Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
70/13.1GESLV.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: DEMANDANTE CIVIL
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 07/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - A limitação do recurso, tal como previsto no artigo 403.º, nº 1, do C. P. Penal, supõe a possibilidade de apreciar autonomamente a parte da decisão de que se recorre, de modo a que não se verifiquem contradições ou incompatibilidade de decisões.

II - Mesmo que indiretamente, o recurso do demandante civil, não constituído como parte assistente, não pode pôr em causa a parte penal da sentença, nem factualidade relativa ao pedido de indemnização cível, na parte comum à absolvição criminal, sob pena de, claramente, o grau de intervenção processual da parte civil ser desvirtuado e de tal intervenção beneficiar de uma amplitude que o legislador efetivamente não quis.

III - Pelos danos causados por um facto que não é suscetível de integrar um tipo legal de crime e que viola, exclusivamente, um crédito ou uma obrigação em sentido técnico, não pode pedir-se a respetiva indemnização no processo penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

No âmbito do processo comum (tribunal singular) com o nº 70/13.1GESLV, da Comarca de Faro (Portimão - Instância Local - Secção Criminal - Juiz 1), após audiência de discussão e julgamento, e mediante pertinente sentença, foi decidido nos seguintes termos:

Em face de tudo quanto acima ficou exposto, julgo a acusação e o pedido cível não provados e improcedentes, e, em consequência:

1) ABSOLVO o arguido A da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art. 11º, nº 1, al. a), do DL 454/91, de 28/12, na redação atualmente em vigor.

2) Absolvo o arguido do pedido cível deduzido por B..
3) Custas do pedido cível a suportar pelo demandante”.
*
O demandante B., inconformado com a absolvição, interpôs recurso, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

“A) O Recorrente não se conforme com o doutamente decidido quanto ao Pedido de Indemnização Civil formulado, nem quanto à absolvição do Réu da prática do crime de emissão de cheque sem provisão.

B) Atentos os documentos juntos aos autos pelo ora Recorrente, aquando da dedução do pedido de indemnização civil, a Meritíssima Juiz “a quo” deveria ter considerado como factos provados que o cheque foi apresentado para pagamento nos termos e prazos estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa ao Cheque, condenando o Arguido pela prática do crime de emissão de cheque sem provisão.

C) De acordo com o art. 29º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, o cheque pagável num país diferente daquele em que é pagável, como é o caso dos presentes autos, deve ser apresentado a pagamento num prazo de 20 dias.

D) A Meritíssima Juiz “a quo”, ao considerar apenas a data que consta aposta no cheque e no carimbo com a menção “Banco Santander Totta, S.A., Devolvido do Exterior em 28/11/2012 por motivo de Falta de Fundos”, não terá considerado outros documentos juntos aos autos. Nomeadamente, não valorou um aviso de débito com data de emissão de 18-10-2012, nem a respetiva comunicação do Banco a devolver o cheque por falta de fundos em 18-10-2012.

E) A última data aposta no cheque de 28-11-2012 foi a data em que o cheque saiu da circulação interna do Banco para ser devolvido ao seu portador, neste caso ao demandante, ora Recorrente. Sendo certo que essa foi a última data, das várias tentativas que o banco terá efetuado para conseguir o seu pagamento.

F) Não deveria a Meritíssima Juiz “a quo” ter considerado, como o fez, que o cheque em causa não foi apresentado nos vinte dias subsequentes à sua data de emissão, nem que o protesto pelo não pagamento não foi efetuado dentro de tal período.

G) Atenta a prova documental apresentada e a prova testemunhal que foi produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, através dos testemunhos do Demandante, ora Recorrente, e da Testemunha por si arrolada, ficou devidamente comprovado que o cheque em causa foi atempadamente apresentado a pagamento e que o Demandante, ora Recorrente, não obteve na sua conta bancária o crédito do valor consubstanciado no cheque emitido pelo Réu.

H) O Demandante/Recorrente ficou sem a sua viatura automóvel, de matrícula 67-34-CI, e não obteve qualquer valor monetário pela venda da mesma ao Demandado/Recorrido.

I) A Meritíssima Juiz “a quo” ao não considerar, mal, que se verificaram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do ilícito criminal do crime de emissão de cheque sem provisão, absolveu portanto o Arguido também do pedido de indemnização civil, por aqui se considerar que estávamos perante uma situação de responsabilidade civil por factos ilícitos.

J) Ao considerar, igualmente mal, que o Arguido não cometeu qualquer facto ilícito, entendeu que não se verificaria aqui que o demandante tivesse direito a qualquer indemnização civil com base em factos ilícitos, por responsabilidade civil subjetiva, portanto nos termos do disposto no artigo 483º do Código Civil.

K) Neste sentido, no caso dos presentes autos mostram-se preenchidos todos esses pressupostos, pois tudo isto se verificou, sem qualquer margem para dúvidas.

L) Ao contrário do que a Meritíssima Juiz “a quo” considerou, o cheque foi devolvido por falta de fundos, dentro do prazo legal, em 18.10.2012, embora só em 28.11.2012, tenha sido aposto efetivamente o carimbo no verso do cheque com a menção de falta de fundos, data em que o mesmo foi devolvido ao Demandante e saiu de circulação interna do sistema bancário português.

M) Assim, cumprindo-se o que se estabelece igualmente para esta questão, nomeadamente através da aplicação da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, depreende-se facilmente que não existiu aqui boa cobrança do cheque, conforme documentos juntos aos autos pelo ora Recorrente aquando da dedução do Pedido de Indemnização Civil, considerando-se aqui, sem qualquer margem para dúvida, uma conduta ilícita, que originou um dano para o Demandante, e, consequentemente, um proveito patrimonial ilegítimo para o Arguido/Demandado.

N) Pelo que o Arguido, ora Recorrido, deve, igualmente, ser condenado no pagamento do Pedido de Indemnização Civil deduzido.

Nestes termos, deve ser concedido provimento a este Recurso, devendo a douta Sentença recorrida ser revogada nos termos expostos, assim se fazendo Justiça”.

Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, aquando do “visto” a que alude o artigo 416º, nº 1, do C. P. Penal, não emitiu parecer, entendendo que o presente recurso está restringido a questão de exclusiva natureza cível (carecendo o Ministério Público de legitimidade e interesse em agir).

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.
Recorre o demandante, requerendo a alteração da decisão revidenda, com a condenação do arguido pela prática do crime de emissão de cheque sem provisão de que estava acusado, e com a condenação no pedido cível formulado.

Vistas a motivação do recurso e as respetivas conclusões, constata-se que o recorrente impugna a matéria de facto dada como provada e como não provada na sentença recorrida (no essencial, a matéria relativa à data em que o cheque foi apresentado a pagamento), matéria esta que levou à absolvição criminal do arguido, por não ter ficado assente que o cheque tenha sido apresentado a pagamento nos termos e prazos estabelecidos pela Lei uniforme Relativa ao Cheque.

Compulsados os autos, verifica-se que o recorrente deduziu pedido de indemnização civil, mas não se constituiu assistente.

Consequentemente, o recorrente é apenas parte civil, cujo estatuto está definido no artigo 74º do C. P. Penal.

Ora, atentos os fundamentos do recurso interposto pelo demandante - ele, em suma, impugna a matéria de facto, pretendendo que o tribunal dê como provados os factos integradores do crime do qual o arguido foi absolvido -, é evidente (para nós, e com o devido respeito por diferente opinião) que carece o recorrente de legitimidade para recorrer nos termos em que o faz, atendendo ao disposto nos artigos 401º, nº 1, al. c), e 403º, nºs 1 e 2, al. a), do C. P. Penal, pois não é possível, em face dos termos como o recurso se apresenta, e relativamente à responsabilidade extracontratual do arguido, separar a matéria criminal da matéria cível.

Senão vejamos.

Dispõe o artigo 403º do C. P. Penal:

1 - É admissível a limitação do recurso a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas.

2 - Para efeito do disposto no número anterior, é autónoma, nomeadamente, a parte da decisão que se referir:

a) A matéria penal;
b) A matéria civil;
c) Em caso de concurso de crimes, a cada um dos crimes;
d) Em caso de unidade criminosa, à questão da culpabilidade, relativamente àquela que se referir à questão da determinação da sanção;
e) Em caso de comparticipação criminosa, a cada um dos arguidos, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do nº 2 do artigo 402º;
f) Dentro da questão da determinação da sanção, a cada uma das penas ou medidas de segurança.

3 - A limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida”.

A limitação do recurso, tal como previsto no artigo 403º, nº 1, do C. P. Penal, supõe a possibilidade de apreciar autonomamente a parte da decisão de que se recorre, de modo a que não se verifiquem contradições ou incompatibilidade de decisões.

Isto, aliás, está em conformidade com o estabelecido no nº 3 do mesmo preceito legal, onde se impõe o dever de “retirar da procedência daquele” (do recurso que se limitou a uma parte da decisão) “as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida” (cfr., neste mesmo sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado e Comentado”, 12ª edição, pág. 766, onde se refere que qualquer das alíneas do artigo 403º, nº 2, do C. P. Penal, “terá sempre que ser criteriosamente equacionada com o comando do nº 1”, ou seja, com a possibilidade de autonomizar a parte da decisão de que se recorre da restante).

Assim sendo, e por um lado, à parte civil (neste caso, ao demandante) está reservada a faculdade de recorrer apenas relativamente a aspetos que se prendam com a ação civil propriamente dita, como sejam o grau de culpa do demandado (a percentagem da repartição de culpas, entre o demandante e o demandado, na produção do evento danoso), os prejuízos decorrentes do facto ilícito, e o quantum indemnizatório.

Por outro lado, e mesmo que indiretamente, o recurso da parte civil não pode pôr em causa a parte penal da sentença, sob pena de, claramente, o grau de intervenção processual da parte civil ser desvirtuado e de tal intervenção beneficiar de uma amplitude que o legislador efetivamente não quis (cfr., neste sentido restritivo quanto à intervenção dos demandantes cíveis, não constituídos assistentes, em processo penal, à luz dos preceitos legais a que se fez referência, e entre outros, o Ac. da R.C. de 17-03-1993, in CJ, Ano XVIII, Tomo II, pág. 56, os Acs. do S.T.J. de 30-10-1991 e de 30-04-2003, respetivamente proferidos nos processos nº 042128 e nº 03P619, e o acórdão desta Relação de Évora de 24-01-2006, prolatado no processo nº 2461/05-1, todos estes acessíveis in www.dgsi.pt).

Como bem escreve Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 2ª ed., 2008, pág. 1029, nota nº 12 ao artigo 401º), “o demandante não tem legitimidade para, no recurso da matéria cível, pôr em causa, ainda que indiretamente, a parte penal da sentença, pedindo a alteração da matéria de facto provada”.

No caso concreto destes autos, e analisados os fundamentos do recurso interposto, a impugnação do recorrente, quando versa a factualidade dada por provada e por não provada na sentença revidenda, não permite, como se nos afigura óbvio, uma autonomização da matéria civil relativamente à matéria criminal, e, consequentemente, o essencial do alegado na motivação do recurso não pode ser apreciado (pois que, a proceder, implicaria a condenação criminal do arguido).

Um único segmento da decisão recorrida escapa a tais constrições: o entendimento da Mmª Juíza segundo o qual, não estando demonstrados todos os pressupostos em que assenta a responsabilidade civil extracontratual do arguido (não se provando o facto ilícito), não pode apreciar-se, nesta sede, a responsabilidade contratual do arguido/demandado (o seu incumprimento de um contrato de compra e venda, contrato celebrado com o demandante, e cujo preço, titulado pelo cheque aqui em apreço, não foi pago).

Em suma: impugnando o recorrente a matéria de facto relativa à parte crime - e é efetivamente esta que ele questiona, de algum modo reconhecendo que não é possível autonomizar a parte crime da parte cível, como não é -, carece o mesmo de legitimidade para recorrer em toda essa matéria, ou seja, para pôr em causa a absolvição do arguido, quer relativamente ao crime do qual estava acusado, quer no tocante ao pedido de indemnização civil (olhando este na perspetiva da responsabilidade civil extracontratual do arguido).

Por conseguinte, a apreciação do mérito do recurso cingir-se-á à parte da sentença respeitante à matéria civil, e, dentro desta matéria, tratará tão só da possibilidade de, neste processo (de natureza criminal), se poder condenar o arguido/demandado a título de responsabilidade contratual (por manifesto incumprimento contratual - não pagamento do preço devido pela aquisição, ao demandante, de um veículo automóvel -).

2 - A decisão recorrida.
A sentença proferida nos autos é do seguinte teor (integral - com exceção do “dispositivo”, que já foi acima transcrito -):

RELATÓRIO:
Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o Ministério Público requereu o julgamento de:

A, filho de…, natural de Oliveira de Azeméis, nascido a 06.03.1966, solteiro, residente…, Santiago de Riba Úi;

Imputando-lhe, em face dos factos descritos na acusação constante de fls. 148 e segs., que aqui se dão por reproduzidos, a prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art.º 11.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 454/91, de 28-12.
B. deduziu pedido cível contra o arguido, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 5.233,92 euros, a título de indemnização pelos danos patrimoniais causados com a sua conduta, acrescida de juros de mora legais até efetivo e integral pagamento.

O arguido não apresentou contestação nem arrolou testemunhas.

Posteriormente ao despacho que recebeu a acusação não ocorreram nulidades, exceções ou questões prévias ou incidentais que importe conhecer, mantendo-se a instância válida e regular.

Procedeu-se a julgamento, na ausência do arguido, com observância de todas as formalidades legais.
Cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO:
I a) Factualidade
Discutida a causa, apurou-se a seguinte factualidade com relevância para a decisão da mesma:

Factos Provados:

1. No dia 05 de Outubro de 2012, para pagamento do veículo de matrícula ---CI, que adquiriu a B, o arguido assinou e entregou àquele o cheque nº 0831751, sacado sobre a conta n.º-------- de que é titular no Banco Francês CIC Nord Ouest, no valor de 5.000 euros.

2. Apresentado a pagamento na Agência do Banco Santander Totta, em Lagoa, em 12 de Outubro de 2012, foi o referido cheque devolvido, em 28.11.2012, com a menção de falta de fundos.

3. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente.

4. O ofendido nunca recebeu os 5.000 euros titulados pelo cheque.

5. O Banco Santander cobrou a B. 233,92 euros em despesas com a devolução do cheque.

Factos Não Provados:
Nenhum outro facto com relevo para a decisão se apurou, designadamente que:

1. Foi no dia 18.10.2012 que o cheque foi apresentado a pagamento.

2. O arguido bem sabia que no momento de emissão e entrega do cheque, não dispunha de fundos suficientes na conta sobre a qual este havia sido sacado e de que era titular.

3. Não obstante ter consciência que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se coibiu de a prosseguir.

I b) Fundamentação da Convicção do Tribunal

Sendo certo que, salvo quando a lei disponha diferentemente, a prova, nos termos do art.º 127.º do CPP, deve ser apreciada segundo as regras da experiência e segundo a livre convicção do julgador, foram os seguintes os meios de prova nos quais o Tribunal fundou a sua convicção quanto à factualidade apurada:

1) Declarações do demandante B: o qual esclareceu sobre as circunstâncias da venda do veículo automóvel ao arguido, tendo recebido, em pagamento do preço acordado o cheque dos autos, no dia 05.10.2012. Mais esclareceu que, nessa data, o arguido insistiu para que aceitasse o cheque em apreço, pese embora fosse de um banco francês, assegurando-lhe que obteria boa cobrança do mesmo em 3 ou 4 dias. Face à palavra empenhada, o ofendido entregou o veículo e os respetivos documentos, recebendo o cheque em causa, que disse ter depositado na 2.ª feira seguinte (sendo o dia da venda feriado nacional), onde foi informado que levaria um período de 3 ou 4 semanas para receber a quantia na sua conta. Sucede que o referido cheque veio devolvido, com menção de falta de fundos. Por tal motivo, o ofendido tentou contactar de imediato o arguido, o qual nunca mais lhe atendeu o telefone. Confirmou ainda que o Banco lhe cobrou a quantia documentada a título de despesas bancárias causadas pela operação bancária dos autos e que nunca o arguido lhe pagou a quantia titulada pelo cheque, correspondente ao preço do veículo. Depôs de modo coerente e objetivo, tendo merecido credibilidade para o apuramento dos factos.

2) Depoimento da testemunha PC: nora do ofendido, a qual esclareceu sobre o negócio da venda da viatura em causa, tendo sido com a própria com quem o arguido primeiro contactou, a qual lhe deu, sem seguida, os contactos do seu sogro. Depois de terem ambos combinado a data para o arguido vir ver a viatura, o mesmo deslocou-se à residência do demandante no feriado dos autos, tendo-o o visto experimentar o veículo. Mais confirmou que o seu sogro recebeu do arguido o cheque dos autos, após lhe ter sido afiançado por este que receberia a quantia em causa dentro de poucos dias. Porém, nada recebeu até à presente data, tendo ainda sido creditadas da conta do seu sogro os valores dos autos. Mais confirmou que o seu sogro tentou contactar com o arguido mas o mesmo nunca atendeu as suas chamadas. Depôs de modo coerente e sem suscitar dúvidas a respeito da sua isenção, tendo merecido credibilidade para o apuramento dos factos.

3) Prova documental: fotografias de fls. 10; informação do Banco Santander de fls. 11; avisos de débito de fls. 12 e 13 (originais a fls. 158 e 159); pesquisa de registo automóvel de fls. 17; cheque de fls. 41; requerimento de registo automóvel de fls. 42 (frente e verso); CRC do arguido.

Os factos dados como provados resultam da conjugação de todos os meios de prova produzidos nos autos, avaliados à luz das regras da experiência comum, que os confirmam.

Os factos dados como não provados resultam da insuficiência da prova produzida em audiência. Com efeito, por um lado, pese embora o ofendido tivesse referido que apresentou o cheque a pagamento, no seu banco, na 2.ª feira seguinte (que corresponderia ao dia 08.10.2012), tal afirmação não surge corroborada por qualquer declaração legível aposta no verso do cheque. Sendo a data mais antiga a de 12.10.2012, foi esta a que se tomou em consideração para efeitos de data da apresentação a pagamento. Por outro lado, não se retira, dos vários carimbos apostos no verso do cheque, que tivesse sido ou o banco sacado ou a câmara de compensação a declarar a recusa de pagamento do cheque e os motivos da mesma; quem o fez foi o Banco Santander, sendo certo que a data que apôs no cheque como tendo sido a data da devolução por falta de fundos foi em 28.11.2012, muito para além do prazo de 20 dias constante na LUC. Acresce que a referida declaração não permite, com segurança, concluir se o cheque foi devolvido ao Santander no dia 28.11.2012, tendo sido nessa mesma data que foi constatada (pelo banco sacado ou pela compensação) a falta de fundos, ou se tal constatação foi anterior (mas em que data?) correspondendo aquela data à data da devolução, do exterior, do cheque ao Santander.

A respeito da existência de fundos na conta do arguido, e pese embora a conduta algo suspeita evidenciada pelo mesmo aquando da celebração do negócio e da emissão e entrega do cheque (segundo as testemunhas inquiridas, o arguido convenceu o assistente a receber o cheque de um banco francês com o argumento de que seria pagável em 3 ou 4 dias, assumindo, implicitamente, que tinha provisão, e depois furtou-se a qualquer contacto), não é legítimo dali concluir, com o necessário grau de certeza e para além de qualquer dúvida razoável, que o mesmo não tinha, nessa data, provisão suficiente na sua conta bancária (já que inexiste prova nos autos e a este respeito). A conduta em si é suspeita mas não deixa de ser apenas e só isso mesmo, mesmo porque não é de excluir, face ao período de tempo que medeou até à devolução do cheque ao Santander, em 28.11.2012, que a falta de fundos fosse posterior ao termo do prazo para a apresentação a pagamento (ainda que anterior a esta última data). A prova coligida nos autos e produzida em audiência, é, portanto, insuficiente para dar como demonstrado que, no dia em que o arguido abriu mão do cheque o mesmo não tinha a conta devidamente aprovisionada, ou, muito menos, que disso soubesse ou disso suspeitasse, tendo-se conformado com tal possibilidade.

Por tal razão se deram tais factos como não provados.

ENQUADRAMENTO JURÍDICO:
O arguido veio acusado pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art.º 11.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 454/91, de 28-12, na redação introduzida pelo DL n.º 316/97, de 19-11, pelo DL 323/2001, de 17-12, pelo DL 83/2003, de 24-04 e pela Lei n.º 48/2005, de 29-08.

Ora, prevê o referido normativo que:

«Quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro:
a) Emitir e entregar a outrem cheque para pagamento de quantia superior a Eur. 150 que não seja integralmente pago por falta de provisão ou irregularidade do saque,
(…)

se o cheque for apresentado a pagamento nos termos e prazos estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa ao Cheque, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa ou, se o cheque for de valor elevado, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
(…)» (com sublinhado meu).

Prevê a referida Lei Uniforme do Cheque o seguinte:
«Art.º 28.º (Pagamento à vista)
O cheque é pagável à vista. Considera-se como não escrita qualquer menção em contrário (…)».

«Art.º 29.º (Prazo para apresentação a pagamento)

O cheque pagável no país onde foi passado deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias. O cheque passado num país diferente daquele em que é pagável deve ser apresentado respetivamente num prazo de vinte dias ou de setenta dias, conforme o lugar de emissão e o lugar de pagamento se encontram situados na mesma ou em diferentes partes do mundo (…)».

Ainda nos termos do disposto no art.º 40.º da LUC, o portador pode exercer os seus direitos de ação contra, entre outros, o sacador e outros coobrigados, se o cheque, apresentado em tempo útil, não for pago e se a recusa de pagamento for verificado:

1.º quer por um facto formal (protesto);
2.º quer por declaração do sacado, datada e escrita sobre o cheque, com a indicação do dia em que este foi apresentado;
3.º quer por uma declaração datada de uma câmara de compensação, constatando que o cheque foi apresentado em tempo útil e não foi pago.

Mais se prevê, no art.º 41.º da LUC que, quer o protesto, quer a declaração equivalente (declaração do sacado ou da câmara de compensação) deve ser feito antes de expirar o prazo para a apresentação, sendo que se o cheque for apresentado no último dia do prazo, o protesto ou a declaração equivalente pode ser feito no primeiro dia útil seguinte.

O cheque, enquanto título de crédito, supõe um depósito bancário, pois o cheque é sacado sobre um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador e em harmonia com uma convenção de cheque, segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque (cfr. art.º 3.º da LUC). O cheque representa, assim, uma ordem de pagamento dada pelo sacador ao sacado (instituição bancária), para que pague a outrem determinada quantia, por conta dos fundos disponíveis.

Destina-se assim o cheque a circular como se de moeda se tratasse. Daí que tenha que merecer a confiança do público este poder liberatório, enquanto meio de pagamento, e daí também que se tutele penalmente o modo de circulação do mesmo.

Comete o crime de emissão de cheque sem provisão o agente que pratique a conduta descrita na norma (concretizando o elemento objetivo do tipo penal) com a força anímica - a intenção - exigida pelo preceito (concretizando o respetivo elemento subjetivo).

São elementos objetivos deste tipo, tal como imputado ao arguido:
1 - A emissão e entrega de cheque de quantia superior a Eur. 150 (sendo que a entrega do cheque corresponderá ao momento em que o sacador o coloca em circulação, desapossando-se dele de forma voluntária, o qual deixa, assim, de ter na sua disponibilidade direta e pessoal).

Como bem explica Eduardo Lucas Coelho, in “Problemas Penais dos Cheques Sem Cobertura”, Livraria Petrony, 1979, pág.29, “Pode afirmar-se que a emissão de um cheque consiste no seu preenchimento por parte do titular da provisão e posterior entrega ao tomador. Será nesse momento, quando o sacador (entendido como o titular da provisão) preenche o cheque e abre mão dele, transferindo-o para a posse do beneficiário, que, segundo a melhor doutrina, surge o complexo de direitos e obrigações nele incorporados”.

2 - A falta de provisão, que fundamenta a recusa do pagamento do cheque pela instituição bancária na qual pré-existe uma conta de depósito sobre a qual o mesmo foi sacado. Ora, a provisão equivale à existência de fundos colocados à disposição do sacador por parte de um banqueiro, tendo por base a existência de um contrato de depósito entre estes.

3 - A verificação de prejuízo patrimonial, que corresponde à diminuição patrimonial sofrida pelo portador do cheque que, dispondo de um meio de pagamento, não vê satisfeito o seu crédito pela instituição de crédito.

São elementos subjetivos do tipo:
1 - O conhecimento, pelo emitente, da falta de provisão.

2 - A vontade por parte do emitente de praticar o facto sabendo que o mesmo é ilícito.

Isto é, para que se verifique um crime necessário é que o agente pratique os factos descritos no preceito incriminador com dolo, cfr. art.ºs 13.º e 14.º do CP.

Ao tipo criminal em apreço acresce ainda a previsão da seguinte condição objetiva de punibilidade: deverá o cheque ser apresentado a pagamento, no caso, dentro dos vinte dias subsequentes à data nele aposta como sendo a da sua emissão (já que o cheque foi passado em Portugal e era pagável em França) e, bem assim, deverá a recusa de pagamento do cheque por parte do banco sacado, devida à falta de provisão, ser documentada no respetivo título por uma das formas referidas no art.º 40.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, dentro do mencionado período (tal como explica Tolda Pinto, in «Cheques Sem Provisão - Regime Jurídico Anotado», Coimbra Editora, 1998, pág. 158).

Ora, no caso dos autos, provou-se que o arguido, no dia 05.10.2012, preencheu e assinou o cheque dos autos (pelo valor de 5.000 euros, que é, portanto, de valor superior a 150 euros, pese embora não alcance ainda o patamar do valor elevado, para afeitos de agravamento da moldura penal aplicável) e entregou o mesmo, nessa data, ao demandante, para pagamento do preço da viatura automóvel que adquiriu, tendo sido o referido cheque apresentado a pagamento em instituição bancária no dia 12.10.2012 (ou seja, dentro do prazo legal para o efeito, que era de 20 dias já que foi passado em País diferente do País onde o mesmo era pagável).

Foi à compensação em 16.10.2012, cfr. carimbo da Societé Generale.

Sucede que o referido cheque veio a ser devolvido ao Santander, vindo do exterior, em 28.11.2012, por motivo de falta de fundos, conforme declaração exarada no verso do cheque pelo Banco Santander.

O cheque não obteve, assim, boa cobrança, em face da falta de fundos, sendo certo que, pelo menos, em 28.11.2012, a conta bancária do arguido não tinha provisão (todavia, o que importava saber era que provisão tinha a referida conta no dia 05.10.2012 e nos 20 dias subsequentes, e isso os autos não documentam).

Mais se provou que ao ofendido foi causado um prejuízo patrimonial, no valor titulado pelo cheque, já que não recebeu o valor pelo qual vendeu a sua viatura ao arguido, viatura essa que transmitiu na data da entrega do cheque (ficou, assim, sem o veículo e sem o dinheiro correspondente ao valor da venda).

Porém, não se logrou comprovar se a conta bancária do arguido estava ou não suficientemente aprovisionada quando o arguido abriu mão do cheque (sendo que, para o preenchimento do elemento objetivo do crime, importava, desde logo, que se tivesse apurado, para lá de qualquer dúvida, que a conta bancária do arguido não tinha fundos suficientes quando emitiu e entregou o cheque).

Ademais, do referido cheque não resulta que tenha sido regularmente verificada a recusa de pagamento, não estando ali, com efeito, cumpridas as formalidades, quanto a este requisito, estabelecidas na Lei Uniforme Relativa ao Cheque, já acima referidas.

Na verdade, a recusa de pagamento do cheque não observa as prescrições ali indicadas, já que não foi verificada por qualquer declaração do sacado (o banco sacado não apôs qualquer declaração no verso do cheque, nomeadamente, atestando o dia em que foi apresentado); quem apôs a declaração dos motivos da devolução foi o Banco Santander (que não é o banco sacado), e com uma data de devolução que ultrapassa o prazo de 20 dias sobre a data da emissão do cheque; e a única declaração da compensação data de 16.10.2012, mas não atesta qualquer declaração de recusa de pagamento.

Como assim, não estão verificados todos os elementos constitutivos deste tipo penal, incluindo a condição objetiva de punibilidade (já que não se mostram integralmente observados os termos e prazos estabelecidos na LUC), razão pela qual importa absolver o arguido da sua prática, como se decide fazer.

DO PEDIDO CÍVEL:
O demandante B. peticionou nesta sede a condenação do arguido no pagamento do montante aposto no cheque (5.000 euros), o qual corresponde ao valor do veículo ao mesmo vendido, e da quantia de 233,92 euros, a título de despesas de cobrança, tudo acrescido de juros de mora legais, calculados desde 05.10.2012 até efetivo e integral pagamento.

Nos termos preceituados pelo art.º 562.º do C. Civil, quem esteja obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. E dispõe o art.º 483.º do mesmo diploma legal que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

Ora, em face dos factos dados como provados verifica-se que o arguido, no dia 05.10.2012, comprou ao ofendido uma viatura automóvel, que logo levou consigo, pelo valor de 5.000 euros, o que pagou através de cheque.

Sucede que o cheque veio a ser devolvido, por falta de fundos, em 28.11.2012, numa data em que decorrera já o prazo legal para apresentação do referido cheque a pagamento, que era o prazo aplicável para a verificação da recusa de pagamento, não se tendo demonstrado que, à data em que o arguido comprou a viatura o mesmo tinha ou não fundos suficientes na sua conta, nem, muito menos, se disso sabia ou disso suspeitou, pudesse embora ter-se conformado com essa possibilidade. Não se tendo provado a ilicitude da conduta do arguido, não poderá ser ao mesmo assacada a responsabilidade pelos danos sofridos pelo demandante.

Não ficaram, assim, demonstrados todos os pressupostos em que assenta a responsabilidade civil por facto ilícito, não sendo esta a sede para o demandante obter o ressarcimento da sua dívida por incumprimento contratual. Como assim, improcede o peticionado, na totalidade”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

Antes do mais, cumpre repetir, resumindo, o que acima ficou dito (aquando da “delimitação do objeto do recurso”):

- Estamos perante uma decisão absolutória;
- O Ministério Público conformou-se com tal decisão;

- O recorrente não se constituiu assistente nos autos (assumindo apenas a veste de demandante civil);

- O recorrente não pode impugnar a factualidade relativa à absolvição do pedido de indemnização civil, na parte em que essa factualidade é comum à absolvição criminal, e na medida em que, procedendo a impugnação, o arguido teria de ser condenado (criminal e civilmente - nesta última vertente, a título de responsabilidade extracontratual -).

Assim sendo, por um lado, tem-se como definitivamente fixada toda a factualidade dada como provada (e não provada) em primeira instância, e, por outro lado, a questão a apreciar fica limitada ao seguinte segmento da decisão revidenda (e na parte que vai sublinhada): “não ficaram, assim, demonstrados todos os pressupostos em que assenta a responsabilidade civil por facto ilícito, não sendo esta a sede para o demandante obter o ressarcimento da sua dívida por incumprimento contratual. Como assim, improcede o peticionado, na totalidade”.

No domínio do direito anterior ao Código Penal de 1982, a reparação por perdas e danos arbitrada em processo penal tinha natureza especificamente penal.

Na verdade, na medida em que era afastado o princípio da necessidade do pedido e se considerava a indemnização como um efeito necessário da condenação penal (cfr. o disposto nos artigos 34º e 450º, nº 5, do C. P. Penal de 1929), na medida em que se definiam critérios próprios da sua avaliação, distintos dos estabelecidos pela lei civil (§ 2º do referido artigo 34º), e na medida em que não se previa a possibilidade de transação ou de renúncia ao direito (bem como a possibilidade de desistência do pedido), aquela reparação constituía, em rigor, um “efeito penal da condenação - como aliás claramente o inculca o artigo 75º, 3, do CP - hoc sensu uma parte da pena pública, que não se identifica, nos seus fins e nos seus fundamentos, com a indemnização civil, nem com ela tem de coincidir no seu montante” (Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1981, Vol. I, pág. 549).

Contra essa descaracterização, quer da ação civil enxertada no processo penal, quer da própria natureza e finalidades da indemnização aí arbitrada, que não contra o sistema da adesão em si mesmo, veio a grande reforma do direito penal de 1982.

Assim, passando a ser determinada de acordo com os pressupostos e os critérios substantivos da lei civil, por força da norma constante do artigo 128º do Código Penal de 1982 (que revogou, tacitamente, o § 2º do artigo 34º do C. P. Penal de 1929) - reproduzida no artigo 129º do Código Penal de 1995 -, a reparação assume-se, agora, como pura indemnização civil, que, sem embargo de se lhe reconhecer uma certa função adjuvante, não se confunde com a pena.

E, no plano do direito adjetivo, o Código de Processo Penal, mantendo o sistema da adesão (embora alargando, no artigo 72º, o número de casos em que, concedendo ao princípio da alternatividade ou opção, é permitido intentar a ação cível em separado, e levando essa maior maleabilidade ao ponto de autorizar o tribunal, não só a condenar no que se liquidar em execução da sentença, sempre que não disponha de elementos bastantes para fixar a indemnização - artigo 82º, nº 1 -, mas também a remeter para os tribunais civis, nos casos previstos no nº 2 - hoje, nº 3 - deste mesmo dispositivo legal), veio conferir àquela ação de indemnização, pela prática de um crime, formalmente enxertada no processo penal, a estrutura material de uma autêntica ação civil, acolhendo, inequivocamente, os princípios da disponibilidade - cfr. artigo 81º - e da necessidade do pedido - cfr., por exemplo, o disposto nos artigos 71º, 74º a 77º e 377º (a Lei nº 59/98, de 25/08, além do mais, aditou, relativamente ao texto originário do C. P. Penal de 1987, o artigo 82º-A, que consagra, para uma situação de exceção - “quando particulares exigências da proteção da vítima o imponham”-, uma solução de exceção - em caso de condenação, atribuição, ex officio, de reparação à vítima -), que pressupõe, obviamente, a regra ou princípio de que, em processo penal, o juiz só pode arbitrar indemnização ao lesado quando este tiver deduzido o respetivo pedido, nos termos do preceituado no artigo 77º do C. P. Penal, e prescrevendo que a decisão penal, ainda que absolutória, que conheça do pedido cível, constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis (cfr. artigo 84º do mesmo diploma legal).

Porém, dizer que, em processo penal, a indemnização se determina de acordo com os pressupostos e os critérios da lei civil, não significa que a própria admissibilidade do pedido se afira, ali, em função, apenas, do direito civil substantivo da responsabilidade civil, sem qualquer tipo de limitação.

Com efeito, como decorre, claramente, do disposto nos artigos 71º e 74º, nº 1, do C. P. Penal, e 129º do Código Penal (na redação atual), a ação cível que adere ao processo penal é a que tem por objeto a indemnização de perdas e danos causados por um crime, e só essa.

Ou seja, se o pedido formulado não corresponde a indemnização por danos ocasionados pelo crime, se não se funda na responsabilidade civil do agente, pelos danos que, com a prática do crime, causou, então, o pedido é, legalmente, inadmissível no processo penal.

Consequentemente, pelos danos causados por um facto que não é suscetível de integrar um tipo legal de crime e que viola, exclusivamente, um crédito ou uma obrigação em sentido técnico, não pode pedir-se a respetiva indemnização no processo penal.

A esta luz, não é difícil determinar o sentido e o alcance do disposto no artigo 377º do C. P. Penal, onde se estabelece, sob a epígrafe “decisão sobre o pedido de indemnização civil”:

1 - A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no nº 3 do artigo 82º.

2 - Se o responsável civil tiver intervindo no processo penal, a condenação em indemnização civil é proferida contra ele ou contra ele e o arguido solidariamente, sempre que a sua responsabilidade vier a ser reconhecida.

3 - Havendo condenação no que respeita ao pedido de indemnização civil, é o demandado condenado a pagar as custas suportadas pelo demandante nesta qualidade e, caso cumule, na qualidade de assistente.

4 - Havendo absolvição no que respeita ao pedido de indemnização civil, é o demandante condenado em custas nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais”.

Daqui decorre facilmente, a nosso ver, que, se se tiver provado que o arguido, absolvido do crime que lhe era imputado, praticou o facto objetivo previsto no tipo legal, causando, por essa forma, danos a outrem, haverá lugar à condenação em indemnização (desde que, obviamente, se verifiquem os restantes pressupostos de responsabilidade civil), a proferir nos termos do nº 2 do transcrito preceito legal.

Dito de outro modo: no caso previsto no artigo 377º, nº 1, do C. P. Penal, a indemnização só pode fundar-se em responsabilidade civil extracontratual ou em responsabilidade pelo risco.

Aliás, nesta matéria, o Supremo Tribunal de Justiça, através do “Acórdão de Uniformização de Jurisprudência” nº 7/99, de 17-06-1999 (publicado no D.R., 1ª Série A, de 03-08-1999), fixou a seguinte jurisprudência:

Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º, nº 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual”.

Em jeito de síntese: o pedido de indemnização civil “fundado na prática de um crime” pode ser “deduzido no processo penal respetivo” (artigo 71º do C. P. Penal), mas a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil “sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado” (artigo 377º, nº 1, do mesmo C. P. Penal).

Assim sendo, se o pedido tem de se fundar na prática de um crime, mas a absolvição (do crime) não obsta à condenação do arguido no pedido - se “fundado” - de indemnização, o fundamento da condenação não será, obviamente, a prática de um crime, mas, segundo o transcrito Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 7/99, a “responsabilidade extracontratual ou aquiliana”, ainda que (eventualmente) não criminosa, mas nunca, nos termos do mesmo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, a responsabilidade meramente contratual (diz-se em tal Acórdão, em relação ao qual não temos qualquer razão válida para divergir: “com exclusão da responsabilidade civil contratual”).

Feito este excurso, e retomando o caso destes autos:

- A absolvição do arguido decorre da conclusão (baseada nos factos apurados - factos imodificáveis no âmbito do recurso em apreciação, conforme acima assinalado -) da inexistência de crime, bem como da conclusão da inexistência de responsabilidade civil extracontratual.

- Dos factos dados como provados na sentença revidenda resulta, isso sim, a demonstração da existência de responsabilidade contratual do arguido (que comprou ao demandante um veículo automóvel, e que, até hoje, não pagou o respetivo preço - os 5.000 euros titulados pelo cheque em discussão nestes autos -).

Ora, face ao exposto, e por virtude da posição jurídica trilhada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência acima citado (posição jurídica da qual não vemos motivos para divergir), o tribunal a quo não podia conhecer, como não conheceu, do pedido de indemnização civil em causa, dele absolvendo o arguido.

Nestes termos, nada há a apontar à sentença revidenda, quando, nela, se decidiu absolver o arguido do pedido de indemnização civil apresentado no âmbito do presente processo, na medida em que a indemnização civil devida ao demandante se baseia na existência de responsabilidade contratual (como bem se escreve na sentença em análise, o presente processo-crime não é “a sede para o demandante obter o ressarcimento da sua dívida por incumprimento contratual”).

Posto o que precede, o recurso interposto pelo demandante é totalmente de improceder.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso do demandante, mantendo-se, consequentemente, a sentença absolutória recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 05 de julho de 2016

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(João Manuel Monteiro Amaro)

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(Maria Filomena de Paula Soares)