Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
159/19.3T9FAR-L.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: REEXAME DOS PRESSUPOSTOS DA PRISÃO PREVENTIVA
Data do Acordão: 10/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: No artigo 213.º CPP preconiza-se um direito de audição do arguido sobre a manutenção ou alteração dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, o qual não implica (ou não implica necessariamente) o direito de audiência – isto é do direito de este se pronunciar na presença do juiz.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório

a. Nos autos de inquérito, com o n.º 159/19.3T9FAR, da Procuradoria da República da comarca de Faro, no dia 17 de setembro de 2020, findo o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, por se indiciar fortemente a prática de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, previsto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, o Mmo Juiz de Instrução, do 2.º Juízo de Instrução Criminal de Faro, determinou que o arguido FMGF aguardasse em prisão preventiva os ulteriores termos do processo, ao abrigo do disposto nos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 194.º, § 1.º e 2.º, 196.º, 202.º, § 1.º, al. a), e 204.º, al. c), todos do Código de Processo Penal (CPP).

Para tanto considerou-se haver perigo de continuação da atividade criminosa que importava acautelar, mais se considerando ser aquela medida de coação adequada e proporcional à gravidade dos factos indiciados e a única capaz de suficientemente acautelar o referido perigo.

No dia 22 de julho de 2021, em mais um reexame dos pressupostos da prisão preventiva, considerando-se não terem sobrevindo elementos novos suscetíveis de implicarem uma qualquer alteração daqueles pressupostos em que assentou o seu decretamento, mantendo-se a necessidade de acautelar o perigo em que o mesmo assentou e não estar excedido o prazo máximo previsto na lei, manteve-se a medida anteriormente aplicada.

b. Inconformado com o assim decidido, o arguido FF interpôs o presente recurso, extraindo-se do que se indica como «conclusões», o seguinte:

- É indiciada a prática pelo arguido de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 21°, n.º 1, do Decreto-lei 15/93, de 22 de janeiro.

- Em síntese: em data que não se consegue identificar; em hora que não se conhece; grosso modo, a pessoas que não se sabe quem são; com número de venda indeterminado; o arguido vendeu... 0 que temos: suposições, sugestões… conjeturas… teorias… suspeições... desconfiança... cisma ... dedução.

- 0 que temos verdadeiramente: detenção de produto estupefaciente.

- É manifesto que não estamos perante o tipo previsto no artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93 de 22 de janeiro. Estamos, sem dúvida, perante o tipo legal previsto no artigo 25° do diploma legal supra identificado.

- O ora recorrente solicitou interrogatório completar. O pedido foi indeferido. (…)

- A não audição do arguido configura uma interpretação inconstitucional da al. b), do n.º 1 do artigo 61.º CPP, com referência ao artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa. (…)

- Entende o aqui recorrente que se verifica a inexistência de pressupostos de facto ou fundamentos e motivos jurídicos válidos que determinem a aplicação e agora a manutenção ao arguido da mais grave medida de coação em direito permitida. (…)

- Nos presentes autos não se verifica o circunstancialismo que, de acordo com o douto despacho, objeto do presente recurso, fundamentou a aplicação e agora a manutenção da mais grave medida de coação, não obstante a liberdade ser o regime regra.

- Com a não aplicação ao aqui recorrente do regime regra, viola-se, notoriamente, o disposto no n.º, 2 do artigo 28.º da Constituição da República Portuguesa. (…)

- Ao arrepio do entendimento do aqui recorrente, decidiu o Mmo Senhor Juiz de Instrução Criminal que era de aplicar e agora manter a prisão preventiva. Ora, o arguido, assim não entende. E não entende porque não consegue responder às seguintes questões: Que atividade criminosa? Quando começou essa "atividade criminosa"? Em que moldes se desenvolve ou desenvolveu tal atividade? Que perigo de fuga? (…)

- Admitimos (a título meramente académico), porém, a entender-se verificado o perigo invocado: nesta circunstância e, tendo em atenção o supra exposto, entende o aqui Recorrente que, deve ser substituída a medida de coação agora mantida, respeitando-se o disposto no artigo 28° da CRP, obedecendo-se ao espírito do legislador numa das últimas alterações ao CPP. (…)

- Assim sendo, a prisão preventiva imposta deve ser revogada, aplicando-se em sua substituição, porque adequada e proporcional as seguintes medidas de coação: obrigações decorrentes do TIR já prestado; apresentação semanal no posto de polícia mais próximo da área de residência do arguido.

c. O recurso foi admitido.

Na sua resposta ao recurso o Ministério Público junto do Tribunal recorrido sustentou a justeza da decisão recorrida, sintetizando a sua argumentação:

1. O Ministério Público não concorda com a posição do ora recorrente, concordando na íntegra com a decisão recorrida.

2. Não se verifica nem a invocada violação do direito de audição do arguido, nem a nulidade por falta de fundamentação da dispensa de audição do arguido.

3. Não existia qualquer factualidade superveniente que impusesse um juízo diverso daquele que determinou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao ora recorrente continuando, a subsistir o perigo de continuação da actividade criminosa e o perigo de fuga nos termos expendidos na decisão proferida em sede de primeiro interrogatório judicial no pretérito 17 de Setembro de 2020.

4. Tendo em consideração a acusação proferida, esta é a única medida de coacção que permite assegurar as exigências cautelares do processo face às razões já aduzidas, sendo a mesma proporcional face à gravidade, número de crimes e molduras legais aplicáveis.

5. Face ao exposto, o Ministério Público entende que a decisão recorrida não merece qualquer reparo, quer quanto ao nível da prova carreada, e que sustentou a resolução tomada, quer quanto ao seu acerto com o direito.

6. Nestes termos, deverá negar-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

d. O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação emitiu douto parecer, sustentando não terem sido violadas as garantias de defesa do arguido, nem o direito ao contraditório. A decisão recorrida foi tomada após audição do arguido, não impondo a Constituição nem a Lei que tal audição seja presencial, pelo que o recurso não merece provimento.

e. Observado o disposto no § 2.º do artigo 417.º do Código de Processo Penal, o arguido veio informar que mantém a argumentação contida nas alegações de recurso.

f. Foi efetuado o exame preliminar, determinando-se que o recurso fosse julgado em conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995 , o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

As questões a decidir reconduzem-se:

- à aferição da legalidade da decisão que recusou a audição presencial do arguido;

- e à manutenção dos pressupostos da medida de coação a que aquele se encontra sujeito.

2. O despacho recorrido, proferido a 22/7/2021, tem o seguinte teor:

«Veio o arguido FF requerer a sua audição previamente à revisão obrigatória da medida de coação.

Notificado para se pronunciar sobre quais os concretos elementos que pretende demonstrar com a sua audição, o mesmo apresentou resposta – vd. fls. 11771.

O Digno Magistrado do Ministério Público pugnou pelo indeferimento do requerido.

Apreciando.

Prescreve o art.º 213.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal que:

“1 - O juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, decidindo se elas são de manter ou devem ser substituídas ou revogadas:

a) No prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame”.

O n.º 2 dispõe que:

“Na decisão a que se refere o número anterior, ou sempre que necessário, o juiz verifica os fundamentos da elevação dos prazos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 2, 3 e 5 do artigo 215.º e no n.º 3 do artigo 218.º”.

Por sua vez, o n.º 3 preconiza que

“Sempre que necessário, o juiz ouve o Ministério Público e o arguido”.

A respeito da audição do arguido, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 96/99, de 10 de fevereiro, publicado no DR, II Série, de 31 de março do mesmo ano, determina que “Não é inconstitucional a norma do n.º 3 do art.º 213.º do CPP na medida em que prescinde da audiência do arguido quando não há alteração do condicionalismo fáctico que determinou a imposição da medida de coação ao arguido que, na reapreciação, se mantém”. No mesmo sentido, vd. Acórdão da Relação do Porto de 15/03/2000, in CJ, pág. 235, de 13/06/2001, proc. n.º 110675, in www.dgsi.pt.

Deste modo, não se verifica qualquer inconstitucionalidade decorrente da não audição presencial do arguido, sendo que o princípio do contraditório que decorre do artigo 61.º, n.º 1, al. b), não exige a sua audição pessoal e oral, mas antes a possibilidade de se pronunciar por escrito ou através do defensor.

Faz-se notar que a elaboração de relatório social poderá servir para apreciar a alegada nova factualidade em relação às condições pessoais do arguido.

São termos em que, por ora, se indefere a audição presencial do arguido FF.

Oficie à DGRSP para elaborar o competente relatório social uma vez que o arguido, através da sua defensora veio consentir na sua realização, nos termos do artigo 213.º, n.º 4 do Código de Processo Penal.

Notifique.

*

No que tange à perícia à personalidade também requerida pelo arguido FF, por ora e uma vez que nada é alegado que o justifique, não se vislumbra a necessidade de determinar a sua realização, pelo que se indefere.

***

Impõe-se apreciar os pressupostos das medidas de coação de prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação, atenta a dedução do despacho de acusação, nos termos do artigo 213.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal.

Compulsados os autos, não existe qualquer factualidade superveniente que imponha um juízo diverso daquele que de determinou a aplicação da medida de coação de prisão preventiva aos arguidos SJH, WQ, SR, AATS e FMGF, e de obrigação de permanência na habitação aplicada aos arguidos DMF e FDMC, continuando, a subsistir o perigo de continuação da atividade criminosa e o perigo de fuga nos termos expendidos na decisão proferida em sede de primeiro interrogatório judicial no pretérito 17 de Setembro de 2020 e na decisão que alterou para a medida de obrigação de permanência na habitação por despacho de 28 de maio de 2021 e nas decisões posteriores de manutenção.

Não se vislumbra em face dos elementos carreados para os autos, neste momento, qualquer atenuação das exigências cautelares.

Donde, e tendo em consideração a acusação proferida, esta é a única medida de coação que permite assegurar as exigências cautelares do processo face às razões já aduzidas, sendo a mesma proporcional face à gravidade, número de crimes e molduras legais aplicáveis.

Não se mostra ultrapassado o prazo máximo de duração da prisão preventiva (artigo 215.º, n.º 1, al. a), n.º 2 e n.º 3 e artigo 218.º, n.º 2 ambos do Código de Processo Penal).

Assim, nos termos dos artigos 191.º, n.º 1, 193.º, n.º 1, 201.º, 202.º, n.º 1, al. a), 204.º, als. a) e c), 213.º, n.º 1, al. b) e 215.º do Código de Processo Penal, decido que os arguidos SJH, WQ, SR, AATS e FMGF continuem a aguardar os ulteriores termos do processo sujeitos à medida de coação de prisão preventiva e os arguidos DMF e FC à medida de coação de obrigação de permanência na habitação.

Notifique.»

3. Da legalidade da recusa de audição presencial do arguido

Notificado para se pronunciar, nos termos previstos no artigo 213.º, § 3.º CPP o arguido/recorrente requereu ao M.mo Juiz de Instrução Criminal (JI) a sua audição presencial previamente à decisão de revisão obrigatória da medida de coação.

Em sequência de tal requerimento veio o mesmo a ser notificado para indicar o que gizava com essa audição presencial, respondendo o mesmo nos termos vagos constantes de fls. 11771.

Na avaliação dessa resposta, dado o contexto em que a mesma se insere, o JI considerou que naquele momento não se justificava a requerida audição presencial pelo que indeferiu o requerido.

Vem o arguido/recorrente questionar a legalidade desta decisão, sustentando que a sua não audição naquelas circunstâncias configura uma interpretação inconstitucional do artigo 61.º, § 1.º, al. b) CPP, com referência ao artigo 32.º da Constituição.

Preceitua aquele normativo do CPP que «o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo, e salvas as exceções da lei, dos direitos de: a) estar presente aos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito; b) ser ouvido pelo tribunal, ou pelo juiz de instrução, sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete (...)»

O normativo em causa tem por referência o núcleo essencial dos direitos constitucionais e humanos do arguido, na dimensão da participação na sua defesa, como é apanágio do processo equitativo (artigos 20.º, § 4.º e 32.º, § 1.º e 5.º da Constituição e 6.º da CEDH).

Integram esse núcleo de direitos, expressamente, o de audiência (artigo 61.º, § 1.º, al. a) CPP) e o de audição (artigo 61.º, § 1.º, al. b) CPP), respetivamente o direito a estar presente em certos atos processuais; e o direito a ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz sempre que estes devam tomar decisão que pessoalmente o afete.

Nas circunstâncias do caso sub judice o que estava em causa era a reapreciação da situação coativa do arguido, que se encontra preso preventivamente desde 17/9/2020, exigindo a lei que no prazo máximo de três meses a contar da aplicação daquela medida de coação ou do último reexame, o juiz reaprecie se aquela medida de coação deve manter-se ou ser substituída por outra ou ser revogada (artigo 213.º, § 1.º, al. a) CPP).

Preceitua a lei no artigo 213.º CPP que quando o JI prepara esse reexame, sobre a manutenção ou alteração dos pressupostos da medida de coação a que o arguido vem estado sujeito, este goza do direito de ser previamente ouvido. Mas este direito de audição não implica (ou não implica necessariamente) o direito de audiência – isto é do direito de o arguido se pronunciar na presença do juiz.

Aliás, sempre que, pela sua natureza, a lei consagra o direito de audiência, isto é, quando preconiza a presença física do arguido para assegurar o exercício do contraditório, refere-o expressamente.

É o que sucede na fase da aplicação da medida de coação, como preceitua o artigo 194.º, § 4.º CPP (veja-se a expressa remissão para o § 4.º do artigo 141.º CPP); na fase audiência de julgamento (artigo 332.º, § 1.º CPP); ou quando há necessidade de ouvir o condenado na sequência de incumprimento das condições de suspensão da execução da pena de prisão (495.º CPP) .

O artigo 213.º CPP não exige a audição presencial do arguido. E por uma boa razão: por ser (por regra) desnecessária, pois não se trata já da decisão de aplicação (ou não aplicação) de medida de coação requerida pelo Ministério Público. Isso já ocorreu anteriormente (artigo 194.º, § 4.º CPP), com audição presencial do arguido.

Do que se trata neste momento é tão somente avaliar se ocorreu alteração dos pressupostos em que assentou a aplicação da medida de coação vigente (na circunstância de prisão preventiva), alterando-a ou revogando-a no caso de isso se verificar.

É justamente por isso que no artigo 213.º, § 3.º CPP a lei se refere à audição do Ministério Público e do arguido em igualdade de circunstâncias, pretendendo-se que ambos os sujeitos processuais sejam notificados para se pronunciarem sobre os parâmetros do reexame da medida de coação já em curso.

Idêntica situação ocorre a propósito da declaração de «excecional complexidade» do procedimento criminal (artigo 215.º, § 4.º in fine CPP), sendo desde logo patente a similitude da formulação literal das normas, não havendo - também neste caso – razão para que a audição deva ser presencial .

E também não pode dizer-se que a lei (ou a interpretação desta) exige menos do que exige a Constituição para estas situações, pois que o Tribunal Constitucional, chamado a pronunciar-se justamente sobre tal questão (cf. acórdão n.º 96/99, de 10 de fevereiro, publicado no DR, II Série, de 31 de março de 1999) considerou que a audição não presencial não constitui, nestes casos, nenhuma vulneração dos direitos fundamentais do arguido, nomeadamente na dimensão da participação ativa na sua defesa.

A Mma juíza apreciou o requerimento do arguido e não o considerou merecedor de deferimento, face ao que estava em causa.

O que releva é que ao arguido foi dada oportunidade de se pronunciar previamente sobre a manutenção dos pressupostos da prisão preventiva.

São estas as razões pelas quais se conclui falecer razão ao recorrente.

4. Legalidade da decisão de manutenção da medida de coação de prisão preventiva

Conforme bem sublinha o Ministério Público, o que o recorrente deveras faz é recorrer, ainda que de forma indireta (e ilegítima ), do despacho proferido a 17 de setembro de 2020! Porquanto os fundamentos que alega, na sua maior medida, não se referem ao despacho recorrido, mas à decisão que foi tomada na sequência do primeiro interrogatório judicial de arguido detido.

Ora, o despacho que procede ao reexame da medida de coação, encontra-se sujeito ao princípio rebus sic stantibus, isto é, em princípio a medida de coação aplicada dever-se-á manter, salvo nos casos especialmente previstos na lei. Um deles é justamente o consignado no artigo 212.º, § 1.º al. b) CPP. Ou seja, as medidas de coação são imediatamente revogadas ou substituídas sempre que circunstâncias de facto ou de direito supervenientes tenham efeito direto nos pressupostos que ditaram a aplicação precedente de medida de coação.

Ora, o recorrente não dispensa uma só palavra à temática da alteração de algum dos pressupostos da manutenção da prisão preventiva! Limitando-se a alinhavar generalidades sobre a decisão que aplicou aquela medida de coação! Aduzindo, por exemplo, que não se sabem as datas dos factos que lhe são imputados, nem quais são as pessoas envolvidas na atividade ilícita, nem quem foram os adquirentes dos produtos estupefacientes com que o arguido terá lidado!

Mas nem nisso mostra acerto, porquanto os autos mostram tudo o que debalde questiona. Está tudo no despacho judicial de 17/9/2020. Bastará ler com atenção os pontos 7.º, 8.º, 14.º, 25.º, 31.º, 54.º, 57.º e 58.º desse despacho judicial; ou a acusação entretanto deduzida, que (não decerto por acaso) lhe imputa o crime previsto no artigo 21.º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

É, pois, legítimo estruturar a decisão recorrida de modo sintético e até mesmo remissivo para aqueloutra, se as razões de uma e outra, num e noutro momento, se mantiverem. E é esse justamente o caso.

É certo que em linha com a tradição liberal democrática que também inspirou a Constituição da República Portuguesa, se erigiu a liberdade individual como direito fundamental (artigo 27.º, § 1.º), de harmonia com o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), estatuindo-se que tal direito apenas poderá ser restringido na medida do necessário, em face de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, § 2.º).

A par da liberdade a Constituição afirma igualmente o princípio da presunção de inocência dos arguidos (artigo 32.º, § 2.º e 27.º, § 1.º) , sem prejuízo de admitir (de prever) a existência das medidas de coação, as quais constituem, necessariamente, uma restrição à liberdade pessoal de quem a elas é sujeito, ainda que lhes assinale como finalidade satisfazer exigências cautelares exclusivamente processuais (i. e. garantia do bom andamento do processo e o efeito útil da decisão final).

Justamente porque incidem sobre pessoas presumivelmente inocentes, a sua aplicação tem de revestir-se das devidas cautelas, sendo essa a razão pela qual tais medidas estão sujeitas a estritas prescrições de legalidade (de tipicidade), de necessidade, de adequação e de proporcionalidade, que deverão orientar as decisões judiciais que lhes respeitem.

No que especialmente concerne à prisão preventiva, por ser a que mais fortemente restringe a liberdade das pessoas, só pode ser aplicada (e subsequentemente mantida) quando para acautelar as necessidades processuais as outras medidas legalmente previstas se revelarem inadequadas ou insuficientes.

Sendo que para a aplicação desta medida mais restritiva da liberdade (prisão preventiva) a lei prevê (artigo 202.º, § 1.º do CPP) que só possa aplicar-se quando houver fortes indícios da prática de crime nas condições ali definidas (cuja verificação se mostra incontestada); e se verifique algum (qualquer um) dos perigos previstos no artigo 204.º do CPP :

«a) Fuga ou perigo de fuga;

b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.»

Para fundamentar a decisão de sujeitar o recorrente à medida de coação de prisão preventiva o tribunal competente fez (no dia 20/9/2020) um juízo de forte indiciação da prática de crime punível com prisão de 4 a 12 anos (tráfico de substância estupefacientes – artigo 21.º, § 1.º DL n.º 15/93, de 22 de janeiro); e considerou haver perigo de continuação da atividade criminosa, pelas razões amplamente explanadas e constantes do despacho judicial daquela data.

E o que o despacho ora recorrido fez foi, justamente, o que a lei exige que se faça: confirmar a inexistência de qualquer alteração àquele juízo em matéria da forte indiciação criminosa, bem assim como a manutenção do perigo de continuação da atividade criminosa. O que se mostra integralmente (e bem) realizado.

Em suma: consideramos que a decisão recorrida respeitou os critérios definidos na Constituição e na lei, a que se referem nomeadamente os artigos 18.º, § 1.º, 20.º, § 4.º, 27.º, § 1.º, 28.º, § 2.º e 32.º, § 2.º da Constituição e 191.º, § 1.º, 193.º, § 1.º e 2.º, 202.º, § 1.º, alínea a) 204.º, al. c) e 213.º do CPP, na medida em que se mantêm inalterados os pressupostos, de facto e de direito, que determinaram a sujeição do arguido/recorrente a prisão preventiva, designadamente por se manter o forte juízo indiciário relativamente à prática por aquele de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes (artigo 21.º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro), e efetivo perigo de continuação da atividade criminosa.

Termos em que o recurso não merece provimento.

III - DECISÃO

Em face do exposto decidimos:

a) negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida;

b) as custas ficam a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.

Évora, 12 de outubro de 2021

J. F. Moreira das Neves (relator)

José Proença da Costa

Assinado eletronicamente

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ)

2 Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1.ª Série A.

3 Espécie do mesmo género, ainda que com as suas especificidades, pode ver-se quanto ao direito de presença do arguido em atos processuais, o direito de participação, de assistência e de contraditório de que goza na fase de instrução, relativamente a atos instrutórios por ele requeridos ou determinados pelo JI, direitos esses que pressupõem o direito de presença (artigo 289.º CPP) – cf. sobre estas especificidades Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, 2021, Almedina, pp. 1216/1218, em anotação ao artigo 289.º CPP.

4 Neste sentido cf. acórdão do TRLisboa, de 19/10/2017, proc. 3110/13.0JFLSB-B.L1-9, Des. Abrunhosa de Carvalho. Esclarecedora sendo também a anotação doutrinal a este acórdão, por Nuno Brandão, na RPCC, ano 28, n.º 2, 2018, pp. 371 ss.

5 Ilegítima porque a decisão de 17set2020 está transitada em julgado.

6 Igualmente proclamado no artigo 11.º da DUDH e consagrado nos artigos 6.º, § 2,º da CEDH e 14.º, § 2.ºdo PIDCP e 48.º, § 1.º da Carta de Direitos Fundamentais da UE.

7 A verificação de qualquer um dos perigos a que se reporta o artigo 204.º corresponde à exigência contida no artigo 5.º, § 1.º, al. c) e § 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que por ter sido regulamente ratificada pelo Estado português constitui direito interno (artigo 8.º, § 2.º Constituição).