Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
579/11.1TBTVR-D.E2
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
EMPREITEIRO
HIPOTECA
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O artigo 754.º do Código Civil confere ao empreiteiro o direito de retenção do objecto da empreitada (ou parte dele), enquanto o dono da obra não pagar o preço respectivo.
II. Atenta a indivisibilidade que o caracteriza, e não estando nenhuma parte da coisa retida especificamente afectada a uma parte do crédito garantido, a perda parcial daquela deixa intacto o direito de retenção sobre a parte restante, mantendo-se o direito integralmente até total satisfação do crédito.
III. Tendo o legislador ordinário, no exercício dos seus amplos poderes de conformação, entendido atribuir prioridade ao direito de retenção sobre a hipoteca, dada a situação “possessória mais próxima e concernente que o credor que goza do direito de retenção possui relativamente ao bem objecto da garantia”, tal prevalência não viola os princípios da proporcionalidade ou da confiança na estabilidade dos direitos anteriormente constituídos.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo 579/11.1TBTVR-D.E2
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Olhão - Juízo Comércio - Juiz 2


I. Relatório
Por apenso ao processo principais, nos quais foi declarada a insolvência de (…), Sociedade de Construções, Lda., por sentença proferida em 28/6/2011, há muito transitada em julgado, foram instaurados os presentes autos de verificação e graduação de créditos.
Apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência a lista dos credores reconhecidos nos termos previstos no n.º 3 do artigo 130.º, aqui foi reconhecido, para o que importa ao presente recurso, o crédito reclamado pela Edificadora (…), Lda. no valor de € 2.366.282,85, encontrando-se € 1.440.050,00 garantidos por direito de retenção, tendo os restantes € 926.231,86 natureza comum.
O (…) Banco deduziu impugnação (cfr. fls. 334 a 336), circunscrita à garantia do direito de retenção pelo Sr. AI reconhecida a parte do crédito reclamado pela Edificadora (…), com um duplo fundamento: por não ter esta credora a posse de nenhum dos imóveis que alegadamente reteria, e porque o direito de retenção não pode ser constituído por negócio jurídico ou objecto de confissão.
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Foi proferido despacho saneador, com fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença datada de 09.04.2019 nos termos da qual foi julgada improcedente a impugnação deduzida pelo (…) Banco, tendo o crédito da Edificadora (…), na parte garantida pelo direito de retenção, sido graduado com prioridade sobre os créditos do (…) Banco e Banco (…), ambos garantidos por hipotecas incidentes sobre os mesmos imóveis apreendidos para os autos.
Recorreu o (…) Banco, tendo sido proferido por este TRE acórdão em 7 de Novembro de 2019 que, na procedência do recurso, decretou a anulação do julgamento, para que “o Tribunal a quo determine a produção de prova tendo por tema, no quadro legal acima definido, a existência ou não de um direito de retenção por parte da credora Massa Insolvente da Edificadora (…), Lda., relativamente aos créditos por si reclamados neste incidente de graduação e verificação de créditos”.
Devolvidos os autos à 1.ª instância, foi designada data para realização da audiência final, com aditamento dos seguintes temas de prova:
1. Se o acordo celebrado a 29 de Março do ano de 2006 denominado “contrato de empreitada” abrangia as verbas n.ºs 116 a 151 do Lote 39, verbas nºs 152 a 179 do Lote 44 e verbas n.ºs 181 a 197 do auto de apreensão;
2. Se a Sociedade Insolvente “(…) – Sociedade de Construção, Lda.” ficou em falta relativamente a parte do valor acordado por conta do acordo proferido em 1;
3. Se a Sociedade Insolvente “Edificadora (…), Lda.” construiu as verbas referidas em 1;
4. Se devido ao referido em 2., e verificando-se o referido em 3., a Sociedade credora “Edificadora (…), Lda.” se recusou a entregar as verbas referidas em 1. enquanto a Sociedade Insolvente não fizesse a entrega do valor devido;
5. Se na data em que as verbas referidas em 1. foram apreendidas para a Massa Insolvente, a Sociedade “Edificadora (…), Lda.” tinha as mesmas em seu poder ou utilizava-as, assim como tinha as chaves das mesmas.
6. Qual o valor em dívida relativamente às verbas referidas em 1.
Teve lugar audiência final, no termo da qual foi proferida douta sentença que, para o que aqui releva, decretou como segue:
i. julgou improcedente a impugnação apresentada pelo credor (…) Banco e declarou verificados os créditos reclamados pela credora “Edificadora (…), Lda.”, sendo o crédito no valor de € 1.440.050,99 privilegiado por via do direito de retenção e o remanescente crédito de natureza comum;
ii. graduou o crédito garantido pelo direito de retenção para ser pago com anterioridade pelo produto da venda dos bens imóveis apreendidos em relação aos “créditos do Banco (…) e do (…) Banco garantidos por hipotecas e incidentes sobre os respetivos imóveis, na estrita medida das respetivas garantias, devendo atender-se à antiguidade do registo ou fazer-se rateio entre os credores se for o caso”.

Inconformado, apelou o (…) Banco e tendo desenvolvido nas alegações que apresentou os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“I. Da lista junta pelo Senhor Administrador de Insolvência, em cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 129.º do CIRE, foi reconhecido como “privilegiado” à Edificadora (…), Lda., um crédito no montante de € 1.440.050,99, emergente de direito de retenção sobre as verbas n.º 116 a 151 do lote 39, n.ºs 152 a 179 do lote 44 e n.ºs 181 a 197 do auto de apreensão.
II. Que o credor (…) Banco, S.A., ora Recorrente, impugnou, ao abrigo do disposto no artigo 130.º do CIRE.
III. Aos 09/04/2019, foi proferida decisão na qual se julgou reconhecido o direito de retenção invocado pela reclamante Edificadora (…), Lda., relativamente aos imóveis a que respeitam as verbas n.º 116 a 151 do lote 39, n.ºs 152 a 179 do lote 44 e n.ºs 181 a 197 do auto de apreensão e, em consequência, qualificado como garantido o respectivo crédito.
IV. Com primazia sobre o crédito hipotecário do ora Recorrente.
V. Inconformado com tal decisão, aos 30/04/2019, o ora Recorrente dela interpôs recurso.
VI. E aos 07/11/2019 foi, então, proferido acórdão do Tribunal da Relação de Évora, o qual julgou procedente o recurso interposto pelo (…) Banco, S.A. e, consequentemente, revogou a sentença de verificação e graduação de créditos proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Comércio de Olhão (J2) na parte em que reconheceu o direito de retenção da Massa Insolvente da Edificadora (…), Lda. sobre os imóveis constantes do auto de apreensão de fls. (…) e anulou o julgamento para que a 1ª Instância determine a produção de prova sobre a existência ou não do direito de retenção.
VII. Com efeito, o Tribunal da Relação anulou o julgamento para que o Tribunal a quo determinasse a produção de prova sobre a controvérsia do direito de retenção da massa insolvente da Edificadora (…), Lda., num quadro em que não é admissível a constituição de um direito de retenção por acordo.
VIII. O presente recurso vem assim interposto da douta sentença de 06/12/2020 que acabou por graduar – porque emergente de direito de retenção – à frente do crédito do ora Recorrente, o crédito reclamado pela Recorrida “Edificadora (…), Lda.” sobre os imóveis a que respeitam as verbas n.º 116 a 151 do lote 39, n.ºs 152 a 179 do lote 44 e n.ºs 181 a 197 do auto de apreensão – no valor total de € 1.440.050,99.
IX. Ora, decidiu mal o tribunal a quo ao considerar que se verificam os requisitos do direito de retenção do empreiteiro.
X. In casu, entende o Recorrente que não resultou provado que a Recorrida detivesse a posse dos imóveis, aqui apreendidos sob as verbas n.º 116 a 151 do lote 39, n.ºs 152 a 179 do lote 44 e n.ºs 181 a 197, nem sequer, que o crédito reclamado resultasse tão só e apenas de obras realizadas nos imóveis apreendidos.
XI. Pelo que, sem prova da detenção lícita de um bem propriedade de outrem e que devesse ser entregue a esse outrem, não poderia ter sido reconhecido direito de retenção – vide artigo 754.º do Código Civil.
XII. Sendo, por conseguinte, a referida “posse” das chaves manifestamente insuficiente para lhe conferir qualquer direito de retenção.
XIII. Depois, estando o tribunal a quo obrigado a resolver as questões que as partes lhe submetem – cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC – o Recorrente não se conforma com a resposta dada à matéria de facto, designadamente em face da omissão da seguinte factualidade, provada e não provada:
Factos Provados:
Facto 12
Que as facturas cujo pagamento a Edificadora (…), Lda. reclama e que totalizam os € 1.440.050,99 dizem respeito aos trabalhos realizados na totalidade da obra denominada “(…) II” e comercialmente por “(…) Golf”.
Factos não provados:
Facto 3)
-Que o crédito reclamado resulta tão-só e apenas de obras realizadas nos imóveis apreendidos e fundamentalmente do concreto crédito a imputar a cada um dos mencionados imóveis.
Facto 4)
- Qual o concreto valor do crédito em dívida relativamente a cada uma das verbas / imóveis.
XIV. A reapreciação/reponderação da matéria de facto, documentada e gravada - o que expressamente se requer ao abrigo do disposto no artigo 640.º do CPC –, conduzirá a diferente conclusão quanto ao desfecho da presente acção.
XV. Efectivamente, não resultou provado que o crédito reclamado resultasse tão-só e apenas de obras realizadas nos imóveis apreendidos e fundamentalmente do concreto crédito a imputar a cada um dos mencionados imóveis.
XVI. Dito de outro modo, não resultou provado que o crédito reclamado pela Edificadora (…), Lda. respeite no seu todo a obras realizadas apenas nos imóveis apreendidos sob as verbas n.º 116 a 151 do lote 39, n.ºs 152 a 179 do lote 44 e n.ºs 181 a 197 do auto de apreensão.
XVII. Muito menos, qual o concreto valor do crédito em divida relativamente a cada uma das verbas / imóveis.
XVIII. Com efeito, a credora em causa afirma exercer direito de retenção sobre as fracções "D", "H", "G", "F", "E", "M", "L", "I", "Q", "N", “S", “AA”, "V", "AE" , "AC", “AB", "AI", "AN", "AM", "AL", "AP", “AO", "AV", "AT", "AS", "BB", "AX", "BC", "BD", "BE", "BF", "BG", "BH", "BI", "BJ", "BL" e "BO", todas sitas em (…), (…), Lote 39, inscritas na matriz predial sob o artigo (…) da freguesia da (…), concelho de Tavira, e descritas sob o n.º (…) da Conservatória do Registo Predial de Tavira.
XIX. E sobre as fracções "B", "C", "D", "E", "F", "H", “I", "J", “L", “M", "N", “O”, "P", "Q", "R”, "S", "T", "U", "V", "X", "Z", "AA", "AB", "AC", "AD", "AE", "AF", e "AG", todas sitas em (…), (…), Lote 44, inscritas na matriz predial sob o artigo (…) da freguesia de (…), concelho de Tavira, e descritas sob o n.º (…) da Conservatória do Registo Predial de Tavira.
XX. Sendo que foram construídas muitas outras fracções no âmbito da mesma empreitada quanto às quais não foi exercido qualquer direito de retenção pela Recorrida Edificadora (…), Lda..
XXI. No entanto, as facturas cujo pagamento a Edificadora(…), Lda. reclama e que totalizam os € 1.440.050,99 dizem respeito aos trabalhos realizados na totalidade da obra denominada “(…) II” e comercialmente por “(…) Golf”.
XXII. Ou seja, abrangem os trabalhos realizados pela Edificadora não apenas nas verbas quanto às quais foi exercido o (alegado) direito de retenção, mas também nas restantes.
XXIII. Nesse sentido, o depoimento de (…), na Sessão de 03.12.2020 – gravado em suporte digital, entre as 14.08 horas e as 14.28 horas.
XXIV. Os Docs. 4 a 16 juntos à reclamação de créditos da Edificadora (…), Lda. e, inclusivamente, o aí alegado, nomeadamente no artigo 9.º: “Relativamente ao valor de € 1.404.800,88, corresponde o mesmo à soma do valor das facturas emitidas no âmbito da "Empreitada do Loteamento de (…) Golf."
XXV. Pelo que deveria o tribunal a quo ter, diferentemente, considerado a factualidade supra enunciada, dando por provado o aludido facto n.º 12, aditando-o aos factos provados, e como não provada a factualidade inscrita sob os n.ºs 3) e 4) aditando-os aos factos não provados.
XXVI. Devendo, assim, o presente recurso proceder, com a alteração sobre a decisão da matéria de facto, aditando-se e considerando-se provado o facto n.º 12 e como não provados os factos 3) e 4) e em consequência, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que decida nesta conformidade.
XXVII. O douto tribunal a quo, ao decidir no sentido em que decidiu, não efectuou correcta análise e valoração da prova produzida nos autos, violando o disposto nos artigos 342.º e 754.º do CC e 607.º, n.º 5, 2ª parte, e 608.º, n.º 2, do CPC.
XXVIII. Relativamente aos requisitos do direito de retenção, não resultou, assim, desde logo, provado qual o concreto crédito reclamado pela Edificadora (…) despendido sobre cada uma das verbas n.ºs 116 a 151 do lote 39, n.ºs 152 a 179 do lote 44 e n.ºs 181 a 197 do auto de apreensão; com efeito, resultou provado que o total do crédito reclamado resultou de obra realizada sobre a totalidade dos imóveis, quando, e não somente sobre as fracções apreendidas para os autos, onde foi exercido o direito de retenção.
XXIX. Não resultando, assim, demonstrado, o concreto crédito, alegadamente, detido, por direito, de retenção, pela recorrida, sobre cada um dos imóveis apreendidos; em violação do disposto no artigo 756.º, alínea a), do Código Civil.
XXX. Além disso, reconheceu a douta sentença “a quo” o direito de retenção da credora decorrente de “um acordo denominado de “Reconhecimento de dívida e acordo de pagamento” entre a sociedade insolvente “(…) – Sociedade de Construções, Lda.” e a credora Edificadora (…), referindo na Cláusula Quarta, ponto 2 “Como garantia do pagamento da quantia global em dívida da (…) confere à Edificadora o direito de retenção da obra executada pela mesma e denominada por (…) II e comercialmente por (…) Golf” – cfr. facto provado n.º 7 e os depoimentos de (…) prestados aos 11/09/2020, gravado em suporte digital, entre as 11.36 horas e as 12.13 horas do aludido dia, e aos 30/09/2020, gravado em suporte digital, entre as 14.24 horas e as 15.33 horas desse dia.
XXXI. Por legalmente inadmissível, o alegado direito de retenção da Reclamante não pode decorrer automaticamente do clausulado no acordo de reconhecimento de dívida celebrado com a Insolvente em 07/01/2009.
XXXII. Aliás, já assim havia determinado o acórdão de 07/11/2019, o qual, por um lado, esclareceu que, “(…) o direito de retenção, enquanto direito real de garantia, não pode ser constituído por via contratual, com efeitos relativamente a terceiros (...).
XXXIII. E, por outro lado, anulou o julgamento realizado, para que o tribunal a quo determinasse a produção de prova sobre a controvérsia do direito de retenção da massa insolvente da Edificadora.
XXXIV. Competia, pois, à primeira instância sindicar, factualmente, de novo, o alegado direito de retenção, e aferir se o mesmo radicava, efectivamente, ou não, do aludido acordo.
XXXV. Produzida nova prova, esta, de facto, nada acrescentou à que já havia sido averiguada aquando do julgamento, entretanto anulado pela Relação.
XXXVI. O tribunal a quo limitou-se a tecer considerações a montante e a jusante do aludido acordo.
XXXVII. Da douta sentença consta, pois, que, o direito de retenção foi reconhecido por acordo; razão da repetição do julgamento.
XXXVIII. O que não se aceita.
XXXIX. É ineficaz relativamente a terceiros a disposição contratual inserida pela Insolvente e Reclamante no contrato de 7 de Janeiro de 2009, cláusula 4.ª, n.º 2: “Como garantia do pagamento da quantia global em dívida a (…) confere à Edificadora o direito de retenção da obra executada pela mesma e denominada (…) II e comercialmente por (…) Golf” – o que carecia de ter sido considerado pela douta sentença ora recorrida.
XL. Em síntese, não se verificam, in casu, demonstrados os requisitos de que dependeria o reconhecimento de um direito de retenção à Recorrida e, consequentemente, da classificação do respectivo crédito como garantido.
XLI. Cuja prova cabia à credora “Edificadora (…)” – cfr. artigo 342.º do Código Civil.
XLII. Por outro lado, no caso em apreço, mantém-se a convicção de que Recorrente e Recorrida actuam no mercado em igualdade de circunstâncias: as armas de que dispõem quando celebram contratos no âmbito das suas actuações e a exposição aos riscos normais das actividades que prosseguem, são em tudo idênticas.
XLIII. Não se vislumbrando ser de aceitar o reconhecimento à Recorrida de um direito de retenção que tenha prevalência sobre a hipoteca do Recorrente previamente registada, porquanto tratar-se-ia de uma clara violação do princípio da proporcionalidade.
XLIV. Desconsiderar direitos patrimoniais legitimamente constituídos e registados anteriormente à constituição e invocação de um alegado e ficcionado direito de retenção seria uma manifesta violação dos princípios da proporcionalidade, da protecção, da confiança e segurança jurídicas no comércio jurídico imobiliário e, portanto, violadores dos artigos 2.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa.
XLV. Não poderia, assim, face à factualidade dada como provada, ter o tribunal de primeira instância reconhecido qualquer direito de retenção sobre os imóveis hipotecados ao Recorrente, muito menos ter graduado tal crédito com primazia do crédito reconhecido, e devidamente comprovado, quer quanto ao montante, quer quanto à sua qualificação.
XLVI. A sentença proferida violou assim o disposto nos artigos 342.º CC, 754.º C.C., 759.º C.C., 607.º, n.º 5, 2.ª parte, CPC, 608.º, n.º 2, CPC, 47.º CIRE e 20.º CRP”.
Concluiu pedindo que na procedência do recurso fosse revogada a sentença recorrida, “na parte em que considerou a totalidade do crédito da recorrida Edificadora (…), Lda. como privilegiado porque emergente de direito de retenção e, consequentemente, o graduou com primazia sobre o crédito do Recorrente, sobre a totalidade das verbas n.º 116 a 151 do lote 39, n.ºs 152 a 179 do lote 44 e n.ºs 181 a 197 do auto de apreensão com todas as consequências legais”.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões submetidas pelo recorrente à apreciação deste Tribunal:
i. do erro de julgamento quanto aos factos;
ii. da verificação dos pressupostos de que depende o reconhecimento do direito de retenção;
iii. da inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 759.º do CC, quando interpretado no sentido de que o direito de retenção reconhecido ao empreiteiro prevalece sobre a hipoteca, ainda que registada anteriormente.
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i. impugnação da matéria de facto
O recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto que, em seu entender, é omissa quanto a factualidade relevante para a decisão, pretendendo que seja aditado aos factos provados um novo, com a redacção que propõe, e dois outros ao elenco dos não provados.
No que respeita à factualidade que o apelante pretende ver aditada aos factos não provados -que o crédito reclamado resulta tão-só e apenas de obras realizadas nos imóveis apreendidos e concreto crédito (que não se teria apurado) a imputar a cada um dos mencionados imóveis- a estarmos, conforme pretende, perante factos constitutivos do direito de retenção que a apelada Edificadora (…), Lda. invoca como garantia de parte do crédito por si reclamado, bastaria a sua ausência dos factos assentes para que a garantia fosse recusada, não se vendo qualquer pertinência na sua inclusão no elenco dos factos não provados, aqui sem relevância para efeitos decisórios (a imposição legal de discriminação na sentença dos factos que, tendo sido alegados e assumindo relevância para a decisão a proferir, tenham resultado não provados, destina-se, em primeira linha, a permitir o controlo da decisão pelas partes).
No que respeita ao facto que pretende ver aditado à factualidade julgada provada - que as facturas cujo pagamento a Edificadora (…), Lda. reclama, e que totalizam os € 1.440.050,99, dizem respeito aos trabalhos realizados na totalidade da obra denominada “(…) II” e comercialmente por “(…) Golf” – ao fim e ao cabo, o reverso daqueles outros, que entendia deverem constar do elenco dos não provados, alega o impugnante que resultam dos documentos 4 a 16 juntos pela Edificadora (…), Lda. à reclamação de créditos por si apresentada, em conformidade aliás com aquilo que a própria alega, e depoimento prestado por (…), na sessão de 03.12.2020, entre as 14.08 horas e as 14.28 horas.
Pois bem, da análise dos documentos em causa e ouvidos, não só o depoimento prestado pelo Sr. AI no dia 3/12, conforme indicado pelo recorrente, mas também as declarações pelo mesmo anteriormente prestadas em 30/9 e, bem assim, os testemunhos de (…) e (…), ambos engenheiros civis de profissão, qualidade em que trabalharam por conta da Edificadora (…) no empreendimento aqui em causa, resultou claro que o crédito reconhecido como garantido nada tem a ver com uma outra obra de construção de fogos para habitação social, igualmente executada pela mesma sociedade, e cuja entrega ocorreu sem invocação de direito de retenção.
Isto dito – e só se referiu porque a Il. Mandatária do credor impugnante não deixou de questionar as testemunhas e também o Sr. AI a este respeito, de todos recebendo a mesma resposta – resultou ainda esclarecido, aqui tendo assumido particular relevância as declarações prestadas pelo Eng.º (…), que está em causa o empreendimento designado por (…) Golf, compreendendo mais de 300 apartamentos e moradias, integralmente executada pela Edificadora (…), Lda., tendo ficado concluído cerca dos anos de 2007/2008. Esta última testemunha explicou que o preço ia sendo pago à medida que a obra avançava e os autos iam sendo elaborados e as facturas emitidas e que ficou em dívida cerca de € 1.400.000,00, pelo que “foi feita retenção de parte da obra por falta de pagamento”.
Ora, sendo certo que a testemunha não especificou – e nenhuma outra o fez, incluindo o Sr. AI – qual o valor, do montante global em dívida, imputável a cada uma das fracções sobre as quais foi exercido direito de retenção, a verdade é que, conforme é comum acontecer nos grandes empreendimentos e também aqui se verificou, não foi edificada uma fracção de cada vez, nem os pagamentos efectuados se destinavam a liquidar o preço de uma fracção determinada. Ao invés, como ocorre usualmente em empreendimentos desta envergadura e também se verificou neste caso concreto, a obra foi sendo executada por fases e o dono da obra foi fazendo pagamentos à medida que as trabalhos avançaram, numa sorte de rateio por todas as fracções em construção, maneira que, subsistindo dívida, como subsistiu, ela respeita aos trabalhos executados nas diversas fracções que integravam o empreendimento, incluindo naturalmente aquelas sobre as quais a construtora exerceu o direito de retenção, não sendo possível afirmar, nem tal se afigura relevante para a decisão, que é devido um concreto valor relativo a esta ou aquela fracções individualizadas, por muito conveniente que tal se revelasse para suportar a tese do impugnante.
Por outro lado, e conforme resultou dos aludidos testemunhos, o direito de retenção foi exercido pela Edificadora (…) sem dependência de qualquer acordo por banda da insolvente, tendo recusado a entrega das chaves das fracções que entendeu suficientes para garantia do seu crédito, numa decisão que, conforme a testemunha (…) esclareceu, foi tomada pela gerência. Tal facto não é contrariado pela circunstância de empreiteira e dona da obra terem depois celebrado o acordo de pagamento junto aos autos, com reconhecimento do direito de retenção que a primeira tinha já exercido e oposto à devedora. Note-se que não foi na sequência da celebração do acordo que a Edificadora (…) passou a deter as fracções e a recusar a sua entrega; pelo contrário, conforme resulta do testemunho prestado por (…), cuja isenção não foi questionada, tratou-se de uma decisão da gerência, que recusou a entrega das chaves à dona da obra após a conclusão da mesma. E isto mesmo foi corroborado, ainda que indirectamente, pelo Sr. AI nas declarações prestados no dia 30, aqui tendo declarado que “Só tinha em seu poder as chaves das fracções sobre as quais a Edificadora não tinha exercido o seu direito de retenção”.
Decorre do que se deixou exposto que, tendo resultado demonstrado que as facturas emitidas e que respaldam o crédito reconhecido à Edificadora (…), não respeitam a trabalhos executados exclusivamente nas fracções sobre as quais a credora exerceu o seu direito de retenção, respeitam também a trabalhos que nestas foram executados.
Dá-se assim como assente que as facturas cujo pagamento a Edificadora (…), Lda. reclamou, e que totalizam o crédito de € 1.440.050,99 reconhecido nos autos como crédito garantido, dizem respeito a parte dos trabalhos realizados no empreendimento designado por “(…) Golf”, incluindo nas fracções que aquela recusou entregar à devedora, mantendo em seu poder as respectivas chaves.
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Fundamentação
De facto:
Lógica e cronologicamente ordenada, é a seguinte a factualidade assente com relevância para a decisão:
1. Foi requerida a insolvência de “(…) – Sociedade de Construções, Lda.” em 28.06.2011 tendo sido proferida sentença de insolvência a 01.08.2011, transitada em julgado.
2. O objeto social da credora Edificadora (…) é o exercício da indústria de construção civil, quer respeitante a obras públicas quer a urbanizações ou edifícios, bem como o comércio de materiais de construção e a compra e venda de bens móveis ou imóveis, rústicos ou urbanos e a compra de bens imóveis para revenda e a venda dos adquiridos para esse fim.
3. Nos presentes autos foram apreendidos os bens imóveis e móveis constantes do apenso de apreensão de bens.
4. Entre a sociedade insolvente “(…) – Sociedade de Construções, Lda.” e a credora Edificadora (…) foi celebrado um acordo denominado “Contrato de empreitada”, em 29 de Março de 2006.
5. O acordo referido em 4. abrangia as verbas n.ºs 116 a 151 do lote 39, verbas n.ºs 152 a 179 do lote 44 e verbas n.ºs 181 a 197 constantes do auto de apreensão.
6. O acordo referido em 4. foi cumprido pela credora Edificadora (…).
7. A sociedade insolvente ficou em falta relativamente a parte do valor acordado por conta do acordo referido em 4., pelo que a credora Edificadora (…) não entregou as chaves relativas às verbas n.ºs 116 a 151 do lote 39, verbas n.ºs 152 a 179 do lote 44 e verbas n.ºs 181 a 197 constantes do auto de apreensão.
8. As facturas cujo pagamento a Edificadora (…), Lda. reclamou, e que totalizam o crédito de € 1.440.050,99 reconhecido nos autos como crédito garantido, dizem respeito a parte dos trabalhos realizados no empreendimento designado por “(…) Golf”, incluindo nas fracções que aquela recusou entregar à devedora, mantendo em seu poder as respectivas chaves.
9. A 07.01.2009 foi assinado um acordo denominado de “Reconhecimento de dívida e acordo de pagamento” entre a sociedade insolvente “(…) – Sociedade de Construções, Lda.” e a credora Edificadora (…), referindo na Cláusula Quarta, ponto 2. “Como garantia do pagamento da quantia global em dívida a (…) confere à Edificadora o direito de retenção da obra executada pela mesma e denominada por (…) II e comercialmente por (…) Golf”.
10. A credora “Edificadora (…), Lda.” na data em que as verbas nºs 116 a 151 do lote 39, verbas nºs 152 a 179 do lote 44 e verbas nºs 181 a 197 – constantes do auto de apreensão –, foram apreendidas para a massa tinha estes imóveis em seu poder, assim como as respectivas chaves.
11. A sociedade “(…) – Sociedade de Construções, Lda.” permitiu que a credora “Edificadora (…), Lda.” mantivesse as verbas nºs 116 a 151 do lote 39, verbas nºs 152 a 179 do lote 44 e verbas nºs 181 a 197 do auto de apreensão em seu poder, podendo utilizá-las até que liquidasse os valores em falta por conta do acordo referido em 4.
12. Relativamente às verbas referidas em 5. e por conta do acordo referido em 4., foi reclamado um crédito pela “Edificadora (…), Lda.” num total de € 1.440.050,99, sendo € 1.404.800,88 de capital e € 35.250,11 de juros, tendo sido o mesmo reconhecido pelo Administrador da insolvência.
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Com relevância para a decisão da causa não resultou demonstrado:
1) Que a sociedade insolvente “(…) – Sociedade de Construções, Lda.” se opôs ao exercício do direito de retenção.
2) Que a sociedade Edificadora (…) não zelou pela conservação dos bens.
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De Direito
ii. Da verificação dos pressupostos do direito de retenção
Não questionado a possibilidade de, em abstracto, ser reconhecida ao crédito do empreiteiro a garantia do direito de retenção, defende todavia o apelante (…) Banco que tal garantia foi indevidamente reconhecida no caso dos autos, uma vez que a credora Edificadora (…) não fez prova de que tivesse a posse dos imóveis apreendidos nos autos sob as verbas n.ºs 116 a 151 do lote 39, n.ºs 152 a 179 do lote 44 e n.ºs 181 a 197, sendo para tal manifestamente insuficiente a referida “posse” das chaves, nem tão-pouco que o crédito reclamado resultasse apenas de obras nos mesmos realizadas, assim tendo resultado violadas as disposições contidas nos artigos 342.º, 754.º e 756.º, alínea a), do Código Civil.
Indaguemos, pois, da valia de tais argumentos.
Nos termos do disposto no artigo 754.º do Código Civil[1]O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos nela causados”.
O direito de retenção é um verdadeiro direito de garantia “erga omnes”, garantindo ao credor que tem em seu poder certa coisa pertencente ao devedor, não só a faculdade de se recusar a entregá-la enquanto este não cumprir, como ainda a de executar a coisa e pagar-se à custa dela com preferência sobre os demais credores[2]. Tal é o que resulta do disposto nos artigos 754.º, 758.º e 759.º.
Conforme se enunciou no acórdão do STJ de 16 de Maio de 2019[3], que aqui seguimos de perto, constituem pressupostos do reconhecimento do direito de retenção i. a posse e obrigação de entrega duma coisa; ii. a existência, a favor do detentor, dum crédito exigível sobre o devedor; iii) a existência de uma conexão causal entre o crédito do detentor e a coisa, ou seja, este crédito acha-se ligado à coisa, visando o pagamento de despesas que o detentor com ela efetuou ou a indemnização de prejuízos que em razão dela sofreu – «debitum cum re junctum»”.
(…) Assim, desde que o credor tenha um crédito relacionado, nos termos legalmente previstos, com a coisa retida, reconhece-se-lhe o direito real de garantia, com eficácia erga omnes e atendível no concurso de credores, com a função de assegurar que o seu crédito será pago com preferência a outros credores”.
Ora, perfilhando nós o entendimento, que se afigura maioritário, de que, tal como se assinala no citado aresto, “o empreiteiro, mercê da sua específica posição perante o resultado da obra e a atitude possessória que exerce sobre ela, assume, perante a mesma, uma posição de privilégio garantístico de modo a poder reter a coisa em seu poder perante terceiros, e adquire o direito de ser pago preferencialmente a outros credores que gozem de hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente”[4], cabe aqui decidir se, atendendo à factualidade apurada, se encontram reunidos os pressupostos de que a lei faz depender o reconhecimento de tal garantia, particularmente robusta, do crédito da reclamante Edificadora (…), Lda.
Está provado que a referida credora, aqui apelada, celebrou com a sociedade insolvente contrato de empreitada, nos termos do qual se obrigou a executar uma obra, na qual se incluíam as fracções que vieram a ser apreendidas nos autos identificadas no ponto 7. dos factos assentes, acordo que cumpriu (cfr. o ponto 6.).
Mais se provou que face ao incumprimento da dona da obra, que não cumpriu integralmente a sua obrigação de pagar o preço, estando em dívida os montantes a que respeitam as facturas emitidas, ascendendo a um total de € 1.440.050,99, a empreiteira, concluída a obra (o que resulta do citado ponto 6.), recusou-se a fazer entrega das aludidas fracções, mantendo-as em seu poder e o acesso exclusivo às mesmas, posto que também em seu poder se encontravam as chaves respectivas.
Alega o recorrente que não se trata de posse. Discorda-se de tal afirmação, porquanto, tal como refere o Prof. Galvão Telles, citado no mencionado acórdão, não tendo embora o empreiteiro a posse correspondente ao direito de propriedade, não deixa de ter a posse «correspondente a esse direito real menor ou sobre coisa alheia em que se cifra o ius retentionis». Estamos na presença de alguém que até determinado momento era simples detentor porque tinha sobre a coisa um poder de facto que exercia um interesse de outrem, mas uma vez reunidos os pressupostos do direito de retenção, surge este direito e, «a partir desse momento, o sujeito passa a exercer o poder de facto no seu próprio interesse, porque é no seu interesse que retém a coisa. De mero detentor eleva-se a possuidor».
Tal é, precisamente, a situação dos autos, assumindo-se a credora Edificadora (…), ao recusar a entrega das fracções uma vez concluída a obra -e ainda que não estivesse- como possuidora nos termos do direito real que invocou.
Por outro lado, em resposta ao segundo fundamento invocado pelo recorrente, que questiona a existência da exigida conexão causal entre o crédito garantido e a coisa retida, uma vez que respeita a trabalhos executados no empreendimento e, portanto, também noutras fracções para além daquelas que reteve, dir-se-á que o empreiteiro goza, ainda aqui, do direito de retenção.
Sobre a questão suscitada e versando situação idêntica àquela que nos ocupa, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Coimbra em acórdão de 6/12/2016[5], aqui se tendo assinalado, no seguimento de Ferrer Correia e Joaquim de Sousa Ribeiro (“Direito de retenção, empreiteiro”, in CJ Ano XIII, T1, pág. 5 a 14), que “a excluir-se a possibilidade de o empreiteiro consentir na venda ou ocupação de outras frações sem afetar com isso a consistência do direito de retenção, pela totalidade do crédito, sobre as que conserve em seu poder, o exercício do direito de retenção, concebido para reforçar a garantia de cumprimento da dívida, poderia contraditoriamente contribuir para dificultar a voluntária satisfação do crédito. A favor de que o facto de abrir mão de algumas das frações do prédio não pode afetar o seu direito de garantia, tais autores invocam ainda a caraterística da indivisibilidade do direito de retenção, podendo ser exercido “pela totalidade do crédito sobre cada parte da coisa que forma o objeto dele”: “Não estando nenhuma parte da coisa afetada a uma parte do crédito, a perda parcial dela deixa intacto o direito de retenção sobre a parte restante, mantendo-se esse direito integralmente até total satisfação do crédito”.
Aderindo-se aqui ao entendimento expendido, e fazendo-se notar que posição contrária conduziria a que, no caso em apreço, a empreiteira, em ordem a conservar intacta a garantia do crédito, tivesse que recusar a entrega da totalidade do empreendimento, entende-se que tendo retido apenas as fracções necessárias à garantia do crédito correspondente à parte do preço em falta exerceu validamente o seu direito de retenção que, mantido integralmente, garante a totalidade do crédito reclamado, com o que se julga improcedente este fundamento recursivo.
Cabe finalmente referir que, ao invés do que o recorrente persiste em afirmar, não resulta da decisão recorrida que o direito de retenção reconhecido à empreiteira tenha sido contratualmente constituído; ao invés, ali se deixou expressamente consignado que “Pese embora o direito de retenção tenha sido reconhecido por acordo, a verdade é que o acordo foi celebrado porque se verificavam os pressupostos do direito de retenção, ou seja, resultou demonstrado em suma que foi celebrado o acordo denominado “contrato de empreitada”, que os imóveis foram construídos pela Edificadora, a (…) estava em falta relativamente à entrega de parte do valor acordado para construção desses imóveis e, em consequência a Edificadora se recusou a entregar as frações/moradias tenho-as em seu poder, assim como as respectivas chaves”, tendo-se acrescentado, de forma impressiva, que “Não é pelo facto de se reconhecer por escrito o direito de retenção que este perde a sua eficácia ou deixam de se verificar os seus pressupostos”.
Em suma, tendo por assente que o artigo 754.º confere ao empreiteiro o direito de retenção do objecto da empreitada (ou parte dele) enquanto o dono da obra não pagar o preço respectivo, nada há a censurar à decisão recorrida quando reconheceu a natureza garantida do crédito reclamado pela Edificadora (…). E porque, atenta a indivisibilidade que caracteriza o direito de retenção, a credora podia fazer valer a garantia pela totalidade do crédito sobre as fracções identificadas, ainda que apenas parte do preço em dívida respeitasse a estes imóveis, o mesmo prevalece sobre o crédito do recorrente, que goza da garantia hipotecária, atento o que dispõe o n.º 2 do artigo 759.º e tal como foi decidido na sentença recorrida.
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iii. da inconstitucionalidade da interpretação do disposto no n.º 2 do artigo 759.º do Código Civil que reconhece a prevalência do direito de retenção conferido ao empreiteiro sobre a hipoteca.
Derradeiramente, argumenta o Banco recorrente que o n.º 2 do artigo 759.º, quando assim entendido, é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º e 20.º da Lei Fundamental, já que actua no mercado em igualdade de circunstâncias com a apelada, sendo idêntica a exposição aos riscos normais das actividades que prosseguem, não se vendo fundamento para “ter de aceitar o reconhecimento à Recorrida de um direito de retenção que tenha prevalência sobre a hipoteca do Recorrente previamente registada”, implicando “desconsiderar direitos patrimoniais legitimamente constituídos e registados anteriormente à constituição e invocação de um alegado e ficcionado direito de retenção”, a resultar numa “manifesta violação dos princípios da proporcionalidade, da protecção, da confiança e segurança jurídicas no comércio jurídico imobiliário e portanto violadores dos artigos 2.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa”.
Trata-se, ainda aqui, de questão que, tendo anteriormente sido suscitada nos Tribunais, veio a ser extensamente versada no acórdão do STJ de 10 de Maio de 2011[6], merecendo resposta negativa.
Conforme aí se decidiu, com expressa remissão para decisão anteriormente proferida pelo mesmo STJ, “a graduação do crédito do detentor do direito retenção não fere ou viola os princípios da confiança e da segurança jurídica que deve ser observado relativamente à constituição e registo anterior de uma garantia hipotecária”.
Em defesa da conformidade constitucional da solução contida na norma em referência, assinalou-se que “a razão da preferência que lhe é atribuída reside no facto do retentor não poder invocar o seu direito contra outros credores, para impedir a execução da coisa, por isso em contraponto reconhecendo a lei, esse dito privilégio, no âmbito do processo executivo como sustenta Vaz Serra no seu estudo sobre o tema no Anteprojecto do Código Civil.
A atribuição ao direito de retenção da “oponibilidade erga omnes” decorre por seu turno do próprio facto da retenção e da publicidade inerente, pois mostrando a coisa em poder do retentor, logo fará suspeitar de que não está livre.
E o grau de preferência que lhe é atribuído tem fundamentos que amplamente o justificam face à natureza dos actos que dão lugar aos créditos do retentor.
Com efeito e resultando normalmente o crédito de despesas com a fabricação, conservação ou melhoramento de coisa alheia, será de concluir que se essas despesas não tivessem sido realizadas, a coisa poderia ter perecido e então nem o seu proprietário, nem o credor hipotecário nem qualquer outro credor poderiam realizar o seu direito.
É essa no fim de contas a razão fundamental da preferência que a lei entendeu atribuir-lhe pois como já sustentava Guilherme Moreira, citado por Mª Isabel Meneres Campos, Da Hipoteca, 224 ainda na vigência do direito anterior, se não lhe fosse atribuída tal preferência, todos os demais credores se locupletariam à sua custa em função do valor da coisa para que concorrera o retentor com as despesas com ela feitas”.
Para concluir “Pelo que se não vê que a apontada prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca enquanto garantia real reconhecidamente das mais importantes e com um regime intimamente conexionado com o crédito imobiliário e desempenhando um papel insubstituível na dinamização da vida económica ofenda qualquer dos princípios e valores constitucionais acima referidos quer o da proporcionalidade, quer o da igualdade, quer o da confiança, de resto já tendo este Supremo por inúmeras vezes rejeitado essa pretensa inconstitucionalidade da norma do artigo 759.º (…)”.
E com vinculação já ao direito de retenção reconhecido ao empreiteiro, ainda a propósito da alegada violação do princípio da proporcionalidade, ponderou-se no aresto que se vem seguindo que quer o direito de retenção de que goza o titular de um crédito de empreitada, quer a garantia hipotecária são direitos reais de garantia, ambos se destinando a garantir créditos sobre um determinado património do devedor, tendo o legislador entendido “atribuir ao primeiro uma prioridade pela tutela possessória mais próxima e concernente que o credor que goza do direito de retenção possui relativamente ao bem objecto da garantia (…) gradação escalonada/privilegiada que (…) não belisca nenhum direito fundamental ou fere de forma desajustada qualquer outro direito constitucionalmente protegido, nomeadamente o da proporcionalidade e da igualdade ou ainda o da confiança na estabilidade dos direitos constituídos anteriormente”.
Em conformidade com o exposto, visto o fundamento da atribuição do direito de retenção ao empreiteiro, não se vê que a ponderação que o legislador ordinário consagrou na norma do n.º 2 do artigo 759.º afronte os identificados princípios constitucionais, pelo que se julga igualmente improcedente este derradeiro fundamento recursivo.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente.
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Sumário: (…)
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Évora, 14 de Julho de 2021
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
Mário Rodrigues da Silva

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[1] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção de origem.
[2] Pires de Lima/A. Varela, CC anotado, vol. I, comentário ao artigo 754.º.
[3] Processo 61/11.7 BAVV-B.G1.S1, em www.dgsi.pt
[4] V., no mesmo sentido, acórdão do STJ de 29/91/2014, processo 1407/09.3 TBAMT.E1.S1, no identificado sítio.
[5] Processo 3296/14.7T8VIS-A.C1, em www.dgsi.pt.
[6] Processo 661/07.0TBVCT-A.G1.S1, também acessível em www.dgsi.pt.6process61/07.0TBVCT-A.G1.S1