Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
937/15.2T8TMR.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE MENORES
DIREITO DE AUDIÇÃO
Data do Acordão: 10/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. A criança, como sujeito titular de direitos, tem o direito de participar e ser ouvida em todos os assuntos da sua vida, e este princípio constitui-se como meio de garantia da efectiva realização do seu superior interesse.
2. Porque está em causa um princípio com relevância directa na aferição do superior interesse da criança, a sentença que venha a ser tomada com postergação desse direito de audição, revela-se nula, por falta de pronúncia sobre questões que deveria apreciar – artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Família e Menores de Tomar, corre termos processo de promoção e protecção relativo ao menor (…), nascido a 12.09.2012, filho de (…) e de (…).
Por Acórdão da 1.ª instância de 21.06.2017, com intervenção dos Juízes Sociais, estava aplicada ao menor a medida de acolhimento residencial em instituição, pelo período de um ano, com revisão em seis meses.
Por despacho de 18.07.2017 foi aplicada a medida provisória de acolhimento residencial em instituição, e nessa mesma data o menor ingressou no CAT de S. Miguel, do Centro Interparoquial de Abrantes, em Alferrarede.
Interposto recurso por ambos os pais do supra identificado Acórdão de 21.06.2017, o Tribunal da Relação de Évora decidiu, por Acórdão de 12.10.2017, transitado em julgado, confirmar a decisão recorrida.

Regressados os autos à 1.ª instância, em 17.01.2018 foi celebrado “acordo de promoção e protecção”, subscrito pelos pais, pela técnica da segurança social, pela técnica da instituição, e pelos patronos do menor e dos pais, e homologado por sentença, aplicando as seguintes medidas:
1 - O menor continuaria a beneficiar da medida de promoção e protecção de acolhimento residencial, pelo período de três meses;
2 - Os pais comprometiam-se na instituição a acompanhar o filho na gestão de alguns dos seus actos de rotina diária como: alimentar-se, vestir-se, calçar-se e fazer a sua higiene pessoal.
3 - Os pais comprometiam-se a acatar as orientações da instituição e da EMAT.
4 - A instituição comprometia-se a indicar os tempos em que essas tarefas podiam ser desenvolvidas com a participação dos pais.
5 - A técnica responsável pelo acompanhamento da medida seria a Dra. (…).

Em 10.04.2018, a técnica da segurança social responsável pelo acompanhamento elaborou relatório propondo a substituição da medida pela de confiança a instituição com vista a adopção.
Nessa sequência, o Digno Magistrado do Ministério Público atravessou requerimento, propondo a aplicação de idêntica medida, sendo designada a directora da instituição como curadora provisória da criança.
Produzidas alegações pelos pais, propondo a aplicação de medida que permitisse o convívio próximo do menor com os seus pais, realizou-se debate judicial.
Finalmente, a 1.ª instância proferiu novo Acórdão, em 24.05.2018 e igualmente com intervenção dos Juízes Sociais, contendo o seguinte dispositivo:
1. Aplicar a favor de (…), nascido em 12-09-2012, a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção, nomeando-lhe como curadora provisória a Directora do CAT de S. Miguel do Centro Interparoquial de Abrantes, em Alferrarede;
2. Declarar (…) e (…) inibidos do exercício das responsabilidades parentais quanto a esta criança;
3. Declarar que não há lugar a visitas por parte da família natural da criança;
4. Declarar que esta medida dura até ser decretada a adopção e não está sujeita a revisão;
5. Caso decorram 6 (seis) meses desde a presente data sem que tenha sido instaurado o processo de adopção, solicite imediatamente à Segurança Social informação sobre os procedimentos em curso com vista à adopção da criança;
6. Determinar a comunicação, após trânsito, com certidão da decisão, aos competentes serviços da Segurança Social, à instituição que acolhe actualmente a criança e à competente Conservatória do Registo Civil.
Porém, um dos Juízes Sociais que interveio no debate judicial em 1.ª instância produziu voto de vencido, concluindo pela não supressão dos laços de filiação que unem o menor aos seus progenitores.

Inconformados, os pais recorrem, em alegações separadas.
Uma vez que as conclusões apresentadas não são, propriamente, um modelo de síntese, como exigido pelo art. 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, enunciam-se as questões ali colocadas.
Quanto às alegações do pai, coloca as seguintes questões:
1) A actualidade da situação de perigo em que alegadamente se encontra o menor e a manutenção da conduta dos progenitores após a institucionalização deste, é contraditada pela prova produzida.
2) Os factos dados como provados nos pontos 94 a 103, 109 a 113 e 125 a 128, foram incorrectamente julgados.
3) Foram dados como provados factos que resultam de depoimentos indirectos plasmados nos autos, sem se ter curado de aferir da sua validade, consonância e até veracidade, sem nunca ter questionado os proferentes a quem tais informações são imputadas, violando assim o disposto no artigo 526.º, n.º 1, do CPC.
4) Nesta situação encontram-se os seguintes pontos da matéria de facto provada: 94. 95. 96. 97. 98. 99. 100. 101. 102. 103. 104. 109. 110. 111. 112. e 113.
5) E no que respeita ainda aos factos descritos nos pontos 94 a 103, não deveriam ter sido dados como provados, porquanto existiram meios de prova que os contradizem e que foram desconsiderados pelo acórdão recorrido.
6) Assenta o recorrente a sua impugnação nas declarações do progenitor e nas declarações da técnica do CAT (…).
7) A técnica do CAT (…) não ouviu pessoalmente tais factos, pois os mesmos foram-lhe transmitidos pelas suas funcionárias, nomeando para o efeito a funcionária (…), que não foi chamada a depor.
8) O Tribunal a quo aceita assim, sem grandes considerações o que as técnicas escreveram nos seus relatórios, dando por certos os factos por estas relatados, sem sequer ter o cuidado de procurar averiguar se é ou não verdade o que naqueles relatórios constam, omitindo as provas indicadas pelos progenitores.
9) Quanto aos pontos 109 a 113, a Dra. (…) afirmou por diversas vezes ao longo do seu depoimento não ter observado em nenhum momento aqueles factos.
10) A decisão recorrida ignora o depoimento do progenitor, que esclareceu de forma escorreita e num registo sincero, a forma como decorreram as visitas, justificando as suas ausências com motivos de força maior. E fá-lo o Tribunal a quo, em nossa perspectiva, numa atitude nitidamente violadora do princípio da imparcialidade, quando lhe incumbia analisar os factos objectivamente, e de forma isenta e imparcial.
11) Pelo que fica exposto, os factos descritos nestes pontos da matéria de facto provada, não encontram suporte na prova produzida em audiência, devendo considerar-se não provados.
12) Por outro lado, relativamente aos factos descritos nos pontos 125. a 128., também não encontram, na perspectiva do recorrente, suporte na prova produzida em audiência, pelo que os impugna, requerendo a sua alteração, devendo a constar dos factos não provados.
13) Os meios concretos probatórios que impõem decisão diversa da recorrida são as declarações do progenitor e da técnica da EMAT (…).
14) A técnica (…) desmentiu, no seu depoimento, os factos 125. a 128., que até admitiu que os progenitores neste aspecto acataram todas a orientações que nesse sentido lhes eram dadas!
15) Do mesmo modo, e com base nestes mesmos meios de prova, devem os pontos 4. 5. 6. 7. 8. 9 dos factos dados como não provados passar a constar do elenco de factos provados.
16) O menor não se encontra actualmente numa situação de risco tal como ela é definida nos termos da LPCJP, nomeadamente no art. 4º, que estabelece princípios orientadores da intervenção, nomeadamente da defesa do superior interesse da criança e do jovem, da intervenção mínima, da proporcionalidade e actualidade, da responsabilidade parental e da prevalência da família.
17) A situação de perigo tem de ser actual ou iminente (art. 5.º).
18) Do testemunho de (…) e (…), resulta claro que actualmente tal situação de perigo não se mantém. Cessando tal situação imperativamente existirá revisão da medida (62.º e 63.º) com vista à sua extinção.
19) Ao fundamentar a decisão na violação do art. 1978.º CC, o tribunal a quo incorre em dois erros de julgamento:
- primeiro, dos testemunhos ouvidos resulta uma melhoria significativa das competências parentais e adequação dos seus comportamentos à idade, maturidade e necessidades do menor;
- segundo, porque a conduta dos pais relativamente ao seu filho se mostrou irrepreensível, visitando o menor sempre que lhes foi permitido, com interesse, esforço, dedicação.
20) Os factos constantes dos autos não legitimam a conclusão de que os pais revelam incompetências parentais, não promovendo a autonomia e desenvolvimento do menor, ou que o puseram em perigo, e de que tenha sido “penalizado pelo seu contexto familiar” sendo daí que resulte o seu atraso no desenvolvimento em relação à sua faixa etária, ou de que a ligação afectiva do (…) aos pais seja muito pobre.
21) Não resulta dos factos dos autos que os pais não souberam organizar-se para que pudessem constituir uma referência para o (…), como tão pouco ficou demonstrado qualquer apoio institucional.
22) Ao decidir como decidiu, em manifesta contradição e oposição com os elementos probatórios constantes dos autos, revelando factualidade não fundamentada conclusiva e até falseada nos seus pressupostos, bem como ao omitir e desconsiderar factualidade relevante, o tribunal incorreu em violação de lei, de forma grave e séria, nomeadamente no dever de imparcialidade, dos princípios orientadores do instituto de promoção e protecção e da própria constituição.
23) Mas a decisão é ainda violadora de lei, porquanto não é actual no que se refere à aferição das incapacidades e competências dos progenitores.
24) Impunha-se uma avaliação destas em data próxima da decisão, já que as que constam no processo, datam de há mais de 5 anos.
25) Face aos elementos constantes dos autos não existe matéria que possa concluir que o défice parental se mantém, sendo certo que as testemunhas e a própria (…) revelam melhorias significativas de tais competências nomeadamente ao nível das melhorias na organização da casa, justificando decisão diversa da prolatada.
26) Ao decidir como decidiu sem curar de aferir as competências actuais dos progenitores, o Tribunal violou o disposto no art.º 4.º, al. e), mostrando-se a medida excessiva, desadequada e desproporcional.
27) A decisão de institucionalização com vista à adopção tem que surgir como recurso único e último, depois de esgotadas todas as hipóteses previstas no art. 35.º.
28) A decisão prolatada não é proporcional ao risco (que não se encontra efectivado) nem se encontra demonstrado ser o único e último recurso.
29) E não respeita os princípios da responsabilidade parental e da prevalência da família.
30) Não se encontra demonstrado que os progenitores são actualmente incapazes ou inaptos para prover aos cuidados básicos do filho.
31) E os progenitores demonstraram ter vontade e condições para acolher o menor.
32) O Tribunal sustentou-se em considerações não sustentadas factualmente, para concluir pela inaptidão dos progenitores para acolherem o menor.
33) Tal asserção impunha ao Tribunal uma fundamentação muito mais densa e de prova irrefutável, que não se verificou.
34) Após a decisão de 21.06.2017, não foram prestados quaisquer apoios aos pais.
35) Apenas foram realizadas duas visitas, com carácter “fiscalizador”, nas vésperas das datas das diligências agendadas no processo – conferência de pais e debate judicial.
36) Risco maior surgiu com a institucionalização do menor, com agravamento do seu estado emocional, por não saber o que lhe vai acontecer e estar numa instituição que não é o seu meio natural.
37) Como relatou a técnica (…), os níveis de ansiedade e angústia do menor têm vindo a aumentar, não obstante o acompanhamento da psicóloga, e em Fevereiro de 2018 começou a ter episódios de encoprese, associados a “elevação da ansiedade, diminuição da verbalização de situações de angústia.”
38) O tribunal não se socorreu de todos os meios que tinha ao dispor para a defesa do superior interesse desta criança, como lhe competia!
39) O menor, que irá fazer 6 anos em Setembro, não foi ouvido uma única vez pelo tribunal.
40) O tribunal poderia apelar à participação da criança no projecto de vida que se iria decidir, o que constitui um dos princípios orientadoras da intervenção.
41) Impunha-se, dentro dos limites previstos no art. 4.º e 5.º do RGPTC saber a opinião da criança sobre esse projecto, sobre aquilo que a criança enquanto titular de direitos e liberdades fundamentais, com autonomia e identidade próprias, sente ou deseja.
42) Foram violados os artigos 18º, nº 1, n.º 2, 36.º, n.º 5, 69.º, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e os artigos 1978º, nº 1, do Código Civil, bem como os artigos 3.º, 9.º, n.º 1, 2 e 3, da Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada por Portugal a 26 de Janeiro de 1990 e Princípio 6.º e 7º da Declaração dos Direitos das Crianças adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1959.
43) Deve ter-se em consideração a responsabilidade parental e a prevalência da família, devendo as decisões tomadas permitir e favorecer que os pais assumam os seus deveres para com os filhos, dando-se prevalência às providências que integrem o menor na sua família biológica.
44) A medida aplicada é desadequada, desajustada e desproporcionada.
45) Toda a criança tem o direito fundamental a ser educada e desenvolver-se no seio de uma família de preferência, a sua, biológica.
46) É inegável que os progenitores revelam interesse pelo (...), têm condições e têm competências.
47) Existem nesta família os “vínculos afectivos próprios da filiação.”
48) Impõe-se a revogação da medida decretada, justificando-se a manutenção da medida de acompanhamento junto dos seus pais.
49) A medida que foi aplicada, terá sido apenas com o objectivo de punir ou censurar os pais por qualquer eventual negligência que tenham relativamente ao filho, o que contraria a exigência legal de que a avaliação das situações que podem justificar aquela medida seja objectiva e tenha em conta o superior interesse da criança.

Quanto à mãe, coloca as seguintes questões:
1.ª A decisão recorrida desconsiderou o superior interesse do (…), pois procedeu a uma errónea apreciação da matéria de facto.
2.ª O Tribunal “a quo” desvalorizou de modo quase absoluto, as declarações dos progenitores e das próprias técnicas.
3.ª Os pontos 94º a 104º, 107º, e 109º a 113º, deveriam passar a constar dos factos não provados, face aos depoimentos do progenitor e da testemunha (…), que não testemunhou directamente tal matéria.
4.ª Devem os pontos 4. 5. 6. 7. 8. 9 dos factos dados como não provados passar a constar dos factos provados:
5.ª Os factos descritos nos pontos 125 a 128 também não encontram suporte na prova produzida em audiência, devendo a constar dos factos não provados.
6.ª Os meios concretos probatórios que impõem decisão diversa da recorrida são as declarações do progenitor e da técnica da EMAT (…).
7.ª Deveria ter sido dado como provado que “Na instituição, o (…) faz birras, quando a refeição é peixe”, como resulta do relatório do CAT.
8.ª O ponto 102 deverá passar a elencar os factos não provados, sendo que devia dar-se como provado que o (…) pede aos pais para ir para casa, como resulta do relatório do CAT.
9.ª O ponto 104 dos factos provados não resulta do relatório do CAT.
10.ª Deve complementar-se a redacção do facto 88 com o teor integral do que está aposto no relatório do CAT.
11.ª O tribunal recorrido deu como assente a maior parte da matéria vertida nos pontos colocados em crise com base no depoimento da Directora do CAT, (…), o que não deveria ter feito pois trata-se de depoimento indirecto.
12.ª O tribunal para proferir semelhante decisão deveria também ter ouvido a funcionária (…).
13.ª A audição do próprio menor também deveria ter sido prosseguida, dado que é um dos princípios e direitos basilares das crianças. Arestos há que determinam a baixa dos autos à primeira instância, para serem ouvidos os menores, até mesmo de mais tenra idade, se a sua capacidade de compreensão o determinar, ou então, sempre teria de ser justificada a sua não audição (Ac. STJ de 14/02/2016), o que se requer seja determinado.
14.ª No caso concreto houve uma evolução positiva ao nível das visitas constantes e reiteradas dos pais do Tomás, das tarefas realizadas conjuntamente por este e pelos pais, condições económicas dos pais, das melhorias das áreas de actuação (…) junto da escola, dos colegas de escola e instituição e que revelam ausência de perigo na presente data.
15.ª Num caso assaz melindroso como o dos autos, afigurava-se absolutamente pertinente que as funcionárias que acompanham o menor fossem chamadas a depor oficiosamente pelo próprio Tribunal.
16.ª A audição da psicóloga que tem seguido o (…) também teria sido relevante, dado o agravamento do seu estado emocional, com enurese e encoprese.
17.ª Os vínculos afectivos existentes entre os progenitores e o menor (…) são notórios e evidentes, não sendo crível, à luz da experiência comum, que o menor ao sofrer de enurese e encoprese por falta de estabilidade emocional por não saber o que lhe irá acontecer no futuro, não nutra pelos seus pais gosto de estar com os mesmos, tanto mais que fala com estes todos os dias e é visitado por eles duas vezes por semana.
18.ª A propugnação e aplicação pelo tribunal recorrido da medida de confiança do menor (…) a instituição tendo em vista sua adopção, colide frontalmente com os seus verdadeiros interesses, o qual, enquanto criança, tinha e tem direito a viver com seus pais biológicos, de modo a ter uma infância feliz e um desenvolvimento digno, saudável e harmonioso, ao nível das emoções, da personalidade e da estabilidade, podendo ser apoiado sob outras maneiras pelo próprio Estado.
19.ª O menor (…) está a sofrer, desde já, instabilidade emocional ligada à sua incerteza de como irá ser o seu futuro, o que lhe prova enurese e encoprese, factor que poderá ser muito agravado com a adopção ao serem cortados os laços biológicos com os pais.
20.ª O tribunal recorrido ao optar pela medida conhecida está a violentar, de forma grave e desestabilizadora, a formação da identidade do (…), da sua personalidade, da sua estrutura emocional, retirando-lhe a possibilidade de vivenciar, no seu quotidiano, as experiências únicas de estar junto da sua família, de dia e de noite, em poder compartilhar a companhia da sua mãe no caminho da escola que frequenta, do pai, do avô.
21.ª O tribunal em apreço valoriza, indevidamente tão só o depoimentos da técnica Dr.ª (…), que só visitou o (…) uma vez ao longo de um ano, e os pais duas vezes, sempre em vésperas de audiências, e a técnica (…), que que não assistiu directamente os factos.
22.ª O factor perigo que tem de ser actual, não se verifica neste momento.
23.ª A adopção é a medida mais gravosa, sendo neste caso desadequada, completamente desproporcional ao estado evolutivo mais positivo da vida do próprio (…) bem como dos progenitores, embora com algumas limitações conhecidas.
24.ª A medida de promoção e protecção que se revelaria adequada, actual, proporcional e justa para o caso de vida do (…) seria a de apoio junto dos pais, com educação parental.
25.ª A decisão sob recurso, está inquinada de pressupostos errados, pois em vez de enfatizar e salvaguardar o superior interesse do menor (…), atento o tão elevado factor da ligação afectiva que existe, de facto, entre pais e filho, tem afinal como escopo a penalização dos seus próprios pais, o que não é o objectivo, último nem primeiro, deste tipo de processo de promoção e protecção.
26.ª A medida aplicada pela instância a quo coloca gravemente em perigo a segurança psicológica, emocional, psíquica e o desenvolvimento da personalidade do próprio (…), e embora, efectivamente penalize os pais, como aconteceria, a ter lugar, certo é que quem seria sempre o mais penalizado seria seguramente o pequeno (…), o que já está a acontecer!
27.ª Os princípios orientadores da intervenção contidos no art. 4.º da LPCJP, não foram respeitados pelo tribunal recorrido, pela imposição da separação definitiva do pequeno (…) dos seus pais biológicos, apesar de significativas melhorias e evolução positiva na vida e comportamentos destes.
28.ª Foram violadas as normas contidas nos artigos 1º, 4º, alínea a), d), e), f), g), h), artigo 35º, nº 1, alínea a), nº 2 e nº 3, artigos 39º e 41º, 42º, todos da LPCJP, artigos 67º, nº 1 e nº 2, alínea c), 69º, nº 1, 18º, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, artigo 1978º, nº 1, do Código Civil, e, por fim, artigo 607º nº 4 e artigo 5º nº 2 alínea b), ambos do Código do Processo Civil.
29.ª Motivo pelo qual deve ser revogada a douta decisão, e substituída por outra adequada, actual e proporcional à situação do menor, qual seja a medida de apoio junto dos pais, com ministração de educação parental a estes, por ser a que melhor assegura o superior interesse do menor (…).

Na resposta, o Magistrado do Ministério Público sustentou a manutenção do decidido.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Da audição do menor e da realização das diligências de prova destinadas a verificar o sério comprometimento da qualidade e continuidade dos vínculos afectivos próprios da filiação:
Menos de três meses após o acordo de promoção e de protecção de 17.01.2018, que manteve o acolhimento residencial do menor, permitindo aos pais acompanhar o filho na gestão de alguns actos da sua rotina diária – como alimentar, vestir, calçar e realizar a higiene pessoal – veio a EMAT, em 11.04.2018, insistir na quebra definitiva dos laços do (…) com a sua família biológica, mencionando, essencialmente, o seguinte:
- uma visita da técnica da EMAT à residência dos pais, realizada em 16.01.2018 – logo, no dia anterior à celebração do acordo de promoção e de protecção supra identificado – e descrição da entrevista então realizada;
- a perspectiva dos pais, entendendo possuírem condições para ter consigo o menor;
- a perspectiva da instituição de acolhimento, entendendo que os pais não têm competências parentais nem que algum dia as venham a adquirir;
- a perspectiva da Casa Abrigo onde a mãe esteve acolhida entre o final de Julho e meados de Outubro de 2017, apresentando sérias dúvidas de que esta algum dia viesse a ter vida autónoma, dadas as suas fracas competências pessoais e a sua atitude apática e submissa, carecendo de supervisão e orientação na prestação de cuidados ao seu filho;
- a afirmação do pai não possuir um “modelo parental apropriado ao crescimento educacional do (…)”;
- a afirmação da família alargada não se apresentar como alternativa ao acolhimento residencial da criança;
- a afirmação dos cuidados básicos prestados ao (…) pelos pais em contexto institucional durante três meses, demonstrarem a sua dificuldade no exercício das responsabilidades parentais e a incapacidade dos mesmos em alterar o seu modo de ser e estar para promover no filho adequado desenvolvimento;
- a conclusão de, face às fragilidades evidenciadas pelos pais e família alargada, o projecto de vida que melhor salvaguardaria os interesses do (…) seria a aplicação da medida de confiança a instituição com vista à adopção.
Dos autos consta, também, um relatório da direcção técnica da instituição de acolhimento do (…), descrevendo a sua integração, o seu acolhimento escolar e socio-educativo, e o acompanhamento do menor pelos pais na instituição, destacando-se:
- das 21 visitas possíveis, os pais realizaram 17;
- os pais traziam guloseimas para as visitas (gomas, ovos de chocolate, rebuçados, sumos), e noutras alturas, um livro de pintar e uma caixa de marcadores;
- o pai tinha atitudes qualificadas como “desadequadas” para com a mãe, na presença do filho, nomeadamente culpar a mãe por um copo de água entornado, desentendimentos acerca da colocação do resguardo na cama do (…), e várias vezes mandar a mãe calar-se;
- dificuldades em promover a autonomia e desenvolvimento do filho, nomeadamente não o estimulando a despir, tomar banho e vestir o pijama sozinho, e dando-lhe a comida à boca;
- atitudes do (…) de oposição aos pais (birras, recusas em despir e vestir sozinho);
- verbalizações qualificadas como “desadequadas”, nomeadamente várias argumentações com o filho para se vestir e comer sozinho, senão “não te deixam sair daqui”;
- atrasos dos pais nas visitas – a hora de chegada era às 17 horas, mas chegaram sempre tarde e por vezes depois das 18 horas;
- a mãe todos os dias telefona para o (…), sendo os “telefonemas prolongados, a que por vezes o (…) não responde, nem demonstra interesse por estar a desenvolver outra tarefa ou brincadeira. O pai, por vezes, também participa nestes telefonemas.”
Apenas com estes dois relatórios, o Ministério Público requereu a confiança do menor a instituição com vista a futura adopção, de imediato foi determinada a produção de alegações e designou-se data para debate judicial, no qual foram ouvidos os pais, a técnica da EMAT, a directora técnica do lar de acolhimento, e três testemunhas arroladas pelos pais, após o que se produziu Acórdão – com um voto de vencido dos Juízes Sociais – concluindo que os factos demonstravam a inexistência de uma verdadeira relação de filiação entre o (…) e os seus pais.
Pois bem, os factos não são evidentes quanto a essa conclusão – quem visita o filho com a frequência com que os pais o fizeram, 17 em 21 possíveis, apesar da sua pobreza e da distância a que o filho foi colocado de casa (Golegã dista cerca de 37 kms. de Alferrarede, onde se localiza a instituição de acolhimento), cuida de telefonar-lhe todos os dias, participa nas actividades do filho (talvez de forma algo desajeitada, com alguns desentendimentos pouco graves entre o casal e não investindo na autonomização do filho no desempenho das suas tarefas), e leva um livro de pintar e uma caixa de marcadores, revela, pelo menos, algum cuidado na manutenção da relação com o filho e preocupação com o seu bem-estar.
De todo o modo, certo é que houve direitos que foram postergados e diligências de prova essenciais à determinação do sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação que não foram realizadas.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, estabelece no seu art. 12.º que “os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.”
De igual modo, a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, estabelece no art. 3.º que “à criança que à luz do direito interno se considere ter discernimento suficiente deverão ser concedidos, nos processos perante uma autoridade judicial que lhe digam respeito, os seguintes direitos, cujo exercício ela pode solicitar: a) Obter todas as informações relevantes; b) Ser consultada e exprimir a sua opinião; c) Ser informada sobre as possíveis consequências de se agir em conformidade com a sua opinião, bem como sobre as possíveis consequências de qualquer decisão.”
Nesta linha, o art. 4.º, n.º 1, al. c), do RGPTC estabelece actualmente que “a criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito.”
A criança, como sujeito titular de direitos, tem o direito de participar e ser ouvida em todos os assuntos da sua vida, e este princípio constitui-se como meio de concretização do seu superior interesse. Logo, a audição da criança num processo que lhe diga respeito não pode ser encarada apenas como um meio de prova, mas também como meio de garantia da efectiva realização do seu superior interesse, permitindo que o seu ponto de vista seja considerado na formação da decisão que a afecta.[1]
Reconhecendo-se que o exercício do direito de audição da criança está dependente da maturidade desta, a decisão de dispensa da sua audição deve ser expressa e devidamente fundamentada.
E porque está em causa um princípio com relevância directa na aferição do superior interesse da criança, a sentença que venha a ser tomada com postergação desse direito, revela-se nula, por falta de pronúncia sobre questões que deveria apreciar – art. 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
No caso, não foi tomada qualquer decisão acerca da dispensa de audição do (…), e não pode concluir-se que a sua (in)maturidade o impedia, em absoluto, de exercer esse direito.
À data em que foi realizado o debate judicial em 1.ª instância e se decidiu pela confiança a instituição com vista a futura adopção – em Maio de 2018 – o (…) tinha cinco anos e oito meses de idade, e estava integrado no ensino pré-escolar.
De acordo com o relatório da instituição de acolhimento, o (…) realizava progressos em todas as áreas de actuação, manifestava satisfação pelo seu sucesso, escolhia quais as actividades que queria realizar e fazia-o com cada vez maior autonomia, continuava a manifestar grande contentamento por actividades relacionadas com música, tinha desenvolvido a sua apetência para as áreas da actividade física, realizava pequenas contagens, identificava alguns números, as cores primárias e algumas secundárias e reconhecia ainda conceitos como maior e menor, alto, baixo, entre outros. Fazia, ainda, a distinção entre diferentes animais, habitais e outras características, falava sobre recursos tecnológicos existentes no seu meio e utilizava, com bastante entusiasmo o computador, explorando as suas potencialidades.
Ainda de acordo com o mesmo relatório, o (…) continuava a apresentar progressos ao nível da psicomotricidade, mostrando, embora, dificuldades em seguir instruções e nem sempre realizando as tarefas propostas com sucesso. Revelava dificuldades ao nível da linguagem, quer ao nível da expressão quer ao nível da compreensão, na percepção auditiva, na orientação temporal e espacial e ainda na concentração e audição, pelo que foi pedido o adiamento de matrícula no primeiro ano do ensino básico.
Neste quadro, embora não seja de esperar que o (…) responda a questões abertas, já será capaz de manifestar os seus desejos e responder a questões concretas, adaptadas ao seu nível de maturidade. Encontra-se na fase final do ensino pré-escolar e tem efectuado progressos no seu crescimento, e é já capaz de escolher as actividades que quer realizar, fazendo-as com cada vez maior autonomia.
Por outro lado, a audição de crianças com cinco anos – ou seis, a idade que o (…) já tem no momento em que esta decisão é proferida – é possível e desejável, de acordo com os ensinamentos da ciência, desde que sejam adoptados os necessários cuidados. Acerca das características de funcionamento das crianças dos 3 aos 5 anos, Rute Agulhas e Joana Alexandre, in Audição da Criança – Guia de Boas Práticas, escrevem o seguinte: “Apesar do pensamento carecer, ainda, de lógica, consegue ordenar (por exemplo, “maior/menor”) e classificar (agrupar objectos pela sua semelhança), começa a diferenciar a realidade das suas crenças acerca da realidade e a perceber a existência de uma relação causal entre os factos. Por exemplo, percebe que alguém chorou porque foi batido. Pensa melhor sobre contextos que lhe são familiares e apresentam um melhor desempenho em tarefas de reconhecimento, do que de recordação não tendo, ainda, capacidade em pensar de forma abstracta.”
Logo, a audição do (…), apesar da sua idade, não podia nem pode ser dispensada, em especial quando se discute uma medida com a gravidade daquela que pesa sobre os autos.
Acima de tudo, deve ser respeitado o seu direito a ser ouvido numa questão absolutamente marcante para toda a sua vida, utilizando, naturalmente, os meios adequados à sua idade e ao seu nível de compreensão.
Como se nota nos pontos 45 e 46 das Directrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a justiça adaptada às crianças, aprovadas em 17.11.2010, «devem ser tidos em devida conta os pontos de vista e as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade. O direito a ser ouvido é um direito, e não um dever, da criança.»
Conclui-se, pois, que a decisão recorrida, ao confiar o (…) a instituição com vista a adopção, sem ponderar, sequer, a sua audição, como exigido pelos arts. 4.º, n.º 1, al. c) e 5.º do RGPTC e pelos arts. 4.º, al. j) e 84.º da LPCJP, e sendo essa audição necessária, porquanto se trata de um direito da criança com relevância directa na aferição do seu superior interesse, revela-se nula – art. 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil.

Acresce, ainda, que não foram realizadas diligências essenciais à verificação do sério comprometimento da qualidade e continuidade dos vínculos afectivos próprios da filiação – requisito essencial do artigo 1978.º, n.º 1, alínea e), do Código Civil.
Havendo a notar que a medida proposta é a mais grave do rol constante do artigo 35.º da LPCJP, devendo ser adoptada após o esgotamento das demais, com o maior cuidado e após a realização de todas as diligências necessárias à verificação do requisito supra identificado, observa-se que as diferentes medidas de apoio acordadas obedeceram essencialmente a uma lógica de imposição de obrigações aos pais, com pouco ou reduzido investimento por parte das instituições públicas, que se cingiram a um papel meramente fiscalizador do comportamento dos pais.
Nada se observa acerca de medidas de educação parental, não existe ajuda económica e não se procura apoiar os pais na obtenção de um emprego estável e minimamente recompensador, ou sequer na obtenção de uma habitação mais condigna.
Nota-se, também, que poucos meses após o Acórdão desta Relação de Évora que confirmou a decisão de acolhimento residencial do menor, não aceitando a medida de confiança para futura adopção que havia anteriormente sido proposta, e menos de três meses após o acordo de promoção e de protecção de 17.01.2018, a EMAT volta a insistir na medida de maior gravidade, quando os autos não revelam, no período em causa, um desinvestimento dos pais em relação ao seu filho.
Acresce que não foi definido um plano de reestruturação familiar com vista à desinstitucionalização do (…), cuja execução melhor permitiria avaliar a verificação do supra mencionado requisito – sério comprometimento da qualidade e continuidade dos vínculos afectivos próprios da filiação.
Nem foi realizada qualquer avaliação psicológica dos pais destinada a avaliar as suas competências parentais e o vínculo afectivo que detêm em relação ao (…), diligência esta que também se afigura útil à verificação do mencionado requisito. E quanto a este, também não foi realizada qualquer avaliação psicológica da qualidade do vínculo afectivo que o une aos pais e do impacto da medida de confiança para futura adopção no desenvolvimento da sua personalidade.
Prescreve o art. 662.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Civil, que a Relação deve anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.
No caso, a apreciação da matéria de facto impugnada nos recursos exige a produção das diligências probatórias supra referidas, e a ampliação da matéria de facto, com vista a aferir as competências parentais dos pais e o vínculo afectivo que detêm em relação ao (…) e, quanto a este, a qualidade do vínculo afectivo que o une aos pais e o impacto da medida de confiança para futura adopção no desenvolvimento da sua personalidade.

Decisão.
Destarte, no provimento dos recursos interpostos pelos pais, anula-se a decisão recorrida, para produção das seguintes diligências, para além das demais que o evoluir dos autos e da situação do menor e dos pais venham a aconselhar:
a) proceder-se à audição do (…), com observância do disposto nos arts. 4.º, n.º 1, al. c) e 5.º do RGPTC;
b) estabelecer-se um plano de reestruturação familiar com vista à desinstitucionalização do (…), envolvendo, para além do mais, medidas de medidas de educação parental e a ajuda económica que vier a revelar-se necessária, após o que a EMAT produzirá relatório de acompanhamento;
c) proceder-se à avaliação psicológica dos pais – a solicitar ao INMLCF – destinada a avaliar as suas competências parentais e a qualidade do vínculo afectivo que detêm em relação ao (…);
d) proceder-se, igualmente, à avaliação psicológica do (…) – igualmente a solicitar ao INMLCF – para determinar a qualidade do vínculo afectivo que o une aos pais e o impacto da medida de confiança para futura adopção no desenvolvimento da sua personalidade.

Sem custas.
Évora, 18 de Outubro de 2018
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
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[1] Neste sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.12.2016 (Proc. 268/12.0TBMGL.C1.S1), disponível em www.dgsi.pt.