Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
416/14.5T8STB-A.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
Data do Acordão: 01/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Tendo sido declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o art. 703.º do actual Código de Processo Civil, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, continua a poder ser invocado como título executivo um contrato de reestruturação de crédito, assinado pelos devedores em Março de 2013, no qual aceitam a consolidação da sua dívida, cujo valor reconhecem e se obrigam a pagar.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:

1. O art. 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, ao determinar que “na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados”, implica igualmente a obrigação de expurgar do manancial fáctico tudo o que sejam conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos.
2. Tendo sido declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o art. 703.º do actual Código de Processo Civil, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, continua a poder ser invocado como título executivo um contrato de reestruturação de crédito, assinado pelos devedores em Março de 2013, no qual aceitam a consolidação da sua dívida, cujo valor reconhecem e se obrigam a pagar.


Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Execução de Setúbal, (…) e (…), embargaram a execução que lhes foi movida por Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da (…), C.R.L., argumentando inexistir título executivo e a obrigação não ser certa, líquida e exigível.
Ocorreu contestação do embargado e realizou-se infrutífera tentativa de conciliação.
Após, foi proferida sentença julgando os embargos improcedentes.

Inconformados, os embargantes recorrem e concluem:
I - O Tribunal a quo proferiu pelo Juiz 2 do Juízo de Execução de Setúbal do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, que sentença que decide julgar improcedente a oposição apresentada pelos Executados.
II - Não se alcança como é que o douto Tribunal a quo entendeu que o título dado à execução é um documento particular denominado “Contrato de Reestruturação” relativa a mútuo outorgado entre a Exequente e os Executados.
III - Isto porque a Exequente identifica genericamente no requerimento executivo “Outro Título com Força Executiva”;
IV - Juntando com o Requerimento Executivo, Contrato de abertura de crédito, Contrato de Reestruturação e Livrança;
V - Em momento algum, no seu requerimento executivo a Exequente especifica qual o título executivo dado à execução, se o contrato de Abertura de Crédito se o Contrato de Reestruturação se a Livrança;
VI - Assim, a Exequente na causa de pedir, que é constituída pelo título ou documento em que se corporiza a obrigação exequenda, ou seja, o título executivo – condição necessária da execução, não identifica qual o título em concreto que apresenta à execução.
VII - Faltando assim pressuposto formal que permita a acção prosseguir, ou seja, a identificação concreta do título executivo, sendo que a sua falta consubstancia motivo de indeferimento liminar do requerimento inicial executivo.
VIII - O Tribunal a quo julgou, incorrectamente, que o título executivo é o Contrato de Reestruturação, pois sem a alegação de tal causa de pedir não podia o Tribunal a quo decidir que era aquele o título tanto mais que também existe uma Livrança junto aos autos;
IX - Mais, a Exequente junta ainda uma Livrança com o requerimento executivo, livrança essa que apenas se encontra apenas subscrita pelos Executados, mas não preenchida, ou seja, em branco;
X - O título deve demonstrar uma obrigação que seja certa, líquida e exigível., sendo que no caso em concreto a Livrança junta com o Requerimento executivo não preenche;
XI - Um dos pressupostos específicos da acção executiva, porventura o mais importante, é que o dever de prestar conste de um título, o título executivo.
XII - Sem este pressuposto, formal pela sua natureza, inexiste o grau de certeza que o sistema tem como necessário para o recurso à acção executiva, ou seja, à realização coactiva de uma determinada prestação.
XIII - Nenhuma acção executiva deve ter seguimento sem que o tribunal de execução interprete o título que lhe serve de fundamento e, sempre que existam dúvidas acerca do tipo ou do objecto da obrigação titulada, o título não é exequível e o credor tem de recorrer previamente a uma acção declarativa de condenação ou de simples apreciação – cfr. Lebre de Freitas in “A acção executiva depois da reforma da reforma”, 5.ª edição, pág. 35, nota 2.
XIV - Assim, a decisão do Tribunal a quo, salvo o devido respeito deveria ter sido absolver da instância os Executados.
XV - O Tribunal a quo dá como assente o facto da Exequente ter interpelado os Executados para pagamento das quantias em dívida.
XVI - Os Executados na sua oposição à execução/embargos impugnam tal facto afirmando que jamais foram interpelados pela Exequente, para pagamento das quantias em dívida.
XVII - Na verdade, a Exequente não junta qualquer prova documental que permitia ao Tribunal a quo dar por assente que ocorreu interpelação por parte daquela.

Na resposta sustenta-se a manutenção do decidido.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Da expurgação de juízos jurídico-conclusivos contidos na decisão da matéria de facto:
O art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Trata-se de uma evolução em relação ao art. 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.
Deste modo, na reapreciação da matéria de facto o Tribunal da Relação deve lançar mão de todos os meios probatórios à sua disposição e usar de presunções judiciais para obter congruência entre a verdade judicial e a verdade histórica, não incorrendo em excesso de pronúncia se, ao alterar a decisão da matéria de facto relativamente a alguns pontos, retirar dessa modificação as consequências devidas que se repercutem noutra matéria de facto, sendo irrelevante ter sido esta ou não objecto de impugnação nas alegações de recurso[1].
Por outro lado, o art. 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil determina que “na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados”, afastando deste modo a inclusão no manancial fáctico de afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito.
Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.04.2015[2], “a selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos. Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante.”
No caso, a primeira instância considerou entre a matéria de facto provada a seguinte asserção: «No momento do vencimento das prestações não pagas, vencidas em 02.09.2014, estavam em dívida respectivamente € 150.000,00 euros de capital, € 12.809,91 de juros e € 526,75 euros de outras despesas e € 252,60 euros do saldo devedor de depósito à ordem».
Porém, ao estabelecer quais os factos provados e os não provados, a sentença deve expurgar do manancial fáctico tudo o que comporte conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos, como se passa com a afirmação supra referida, que envolve um juízo jurídico-conclusivo acerca do thema decidendum da causa.
Decide-se, pois, expurgar do manancial fáctico a supra referida asserção.

O elenco fáctico fica assim estabelecido:
1- A Exequente celebrou com os Executados os seguintes contratos de empréstimo:
a) Contrato de Empréstimo formalizado a vinte e um de Junho de dois mil e onze, ao qual foi atribuído o n.º (…), no montante de € 25.000,00 (vinte cinco mil euros);
b) Contrato de Empréstimo formalizado a vinte e oito de Fevereiro de dois mil e doze, ao qual foi atribuído o n.º (…), no montante de € 10.000,00 (dez mil euros);
c) Contrato de Empréstimo formalizado a nove de Dezembro de dois mil e onze, ao qual foi atribuído o n.º (…), no montante de € 60.000,00 (sessenta mil euros);
d) Contrato de Empréstimo formalizado a sete de Setembro de dois mil e onze, ao qual foi atribuído o n.º (…), no montante de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros).
2- No dia doze de Março de dois mil e treze, a Exequente celebrou com os Executados o denominado “Contrato de Reestruturação” n.º (…), consolidando a quantia em dívida em € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).
3- Ficou convencionado no contrato referido em 2 que a dívida consolidada vence juros, postecipados e contados dia a dia, a serem pagos à taxa de juro anual nominal que resultar da média aritmética simples das cotações diárias da taxa do indexante Euribor a 12 meses, durante o mês anterior a cada período de contagem e arredondada à milésima de ponto percentual, por excesso se a quarta casa decimal for igual ou superior a cinco, ou por defeito se for inferior, e depois acrescida de um spread de 8 (oito) pontos percentuais, o que se traduzia, à data, numa taxa de 8,594 (oito vírgula quinhentos e noventa e quatro) pontos percentuais, acrescida, em caso de mora, da sobretaxa de 4%.
4- Os Executados jamais pagaram a primeira prestação respeitante aos juros referenciados em 3 vencida em 12.03.2014.
5- A Exequente interpelou os Executados para procederem ao pagamento das quantias em dívida.
6- (eliminado, conforme decisão supra).

Aplicando o Direito.
Do título executivo
Sustentam os exequentes a inexistência de título executivo, argumentando que a exequente não identifica como tal o contrato de reestruturação de crédito anexo ao requerimento executivo.
Em termos genéricos, pode-se afirmar que toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites subjectivos e objectivos da acção executiva – art. 10.º, n.º 5, do Código de Processo Civil. Trata-se, pois, da peça necessária e suficiente à instauração da acção executiva, devendo consistir em “documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia de servirem de base ao processo executivo.”[3]
No caso dos autos, importa atentar que o art. 703.º do actual Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, eliminou os documentos particulares do elenco dos títulos executivos, sendo tal norma aplicável às execuções instauradas a partir da entrada em vigor do novo diploma – art. 6.º, n.º 3, do diploma preambular.
Como bem se aponta na decisão recorrida, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 408/2015, declarou com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o art. 703.º do actual Código de Processo Civil, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, por violação do princípio da protecção da confiança.
Deste modo, um contrato de reestruturação de crédito como o anexo ao requerimento executivo, celebrado em 12.03.2013, assinado pelos devedores e declarando estes que aceitam a consolidação da sua dívida no montante de € 150.000,00, cujo valor reconhecem e se obrigam a pagar com os respectivos juros, impostos, encargos e despesas, em prestações anuais e em quatro anos, vencendo-se a primeira prestação de juros a 12.03.2014, constituía título executivo para os fins do art. 46.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil de 1961, e como tal mostra-se bastante para o prosseguimento da execução.
Por outro lado, ao contrário do que afirmam os Recorrentes, o requerimento executivo identifica como título o referido contrato de 12.03.2013 – arts. 6.º, 7.º, 8.º, 10.º e 15.º daquele requerimento, ali se mencionando estar em causa o empréstimo n.º (…), atribuído ao referido contrato.
Quanto à interpelação dos executados para pagamento das quantias em dívida, foi alegado no requerimento executivo que tal ocorreu por diversas vezes, e tal alegação não foi contraditada pelos Recorrentes na sua petição de embargos, bem andando a decisão recorrida ao considerar tal matéria como assente – arts. 732.º, n.º 3 e 574.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
De todo o modo, o título executivo estipulou que as prestações de capital e de juros eram exigíveis e deveriam ser pagas nas datas dos respectivos vencimentos, independentemente de qualquer aviso ou interpelação para o efeito, e ainda que o não pagamento das referidas prestações, nos respectivos prazos, importava o vencimento antecipado e a exigibilidade imediata de todas as demais obrigações, pelo que a exequente dispõe de título bastante para executar a dívida, dada a verificada falta de pagamento da prestação de juros vencida a 12.03.2014.
Como bem se afirma na decisão recorrida, “a matéria alegada pelos Opoentes desde logo não constitui fundamento suficiente de oposição à execução, na medida em que da mesma não se retira acordo ou vinculação do banco exequente no sentido da revogação, ou suspensão das cláusulas contratuais que estipulam a exigibilidade da dívida por mero efeito do não cumprimento de qualquer das obrigações estipuladas no contrato de reestruturação, como é o caso do pagamento das prestações acordadas. Inexistindo o referido acordo, ou a outro título, vinculação da Exequente a não exigir a totalidade da dívida, sem necessidade de mais considerações, tal determina a improcedência da oposição à execução.”
Resta, pois, confirmar o julgado.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso, com confirmação da decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Évora, 11 de Janeiro de 2018
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
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[1] Neste sentido, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2015, no Proc. 219/11.9TVLSB.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt.
[2] Proferido no Proc. 306/12.6TTCVL.C1.S1 e publicado em www.dgsi.pt.
[3] Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pág. 58.