Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
207/22.0PBEVR.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: INQUÉRITO CRIMINAL
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
MINISTÉRIO PÚBLICO
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Ainda que, na fase preliminar do processo sumário, o Ministério Público tenha proposto ao arguido a suspensão provisória do processo e o arguido tenha dado o seu acordo, se terminada aquela fase, o Ministério Público, por entender que os factos imputados ao arguido carecem de investigação, decide remeter os autos para inquérito, não determinado, por conseguinte, a suspensão provisória do processo, prevista no artigo 384º, n.º 1, do CPP – mas salvaguardando a possibilidade de reapreciação superveniente da SPP – esse despacho não pode ser sindicado, em qualquer das suas vertentes, pelo juiz de instrução criminal, sendo o Ministério Público o titular da ação penal e não se estando perante uma decisão que contenda com direitos, liberdades e garantias.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Nos autos de inquérito n.º 208/22...., que começaram por ser tramitados sob a forma de processo sumário – sendo, posteriormente, remetidos para inquérito e apensados aos autos de inquérito n.º 207/22.0PBEVR, que correm termos no DIAP ..., 1ª Secção –, em que é arguido AA, o Ministério Público proferiu despacho, datado de 29/03/2022, decidindo não estarem reunidos os pressupostos para a aplicação do processo sumário e da suspensão provisória do processo, nesse momento, sem prejuízo de nova reapreciação superveniente.
1.2. Notificado de tal despacho, o arguido veio arguir a nulidade do mesmo, em requerimento dirigido ao Senhor Juiz de Instrução Criminal, tendo este último, após pronúncia do Ministério Público – que considerou não existir qualquer nulidade que devesse suprir –, proferido despacho, em 08/04/2022, sob a Ref.ª 31676997, em que se declarou materialmente incompetente para apreciar as nulidades invocadas pelo arguido.
1.3. Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs recurso para este Tribunal da Relação, extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões:
«A - Foi proposto pelo MP a Suspensão Provisória do Processo por um crime de detenção de arma proibida
B - O MP avançou literalmente com a proposta de Suspensão Provisória do Processo
C - Impondo em alternativa uma das duas injunções e regras de conduta:
«Prestar 90 horas de trabalho a favor da comunidade(…)» ou « entregar 450,00 euros a instituição de utilidade pública da área da residência(…)»
D - Como estratégia processual, o arguido remeteu-se ao silêncio, direito previsto no art. 61º nº 1 d) do CPP e art. 32º da Constituição da República Portuguesa
E - O art. 281º do CPP não obriga o arguido a partilhar, contar, divulgar a sua versão dos factos, sendo admissível e legal que se remeta ao silêncio, beneficiando simultaneamente da Suspensão Provisória do Processo.
F - Ao Oficial de Justiça do Ministério Público presente no dia do interrogatório, Sr.º BB, foi-lhe comunicado verbalmente (tanto pelo arguido como pelo mandatário) que o arguido não iria prestar declarações ao abrigo do direito ao silêncio, art. 61º do CPP, tendo ainda ficado escrito em acta no auto de interrogatório. Visualizou e presenciou que o arguido se remeteu ao silêncio e de forma consciente e intencional, o Oficial de Justiça do Ministério Público, propôs ao arguido se concordava com a Suspensão Provisória do Processo «Seguidamente foi-lhe proposto se concorda com a suspensão provisória do processo» (Cfr Auto de Interrogatório Refª 31635890)
G - O arguido replicou que «(…) concorda com a proposta de suspensão provisória do processo(…)» apresentada pelo Ministério Público. Aceitação essa feita sem qualquer tipo de reservas. (Cfr Auto de Interrogatório Refª 31635890)
H - O arguido concordou entregar os 450,00 € indicando a associação “Cantinho dos Animais” para o efeito.
I - A proposta do MP é uma declaração receptícia e oficiosa, art. 224º do CC, mediante a aceitação do arguido ela ganhou eficácia e se tornou insuscetível de revogação. Restando apenas a condordância do Juiz de Instrução Criminal do acordo existente.
J - Para que o Juiz de Instrução Criminal possa concordar com a Suspensão Provisória do Processo, o processo tem que lhe ser, obrigatoriamente, concluso para prolação de decisão
K - O MP de forma unilateral e contra legem não remeteu o processo para apreciação do Juiz de Instrução Criminal após o acordo estar já celebrado.
L - Contrariamente e sem sustento legal, o MP decidiu posteriormente “melhor” compulsar os autos
M - O MP só “melhor” compulsou os autos, após o arguido se ter remetido ao silêncio
N - O MP refere em promoção de 6 de Abril de 2022, Refª 31665174, que foi «levantada a sugestão de SPP ao arguido».
O - Não existe a figura processual da “Sugestão de Suspensão Provisória do Processo”.
P - A Suspensão Provisória do Processo ou é proposta, ou não o é. E no caso sub judice foi proposta e aceite.
Q - Reductio ad absurdum, a existência da figura processual de “Sugestão de Suspensão Provisória do Processo”, permitiria o surgimento de novas figuras processuais no direito português como a “sugestão de testemunha”, passando pela “sugestão de arquivamento” até a “sugestão de arguido”, terminando na “sugestão de acusação”…
R - Face à promoção Refª 31637520 de 29 de Março de 2022, o arguido apresentou requerimento no dia 6 de Abril de 2022 no Juízo de Instrução Criminal a arguir diversas nulidades.
S - O despacho do Juízo de Instrução Criminal de ... (Refª 31676997) assenta nos pontos transcritos nas Motivações do presente recurso.
T - São, em sede de recurso levantadas seis (6) objeções relativamente ao despacho supra
U - Primeiro, em momento algum é questionada ou levantada a questão da titularidade da acção penal do MP. Nem é ela premente.
V - Segundo, os poderes do Juiz de Instrução Criminal não se limitam aos art. 268º e 269º do Código de Processo Penal. O art. 281º do CPP é disso exemplo
W - Há competência do Juiz de Instrução Criminal concordar ou não, e portanto de homologar ou não, o acordo sobre a Suspensão Provisória do Processo entre o MP e o arguido
X - Caso os poderes do Juiz de Instrução Criminal fossem limitados aos arts. 268º e 269º do Código de Processo Penal, jamais o Juiz de Instrução Criminal poderia dar a sua concordância à Suspensão Provisória do Processo a que se refere o art. 281º do Código de Processo Penal, tornando o art. 281º letra morta.
Y - Terceiro, o Exmº Juiz de Instrução Criminal cita a «Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº77/XII», a citação utilizada não se aplica ao caso em discussão
Z - De facto nem na citação usada nem na «Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº77/XII» é abordada a questão da concordância do Juiz de Instrução Criminal sobre a Suspensão Provisória do Processo, após acordo do MP e do arguido. A exposição é omissa nesta questão.
AA - A exposição de motivos aborda por um lado, a questão da “oportunidade” da Suspensão Provisória do Processo. Portanto, do juízo de vantagem de o MP a ela recorrer. Juízo esse que é realizado a priori, antes da existência de um acordo ou da proposta de acordo. Por outro lado, aborda a questão da sua fiscalização a posteriori, logo, após a concordância do Juiz de Instrução Criminal, num plano de controlo posterior “administrativo” pelo MP do cumprimento das injunções e regras de conduta.
AB - Quarto, o art. 281º do CPP refere que o MP, a requerimento do arguido, do assistente, ou oficiosamente determina a Suspensão Provisória do Processo.
AC - Foi o MP que oficiosamente propôs a Suspensão Provisória do Processo, não foi o arguido.
AD - Se o MP propõe e oficiosamente determina que o processo vá para Suspensão Provisória do Processo, se oficiosamente o arguido o aceita, caberá, oficiosamente, ao Juiz de Instrução Criminal concordar ou não com esse acordo, homologando-o ou não. O processo é como que avocado temporariamente ao poder judicial e é nesse hiato processual e temporal no qual a esfera de actuação do Juiz de Instrução Criminal é soberana.
AE - Quinto, o despacho proferido provoca uma consequência prática, a erosão do poder judicial e em concreto a diminuição dos poderes de decisão em sede de Suspensão Provisória do Processo do Juiz de Instrução Criminal para o MP.
AF - O despacho do Exmº Juiz de Instrução tolera o intolerável, a desautorização do poder do juiz, permitindo que o pseudo “argumento” da titularidade da acção penal se imiscua e sobreponha à reserva de poder do juiz, cuja legitimidade radica do art. 281º do CPP
AG - Tolerado o precedente seria permitido ao MP, neste e noutros processos, que em sede da titularidade da acção penal, até mesmo “oficiosamente”, dar o oficioso por não oficioso, ou a proposta como… “sugestão”, com os inevitáveis abusos supervenientes que daí possam advir.
AH - Sexto, tudo somado e apesar de não estarmos em sede de sentença do art. 379º do CPP, na realidade existe uma flagrante omissão de pronúncia às questões suscitadas pelo arguido, e em especial, à questão do não envio ao Juiz de Instrução Criminal da existência de um acordo sobre a Suspensão Provisória do Processo.
Pelo que se requer a V. Exas que:
1º - Seja revogado o despacho Refª 31676997 do Exmº Juiz de Instrução proferido no dia 8 de Abril de 2022
2º - Seja declarada nula a promoção datada de 29 de Março de 2022, Refª 31637520 do Digno Procurador
3º - Seja ordenado o envio do presente processo para o Juízo de Instrução Criminal de ... para apreciação da Suspensão Provisória do Processo pelo Exmº Juiz de Instrução
Decidindo assim farão V. Exas…Justiça.»
1.4. O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
«1. Inconformado com a decisão proferida pelo Mm.º Juiz de Instrução Criminal, por d. despacho de 08-04-2022, que decidiu pela incompetência «para apreciar as nulidades invocadas pelo arguido», o arguido vem dele interpor recurso, por considerar existir uma flagrante omissão de pronúncia quanto às questões suscitadas pelo arguido, em especial, à questão do não envio pelo MP ao Juiz de Instrução Criminal da existência de uma acordo de suspensão provisória do processo.
2. O arguido, em suma, considera que, uma vez proposta a suspensão provisória do processo e uma vez que o arguido a aceitou, caberia, oficiosamente, ao Juiz de Instrução criminal concordar ou não com a mesma, homologando-a ou não, isto, não obstante, o MP ter entendido não ser de aplicar tal instituto.
3. Contudo, é ao Ministério Público, enquanto titular da ação penal, que compete decidir, em primeira linha, sobre a oportunidade da suspensão provisória do processo.
4. No caso vertente, tendo o arguido optado por não prestar declarações quanto aos factos que lhe são imputados, no uso da faculdade legal que lhe assiste, o MP entendeu não ser de aplicar a suspensão provisória do processo, porquanto, de acordo com o previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 282.º do CPP, a suspensão provisória do processo só se aplica se for de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta sejam suficientes para satisfazer/acautelar as exigências de prevenção que no caso se fazem sentir. Quanto à prevenção geral positiva ou de integração, parece que a confissão livre, integral e sem reservas do arguido e a imposição de injunções serão resposta suficiente para as exigências comunitárias. Ora, no caso concreto, verifica-se que tal confissão não ocorreu, nem tão pouco um esclarecimento dos factos por parte do arguido.
5. Não obstante, o ora recorrente, descontente com o facto de o MP não ter recorrido ao instituto da suspensão provisória do processo, poderá, oportunamente, requerer a abertura de instrução, uma vez encerrado o inquérito, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 287.º do CPP, com fundamento na não suspensão provisória do processo pelo Ministério Público, com o objetivo de, tendo sido deduzida acusação pelo Ministério Público, vir a ser determinada, na fase de instrução, a suspensão provisória do processo, permitindo-lhe o controlo judiciário da decisão do Ministério Público e ainda a possibilidade de construir no debate instrutório o diálogo entre os vários sujeitos processuais no sentido da obtenção de um consenso que viabilize a suspensão provisória do processo.
6. A possibilidade, que ao arguido deve ser facultada, de promover a fiscalização judicial da decisão de não promoção da suspensão provisória do processo por parte do Ministério Público consubstancia-se numa verdadeira garantia de defesa imposta pelo artigo 32.º, n.º 1 da CRP.
7. Em conclusão, não merece qualquer censura o d. despacho recorrido.
Posto isto, face a tudo o quanto foi supra exposto, bem como o demais que V.ªs. Exªs. doutamente suprirão, entende-se que não deverá ser dado provimento ao recurso, e que, apenas mantendo-se o douto despacho recorrido, se fará INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!»
1.5. O recurso foi regularmente admitido.
1.6. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser julgado improcedente, o que fundamentou nos seguintes termos (transcrição parcial, excetuando-se as notas de rodapé):
«(...)
O recurso vem interposto pelo arguido ANDRÉ MENDES BATALHA do despacho do Mmo. JI, no qual foi indeferida e não conhecida a nulidade invocada e que recaía sobre a decisão do Ministério Público que não considerou verificados os pressupostos da Suspensão Provisória do Processo (SPP), apesar de no interrogatório de arguido ter proposto a SPP e esta ter sido aceite pelo arguido, tendo-se o Mmo JI considerado incompetente para apreciar a nulidade invocada, no que o arguido e ora recorrente viu uma omissão de pronúncia, e a consequente nulidade do despacho, nos termos do artigo 379.º do Código de Processo Penal, por não ter sido apreciada a omissão do envio pelo Ministério Público do processo ao Mmo. JI para concordância com a SPP aceite por este.
2.2. Parecer sobre as questões a decidir. Quadro factual e jurídico. Posição assumida.
No âmbito do inquérito, aquando do interrogatório do arguido efetuado por oficial de justiça, foi o mesmo questionado relativamente aos factos que lhe vinham imputados, sobre os quais não desejou prestar declarações no uso da faculdade legal que lhe assiste, sendo que, no âmbito de tal diligência foi ainda questionado se aceitava a suspensão provisória do processo mediante a imposição ao mesmo de determinadas injunções, que o mesmo aceitou expressamente.
Contudo, tendo em consideração que o arguido não desejou prestar declarações sobre os factos que lhe são imputados. o Ministério Público entendeu não ser de aplicar o referido instituto da suspensão provisória do processo, sustentando, para esse efeito, que o arguido não colaborou com o Tribunal, pois não esclareceu, nem confessou os factos que lhe eram imputados, pelo que não se verificava o requisito da SPP previsto na alínea f) do .º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal.
Não obstante, o arguido considera que a proposta do Ministério Público quanto à referida suspensão provisória do processo é “uma declaração receptícia e oficiosa – artigo 224.º do CC – mediante a aceitação do arguido ela ganhou eficácia e se tornou insuscetível de revogação. Restando apenas “a concordância do Juiz de Instrução Criminal do acordo existente”, sendo que “para que o Juiz de Instrução Criminal possa concordar com a Suspensão Provisória do Processo, o processo tem que lhe ser, obrigatoriamente, concluso para prolação de decisão”.
Acrescenta que “O Ministério Público de forma unilateral e contra legem não remeteu o processo para apreciação do Juiz de Instrução Criminal após acordo já celebrado”.
Em suma, entende o arguido que, uma vez proposta a SPP e um vez aceite esta pelo arguido, caberia, oficiosamente. ao Juiz de Instrução criminal concordar ou não com a mesma, homologando-a ou não, isto, não obstante, o Ministério Público ter entendido não ser de aplicar tal instituto.
Vejamos:
(...)
De acordo com a evolução do normativo que se lhe refere, a SPP é hoje um poder–dever do Ministério Público (e não só), já que a reunião dos requisitos legais de que depende não deve deixar alternativa à SPP, sendo assim uma decisão vinculada.
Porém, não basta o consenso do arguido traduzido na concordância com as injunções propostas aquando do 1.º interrogatório ou em outro momento oportuno, como o recorrente quer fazer querer, pois não estamos no âmbito de um processo de partes ou em que vigore o princípio do dipositivo e em que a concordância do arguido vincule irremediavelmente o Ministério Público ou, a jusante, o JI, a determinar a SPP.
Como se viu, é um poder-dever legalmente vinculado, e não uma faculdade, tanto para o Ministério Público, como para o JI.
Por via disso, não é uma faculdade irrestrita que resulte da mero requerimento ou concordância do arguido ou, porventura, do assistente. Uns e outros estão condicionados à observância dos requisitos legais.
Ainda que a prática judiciária, por razões eventuais de eficácia, antecipe, por regra, para o interrogatório do arguido a auscultação do consenso, o risco é o de que a fundamentação da proposta seja muito embrionária, sem que com isso fique prejudicado o juízo subjacente à avaliação global do processo e dos requisitos da SPP, estabelecidos no artigo 281.º do código de Processo Penal, a qual deve ser efetuada no encerramento do inquérito pelo Ministério Público.
Ou seja, essa prática, ainda que não seja a melhor, não dispensa a devida avaliação de todos os requisitos exigidos e aos quais se encontra vinculado o Ministério Público e, a jusante, o JI quando aprecia a proposta de SPP para com ela concordar ou não.
Em suma, a concordância do arguido, só por si, não dispensa uma decisão fundamentada do Ministério Público que apreciasse devidamente a existência dos requisitos legais da SPP, tal como não estaria dela dispensado o JI.
Um dos primeiros requisitos da SPP e que constitui o limite inultrapassável para a apreciação dos demais, é o de que tenha sido praticado crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou sanção diferente desta.
Para o efeito, exige-se a existência de indícios suficientes de crime punível com pena de prisão não superior a 5 (cinco) anos ou sanção diferente de prisão (n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal), pois se para a acusação eles são exigidos, por maioria de razão o devem ser para a SPP, que encerra em si uma imputação de factos e de crime, como numa acusação. De contrária, o princípio da legalidade e da objetividade que limitam e subjazem à legitimidade da intervenção do Ministério Público no processo penal imporiam um arquivamento (artigo 53.º, 276.º e ss., do Código de Processo Penal).
Ora, a nosso juízo, a concordância do arguido com a SPP proposta ou, mais restritamente com as injunções apresentadas no interrogatório de arguido no âmbito do inquérito, não pode, nem deve ser admitida como uma concordância restrita e seletiva, mas sim como uma concordância global, que abrange tanto os factos indiciados, como a respetiva qualificação jurídica, a solução processual da suspensão propriamente dita, a respetiva duração e as injunções ou regras de conduta.
Ora, sobre os factos, fosse a pronúncia uma confissão ou não, o arguido e recorrente nada disse, exercendo o seu direito ao silêncio.
A manifestação de vontade do arguido quanto à concordância com a SPP não foi global, sendo que o direito ao silêncio, a ser invocado, não integra a manifestação de vontade de concordância do arguido à proposta de SPP no sentido global em que essa concordância deve ser dada e enquanto condição da assunção dos requisitos que dessa manifestação de vontade depende a vinculação do Ministério Público ao encerramento do inquérito por essa via de diversão, oportunidade e consenso.
Vale por dizer que a ponderação e verificação dos requisitos tendentes à suspensão provisória do processo não pode bastar–se com um cumprimento simbólico e generalizado de meras formalidades.
Por via disso, além desse aspeto formal, outro se manifesta como consequência desse silêncio seletivo do arguido quanto aos factos indiciados.
A SPP deve ser adequada às necessidades de prevenção, estabelecendo o artigo 281.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal, como requisito a preencher, “ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.”.
Ora, a prevenção geral reportar-se-à à gravidade do crime, à sua repercussão pública, à frequência com que porventura é cometido, enquanto a prevenção especial se avalia pela existência ou não de confissão ou aceitação dos factos indiciados e comunicados, pela existência ou não de antecedentes criminais, pela conduta anterior, contemporânea e posterior ao crime indiciado, pelos sentimentos manifestados no seu cometimento, pelas condições pessoais do arguido, pela falta ou não de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada, etc.
A não haver concordância global do arguido, que abranja os factos indiciados, como aqui se defende, não só não se preenche o pressuposto de base da SPP, que se traduz no consenso legalmente exigido como não se preenche o requisito a que se aludiu e constante da alínea f) do n.º 1, do artigo 281.º do Código de Processo Penal, como o Ministério Público sustentou no seu despacho e a cujas razões se adere, pois cabe no âmbito das suas competências avaliar e decidir pela SPP a apresentar à concordância do JI.
Não se vê onde exista nulidade assacável a tal despacho, que a ser invocada deveria ser apreciada pelo próprio Ministério Público ou ser eventualmente objeto de reclamação hierárquica, como não se vê que exista a nulidade que o recorrente assaca ao despacho recorrido (que está devidamente fundamentado e aprecia a questão submetida apreciação), quer a nulidade que invoca ser a do artigo 379.º do Código de Processo Penal (sem indicação de n.º e sem justificação para a trasladar para um despacho que não é sentença), quer eventualmente a nulidade de conhecimento oficioso constante do artigo 119.º, alínea e) do Código de Processo Penal, remetendo–se, neste aspeto, para a citação efetuada em nota do Ac. TRE de 30-09-2014, processo n.º 89/13.2GGODM-A.E.
Como sustenta o Ministério Público na 1.ª instância, não está excluída a possibilidade de o arguido requerer a abertura de instrução com a finalidade de obter a SPP e, no seu âmbito, se colherem os consensos necessários, se for o caso.
Nisso e no demais, na resposta apresentada, o Ministério Público, em termos bem fundamentados e com o sólido apoio na lei e na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, rebateu integralmente as pretensões do recorrente, em termos que se sufragam sem reserva, nada mais, com relevo, se oferecendo acrescentar.
(...).»
1.8. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, o recorrente exerceu o direito de resposta, manifestando a sua discordância relativamente ao parecer emitido pelo Exm.º PGA, enunciando serem duas as questões a que este Tribunal da Relação deve procurar responder, quais sejam: 1ª - É válido o acordo celebrado oficialmente entre o arguido e o MP? 2ª - Se for válido, o que deveria ter sido feito pelo MP?
Conclui reiterando que o recurso deverá ser julgado procedente.
1.9. Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
Cumpre agora apreciar e decidir:

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
É consabido que as conclusões formuladas pelo recorrente extraídas da motivação do recurso balizam ou delimitam o objeto deste último (cf. artigo 412º do C.P.P.), sem prejuízo da apreciação das questões de natureza oficiosa.
Assim, no caso em análise, considerando os fundamentos do recurso, a questão suscitada é a da nulidade do despacho recorrido, por omissão de pronúncia, do JIC relativamente à suspensão provisória do processo, ao abrigo do disposto no artigo 281º, n.º 1, do CPP.
Para que possamos apreciar as enunciadas, importa ter presente o teor do despacho recorrido e os trâmites processuais dos autos, com relevância para o efeito.

2.2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«O arguido suscita nulidades com os fundamentos aduzidos no requerimento de fls. 31 e seguintes e dá conta “das peculiaridades processuais”.
O Ministério Público pronunciou-se a fls. 39 no sentido de inexistir qualquer nulidade a ser suprida, o que decidiu.
Considerando o pedido formulado de declaração de nulidade e os arts. 268.º e 269.º ambos do Cód. Processo Penal, e em conjugação com o art.º 17.º do mesmo diploma, não estão em causa a reserva de jurisdição atribuída ao Juiz de Instrução na fase preliminar do processo sumário, da qual é titular o Ministério Público (aliás, conforme se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 77/XII, que esteve na base da referida revisão do Código de Processo Penal de 2013, que “É ao Ministério Público, enquanto titular da ação penal, que compete decidir, em primeira linha, sobre a oportunidade da suspensão provisória do processo, competindo-lhe também, necessariamente, a fiscalização do cumprimento das injunções e regras de conduta, pelo que, nestes casos, o processo deve manter-se na sua titularidade."), nem o exercício de direitos fundamentais do arguido e, em consequência, julgo este tribunal materialmente incompetente para apreciar as nulidades invocadas pelo arguido.
Notifique e D.N.»

2.3. Factos e ocorrências processuais com relevância para a decisão a proferir (e que se mostram comprovados pela certidão que instrui os presentes autos, a folhas que infra se indicarão):
a) O inquérito n.º 208/22.... teve origem no auto de notícia, lavrado pela PSP, na sequência da apreensão ao arguido, ora recorrente, no dia 28/03/2022, de um aerossol de defesa e de uma arma elétrica, factos suscetíveis de integrarem a prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelos artigos 3º, n.º 2, al. j) e 86º, n.º 2, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro - Regime Jurídico das Armas e Munições -, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 50/2013, de 24 de julho – cf. 144 e 145;
b) Os referenciados autos n.º 208/22.... começaram por ser tramitados sob a forma de processo sumário (artigo 381º, n.º 1, al. a), do CPP), tendo, na respetiva fase preliminar, o Digno Procurador da República, por estar impedido na realização de outra diligência, no dia 29/03/2022, proferido despacho em que, tendo validado a constituição como arguido do ora recorrente e a sua detenção, delegou no Senhor Funcionário – Técnico de Justiça, a competência para proceder ao interrogatório do arguido, especificando a matéria relativamente à qual devia ser questionado e, ainda, sobre «se concorda com a suspensão provisória do processo, pelo período de 4 meses, mediante as seguintes injunções e regras de conduta: Prestar 90 horas de trabalho a favor da comunidade em moldes a definir pela DGRSP ou, em alternativa, entregar 450 euros a instituição de utilidade pública da área da residência, que indicará no interrogatório, a comprovar nos autos em 4 meses, juntando recibo onde conste o n.º de processo e que se trata de injunção aplicada em processo criminal.» - cf. fls. 160;
c) Em observância do determinado no despacho referido em b), o arguido foi interrogado, pelo Senhor Técnico de Justiça Auxiliar, nesse mesmo dia 29/03/2022. Nesse ato foi perguntando ao arguido se concordava com a suspensão provisória do processo, mediante as injunções e regras de conduta mencionadas no despacho do Digno Procurador da República, que lhe foram transmitidas conforme consta do auto de interrogatório, tendo o arguido referido que «concorda com a proposta de suspensão provisória do processo e que aceita fazer a entrega da quantia monetária proposta, e indica para o efeito “O cantinho dos Animais”, em ....».
Nesse ato, foi o arguido «advertido de que a suspensão provisória do processo pode ser revogada se culposamente não cumprir as obrigações assumidas ou se durante o respectivo período cometer crime que releve não estarem asseguradas pela mesma as exigências de prevenção do tipo criminal indiciado nos autos.» - cf. fls. 163 e 164.
d) Nessa mesma data, 29/03/2022, o Digno Procurador da República, proferiu despacho, sob a Ref.ª 31637520, com o seguinte teor:
«Valido as apreensões realizadas a fls. 7 a 11 - artigo 178.º, n.ºs 1, 3 e 5, do CPP.
Melhor compulsados os autos, verifica-se que vai ser necessário apurar o contexto em que ocorreram os factos, designadamente o que vai ser decidido sobre a matéria descrito no auto de notícia elaborado na sequência da notícia da altercação, pelo que não vão ser apreciado os autos nesta fase sumária, tanto mais que o arguido se remeteu ao silêncio.
Assim, não se considera estarem preenchidos os pressupostos para aplicação do processo sumário e, em consequência, a aplicação da suspensão provisória do processo neste momento, sem prejuízo de nova reapreciação superveniente.
Notifique o arguido, através do Ilustre Defensor Oficioso.

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Oficie à PSP ... solicitando informação em 3 dias, se necessário, se algum dos intervenientes referidos no auto de notícia NUIPC 207/20.... apresentou queixa posteriormente e se aquele expediente do NUIPC 207/20.... foi remetido ao DIAP ....
(...).». - cf. fls. 167.
e) No dia 06/04/2022, o arguido, ora recorrente, apresentou requerimento, dirigido ao Exm.º Juiz de Instrução Criminal, invocado que o despacho do MP transcrito na alínea d) enferma de nulidades, o que fundamentou nos seguintes termos:
«No dia 29 de Março de 2022, conforme consta do Auto de Interrogatório de Arguido, Refª 31635890, foi feita pelo Ministério Público uma proposta de suspensão provisória do processo ao arguido.
Devidamente analisadas as injunções propostas «Prestar 90 horas de trabalho a favor da comunidade em moldes a definir pela DGRSP ou, em alternativa, entregar 450,00 euros a instituição de utilidade pública da área da residência (...)» o arguido decidiu aceitar a injunção proposta, de entregar 450,00 euros a instituição de utilidade pública, avançada pelo Ministério Público, e, dessa forma, comprometeu-se a entregar a quantia monetária indicada para o “Cantinho dos Animais”, em ....
Questionado sobre se queria prestar declarações pelo Oficial de justiça do Ministério Público presente, o arguido recorreu ao direito que lhe confere o art. 61º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Penal, ou seja, o direito ao silêncio, direito inviolável e constitucionalmente consagrado no art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
Numa leitura do art. 281º do Código de Processo Penal, rapidamente se infere que o arguido não é obrigado a partilhar, contar, divulgar, a sua versão dos factos, sendo legal e admissível que o mesmo se remeta ao silêncio, ao mesmo tempo que beneficia da suspensão provisória do processo.
A constatação de que o arguido não iria falar despoletou o despacho n.º ...90 do digno Procurador da República.
Ora a posição do Ministério Público consagra uma clara violação da presunção de inocência do aqui arguido, com fundamento no exercício do direito ao silêncio.
Primeira nulidade que se argui.
Mas a situação é mais grave. Pois basta uma leitura do despacho n.º ...90 do digno Procurador da República, para constatar que o mesmo não tem fundamento na lei. Ou seja, o despacho não recorre a nenhuma fundamentação legal para sustentar a sua recusa superveniente na concessão da suspensão provisória do processo, do art. 281º do CPP. O que se depreende é que a posição do Ministério Público resulta de uma reação processual, pelo facto de o arguido ter decidido se remeter ao silêncio. O arguido é prejudicado directamente por ter decidido recorrer ao direito ao silêncio.
Segunda nulidade que se argui, a falta de sustentação legal do despacho do digno Procurador da República.
A leitura do art. 281º do Código de Processo Penal, estipula que após a concordância do Ministério Público e do arguido, o processo é concluso ao Juiz de Instrução Criminal para obter a sua concordância. O art. 281º do CPP é claro nesse aspecto, a “concordância do Juiz de Instrução”. Ora o Ministério Público com o despacho n.º ...90 fez tábua rasa da proposta de acordo existente e da lei, não dando conhecimento ao juiz de instrução da existência da mesma.
Ao não concluir o processo ao Juiz de Instrução Criminal para obter a sua concordância, o Ministério Público provoca uma nulidade.
Terceira nulidade que se argui, a não conclusão ao Juiz de Instrução da existência de um acordo sobre a suspensão provisória do processo.
(...).» - cf. fls. 172 e 173
f) O Ministério Público, pronunciando-se sobre o requerimento do arguido, referido em e), proferiu despacho, em 06/04/2022, sob a Refª 31665174, com o seguinte teor:
«O MP preparava despacho de remessa dos autos para a fase de inquérito, na sequência da prolação do despacho constante a fls. 16. O arguido foi detido pela prática de um crime de detenção de arma proibida.
Contudo, apurou-se que corre termos um inquérito 207/20.... onde são indicados factos que poderão integrar outros tipos de crime e onde importa analisar uma investigação conjunta dos factos, tanto mais que estamos perante factos que podem ser causa ou conexos com outros.
Para além disso, importa referir que foi levantada a sugestão de SPP ao arguido, conforme despacho de fls. 19, mas que tal não significa que haja uma vinculação do MP, tanto mais que dependia do que viesse a resultar das declarações do arguido, quer quanto aos factos, quer quanto à situação pessoal e profissional. Sendo possível concluir que as injunções eram adequadas à situação pessoal e profissional relatada, o facto de o arguido se ter remetido ao silêncio num caso que assume gravidade, atenta a moldura penal aplicável e o contexto que terá precedido os factos, implica que nesta fase não se poder concluir pelo preenchimento do pressuposto de ausência de um grau de culpa elevado e que seja de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção especial que no caso de fazem sentir.
Por último, sublinhar que o interrogatório não foi presidido uma vez que o signatário acumulou diligências do juízo de família e menores ..., pelo que foi necessário indicar desde logo as eventuais injunções para delegação da diligência.
Assim, não existe qualquer nulidade e que deve ser suprida pelo MP.
Contudo, uma vez que o requerimento é dirigido ao Mmº Juiz de Instrução Criminal, remeta ao Juízo de Instrução Criminal de ... em conformidade.» - cf. fls. 180 e 181.
g) Apreciando o requerimento do arguido supra mencionado, na alínea e), o Mmº Juiz de Instrução Criminal proferiu o despacho acima transcrito, em 2.2. e ora recorrido. – cf. fls. 184.
h) Nos autos de inquérito registados sob o n.º 207/20.... foi constituído arguido CC e é queixoso AA, estando aí em investigação factos ocorridos no dia 28/03/2022, na sequência dos quais a PSP viria a proceder à apreensão das armas mencionadas na al. a) e a lavrar o auto de notícia que deu origem ao NUIPC n.º 208/22..... – cf. fls. 52 a 61 e 74.
i) Por despacho proferido pelo MP, em 19/05/2022, no âmbito do inquérito n.º 207/22.0PBEVR, foi determinada a apensação do inquérito n.º 208/22...., com fundamento em que importaria efetuar uma investigação conjunta dos factos. – cf. fls. 40.

2.4. Apreciação do mérito do recurso
O recurso em apreço foi interposto pelo arguido, da decisão do Mmº. Juiz de Instrução Criminal, que se declarou materialmente incompetente para conhecer das nulidades invocada pelo arguido, ora recorrente, do despacho proferido pelo Ministério Público, que supra se transcreveu, na alínea d), do ponto 2.3., que considerou não estarem verificados os pressupostos para a aplicação do processo sumário e suspensão provisória do processo (SPP), nesse momento, «sem prejuízo de nova reapreciação superveniente».
Tal como referimos supra, a questão suscitada no recurso é a da nulidade do despacho recorrido, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º do CPP.
Pese embora a nulidade prevista no artigo 379º, n.º 1, al. c), do CPP, seja apenas aplicável às sentenças e não aos despachos, apreciaremos se atentos os fundamentos aduzidos no recurso, o despacho recorrido padece de qualquer invalidade, que importe conhecer.
O recorrente entende que o despacho recorrido enferma de nulidade, em virtude de os autos não terem sido conclusos ao Juiz de Instrução Criminal, para que tivesse conhecimento da existência de um acordo sobre a suspensão provisória do processo estabelecido entre o MP e o arguido e tomasse posição quanto ao mesmo.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão ao recorrente. Aduz que não ficou vinculado à eventual suspensão provisória do processo, que foi apresentada ao arguido e com a qual este concordou, já que a SPP exige a verificação dos requisitos estabelecidos no artigo 281º, n.º 1, do CPP, cujo preenchimento, pelo menos, de alguns deles, só podia ser aferido após o interrogatório do arguido, tendo o Ministério Público concluído não estarem reunidos, no momento em que proferiu o despacho sobre o qual recaiu a decisão judicial recorrida.
Apreciando:
O despacho do Ministério Público e a decisão do Juiz de instrução criminal contra os quais o recorrente se insurge foram proferidos nos autos n.º 208/22.....
Os referenciados autos começaram por ser tramitados sob a forma de processo sumário, considerando o disposto no artigo 381º, n.º 1, al. a), do CPP, tendo o arguido, ora recorrente, sido detido em flagrante delito, por entidade policial e sendo-lhe imputada a prática de crime – detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 3º, n.º 2, al. j) e 86º, n.º 2, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 50/2013, de 24 de julho – punível com pena de prisão cujo limite máximo não excede os 5 anos.
Segundo o entendimento consolidado na doutrina e na jurisprudência, a tramitação do processo sumário, que é regulado nos artigos 381º a 391º do CPP, abrange duas fases distintas: uma fase preliminar, também designada de pré judicial, e uma fase judicial ou de julgamento[1].
Deste modo, verificados que se mostrem os pressupostos para eventual julgamento em processo sumário, nos termos previstos no artigo 381º do CPP, o Ministério Público inicia a fase preliminar do processo, no âmbito da qual pode praticar diversos atos, designadamente, pode interrogar o arguido e ordenar a realização de diligências de prova que considere essenciais à descoberta da verdade (cf. artigo 382º, n.ºs 2, 3 e 4, do CPP).
Terminada a fase preliminar, o Ministério Público decide o destino dos autos, podendo, no despacho que encerra essa fase, determinar: a apresentação do arguido para julgamento em processo sumário, o arquivamento dos autos, a suspensão provisória do processo ou a tramitação do processo sob a forma comum ou abreviada (cf. artigos 382º e 384º, ambos do CPP).
Se o Ministério Público, finda aquela fase preliminar, vier a considerar não estarem reunidos os pressupostos para o julgamento do arguido em processo sumário, decidindo remeter os autos para inquérito, esse despacho não pode ser sindicado pelo juiz de instrução criminal, sendo o Ministério Público o titular da ação penal (cf. artigo 291º, n.º 1, da CRP) e não se tratando aquela de uma decisão que contenda com direitos, liberdades e garantias.
Sobre a suspensão provisória do processo, no âmbito do processo sumário, dispõe o artigo 384º do Código de Processo Penal:
«1. Nos casos em que se verifiquem os pressupostos a que aludem os artigos (...) 281º, o Ministério Público, oficiosamente ou mediante requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução (...), a suspensão provisória do processo.
2. Para efeitos do disposto no número anterior, o Ministério Público pode interrogar o arguido nos termos do artigo 143º, para efeitos de validação da detenção e libertação do arguido, sujeitando-o, se for caso disso, a termo de identidade e residência, devendo o juiz de instrução pronunciar-se no prazo máximo de 48 horas sobre a proposta de (...) suspensão.
3. Se não for obtida a concordância do juiz de instrução, é correspondentemente aplicável o disposto nos nºs 5 e 6 do artigo 382º, salvo se o arguido não tiver exercido o direito a prazo para apresentação da sua defesa, caso em que será notificado para comparecer no prazo máximo de 15 dias após a detenção.
(...).».
Resulta, expressamente, do n.º 1, do artigo 381º do CPP, que é o Ministério Público quem determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução, caso de verifiquem os pressupostos estabelecidos no artigo 281º, n.º 1, do CPP, que são os seguintes:
- Ser o crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão;
- Concordância do arguido e do assistente;
- Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
- Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza;
- Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
- Ausência de um grau de culpa elevado; e
- Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.
Como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa, de 26/11/2015[2], «No processo sumário, a decisão de suspensão provisória do processo é da exclusiva competência do Ministério Público, dependendo da verificação cumulativa dos pressupostos referidos nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 281.º do CPP, e da concordância do juiz de instrução.
A iniciativa da aplicação desse instituto nunca parte do juiz e não pode, em qualquer caso, ser imposta ao MP, titular da acção penal.».
No processo sumário, a decisão do Ministério Público de não suspender provisoriamente o processo não é impugnável. E mesmo que se verifiquem os pressupostos de que depende a aplicação desse instituto, o juiz não tem o poder de a decretar, não podendo substituir o Ministério Público[3].
Tendo presentes as considerações que se deixam expendidas e volvendo ao caso concreto:
O despacho recorrido foi proferido nos autos n.º 208/22...., que começaram por ser tramitados como processo sumário, tendo, na respetiva fase preliminar, sido realizado o interrogatório do arguido – efetuado por oficial de justiça, em quem o MP delegou, para o efeito, a competência –, o qual, no exercício do direito ao silêncio que lhe assiste, não prestou declarações sobre os factos que lhe foram imputados. E tendo, nesse ato, sido questionado sobre se aceitava a suspensão provisória do processo – pelo período de 4 meses, mediante a imposição das injunções e regras de conduta, que lhe foram comunicadas –, o arguido declarou, expressamente, aceitar a aludida suspensão, mediante a entrega da quantia monetária de €450,00, à instituição “O cantinho dos Animais”, em ....
Após a realização do aludido interrogatório do arguido, o Ministério Público proferiu o despacho cuja nulidade o arguido invocou, perante o Juiz de Instrução Criminal, que veio a proferir a decisão recorrida.
Em tal despacho considerou o Ministério Público ser necessário apurar o contexto em que ocorreram os factos, designadamente, o que seria decidido sobre a matéria descrita no auto de notícia elaborado na sequência da altercação – referindo-se ao auto de notícia que deu origem ao NUIPC 207/20.... –, tanto mais que o arguido se remeteu ao silêncio, entendendo, por isso, não estarem reunidos os pressupostos para a aplicação do processo sumário «e, em consequência, a aplicação da suspensão provisória do processo neste momento, sem prejuízo de nova reapreciação superveniente.».
Na descrita situação, em que, ab initio, o Ministério Público considerou estarem reunidos os pressupostos para julgamento em processo sumário, mesmo que possa ter ponderado a eventual suspensão provisória do processo e ainda que a respetiva proposta tenha sido transmitida ao arguido, em interrogatório realizado, no qual foi também questionado sobre os factos que lhe foram imputados, exercendo o direito ao silêncio, aceitando o arguido aquela suspensão, o Ministério Público não tem nessa situação, obrigatoriamente, que determinar a suspensão provisória do processo, nos termos do disposto nos artigos 384º e 281º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.
Com efeito, pese embora se reconheça que o procedimento seguido pelo Ministério Público – o qual, segundo refere o Exm.º PGA, no parecer emitido, será usual –, na fase preliminar do processo sumário e tendo subjacentes razões de celeridade processual, no sentido de indagar junto do arguido sobre se concorda com a suspensão provisória do processo, mediante determinadas injunções e/ou regras de conduta, sem que previamente tenha analisado aprofundadamente se estão ou não reunidos os pressupostos para a aplicação da SPP, não seja o mais adequado, na medida em que, poderá criar fundadas expetativas no arguido, de que a suspensão possa vir a ser, efetivamente, determinada pelo MP.
Isso não significa que quando o Ministério Público assim proceda, ou seja, quando, no âmbito de interrogatório realizado ao arguido, na fase preliminar do processo sumário, o questione sobre se concorda com a suspensão provisória do processo, mediante determinadas injunções e o arguido dê a sua concordância, fique vinculado a ter de determinar a suspensão provisória do processo, nos termos do disposto no artigo 384º, n.º 1, do CPP.
Na verdade, tal como supra referimos, se o Ministério Público, finda a fase preliminar do processo sumário e realizadas as diligências que entendeu por necessárias, decidir remeter os autos para inquérito, esse despacho não pode ser sindicado pelo juiz de instrução criminal, sendo o Ministério Público o titular da ação penal e não se tratando aquela de uma decisão que contenda com os direitos, liberdades e garantias, de que o Juiz de Instrução Criminal é garante.
Ora, é precisamente essa a situação que se verifica no caso dos autos.
O Ministério Público, em face do teor do auto de notícia que deu origem ao inquérito n.º 207/22.0PBEVR e que foi junto aos autos n.º 208/22...., reportando-se aquele a factos ocorridos momentos antes de ser efetuada, pela PSP, a apreensão ao ora arguido/ recorrente, do spray/aerossol e da arma elétrica, que levou à sua detenção, por crime de detenção de arma proibida, entendeu haver necessidade de investigar os factos, em inquérito, afastando, por isso, a aplicação do processo sumário e, consequentemente, nesse âmbito, a suspensão provisória do processo, sem prejuízo, relativamente a esta última, de nova reapreciação superveniente.
A decisão do Ministério Público, encerrada a fase preliminar do processo sumário, de remeter para inquérito os autos n.º 208/22.... – os quais vieram a ser apensados aos autos n.º 207/22.0PBEVR –, não é sindicável pelo Juiz de Instrução Criminal, sendo o Ministério Público o titular da ação penal.
Donde, nunca poderia o Juiz de Instrução Criminal, muito menos na descrita situação, impor ao Ministério Público, a suspensão provisória do processo, prevista no n.º 1 do artigo 384º, n.º 1, do CPP, obstando, dessa forma, a que fosse realizado inquérito e os autos seguissem a forma de processo comum.
Acresce que a decisão do Ministério Público não afasta a possibilidade de, futuramente, vir a reapreciar a possibilidade da suspensão provisória do processo, nos termos previstos no artigo 281º, n.º 1, do CPP.
Seguindo os autos a forma de processo comum, quando for proferido despacho de encerramento do inquérito, caso o Ministério Público não venha a determinar a suspensão provisória do processo e deduza acusação contra o arguido, ora recorrente, este poderá requerer a abertura da instrução, sendo-lhe, por essa via, facultada a possibilidade de controlo judicial da decisão do Ministério Público, de não suspender provisoriamente o processo.
Em suma, ainda que, na fase preliminar do processo sumário, o Ministério Público tenha proposto ao arguido a suspensão provisória do processo, mediante injunções e/ou regras de conduta e o arguido tenha dado o seu acordo, se terminada aquela fase, o Ministério Público, por entender que os factos imputados ao arguido carecem de investigação, decide remeter os autos para inquérito, não determinado, por conseguinte, a suspensão provisória do processo, prevista no artigo 384º, n.º 1, do CPP – mas salvaguardando a possibilidade de reapreciação superveniente da SPP – esse despacho não pode ser sindicado, em qualquer das suas vertentes, pelo juiz de instrução criminal, sendo o Ministério Público o titular da ação penal e não se estando perante uma decisão que contenda com direitos, liberdades e garantias.
Consequentemente, independentemente da fundamentação nela aduzida não ser inteiramente coincidente com a que deixámos explanada, a decisão recorrida proferida pelo Mm.º Juiz de Instrução Criminal, que não conheceu das nulidades arguidas pelo ora recorrente, relativamente ao despacho do Ministério Público, não enferma de qualquer nulidade ou irregularidade, pelo que, deve manter-se.
Assim sendo, o recurso não merece provimento.

3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de ... em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, confirmar o despacho recorrido.
Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (cf. art. 513º, n.ºs 1 e 3, do C PP e art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).
Notifique.
Évora, 8 de novembro de 2022

Fátima Bernardes
Fernando Pina
Maria Beatriz Marques Borges

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[1] Cfr. por todos, na doutrina, Cláudia Isabel Ferraz Dias Matias, A suspensão provisória do processo: o regime legal presente e perspectivado, Coimbra, FDUC, 2014, págs. 27 a 29, acessível in https://estudogeral.uc.pt e, na jurisprudência, Ac. da RC de 28/09/2011, proc. n.º 60/11.9GBAND.C1, acessível in www.dgsi.pt.
[2] Proc. n.º 989/14.2SILSB-L1, acessível in www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, cfr. Ac. da RL de 20/04/2017, proc. n.º 1401/16.8PBCSC.L1-9, acessível in www.dgi.pt. e Ac. da RG de 19/03/2018, sumariado in CJ, Ano 2018, Tomo II, pág. 327.