al. a) da lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, denunciar os contratos de arrendamento celebrados respectivamente em 19 de Agosto de 1970 (art. …, n.º … da Rua Dr. J… e art. …, s/n da mesma Rua) e em 1 de Maio de 1963 (art. 383, n. º 4 - r/c daquela mesma Rua) para o dia 22 de Dezembro de 2014.
Sem outro assunto, subscrevo-me com os meus cumprimentos,
(…)
10. A Ré tem vindo a exercer no prédio mencionado em 1.º a sua actividade comercial de restauração [arts, 17.°, 18.°, 19.° da PI.];
11. Aí existem nove depósitos para armazenar vinho e um conjunto de garrafeiras que ocupam uma parede [art. 24.° da PI.];
12. Com data de 30 de Setembro de 2014, o mandatário da Autora remeteu à Ré, que a recebeu, a missiva de fls. 20, cujo teor aqui se dá por reproduzido [art. 20.° e 21.° da PI.];
13. O prédio mencionado em 1.° vem sendo utilizado, desde data não concretamente apurada anterior a 2009, como casa de comidas e petiscos referenciada como “Casa R…”, sendo um ex-libris da cidade de Tomar e como tal integrada nos roteiros turísticos [arts. 5.° e 35.° da Contestação];
14. O facto mencionado em 10.° e 13.° foi do conhecimento da Autora e dos seus antecessores [art. 6.° da Contestação];
15. O prédio mencionado em 1.º, onde fica a “Casa R…” e o prédio em frente, com os números … e …-A de polícia, onde fica a “Casa M…” são ambos usados pela Ré para desenvolver a sua actividade de restauração situando-se de um lado e do outro da Rua Dr. J… e constituindo um estabelecimento de “restaurante, café e bebidas”, instalado como uma unidade nos referidos prédios [art. 9. ° da Contestação];
16. Os pratos servidos são os mesmos, os quais são cozinhados na mesma cozinha localizada na “Casa M…” [art. 17.° da Contestação];
17. A “Casa R…” constitui como que uma esplanada coberta, não possuindo cozinha própria [art. 18.° da Contestação];
18. Em 29 de Abril de 1991 foi efectuada vistoria pelo delegado de Saúde de Tomar ao prédio mencionado em 1.º, tendo sido lavrado o parecer constante de fls. 63 e 64, com o seguinte teor, além do mais que aqui se dá por reproduzido [art. 19.° da Contestação] :
(…)
Considerando que não se confeccionam alimentos neste estabelecimento sito no n.º … da Rua mencionada acima;
Considerando que é frequentado quase exclusivamente por indivíduos do sexo masculino;
Considerando que tem um visual que necessita de ser melhoramento; Considerando que na mesma rua um pouco mais abaixo e quase de fronte com o número de seis há um restaurante pertencente à mesma firma;
Considerando que este tem os requisitos sanitários indispensáveis para ambos os sexos;
Estes Serviços de Saúde são de parecer favorável desde que se observem aquando do licenciamento final os seguintes requisitos:
a) Que este estabelecimento faça parte integrante do restaurante;
b) Que seja facultado aos utentes da taberna o uso dos sanitários do restaurante;
c) Que se proceda à limpeza, caiação ou pintura das paredes e vigas e reparação do telhado;
d) Que na dependência do urinol se proceda:
d-1 - ao revestimento do seu interior com material impermeável e lavável;
d-2 - à instalação de orifício para ventilação forçada;
d-3 - à colocação de uma porta de acesso;
d-4 - instalação de luz eléctrica;
d-5 - instalação de água para limpeza do urinol e que haja um lavatório pelo menos com água corrente no estabelecimento;
e) Que nunca haja separação do restaurante referido, salvo se lhe for integrado uma ou duas casas de banho, consoante o funcionamento a destinar;
f) Que o alvará a este estabelecimento é de conceder após a execução do atrás mencionado, para o que se concede o prazo de 60 dias para nova vistoria;
(…)
19. A Câmara Municipal de Tomar tem vindo periodicamente a renovar as licenças de funcionamento da “Casa M…” e da “Casa R…” [art. 20.º da Contestação];
20. A Ré adquiriu o uso dos locais arrendados fazendo um investimento com vista à continuação da mesma actividade [art. 25.º da Contestação];
21. O Sr. DD, avô da Autora desenvolveu um negócio de vinhos, tendo um armazém nesta cidade de Tomar, tendo ainda aberto a “Casa A…”, antiga serralharia transformada em taberna, casa de vinhos e comidas, como era designada na época [art. 29.° da Contestação];
22. Em 1962 o Sr. DD convenceu o afilhado José … a ficar com o negócio, alterando o nome para “Casa M…” [art. 30.° da Contestação];
23. No prédio mencionado em 1.º funcionava uma adega onde se fazia e armazenava o vinho que era depois servido na “Casa M…” [art. 31.° da Contestação];
24. Só após a celebração do acordo mencionado em 3.°, que permitiu a José … o uso do prédio referido em 1.º, é que DD adquiriu tal prédio [art. 32.° da Contestação];
25. O nome “Casa R…” deve-se à presença destes roedores no local, tendo sido atribuído por um grupo de amigos que aí se reuniam em extensos lanches [art. 34.° da Contestação];
26. Os funcionários da Ré atravessam a rua com as bandejas das refeições provenientes da cozinha da “Casa M…” para servir os clientes acomodados na “Casa R…”;
27. Os depósitos e garrafeiras mencionados em 11.° fazem parte dos equipamentos transmitidos com o trespasse [art. 73.° da Contestação];
*
B) – O Direito
1. Pede a recorrente a rectificação do ponto 8 da matéria de facto, por lapso de escrita, dizendo que “a remissão constante do ponto 8º. dos factos provados deve considerar-se feita para o ponto 7. e não para o ponto 6º”.
A recorrida aceita tal rectificação.
Porém, verifica-se que existe lapso na remissão efectuada, mas não propriamente o invocado, porquanto, tendo o referido ponto da matéria de facto origem no artigo 3º da petição inicial, onde se justificava que se deu à herança indivisa aberta por óbito de DD o direito de preferência no trespasse do estabelecimento, a data relevante é pois a da comunicação em causa, que é a mencionada no ponto 5º dos factos provados, e não no ponto 7º, pois esta refere-se à resposta dada pela senhoria à anterior comunicação.
Assim, embora seja inequívoco que tanto na data da comunicação do trespasse, como na resposta mencionada no ponto 7º e também na comunicação da denúncia referida em 9º dos factos provados, o prédio era pertença da herança de DD, por uma questão de correcção, determina-se a rectificação do ponto 8º dos factos provados, de forma a que onde se lê “Na data mencionada em 6.º …”, passará a ler-se Na data mencionada em 5.º ….
Do mesmo modo, também se determina a correcção do ponto 7º dos factos provados, pois é manifesto que a carta mencionada neste ponto foi remetida em resposta à missiva mencionada em 5º, pois o ponto 4º alude apenas à ocupação do prédio pela R. na sequência do trespasse. Assim, no ponto 7º, onde se lê “Em resposta à missiva mencionada em 4º …”, passará a ler-se: Em resposta à missiva mencionada em 5º …”.

2. Pretende também a recorrente que se altere a redacção constante do ponto 7º dos factos provados referindo que «a expressão “assumindo as vestes de Cabeça da Casal” constante do ponto 7º é ambígua, devendo ser substituída por “invocando que fazia a comunicação como cabeça de casal da Herança Indivisa de DD”».
Salvo o devido respeito, no contexto da decisão proferida não compreendemos o preciosismo da alteração, pois entende-se perfeitamente que se está a dizer que a dita EE fez a comunicação de denúncia invocando a qualidade de cabeça de casal, como aliás resulta da transcrição da comunicação referida no mesmo ponto da matéria de facto.
Acresce que, a R. nem sequer contestou tal qualidade, como se disse, daí que a única questão apreciada na sentença respeitante à intervenção da cabeça de casal tenha sido a de saber se a cabeça de casal, enquanto tal, tinha legitimidade para proceder à denúncia do arrendamento, e não se quem subscreveu a denúncia do arrendamento detinha aquela qualidade.
Não ocorre, pois, fundamento para a aludida alteração.

3. Mantendo-se inalterada a matéria de facto, vejamos agora a apreciação jurídica da causa.
Com a presente acção pretendia a A. o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio identificado no ponto 1º dos factos provados e a restituição do mesmo, livre e devoluto de pessoas e bens.
Estamos, pois, em presença de uma acção de reivindicação, tal como se encontra prevista no artigo 1311º do Código Civil, nos termos do qual o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence (n.º 1).
Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei, como decorre do n.º 2 do referido artigo.
Ora, na sentença recorrida conclui-se que, efectivamente, a A. era proprietária do prédio reivindicado (cf. pontos 1º e 2º dos factos provados) e que a R. não detinha título legítimo para a ocupação do mesmo, porquanto o contrato de arrendamento que legitimava tal ocupação cessou, por denúncia do senhorio, que se teve por válida, e não ocorreu a invocada excepção do abuso de direito.
A recorrente não contesta que o prédio seja pertença da recorrida, mas discorda da decisão de entrega do mesmo, pelas razões que passamos a apreciar.

4. Começa a recorrente por alegar a invalidade da denúncia por o direito ter sido exercitado por EE, invocando a qualidade de cabeça de casal que não tinha.
Sucede que tal questão não foi sequer discutida nos autos, por não ter sido suscitada na contestação.
A questão que se discutiu e decidiu na sentença foi a de saber se a cabeça de casal tinha legitimidade para proceder à denúncia do contrato de arrendamento, e não a de saber se EE tinha ou não a qualidade de cabeça de casal, pelo que esta questão constitui questão nova, que, como tal, não pode ser apreciada em recurso.
Efectivamente, é constante a jurisprudência a lembrar que os princípios que regem os recursos definem estes como meios de obter a reforma das decisões dos tribunais recorridos, e não como vias jurisdicionais para alcançar decisões novas, pois, os recursos, em regra, visam apenas modificar as decisões recorridas e não apreciar questões não decididas pelo tribunal a quo.
Acresce que, no caso não se admitiu a junção aos autos da documentação junta pela recorrente em sede de alegações com vista à prova dos factos que agora pretendia demonstrar.

5. Diz, depois, a recorrente que, estando a presente acção configurada como acção de reivindicação e respeitando a mesma a prédio reconhecidamente arrendado à R., não podia o tribunal apreciar a validade da denúncia sem que tivessem enunciados na petição inicial todos os factos susceptíveis de demonstrar a validade e eficácia da denúncia, nomeadamente a data da celebração do contrato, o respectivo prazo de vigência e de renovação e os factos atinentes à respectiva denúncia.
Ora, sendo a presente acção de reivindicação, e resultando da lei que provada a propriedade a restituição só não ocorrerá nos casos previstos na lei (cf. artigo 1311º do Código Civil), atendendo às regras do ónus da prova, compete ao A. o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou na detenção do demandado, mas é sobre o R. que recai, se for o caso, o ónus de provar que é titular de um direito que legitima a recusa da restituição (artigo 342º do Código Civil).
Assim, era à R., ora recorrente, que competia alegar os factos demonstrativos da subsistência da relação de arrendamento, obstativa da restituição, e não o contrário.
De todo o modo, a A. logo alegou na petição as razões da demanda – baseadas no facto de ser a proprietária do prédio, a R. já não ter um contrato de arrendamento válido, pois o anteriormente existente fora objecto de denúncia, e não ter ainda restituído o arrendado –, sendo que, na sequência da contestação, a R. juntou aos autos cópia do contrato de arrendamento em causa, que consta de fls. 75/76, constando do ponto 3º dos factos provados os pertinentes factos relativos à celebração do arrendamento em causa. Acresce que, também consta de fls. 17/18 a comunicação da denúncia do contrato, como foi vertida no ponto 7º dos factos provados. E estes factos não foram impugnados.
Deste modo, e não se questionando sequer que a denúncia operada pela comunicação a que se reporta o documento de fls. 17/18 não diga respeito ao arrendamento identificado nos autos, ainda que se entendesse que era à A. que competia a concreta alegação dos factos em causa, tendo a R. compreendido os fundamentos da demanda, por aquisição processual sempre tal matéria resultante dos documentos juntos, ainda que imperfeitamente alegada, teria que ser considerada pelo tribunal recorrido na apreciação da causa, como sucedeu.

6. Discorda também a recorrente do enquadramento jurídico efectuado na sentença, no que se reporta à aplicação ao caso da alínea c) do artigo 1101º do Código Civil, invocando que da conjugação dos artigos 26°, 27° e 28° do NRAU na redacção anterior à Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto, resulta que o legislador pretendeu que aos contratos de arrendamento para fins não habitacionais anteriores ao Decreto - Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, não se aplicasse a regra da denúncia livre por parte do senhorio, mantendo em vigor sobre tal contrato o antigo regime vinculístico.
Conclui, assim, que tais contratos, como é o caso do dos autos, não são livremente denunciáveis pelo senhorio, só sendo denunciáveis justificadamente nas situações previstas nas alíneas a) e b) do artigo 1101 do Código Civil.
Mais aduz a recorrente que, ainda que fosse aplicável o regime da denúncia livre era necessária a confirmação prevista na norma do artigo 1104º do Código Civil, não sendo aplicáveis as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, que revogou o referido preceito.

7. Não subsistem dúvidas que, no caso em apreço foi celebrado um contrato de arrendamento formalizado por escrito em 19 de Agosto de 1970, sendo partes contratantes Maria …, na qualidade de senhoria, e José …, como arrendatário, tendo por objecto uma loja destinada a arrecadação, não lhe podendo ser dado qualquer outro destino.
Não se tratou, pois, de um arrendamento para instalação de um estabelecimento comercial, mas tão só de um espaço destinado a arrumação/armazém.
Porém, como se diz na sentença, a posição de arrendatário transferiu-se para a R. por via da celebração do trespasse, visto o direito ao arrendamento integrar o estabelecimento transmitido.
Por outro lado, apurou-se nos autos que, após “notificação para a preferência”, a cabeça de casal remeteu à R., em 21 de Dezembro de 2009, uma missiva na qual, além do mais, fez constar: “(…) Em todo o caso, sem condescender, por mera cautela e independentemente do direito à resolução dos contratos de arrendamento em causa, desde já venho ao abrigo dos artigo 1101.º al. c) do Código Civil ex vi do art. 26.º n.º 6 al. a) da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, denunciar os contratos de arrendamento celebrados respectivamente em 19 de Agosto de 1970 (art. …, n.º … da Rua Dr. J… e art. …, s/n da mesma Rua) (…) para o dia 22 de Dezembro de 2014”.
Na sentença recorrida, depois de se ter concluído que a cabeça-de-casal tinha base legal para proceder à denúncia livre do contrato, entendeu-se, relativamente à aplicação do dito regime, o seguinte:
«…, inserido no Capítulo II do Título II (normas transitórias) do Novo Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro) – capítulo respeitante aos “Contratos habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano e contratos não habitacionais celebrados depois do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro – previa o artigo 28.º que aos contratos a que se refere o presente capítulo aplica-se, com as devidas adaptações, o previsto no artigo 26.º. De acordo com o n.º 4 al. c) desta norma, os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades: (…) c) Não se aplica a alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil. Porém, acrescentava-se no n.º 6 que em relação aos arrendamentos para fins não habitacionais, cessa o disposto na alínea c) do n.º 4 quando: a) Ocorra trespasse ou locação do estabelecimento após a entrada em vigor da presente lei; (…). Por fim, no artigo 1101.º al. c) do Código Civil previa-se: o senhorio pode denunciar o contrato de duração indeterminada nos casos seguintes: (…) c) mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretenda a cessação. Acrescentava-se, porém, no artigo 1104.º que no caso previsto na alínea c) do artigo 1101.º, a denúncia deve ser confirmada, sob pena de ineficácia, por comunicação com antecedência máxima de 15 meses e mínima de um ano relativamente à data da sua efectivação.
Aqui chegados, é forçoso concluir que a cabeça-de-casal tinha base legal para proceder à denúncia livre do contrato, como veio a suceder. Com efeito, por remissão legal expressa (art. 28.º do NRAU) era aplicável aos contratos não habitacionais celebrados antes do DL 257/95, de 30 de Setembro – como é o caso do dos autos, datado de 19 de Agosto de 1970 - o regime previsto no artigo 26.º.
Sucedeu, porém, que em plena vigência do prazo de cinco anos previsto para a denúncia, verificou-se uma significativa alteração legislativa – perpetrada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto -, que passou, designadamente, pela modificação do teor dos artigos 26.º, 27.º e 28.º do NRAU e art. 1101.º do Código Civil e revogação do art. 1104.º do Código Civil.
No que ora interessa, é de referir que o anterior regime do artigo 26.º n.º 6 transitou para o n.º 3 do artigo 28.º, prevendo-se na al. a) respectiva que em relação aos arrendamentos para fins habitacionais, a antecedência a que se refere a alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil é elevada para cinco anos quando: a) ocorra trespasse, locação do estabelecimento ou cessão do arrendamento para o exercício de profissão liberal (…). E acrescentou-se no n.º 4 que o disposto no n.º 3 é apenas aplicável quando as situações referidas nas respectivas alíneas a) e b) ocorram após a entrada em vigor da presente lei, entendendo-se por esta, a Lei n.º 31/2012 [Neste sentido, Francisco Castro Fraga, in Leis do Arrendamento Urbano Anotadas – Coordenação Menezes Cordeiro, Almedina, 2014, pág. 477]. Portanto, nos contratos não habitacionais pré-DL 257/95 continuou a ser possível ao senhorio, havendo trespasse, a denúncia injustificada do contrato feita com cinco anos de antecedência. A referência expressa a este prazo justifica-se porque, na norma geral – art. 1101.º al. c) do Código Civil – o prazo de antecedência da denúncia foi reduzido para dois anos. Contudo, em face da revogação do artigo 1104.º deixou de ser exigível a confirmação da denúncia.
Constata-se, assim, que não tem a Ré razão na parte em que refere ter sido “eliminada a fonte de direito em que assentava a projectada denúncia”, não sendo verdade que para os contratos não habitacionais vinculísticos celebrados antes do DL 257/95 tenha deixado de ser possível a denúncia directa em caso de trespasse.
Por outro lado – é essencial referi-lo – o novo regime não retirou eficácia aos actos que começaram a ser praticados ao abrigo do regime anterior (até porque as modificações que, neste concreto, introduziu foram diminutas), o que significa que, tendo a cabeça-de-casal da herança de DD procedido à denúncia do contrato por carta de 21 de Dezembro de 2009, o prazo de cinco anos nessa data iniciado continuou a decorrer, não se tendo interrompido ou iniciado novo prazo com a entrada em vigor da alteração legislativa perpetrada pela Lei n.º 31/2012 [De resto, nos termos do artigo 12º do Código Civil, alei só dispõe para o futuro, ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular].»

8. No caso em apreço estamos em presença de um contrato de arrendamento não habitacional celebrado antes da entrada em vigor do Decreto - Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, sem duração limitada, os quais à semelhança do que sucede com os contratos habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do RAU, todos sujeitos aos regime de prorrogação forçada quanto ao senhorio, regem-se pelas normas do NRAU, embora com as particularidades introduzidas, entre outras, pela norma do artigo 28º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que lhes manda aplicara, com as devidas adaptações, o regime transitório no artigo 26ºda mesma Lei.
Como resulta da matéria de facto, o direito de denúncia foi exercitado pela cabeça de casal com fundamento na alínea c) do artigo 1101º do Código Civil, em 21 de Dezembro de 2009, ou seja, já no âmbito da vigência do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que entrou em vigor 28 de Junho de 2006, e que se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias (cf. artigos 59º, n.º 1, e 65º n.º 2 da citada lei.)
Ora, do regime transitório previsto no artigo 26º, para os contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU e para os contratos não habitacionais celebrados depois do Decreto - Lei n.º 257/95, de 30/ de Setembro, também aplicável aos contratos habitacionais e não habitacionais celebrados antes dos referidos diplomas (cf. artigo 28º da mesma lei) resulta que “[o]s contratos de duração limitada renovam-se automaticamente, quando não sejam denunciados por qualquer das partes, no fim do prazo pelo qual foram celebrados, pelo período de três anos, se outro superior não tiver sido previsto, sendo a primeira renovação pelo período de cinco anos no caso de arrendamento para fim não habitacional” (n.º 3).
Mas, de acordo com o n.º 4, “[o]s contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades:
a) (…);
b) (…);
c) Não se aplica a alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil.»
E, no n.º 6 do mesmo artigo acrescenta-se que: «Em relação aos arrendamentos para fins não habitacionais, cessa o disposto na alínea c) do n.º 4 quando:
a) Ocorra trespasse ou locação do estabelecimento após a entrada em vigor da presente lei;
b) Sendo o arrendatário uma sociedade, ocorra transmissão inter vivos de posição ou posições sociais que determine a alteração da titularidade em mais de 50% face à situação existente aquando da entrada em vigor da presente lei.”
Por sua vez, a norma da alínea c) do artigo 1101º do Código Civil (sob a epígrafe “denúncia pelo senhorio”), prevê a denúncia do contrato pelo senhorio: “Mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretenda a cessão”.

9. Como bem diz a recorrente, em face deste regime e sobre a aplicabilidade do artigo 1101º, alínea c) do Código Civil aos arrendamentos vinculisticos celebrados antes e na vigência do RAU e do Dl. 257/95, de duração não limitada, pronunciaram-se, entre outros, o acórdão da Relação do Porto, de 13/07/2011 (proc. n.º 50/11.1TBVLC.P1), disponível como os demais citados em www.dgsi.pt, onde se concluiu que: «Os contratos de arrendamento, para fins habitacionais e não habitacionais, celebrados antes e na vigência do RAU e do DL n.º 257/95, de 30/9, sem duração limitada, não obstante se lhes aplicar o regime do NRAU, não são livremente denunciáveis pelo senhorio, por força do disposto nos art.ºs 26.º, n.º 4 e 28.º, ambos da Lei n.º 6/2006, de 27/2.» [Cf. no mesmo sentido, os acórdãos da Relação do Porto de 23/02/2010 (proc. n.º 74/08.6TBVNG.P1), e da Relação de Guimarães, de 19/05/2011 (proc. n.º 942/10.5TBFAF.G1)]
A este respeito escreveu-se no citado aresto:
«Os contratos de duração limitada (referidos no artigo 26º/3 da Lei 6/2006), celebrados na vigência do RAU e depois do DL 257/95 (no que toca a arrendamentos para o comércio ou industria ou exercício de profissão liberal), são os previstos nos arts. 98º (habitação) e 117º (não habitacionais – para o comércio ou indústria – no que nos interessa) do RAU.
Os demais contratos, na vigência desses diplomas legais, como todos os celebrados antes da vigência do RAU e do DL 257/95, são arrendamentos vinculísticos (porque o senhorio não lhes podia pôr termo livremente, fosse por denúncia, por resolução ou oposição a renovação, mas apenas o podendo fazer nos casos previstos na lei), sem duração limitada (referidos no citado artigo 26º/4), impondo-se a sua renovação ao senhorio, que só os podia denunciar (motivadamente) nas situações especificadas na lei (artigo 68º/2 do RAU) - a saber, nos casos previstos nos arts. 69º[Com as limitações previstas no artigo 107º do RAU (que se mantêm – artigo 26º/4, al. a), da Lei 6/2006)] /73º desse Diploma Legal. O senhorio não dispunha do direito de os fazer cessar livremente, por acto unilateral.
Por isso, os contratos sem duração limitada (os arrendamentos vinculísticos [Conforme Pinto Furtado (Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculísticos”, 2.ª Edição, 119), citado na decisão recorrida, são tais arrendamentos “os dos prédios em que o senhorio não poderá resolver o contrato nos termos gerais, mas vinculado a casos taxativamente enumerados na lei, nem os poderá denunciar no seu termo de duração, senão também em condições legalmente fixadas, prorrogando-se automaticamente, se o arrendatário não quiser usar em tempo da sua livre faculdade de renúncia”]) da antiga lei (quer os celebrados anteriormente à vigência do RAU e DL 257/95 bem como os celebrados na vigência desses diplomas, a que não fosse fixado um prazo de duração efectiva, nos termos dos arts. 98º e 117º do RAU), ex vi artigo 26º/4 da Lei 6/2006, regem-se pelas normas aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, previstos no NRAU-CC (ver arts. 1094º e 1110º) e não previstos nos regimes precedentes.
Contratos estes, de duração indeterminada, que podem ser denunciados nos termos do artigo 1101º do CC-NRAU (aplicável aos arrendamentos para fins não habitacionais, ex vi. artigo 1110º/1 do mesmo diploma legal).
Porém, não é aplicável aos arrendamentos vinculísticos, celebrados no âmbito da legislação pretérita à Lei 6/2006, o constante da al. c) do citado artigo 1101º, ou seja, tais contratos não são livremente denunciáveis pelo senhorio, impondo-se-lhes a sua renovação.
Só são denunciáveis justificadamente nas situações previstas nas alíneas a) e b) desse artigo 1101º. É o que, segundo entendemos, resulta claro do artigo 26º/4, al. c), da Lei 6/2006 (não verificada qualquer das situações previstas no nº 6 desse artigo).
É mantido, pois, o regime vinculístico que caracteriza tais contratos, não gozando o senhorio da faculdade de livremente os denunciar.
Entendimento perfilhado por Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, em Manual do Arrendamento Urbano, I, 4ª ed., págs. 175 e 178/179, Luís Manuel Teles d Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 2ª Ed., págs, 127 e 148, Fernando de Gravato Morais, em Novo Regime do Arrendamento Comercial, 2ª Ed., 52, José António de França Pitão, m Novo Regime do Arrendamento Urbano, 2ª ed., pág. 141, Maria Olinda Garcia, em A nova Disciplina do Arrendamento Urbano, pág. 52, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, em Arrendamento Urbano, 3ª ed., págs. 88/89 e 94. No mesmo sentido, ver Acs. RP, de 23/02/2010, em dgsi.pt, proc. 74/08.6TBVNG.P1, e da RG, de 19/05/2011, em dgsi.pt, proc. 942/10.5TBFAF.G1.»
Também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/09/2017 (proc. n.º 5801/12.4YYLSB-A.S1), se entendeu, no que «… perante as disposições conjugadas dos arts. 26º a 28 do NRAU – na versão original (anterior à conferida pela Lei 31/2012), … –, aos contratos não habitacionais celebrados antes do DL 257/95 aplicava-se, com as devidas adaptações, aquele art. 26º que previa que os contratos sem duração limitada – como eram os dos autos – regiam-se pelas regras aplicáveis aos contratos de “duração indeterminada”, com as especificidades estabelecidas nas suas diversas alíneas, designadamente, a de não lhes ser aplicável a alínea c) do art. 1101º do CC, ou seja, a denúncia pelo senhorio mediante comunicação ao arrendatário com antecedência (então) não inferior a cinco anos sobre a data em que pretendesse a cessação. Com efeito, os contratos de arrendamento para fins não habitacionais celebrados antes do DL 257/95 estão, desde a redacção originária da Lei 6/2006, sujeitos ao regime dos contratos de “duração indeterminada”, com a relevante especificidade de, como princípio, não se aplicar a alínea c) do art. 1101º do CC.»

10. Concordamos com este entendimento, pois parece-nos resultar claro que tais contratos não podem, em regra, ser denunciáveis, no âmbito da aplicação da Lei n.º 6/2006, ao abrigo da norma então vigente da alínea c) do citado artigo 1101º do Código Civil, por proibição expressa na alínea c) do n.º 4 do artigo 26º daquela lei.
Porém, como também nos parece claro, em face da lei vigente à da data da denúncia, tal proibição não tem aplicação quanto aos arrendamentos para fins não habitacionais, como se prevê na alínea a) do n.º 6 do citado artigo 26º, quando ocorra trespasse ou locação do estabelecimento após a entrada em vigor da lei [Este entendimento é sufragado no aresto da Relação do Porto, de 13/07/2011, a que acima nos referimos, quando se refere que: «Só são denunciáveis justificadamente nas situações previstas nas alíneas a) e b) desse artigo 1101º. É o que, segundo entendemos, resulta claro do artigo 26º/4, al. c), da Lei 6/2006 (não verificada qualquer das situações previstas no nº 6 desse artigo)» - sublinhado nosso; com idêntico entendimento, veja-se ainda o acórdão da Relação de Guimarães, de 21/05/2015 (proc. n.º34/14.8TBAVV.G1) ].
Ora, no caso em apreço, em face da matéria de facto apurada, constante dos pontos 4º a 9º, a denúncia em causa foi efectuada na sequência do trespasse do estabelecimento comercial, onde se integra o dito arrendamento, efectuado em Dezembro de 2009, portanto durante na vigência da Lei n.º 6/2006.
Assim, e reconhecendo-se à cabeça de casal a legitimidade para proceder à denúncia do contrato de arrendamento, podia a mesma lançar mão, no caso concreto, da faculdade prevista na alínea c) do artigo 1101º do Código Civil, denunciando o contrato com a antecedência não inferior a 5 anos da data pretendida para a cessação, por força do regime transitório resultante da aplicação das normas dos artigos 26º, n.º 4 e 6, alínea a), e 28º, da Lei n.º 6/2006, como efectivamente sucedeu e se decidiu na sentença.

11. É certo que entretanto, enquanto decorria o prazo dos cinco anos para efectivação da denúncia, ocorreu nova alteração legislativa, no caso operada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, que abrangeu, no que para agora nos interessa, a modificação do teor dos artigos 26.º e 28.º do NRAU e do artigo 1101.º do Código Civil, e procedeu à revogação do artigo 1104.º do Código Civil.
Na actual redacção do artigo 1101º do Código Civil, manteve-se a denúncia pelo senhorio do contrato de duração indeterminada nos seguintes casos:
a) Necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1.º grau;
b) Para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado;
c) Mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a dois anos sobre a data em que pretenda a cessação.
A diferença da actual previsão normativa em relação ao regime pretérito resume-se, no essencial, à redução do prazo previsto na alínea c) para a chamada denúncia livre, que passou de 5 para 2 anos.
Porém, a Lei n.º 31/2012, como se disse, também estabeleceu normas transitórias, tendo alterado o teor dos citados artigos 26º e 28 da Lei n.º 6/2006.
No que ora interessa, é de referir que o anterior regime constante do artigo 26.º n.º 6, onde se previa que, em relação aos arrendamentos para fins não habitacionais, cessava o disposto na alínea c) do n.º 4 (que impedia a denúncia livre pelo senhorio) quando, designadamente ocorresse trespasse ou locação do estabelecimento após a entrada em vigor daquela lei, transitou para o n.º 3 e 4 artigo 28.º.
Concretamente, em relação aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, bem como aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, continua a prever-se que não se aplica o disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil.
Mas, no n.º 3 do referido artigo prescreve-se que, “[e]m relação aos arrendamentos para fins não habitacionais, a antecedência a que se refere a alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil é elevada para cinco anos quando: a) Ocorra trespasse, locação do estabelecimento ou cessão do arrendamento para o exercício de profissão liberal; b) Sendo o arrendatário uma sociedade, ocorra transmissão inter vivos de posição ou posições sociais que determine a alteração da titularidade em mais de 50 /prct..”. E, acrescenta-se no n.º 4 que “[o] disposto no n.º 3 apenas é aplicável quando as situações referidas nas respectivas alíneas a) e b) ocorram após a entrada em vigor da presente lei.”
Deste regime resulta que: «Nos arrendamentos para fins não habitacionais, celebrados antes do Decreto - Lei n.º 257/95, em regra, o senhorio também não goza do direito de denúncia livre. Tal direito só lhe será conferido quando se verifique alguma das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 28º. Tendo nestes termos a possibilidade de denunciar livremente o contrato, o senhorio terá, todavia, de observar um prazo de pré-aviso de 5 anos, em relação ao momento em que se produz o efeito extintivo (e não de 2 anos como prevê a alínea c) do artigo 1101º), embora sem necessidade de qualquer confirmação posterior, já que o artigo 1104º foi revogado» (cf. Maria Olinda Garcia, Arrendamento Urbano Anotado, Regime Substantivo e Processual, 2ª edição, pág. 133).

12. Mas, o novo regime, implementado pela Lei n.º 31/2012, não retirou eficácia aos actos que começaram a ser praticados ao abrigo do regime anterior o que significa que, tendo a cabeça-de-casal da herança de DD procedido à denúncia do contrato por carta de 21 de Dezembro de 2009, o prazo de cinco anos nessa data iniciado continuou a decorrer, não se tendo interrompido ou iniciado novo prazo com a entrada em vigor da alteração legislativa perpetrada pela Lei n.º 31/2012.
De facto, nos termos do artigo 12.º do Código Civil, “[a] lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.”
Porém, à data da comunicação da denúncia estava em vigor a norma do artigo 1104º do Código Civil, onde se estabelecia que,“[n]o caso previsto na alínea c) do artigo 1101.º, a denúncia deve ser confirmada, sob pena de ineficácia, por comunicação com a antecedência máxima de 15 meses e mínima de um ano relativamente à data da sua efectivação”.
Deste modo, ao abrigo da legislação em vigor à data em que a cabeça de casal accionou o direito de denúncia, a falta de confirmação no prazo previsto neste preceito implicava a ineficácia da denúncia.
Contudo, em face das alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2011, deixou de ser necessária a confirmação da denúncia, tendo o artigo 1104º do Código Civil sido revogado.
Assim, verificando-se que à data da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, que é aplicável às relações contratuais constituídas que subsistam na data da sua entrada em vigor, sem prejuízo das normas transitórias (cf. artigo 59º), ainda não havia decorrido o prazo exigido no anterior artigo 1104º para a confirmação da denúncia, com a revogação desta norma tal confirmação deixou de ser exigível.
Efectivamente, como se diz na sentença, tendo a denúncia sido efectuada por carta de 21 de Dezembro de 2009, a confirmação da mesma, de acordo com a disposição legal revogada (artigo 1104.º do Código Civil) deveria ocorrer entre 22 de Setembro e 22 de Dezembro de 2013, período em que já não existia qualquer norma legal que a fundamentasse, pois, a alteração legislativa entrou em vigor em 12 de Novembro de 2012. Assim, devendo presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9.º n.º 3 do Código Civil), a inexistência de qualquer salvaguarda ou disposição transitória referente aos prazos de denúncia em curso ao tempo da entrada em vigor da Lei 31/2012, leva-nos a concluir que foi intenção do legislador aplicar o novo regime às situações já existentes, numa lógica de simplificação, desonerando em definitivo os senhorios da obrigação de enviarem nova comunicação a confirmar a denúncia.
Deste modo, deixando de ter previsão legal a confirmação da denúncia, o acto tornou-se plenamente eficaz com o simples decurso do prazo de cinco anos, tendo operado a cessação do contrato de arrendamento (cf. artigo 1079.º do Código Civil).

13. Por fim, invoca a recorrente o abuso de direito, referindo, no essencial que, pertencendo à A. apenas uma parte das instalações em que funciona o estabelecimento e pertencendo os outros locais a outros proprietários, não consentindo a autarquia o funcionamento separado da parte do estabelecimento instalada no prédio da A., e tendo o antecessor da A. contribuído para a criação da realidade que constitui o estabelecimento assim repartido por diversos locais tal como a R. o adquiriu, fazendo um investimento com vista à continuação da mesma actividade e aceitando actualizar significativamente as rendas, constitui abuso de direito a cessação injustificada do arrendamento relativo ao prédio da A., que implica o desmantelamento de uma parte do dito estabelecimento, conhecido por “Casa R…”, que constituir um ex-libris da cidade de Tomar, cuja preservação é de interesse sócio-económico e cultural, e que separada do conjunto do estabelecimento não terá qualquer viabilidade.
Porém, não assiste razão à recorrente.
Nos termos do artigo 334.º do Código Civil, “[é] ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Como ensina MENEZES CORDEIRO, “a concepção geral do abuso de direito postula a existência de limites indeterminados à actuação jurídica individual. Tais limites advêm de conceitos particulares como os de função, de bons costumes e da boa-fé”. E integra nessa categoria o venire contra factum proprium, que exprime a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assuma comportamentos contraditórios (Tratado de Direito Civil Português, 2ª Edição, 2000, Almedina, pág. 249/251).
Pires de Lima e Antunes Varela, acentuam que “a nota típica do abuso de direito reside na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido” (Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 300).
A este propósito, escreveu-se acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28/06/2007 (Proc. n.º 07B1964), que: «O abuso de direito na sua vertente “venire contra factum proprium”, pressupõe que aquele em quem se confiou viole com a sua conduta os princípios da boa-fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo ou ilegítimo. Impõe, que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado».
Ora, no caso concreto, como se diz acertadamente na decisão recorrida:
«… deve concluir-se que a conduta da Autora (e da sua antecessora, cabeça de casal da herança de DD) não integra a figura do abuso de direito. Aliás, a factualidade alegada sempre seria insuficiente para se concluir dessa forma.
Em causa está o exercício de um direito atribuído por lei ao senhorio que, sugestivamente, é designado na doutrina por denúncia livre ou imotivada, significando que o seu titular não tem que justificar a pretensão de o exercer.
A circunstância de, no caso concreto, existirem dois arrendamentos, não invalida que um dos senhorios possa denunciar o contrato respectivo, sendo certo que, contrariamente ao aludido pela Ré, relativamente ao prédio revindicado tal não significa que o estabelecimento fique inviabilizado do ponto de vista económico ou funcional, pois o espaço da “Casa R…” funciona tão só como uma esplanada coberta. Quanto muito, a entrega deste espaço à Autora implicará uma diminuição de receita, o que, como se viu, não é suficiente para integrar abuso de direito.
Exigir-se, como parece ser a posição da Ré, que ambos os contratos de arrendamento devessem ser denunciados em simultâneo – mesmo tratando-se de senhorios diferentes – ou que sendo o trespasse meramente parcial, nunca poderia ser fundamento de denúncia livre, traduz-se, na prática, num bloqueio inadmissível do direito da Autora. Aliás, integrando o estabelecimento dois contratos de arrendamento, devem os respectivos senhorios ser tratados por igual, beneficiando do direito de preferência em caso de trespasse.
Por outro lado, quer a denúncia do contrato, quer a transição do mesmo para o NRAU com concomitante actualização da renda, são opções dadas ao senhorio que o mesmo exercita consoante os seus interesses – estamos no domínio privado e da livre iniciativa – não se vislumbrando qualquer perversão do fim social e económico do direito denúncia no caso de opção por esta.
Por fim, note-se que nem mesmo o designado «venire contra factum proprium» é passível de ser imputado à Autora que nunca manifestou intenção de manter o contrato de arrendamento.»
Deste modo, improcede a alegada excepção.
14. Em suma, improcede a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
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C) – Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
I. Os recursos visam apenas a impugnação das decisões judiciais, não sendo lícito às partes a invocação, em sede de recurso, de questões novas, que não tenham sido objecto de apreciação na decisão sobre a qual incide o recurso.
II. Na acção de reivindicação compete ao autor o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou na detenção do demandado, mas é sobre este que recai, se for o caso, o ónus de provar que é titular de um direito que legitima a recusa da restituição.
III. Os contratos de arrendamento, para fins habitacionais e não habitacionais, celebrados antes e na vigência do RAU e do Decreto - Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, sem duração limitada, não obstante se lhes aplicar o regime do NRAU, não são, em regra, livremente denunciáveis pelo senhorio, por força do disposto nos artigos 26.º, n.º 4, e 28.º, ambos da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.
IV. Porém, tal proibição não tem aplicação quanto aos arrendamentos para fins não habitacionais, nas situações previstas nas alínea a) e b) do n.º 6 do artigo 26º da Lei n.º 6/2006, ou seja, quando ocorra trespasse ou locação do estabelecimento após a entrada em vigor desta lei, ou, sendo o arrendatário uma sociedade, ocorra transmissão inter vivos de posição ou posições sociais que determine a alteração da titularidade em mais de 50% face à situação existente aquando da entrada em vigor da mesma lei.
V. Em face das alterações introduzidas no regime do arrendamento pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, nos arrendamentos para fins não habitacionais, celebrados antes do Decreto - Lei n.º 257/95, em regra, o senhorio também não goza do direito de denúncia livre. Tal direito só lhe será conferido quando se verifique alguma das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 28º, correspondentes às anteriores alíneas a) e b) do artigo 26º da Lei n.º 6/2006.
VI. Nestes casos tem o senhorio a possibilidade de denunciar livremente o contrato, mas terá, todavia, de observar um prazo de pré-aviso de 5 anos, em relação ao momento em que se produz o efeito extintivo, e não de 2 anos como prevê a alínea c) do artigo 1101º do Código Civil, embora sem necessidade de qualquer confirmação posterior, já que o artigo 1104º do Código Civil foi revogado.
VII. Verificando-se que à data da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, que é aplicável às relações contratuais constituídas que subsistam na data da sua entrada em vigor, sem prejuízo das normas transitórias, ainda não havia decorrido o prazo exigido no anterior artigo 1104º do Código Civil para a confirmação da denúncia, com a revogação desta norma tal confirmação deixou de ser exigível.
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V – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.
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Évora, 20 de Dezembro de 2018
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(Francisco Xavier)
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(Maria João Sousa e Faro)
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(Florbela Moreira Lança)