Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
86/10.0IDSTB.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PROVA
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
Data do Acordão: 03/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário:
I – Para efeitos de prova relativa a crime de abuso de confiança fiscal, no caso por não entrega do IVA, nada obsta a que a existência de facturas, para além de cópias destas, seja descortinada através dos elementos contabilísticos disponíveis nos autos.
II – Embora as declarações periódicas de IVA devam versar operações ocorridas nos períodos a que respeitam, se, em concreto, foram declaradas algumas aparentemente de outro período, isso não prevalece para infirmar o valor dessas declarações, dado que a administração fiscal tem de contar com a lealdade do contribuinte e nele depositar confiança e, este, está sujeito aos deveres de colaboração, de lealdade e de verdade fiscal.
III – Para o preenchimento desse crime de abuso de confiança, necessária é a prova no sentido de saber se o IVA liquidado foi realmente recebido.
IV – O momento relevante para esse recebimento é, em concreto, a data até à qual a declaração periódica tivesse de ser apresentada.
Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 86/10.0IDSTB.E1

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Acordam, em conferência, na Secção Criminal
do Tribunal da Relação de Évora

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1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, o Ministério Público deduziu acusação contra “A” e B, imputando, sob a forma continuada, à primeira, um crime de abuso de confiança fiscal, nos termos dos arts. 105.º, n.º 1, 7.º, 8.º, n.º 3, e 12.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) e 27.º, n.º 1, 29.º, n.º 1, alínea c), e 41.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA) e, à segunda, um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos arts. 105.º do RGIT e 27.º, n.º 1, 29.º, n.º 1, alínea c), e 41.º, n.º 1, do CIVA.
As arguidas não apresentaram contestação.
Realizado o julgamento e proferida sentença, foi declarado extinto o procedimento criminal contra a arguida “A” e, procedendo a acusação quanto à arguida B, foi esta condenada pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, p. e p. pelo art. 105.º do RGIT, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à razão diária de €5 (cinco euros), no total de €375.

Inconformada com tal decisão, a arguida B interpôs recurso, formulando como conclusões:
1- Não se conformando com a decisão a recorrente impugna especificamente os pontos 2.1.3, 2.1.4, 2.1.5, 2.1.7 e 2.1.8 da matéria de facto.
2- A impugnação da matéria de facto, e a respectiva reapreciação da matéria dos autos, visa, por fim, demonstrar que a sentença do tribunal a quo viola o artigo 105º nº1 do RGIT
3- E visa ainda demonstrar que tendo o tribunal a quo validado a acusação nos termos em que a mesma foi formulada viola o nº7 do referido preceito do RGIT.
4- De todo o acervo documental considerado - (Docs. de fls. 36, 39, 40, 41 a 46, 65 a 73, 156 a 171, 176 a 194, 200 a 209, 214 a 228, 244 a 251, 262 a 295, 267 a 310) consta apenas 7 (sete) as facturas que constam nos autos num universo de 45 (quarenta) facturas, a saber:
a. factura nº 120 (fls. 177 e 178),
b. factura nº 143 (fls.184 a 186),
c. factura nº 159 (fls. 215)
d. factura nº 149 (fls. 216 a 222)
e. factura nº 132 (fls. 244 e 245)
f. factura nº 133 (fls. 246)
g. factura nº 158 (fls. 247 e 248)
5- Dando o tribunal por provado nos termos do ponto 2.1 que as facturas 119 a 139 têm data “Out 2009 (sic) e que as facturas nº140 a 164 têm data “Nov. 2009” (sic) incorre em erro de julgamento.
6- Porquanto as facturas nº 120, 132 e 133 consideradas no período de Outubro correspondem na realidade a operações ocorridas em Setembro
7- Por sua vez, as facturas nº143, 149 e 158, consideradas no período de Novembro correspondem na realidade a operações ocorridas em Outubro, e não em Novembro, como resulta da sentença.
8- Não deve restar, na expressão do técnico oficial de contas ouvido, qualquer dúvida que as operações a inserir na respectiva declaração devem reportar-se ao respectivo periodo - Setembro em Setembro, Outubro em Outubro e Novembro em Novembro
9- Dúvidas- insista-se - não devem existir sobre o facto de ser a data de emissão da respectiva factura que releva para efeitos de apurar a matéria que nos termos da legislação aplicável deverá constar em cada declaração (“…é a data de emissão, é a data de emissão que releva para efeitos de fazer constar essas facturas em determinada declaração) como refere a testemunha C.
10- As declarações entregues pelo técnico oficial de contas da empresa relativas ao período de Outubro e Novembro de 2009 (fls.43 a 46) não provam que os valores declarados correspondem, efectivamente, às operações que, nos termos da legislação aplicável, devam constar na respectiva declaração.
11- Pelo contrário, foi feita prova do contrário, de que não deviam, nomeadamente, constar na declaração entregue pelo técnico oficial de contas as facturas nº 120, 132 e 133 no que respeita à declaração periódica respeitante a Outubro.
12- E está demonstrado nos autos que as facturas nº143, 149 e 158, consideradas na declaração periódica de Novembro entregue pelo técnico oficial de contas não deviam constar na referida declaração.
13- Relativamente às demais facturas, o ministério público nem as apresentou para prova da respectiva acusação - não constam dos autos.
14- Assim, com excepção do montante respeitante a factura nº 159, não foi feita prova de que os montantes respeitantes às facturas nº 140 a 164, correspondam a operações ocorridas em Novembro de 2009.
15- Em conformidade, deverá este Alto Tribunal considerar não provada a matéria constante do ponto 2.1.4, designadamente, a relação de facturas identificadas na sentença por relação aos períodos de Outubro e Novembro (com excepção da factura nº159).
16- Viola o referido preceito nº7 do artigo 107º o pressuposto em que assentou a sua convicção para relevar as referidas declarações periódicas, o pressuposto de que a “Administração fiscal aceita as mesmas não as retirando da declaração” mesmo que se verifique a mesma se encontra com erros declarativos.
17- A contabilização das operações obedece a procedimento especifico, resulte ou não duma acção de investigação em matéria penal,
18- A correcção de erros na declaração é feita sob a forma de apresentação da respectiva declaração de substituição.
19- Não se trata portanto duma “opção” da investigação ou de qualquer critério discricionário.
20- Não constituindo argumento válido para desconsiderar o preceito nº7 do artigo 105º do RGIT o facto da testemunha afirmar a informação aos serviços competentes da administração para proceder a respectiva verificação das declarações, e se necessário, a respectiva correcção oficiosa das mesmas, “ traria complicações a nível do serviço, não temos competência para fazer esse..”
21- Obviamente tal argumento não serve de fundamento para não cumprir a lei fiscal.
22- Para efeitos penais, nem sequer o próprio princípio de verdade atribuído à declaração entregue pelo técnico oficial de contas em nome da contribuinte (próprio da relação jurídico-administrativo-fiscal) permite a investigação tapar os olhos a tais erros.
23- Pois, para efeitos penais, no que respeita à incriminação deste tipo de crime os valores a considerar “são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar na administração tributária”.
24- Ou seja, para efeitos penais a condenação a matéria considerada não pode resultar duma mera ficção legal
25- Pois a mesma só pode ter em consideração os valores que devam constar da declaração à luz da legislação aplicável
26- Neste caso, é notório que a sentença assenta não nos valores que deveriam constar nos termos da legislação aplicável, mas numa ficção legal.
27- É patente nos autos que o tribunal não teve acesso sequer à facturação constante da acusação.
28- E esta para o referido efeito é de evidente importância.
29- Refira-se que a testemunha C ensaia, no seu depoimento, uma explicação para as mesmas não estarem nos autos (“muitas vezes acontece não juntarmos aos autos cópias das próprias facturas”) mas tal facto não resulta dos autos – vide fls. 117,
30- Pois, embora solicitada ao técnico oficial de contas, tal documentação não foi apresentada por aquele nos termos referidos a fls. 117,
31- E depois, não há qualquer pedido feito à sociedade nesse sentido ou, mesmo, à arguida.
32- Pelo que face à prova produzida em tribunal verificamos que não existe prova que permita ao tribunal dar por provado o ponto 2.1.4, senão nos termos do ponto 15 destas conclusões.
33- Ainda relativamente ao ponto 2.1.4, analisando mais uma vez os referidos documentos (fls. 36, 39, 40, 41 a 46, 65 a 73, 156 a 171, 176 a 194, 200 a 209, 214 a 228, 244 a 251, 262 a 295, 267 a 310) constatamos que o tribunal errou ao dar por provado o recebimento que todos os montantes na acusação foram recebidos pela arguida B.
34- Ou seja, o tribunal deu por provado que a arguida recebeu de todos os vinte e três (23) clientes referenciados no ponto 2.1.4 a totalidade dos montantes considerados na acusação.
35- Não resulta, porém, da análise da prova considerada pelo tribunal a quo que haja prova do recebimento de todas as quantias de todos os clientes ali indicados.
36- Em abono da verdade da prova documental considerada, apenas 9 dos 23 clientes foram interpelados pela inspecção tributária para apresentação de comprovativos de pagamento:
a. D
b. E
c. F
d. G
e. H
f. I
g. J
h. K
i. L
37.Analisando, um a um, dos clientes interpelados, entendemos que:
a. Relativamente a D, está provado que a arguida recebeu a factura nº127 e nº 163 (cfr. resulta do confronto da cópia de cheques identificados fls. 158, 166, 170 e 171 com os respectivos extractos bancários fls. 159 a 165), o que corresponde, a título de IVA, o montante, respectivamente, de € 1421,80 e 597,80 nas datas indicadas a fls. 156
b. Relativamente a E, está provado que a arguida recebeu a factura nº 120 da referida empresa (cfr. resulta do confronto de cópia de cheques a fls. 180 e extractos bancários a fls. 182 e 183) o que corresponde, a titulo de IVA, o montante de 560,20
c. Relativamente a F, está provado que por conta das facturas nº 119, 146 e 154 esta entregou, a título de IVA, a quantia de € 1973,20, € 1036,68 e € 348 (cfr. resulta do confronto dos extractos bancários fls.200 a 205 com cheques identificados a fls. 206 a 209)
d. Relativamente a G, os extractos bancários juntos (fls. 224 a 228) não evidenciam, portanto, não prova qualquer pagamento efectuado por conta das facturas identificadas nos autos, portanto, não existe qualquer prova de recebimento
e. Relativamente a H, apenas se encontra provado que sobre a factura nº 158 foi entregue a quantia a título de IVA de € 370,20 (cfr. resulta de recibo a fls. 249); quanto às demais, não se encontra provado nos autos as facturas 132 e 133, pois, a cópia da frente de cheques não o prova, sem margem para dúvidas, acrescendo, que, o próprio TOC a fls. 243 (também analisada em sede de julgamento a instâncias do mandatário da arguida conforme acta da sessão de julgamento) afirma que na contabilidade da empresa apenas a factura nº158 se encontrava regularizada, estando as demais em aberto na contabilidade, acrescentando-se ainda que a própria inspecção tributária manifestou dúvidas sobre o recebimento desses valores que justificaram aliás diligências conforme resulta de fls. 313 (também analisado em sede de julgamento a instâncias do mandatário da arguida conforme resulta da acta de sessão de julgamento) para obtenção de mais informações que no entanto se revelaram infrutíferas.
f. Relativamente a I, apenas se encontra provado que sobre a factura nº 121 a arguida recebeu a título de IVA o montante de 495,20 (cfr. resulta do confronto do cheques a fls. 265 e 266 com extracto bancário a fls.263); não se pode dar por provada a factura 145 pois a cópia da frente do cheque a fls. 267 não o demonstra inequivocamente).
g. Relativamente a J, não existe qualquer prova de qualquer recebimento.
h. Relativamente a K, está provado que a arguida recebeu sobre as facturas nº124,134,150,164, a título de IVA, respectivamente, € 5,60, € 723,30, 1754,00 e 1640,80 (cfr. frente e verso dos cheques identificados a fls. 302 a 310 nas respectivas datas indicadas nos mesmos)
i. Relativamente a L, não foi feita prova de qualquer recebimento de qualquer quantia (vide fls. 288, também apreciada em sede de julgamento a instâncias do mandatário da arguida)
38 - Ainda para prova da ausência de prova de recebimento, relativamente a H e J, tenha-se em consideração em concatenação com o que foi exposto, o que disse a testemunha C que afirmou não ter conseguido confirmá-lo, conforme supra transcrito.
Em conclusão,
39 - sem conceder quanto a ausência de prova quanto à data das operações identificadas nas facturas ora identificadas sobre a qual recaiu prova, nos termos supra referidos, sempre diríamos que, ainda que assim não se considerasse,
40 - Apenas teria sido feita prova do recebimento por parte dos clientes supra identificados, e no montante de € 3206,10, a titulo de IVA, por relação ao período identificado na acusação enquanto Outubro de 2009 e € 5747,48, a titulo de IVA por relação ao periodo identificado na acusação enquanto Novembro de 2009.
41 - Portanto, deve ser o ponto 2.1.4 (e 2.1.5) alterado em conformidade.
42 – Sendo que, assim se demonstra, conforme referido, que não foi feita prova da verificação dos elementos típicos do crime, maxime, da arguida ter efectivamente recebido IVA em montante superior a 7500 em qualquer dos períodos considerados violando a sentença desse modo, também, o artigo 105º nº1 do RGIT.
43 – Nesse sentido, por exemplo, acórdão do Tribunal de Relação de Coimbra de 29-02-2012)
44 - Incorreu o tribunal também em erro de julgamento na apreciação da matéria de facto 2.1.3, 2.1.7 e 2.1.8 pois tal matéria não resulta, conforme referido, nem da matéria considerada analisada por relação aos pontos anteriores (maxime, ponto 2.1.4) nem muito menos resulta de qualquer acto de admissão ou confissão da arguida como decorre da sentença na sua fundamentação de facto.
45 – Não resulta do seu depoimento qualquer confissão desta ter recebido o IVA em apreciação nos presentes autos.
46 - Nem resulta que no período em apreciação o IVA recebido, nos montantes referidos na sentença, o tivesse ”canalizado” para os fornecedores, conforme dá o tribunal 2.1.8 por provado.
47 – Em conformidade, deverá a referida matéria ser alterada.
Assim,
48 - Não tendo sido feita prova da base tributária considerada
49 - Não tendo sido feita prova que a base tributária considerada correspondesse a operações efectuadas nos meses de Outubro e Novembro de 2009,
50 - Não tendo sido feita prova do respectivo recebimento por parte da sociedade arguida ou da arguida de montantes superiores a 7500 relativamente a qualquer dos meses considerados.
Deverão V.Exas alterar a matéria de facto em conformidade absolvendo a recorrente, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:
a) A sentença recorrida considerou provado, no ponto 2.1.4. quais as facturas emitidas nos meses de Outubro e Novembro de 2009, cujos valores constituem a base tributável que gerou o IVA em causa nos autos;
b) A data de emissão dessas facturas não é relevante, no caso dos autos, porquanto as mesmas foram integradas pela própria recorrente (na qualidade de gerente da sociedade já insolvente e liquidada e através do Técnico Oficial de Contas), nas declarações de IVA relativas a Outubro e Novembro de 2009;
c) Ainda que, em rigor, a administração fiscal pudesse tê-las retirado das referidas declarações e imputar o respectivo valor aos meses em que foram emitidas, optou por não o fazer favorecendo o contribuinte, na medida em que evitou um processo de contra-ordenação;
d) Não se trata de uma conduta arbitrária, mas sim de uma conduta que favorece o contribuinte;
e) Não pode a recorrente pretender beneficiar de uma situação que criou e que, levada ao extremo, teria como consequência a entrega do IVA quando mais lhe conviesse sem nunca ser penalmente responsabilizada;
f) A existência física das facturas no processo não é a única forma de demonstrar a sua existência e, em consequência, a base tributável que gera o IVA a pagar resultando as operações em causa dos elementos contabilísticos da sociedade, juntos a fls. 118 a 150;
g) Quanto ao efectivo recebimento dos valores em causa, resulta de fls. 158 a 171, 177 a 194, 199 a 209, 214 a 228, 244 a 251, 262 a 267 e 297 a 310 que em Outubro de 2009 a recorrente recebeu efectivamente a quantia de €5.681,30 e em Novembro de 2009, a quantia de €9.956,08;
h) Assim, e mesmo que se entenda que o recebimento do valor relativo ao IVA é elemento objectivo do crime de confiança fiscal, a recorrente praticou – sem margem para dúvidas – um crime de abuso de confiança fiscal, por reporte à declaração referente a Novembro de 2009.
Face ao exposto, deve ser negado provimento ao presente recurso.

O recurso foi admitido.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a referida resposta e no sentido da improcedência do recurso.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), a arguida, no essencial, reiterou a sua posição.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO

É pacifico que o objecto do recurso se define pelas conclusões que a recorrente extraiu da respectiva motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP (Simas Santos/Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3.ª edição, pág. 48), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as nulidades de sentença, os vícios da decisão e outras nulidades que não se considerem sanadas (arts. 379.º, n.º 1, e 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP), designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10 (publicado in D.R. I-A Série n.º 298/95, de 28.12.1995).
Reside, pois, na impugnação de matéria de facto e nas consequências a extrair desta.

Ao nível da matéria de facto, consta da sentença recorrida:
Matéria de facto provada:
2.1.1. A Sociedade “A”, portadora do NIPC 502657081, está inscrita em IRC pelo exercício da actividade de “Comércio a Retalho de Têxteis, em estabelecimentos especializados”, a que corresponde o CAE (…), encontrando-se enquadrada em IVA no regime normal com periodicidade mensal.
2.1.2. Desde o início da actividade da sociedade (1991) que a arguida B é a única sócia gerente da sociedade arguida.
2.1.3. Como tal, enquanto gerente e em representação da sociedade “A”, a arguida B decidiu não proceder à entrega na administração tributária dos montantes de IVA relativos aos meses de Outubro e Novembro de 2009.
2.1.4. Pelos arguidos foi liquidado e recebido IVA nos meses de Outubro e Novembro de 2009, nos seguintes montantes:
N.º Factura Data Base Tributária IVA Total Observações (Clientes)
119 Out de 2009 9866,00 1973,20 11839,20 F
120 Out de 2009 2801,00 560,20 3361,20 E
121 Out de 2009 2476,00 495,20 2971,20 I
122 Out de 2009 2196,00 439,20 2635,20 M
123 Out de 2009 657,00 131,40 788,40 N
124 Out de 2009 28,00 5,60 33,60 K
125 Out de 2009 2679,00 535,80 3214,80 J
126 Out de 2009 1310,00 262,00 1572,00 O
127 Out de 2009 7109,00 1421,80 8530,80 D
128 Out de 2009 3449,00 689,80 4138,80 P
129 Out de 2009 993,00 198,60 1191,60 Q
130 Out de 2009 7136,00 1427,20 8563,20 L
131 Out de 2009 317,03 63,41 380,44 L
132 Out de 2009 2404,00 480,80 2884,80 H
133 Out de 2009 105,50 21,10 126,60 H
134 Out de 2009 3616,50 723,30 4339,80 K
135 Out de 2009 893,00 178,60 1071,60 R
136 Out de 2009 537,00 107,40 644,40 S
137 Out de 2009 795,00 159,00 954,00 T
138 Out de 2009 120,00 24,00 144,00 O
139 Out. de 2009 8008,00 1601,60 9609,60 L
Total Out. 2009 57496,03 11499,21 68995,24
140 Nov. 2009 2256,00 451,20 2707,20 U
141 Nov. 2009 5149,00 1029,80 6178,80 D
142 Nov. 2009 1248,00 249,60 1497,60 V
143 Nov. 2009 3647,00 729,40 4376,40 E
144 Nov. 2009 1720,12 344,02 2064,14 N
145 Nov. 2009 1681,00 336,20 2017,20 I
146 Nov. 2009 5183,40 1036,68 6220,08 F
148 Nov. 2009 676,00 135,20 811,20 W
149 Nov. 2009 10002,00 2000,40 12002,40 G
150 Nov. 2009 8770,00 1754,00 10524,00 K
151 Nov. 2009 770,00 154,00 924,00 X
152 Nov. 2009 618,12 123,62 741,74 Y
153 Nov. 2009 2508,00 501,60 3009,60 J
154 Nov. 2009 1740,00 348,00 2088,00 F
155 Nov. 2009 878,00 175,60 1053,60 T
156 Nov. 2009 1676,00 335,20 2011,20 Q
157 Nov. 2009 1931,00 386,20 2317,20 Z
158 Nov. 2009 1851,00 370,20 2221,20 H
159 Nov. 2009 564,00 112,80 676,80 G
160 Nov. 2009 5815,00 1163,00 6978,00 L
161 Nov. 2009 1931,00 386,20 2317,20 V
162 Nov. 2009 1026,00 205,20 1231,20 AA
163 Nov. 2009 2989,00 597,80 3586,80 D
164 Nov. 2009 8204,00 1640,80 9844,80 K
Total Nov. 2009 72833,64 14566,72 87400,37
Total Out./Nov.2009 130329,67 26065,93 156395,93
2.1.5. Àqueles montantes de IVA liquidados e recebidos, a arguida deduziu o imposto suportado naquelas operações, referentes a tais períodos (Outubro e Novembro de 2009), o que originou o Imposto apurado de IVA a entregar nos Cofres do Estado, nos seguintes montantes:
Período IVA liquidado e não entregue Data Limite de Entrega
Outubro de 2009 € 10.700,23 10/12/2009
Novembro de 2009 € 13.575,87 10/01/1010
2.1.6. A arguida “A” entregou nos Serviços da Administração do IVA as declarações referentes a tais meses, mas no entanto não entregou nos cofres do Estado o IVA decorridos 90 dias sobre a data legalmente fixada para a sua entrega, nem o tendo feito até ao momento, não obstante terem os arguidos sido notificados para procederem ao seu pagamento acrescido de juros e coimas.
2.1.7. A arguida B agiu voluntária e conscientemente, em representação da arguida “A” e com intenção de, mediante a sua conduta não entregar à administração tributária aqueles montantes de IVA liquidados, fazendo-os seus, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
2.1.8. No período aqui em apreciação, a sociedade arguida atravessava dificuldades económicas, sendo alguns dos montantes retidos canalizados para o pagamento dos fornecedores.
2.1.9. A arguida é casada e tem dois filhos.
2.1.10. Está desempregada e o seu marido é vendedor ganhando €1.500 mensais.
2.1.11. Mora em casa própria pagando €3.000 de empréstimo
2.1.12. Tem o 7º ano de escolaridade.
2.1.13. Não tem processos pendentes nem tem antecedentes criminais.

Matéria de facto não provada:
Não existem factos não provados.

Motivação da decisão de facto:
A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação e ponderação de todos os meios de prova produzidos ou analisados em audiência de julgamento, nomeadamente:
- Nas declarações da arguida a qual descreveu as suas condições económicas e financeiras. Para além disso no final a arguida admitiu que a empresa não efectuou tais pagamentos do IVA, devido a dificuldades económicas, tendo optado por pagar em primeiro lugar aos fornecedores.
- No depoimento da testemunha BB, TOC da arguida, que referiu que
tratava da contabilidade da sociedade arguida, tendo apurado o IVA e feito as declarações entregues nas Finanças.
- No depoimento da testemunha C, Técnica Superior na Direcção de Finanças de Setúbal, a qual depôs de forma clara, serena e segura, e de forma objectiva e isenta descreveu detalhadamente o modo como foi feita a instrução do processo. Assim referiu que no âmbito desta analisou os elementos contabilísticos fornecidos pelo TOC, vendo os pagamentos registados nas listas de clientes, averiguando também juntos destes se efectivamente houve ou não pagamento, e como chegou a tal conclusão.
Contou que a contabilidade da empresa estava de acordo com a declaração entregue junto das Finanças.
Por fim, explicou que, nestes casos, e não obstante as facturas que serviram de base à declaração, não corresponderem ao mês em causa, a Administração Fiscal aceita as mesmas não as retirando da declaração.
Assim, tendo em conta o modo como tal depoimento foi prestado, em conjugação com os demais elementos juntos aos autos, mereceu o mesmo total credibilidade por parte do Tribunal.
– Docs. de fls. 36, 39, 40, 41 a 46, 65 a 73, 156 a 171, 176 a 194, 200 a 209, 214 a 228, 244 a 251, 262 a 295, 267 a 310.
- A matéria relacionada com os antecedentes criminais encontra-se certificada nos autos.
Assim e antes de mais resulta claro dos elementos constantes dos autos, bem como das declarações da arguida que naqueles dois períodos as arguidas não procederam ao pagamento do IVA devido aos cofres do Estado.
Também o depoimento da testemunha C esclareceu o Tribunal o modo a como se chegou ao valor em divida.
Por outro lado, resultou do depoimento da testemunha BB que o mesmo fez as declarações entregues junto das Finanças, as quais deveriam ser pagas pela arguida.
Ora, sendo a arguida sócia gerente da empresa, tinha a obrigação e a responsabilidade de proceder a tais pagamentos, pelo que a omissão de tal dever apenas a ela lhe pode ser imputado.
Aliás a própria arguida admitiu que preferiram pagar a fornecedores em vez de pagarem às finanças.
Logo dúvidas não existem em que a arguida praticou os factos que lhes eram imputados.
E também dúvidas não tem o Tribunal em como a arguida praticou esses mesmos factos de forma deliberada e consciente, não podendo o Tribunal acreditar que a arguida não conhecesse tal proibição.

Apreciando:
Constituindo princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito nos termos do art. 428.º do CPP, a recorrente visa com o recurso a impugnação de matéria de facto.
Ora, independentemente da verificação, oficiosa, de vícios da decisão, a impugnação da matéria de facto obedece às condições exigidas pelo art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, só assim podendo dar lugar a modificação nesse âmbito (art. 431.º, alínea b), do CPP), sendo o cumprimento das mesmas perfeitamente justificado e para a finalidade visada.
Tanto mais quando, como é sabido, o recurso em matéria de facto não constitui um novo julgamento, mas apenas um remédio para os vícios de julgamento, através da reapreciação da prova, que não se destina, porém, a limitar (ou arredar) o princípio da livre apreciação consagrado no art. 127.º do CPP, nem pode suprir a imediação e a oralidade de que o tribunal que julgou dispôs.
Como acentua Damião da Cunha, in “A Estrutura dos Recursos, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8, Abril-Julho, 1998, págs. 259 e seg., os recursos configuram-se no Código de Processo Penal como um remédio e não como um novo julgamento sobre o objecto do processo (…) Assim, ao recorrente é exigido que apresente os pontos de facto que mereçam a censura de incorrectamente decididos (…) Não basta, porém, que no recurso manifeste a discordância e, bem assim, as provas (…) que não só demonstrem a possível incorrecção decisória, mas também permitam configurar uma alternativa decisória.
A interpretação quanto ao adequado cumprimento dessas exigências ficou bem reflectida no acórdão do STJ de fixação de jurisprudência n.º 3/2012, de 08.03 (publicado in D.R. I Série, de 18.04.2012), cuja fundamentação é esclarecedora.
Em concreto, pese embora as reservas colocadas pelo Digno Procurador- Geral Adjunto nesta Relação acerca do cumprimento pela recorrente do ónus de impugnação especificada de que aqui se trata, afigura-se que não existe fundamento a inviabilizar a apreciação no âmbito pretendido.
Com efeito, decorre perfeitamente inteligível a indicação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (provados em 2.1.3., 2.1.4., 2.1.5., 2.1.7. e 2.1.8.) e das provas que, no seu entender, impõem decisão diversa (declarações da recorrente, depoimentos de C e de BB e prova documental), através de transcrição de excertos dos elementos da prova produzida a que se reporta e no seu confronto com os documentos que menciona, pelo que se mostra razoável que não deva ser coarctada a análise da impugnação e dentro dos limites que a motivação sugere, sem prejuízo da faculdade conferida pelo n.º 6 desse art. 412.º, de que este Tribunal não prescindiu.
Assim, analisando:
a) -
Quanto ao facto provado em 2.1.3. (“Como tal, enquanto gerente e em representação da sociedade “A”, a arguida B decidiu não proceder à entrega na administração tributária dos montantes de IVA relativos aos meses de Outubro e Novembro de 2009”), a recorrente contesta que tivesse decidido não proceder à entrega dos montantes de IVA, relacionando-o com os factos provados em 2.1.7. (“A arguida B agiu voluntária e conscientemente, em representação da arguida “A” e com intenção de, mediante a sua conduta não entregar à administração tributária aqueles montantes de IVA liquidados, fazendo-os seus, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”) e em 2.1.8. (“No período aqui em apreciação, a sociedade arguida atravessava dificuldades económicas, sendo alguns dos montantes retidos canalizados para o pagamento dos fornecedores”), reportando-se a declarações suas em audiência e, segundo invoca, sem o sentido de confissão/admissão atribuído pelo tribunal “a quo”.
Se bem se compreende a alegação, esta prende-se com a circunstância de que não tivesse admitido que, no período em apreciação, recebeu os montantes em causa, bem como que os canalizou para outra finalidade, com inerente influência nessa sua atribuída decisão.
Todavia, independentemente do que a análise objectiva dos factos provados em 2.1.4. e em 2.1.5. venha a merecer e da inevitável relevância que isso tenha na apreciação dessa decisão enquanto reportada à integralidade dos mesmos, resulta da motivação operada pelo tribunal que a arguida admitiu que a empresa não efectuou tais pagamentos do IVA, devido a dificuldades económicas, tendo optado por pagar em primeiro lugar aos fornecedores e que admitiu que preferiram pagar a fornecedores em vez de pagarem às finanças, do que decorre que a recorrente acaba por convocar aspecto – o não recebimento desses montantes – que extravasa o que, nessa vertente, se fundamentou.
Esse aspecto relevará eventualmente para a adequada valoração dessa decisão, mas não coloca, minimamente, em dúvida a qualidade em que a recorrente interveio, como gerente e em representação da sociedade (documentos de fls. 65/73, atestando o registo comercial), nem se divisa fundamento para infirmar, sem mais, que a sua actuação tivesse sido voluntária e ciente da ilicitude da mesma.
Aliás, nem mesmo das suas declarações se retira diferente perspectiva quanto à valoração merecida pelas mesmas, ao ter aludido a dificuldades económicas da sociedade à data, à existência de cheques em seu poder relativos a alguns clientes sem terem sido cobrados e à sua principal preocupação em pagar aos fornecedores.
Sem embargo, pois, do que ficará adiante apreciado, inexiste razão válida para alterar aqueles factos provados em 2.1.3., 2.1.7. e 2.1.8..

b) -
No que concerne ao facto provado em 2.1.4. (“Pelos arguidos foi liquidado e recebido IVA nos meses de Outubro e Novembro de 2009, nos seguintes montantes: (…)”), a primeira questão suscitada pela recorrente situa-se ao nível das datas que aí ficaram a constar como sendo de emissão de algumas facturas, referindo que apenas 7 das aí indicadas se encontram nos autos.
Conclui, por isso, que dessas 7 facturas, apenas existe prova de que à indicada com o n.º 159 corresponde efectivamente data de emissão de Novembro de 2009, contrariamente ao que se verifica com as restantes.
Neste âmbito, a conjugação dos depoimentos de BB, que à data era responsável pela contabilidade da sociedade, e de C, técnica das finanças que procedeu à instrução do inquérito, no confronto com o acervo documental dos autos, impõe, desde logo, a consideração de que, como esclareceu o primeiro, procedeu à entrega das declarações periódicas do IVA e admitiu, confrontado com algumas dessas facturas, que estas tinham data de emissão diversa da que ficou a constar nesse facto, mas não obstante, reportando-se a que estavam de acordo com os elementos que então lhe foram disponibilizados para efeito da contabilidade e que serviram de suporte aos respectivos lançamentos e, como explicitou a segunda, que a administração fiscal aceita, por princípio, a informação prestada nas declarações, as quais não descriminam as facturas a que se referem, e que, na situação, os elementos contabilísticos, que consultou, facultados pelo responsável pela contabilidade, estavam de acordo com o declarado.
Ainda, C depôs no sentido de que, apesar de poder existir alguma incorrecção na indicação das facturas, enquanto reportadas aos meses em causa, situação que em concreto admitiu verificar-se e susceptível de entrega de declarações “de substituição”, a administração fiscal, a não ser que o contrário resulte de justificada acção inspectiva, aceita as declarações e da forma como são apresentadas, sem prejuízo, sobretudo, da consulta aos elementos contabilísticos, assim prescindindo da imposição dessa substituição, a qual implica que o contribuinte pague uma coima.
Esclareceu que a ausência parcial de cópias das facturas nos autos corresponde a procedimento habitual, dado o elevado número muitas vezes elevado das mesmas, mas sem que daí decorra inviabilidade de apuramento de valores do IVA através dos dados que a contabilidade do contribuinte ofereça, revertendo essa realidade para o caso em apreço.
Aliás, a testemunha referiu que teve a preocupação de conferir se esses elementos constavam da contabilidade e que concluiu que o que estava contabilizado correspondia ao que foi objecto dessas declarações.
Na verdade, nada se antevê como obstáculo a que, em termos probatórios, para além das cópias das facturas, a existência destas seja descortinada através dos elementos contabilísticos fornecidos, na situação por BB, mormente pelos extractos de contas dos clientes constantes de fls. 134/147 e pela relação de facturas que suportou o IVA liquidado de fls. 149/150, os quais, embora não expressamente mencionados na motivação da sentença, foram referidos pela testemunha C, que os analisou no âmbito das funções que desempenhava.
Deste modo, para além daquelas que a recorrente assinala, e bem, como estando nos autos (facturas n.ºs 120, 132, 133, 143, 149, 158 e 159), todas as restantes indicadas nesse facto provado, conforme consulta àquela documentação, foram efectivamente emitidas e, ainda, de acordo com o depoimento de BB, por referência às declarações apresentadas, relativas aos meses de Outubro e Novembro de 2009, mediante os elementos de que dispunha.
Aqui entronca a obrigação que cumpriu, prevista no art. 29.º, n.º 1, alínea c), do CIVA, de apresentação, pelo contribuinte, de declarações periódicas, nos prazos a que alude o seu art. 41.º, sendo através destas que os valores do IVA a pagar vêm a ser apurados e, assim, com a inerente relevância de transparecerem, para a administração fiscal, como reais e verdadeiras, tanto mais quando, como no caso sucede, reflectindo correspondência com os elementos contabilísticos.
Disso deu conta o depoimento de C conforme anteriormente explicitado, a que acresce que, de modo algum, foi contestado pela recorrente de que, quanto às facturas mencionadas no facto em apreciação, tivesse sido liquidado o IVA e nesses meses de Outubro e Novembro de 2009.
Ainda que a data de emissão de algumas facturas não corresponda ao que aparentemente ficou indicado nesse facto, é de salientar que, neste, apenas se provou o que inevitavelmente assentou nas declarações apresentadas, relevando o IVA considerado para o efeito, e não, propriamente, pelo menos de modo expresso, que as facturas tenham sido emitidas nesses meses.
Se é certo que as declarações devem versar operações ocorridas em determinados períodos, no cumprimento daqueles prazos do referido art. 41.º, não é menos verdade que se, em concreto, o que foi declarado aparentemente o respeitou, não se encontra fundamento para conferir relevância prevalente às datas de emissão de facturas.
A administração fiscal tem de contar com a lealdade do contribuinte e nele depositar confiança, a não ser que elementos em contrário existam, carecendo averiguação da bondade do que declara.
Os deveres de colaboração, de lealdade e de verdade fiscal, a que o contribuinte está sujeito, suportam a protecção do bem jurídico em causa, consubstanciado no património do Estado enquanto instrumento da política financeira e distributiva (arts. 81.º e 103.º da Constituição da República Portuguesa).
Não obstante, pois, o invocado depoimento de BB, ao ter referido ser usual que as facturas incluídas pelas declarações não tivessem diferente data de emissão relativamente ao período a que estas se reportavam, os elementos que serviram de suporte à sua contabilização e às declarações que apresentou foram por si confirmados.
E, note-se, tal como o Ministério Público acentua, na sua resposta ao recurso, o IVA é apurado com base na própria declaração entregue pelo sujeito passivo (…) A administração fiscal parte do princípio que as declarações entregues pelo contribuinte correspondem à verdade, sendo as mesmas fiscalizadas aleatoriamente ou porque, por alguma razão, chamaram a atenção (…) Voltando à questão das facturas e respectiva data de emissão, a sua inclusão numa determinada declaração e não noutra é da inteira e exclusiva responsabilidade do contribuinte e não da administração fiscal. No caso concreto, se a recorrente integrou nas declarações referentes aos meses de Outubro e Novembro de 2009 facturas que não foram emitidas nesses meses, tal facto é resultado da sua conduta. A inclusão indevida de tais facturas nas declarações de IVA em causa nos autos, não determina que o imposto não fosse devido (…) Uma vez que é ela própria quem elabora as declarações de IVA (ainda que através do Técnico Oficial de Contas) seria simples incluir nas declarações cujo IVA não entrega ao Estado, facturas que não lhe respeitam, para que as mesmas fossem posteriormente colocadas nos períodos correctos e assim diminuindo o valor para uma fasquia em que não é penalizado.
Afigura-se, pois, que, em relação aos indicados períodos de Outubro e Novembro de 2009, pelas razões explanadas, não se assume, dado o teor do facto provado, como pertinente a alteração nessa indicação, por, além do mais, corresponder ao que a recorrente declarou perante a administração fiscal.
Assente a liquidação do IVA relativo aos montantes dessas facturas, a recorrente suscita divergência quanto à circunstância, dada também por provada, de que tenham sido, pelo menos na totalidade, recebidos.
Nesse âmbito, nenhuma contribuição importante decorreu das declarações da recorrente e do depoimento de BB, apesar de, relativamente ao último, tivesse reafirmado os elementos que forneceu à administração fiscal, mas sem lograr certeza na vertente daquele efectivo recebimento.
Por seu lado, o depoimento de C, no essencial, remeteu para a análise documental que disse ter feito, através dos elementos que lhe foram facultados, quer pela recorrente, através de BB, quer por clientes em nome dos quais algumas facturas haviam sido emitidas.
Nem a outros elementos a recorrente se reporta, se bem que transpareça, como se denota pela sua alegação, reservas quanto ao depoimento de C, na vertente da análise que esta fez.
Contudo, o modo como a depoente depôs foi consentâneo com as suas atribuições funcionais, apresentando-se, quanto possível, objectivo e desinteressado, com a credibilidade que, compreensivelmente, o tribunal lhe conferiu, não sem que, porém, a narração que fez não tenha sido suficientemente detalhada.
Sem pôr em causa a justificada relevância do depoimento, a sua adequada valoração só poderá ser cabalmente atingida se confrontada a documentação disponível, de forma casuística e para a finalidade visada de obter certeza quanto à circunstância desses montantes de IVA terem sido recebidos, sobretudo, atentando em que, como a recorrente invoca, apenas alguns clientes (poucos, em número de nove) vieram a fornecer os elementos solicitados pela testemunha no âmbito do inquérito que teve lugar.
A tanto acresce que a motivação do tribunal se apresenta tendencialmente genérica, sem o cuidado de concretizar, como seria desejável, a fundamentação crítica dessa documentação, com isso exigindo ora acrescido esforço de consulta aos elementos pertinentes.
Sem descurar o referido depoimento e, designadamente, na parte em que afirmou, tanto quanto viável, ter efectuado análise às contas dos clientes, resulta, relativamente a estes, que:
1 - Quanto a D(facturas n.ºs 127, 141 e 163), a recorrente reconhece o recebimento dos valores quanto às facturas n.ºs 127 e 163 (tal decorre da informação de fls. 156, das cópias dos cheques de fls. 158/162 e do extracto bancário de fls. 167/168), mas já não relativamente à factura n.º 141, na sua perspectiva, sem prova para o efeito.
Ora, se é certo que, quanto à factura n.º 163, dado o seu valor, apesar da informação se reportar também a uma outra não relevante para os autos (n.º 172), se depara com prova suficiente desse recebimento, pelo menos à data de 15.03.2010, até porque o valor global de ambas corresponde ao valor dos cheques para pagamento, não é menos verdade que a factura n.º 141 surge também indicada em conjunto com a factura n.º 127, dificultando a percepção detalhada.
De qualquer modo, torna-se viável, em função do valor global dessas duas facturas (€ 14.709,60), do montante total das parcelas indicadas na informação de fls. 156 (€ 15.000,00) e do extracto bancário de fls. 159/165, concluir que o recebimento se verificou, pelo menos à data de 30.03.2010.
2 - Acerca de E (facturas n.ºs 120 e 143), a recorrente apenas aceita que o IVA da factura n.º 120 foi recebido (comprovam-no as cópias dos cheques de fls. 180 e o extracto bancário de fls. 182/183).
No entanto, através do extracto bancário de fls. 191/194, provado se mostra também esse recebimento quanto à factura n.º 143.
3 - Relativamente a F (facturas n.ºs 119, 146 e 154), a recorrente não contesta esse recebimento e, efectivamente, o mesmo resulta dos extractos bancários de fls. 200/205 e das cópias dos cheques de fls. 206/209.
4 - Quanto a G (facturas n.ºs 149 e 159), entende a recorrente que não há prova do recebimento.
Assim não é.
Com efeito, no tocante à factura n.º 149, embora a consulta aos extractos bancários de fls. 224 e 225/228, dada a multiplicidade de valores, não permita, sem mais, inferi-lo, todavia decorre da conta de cliente de fls. 139, que foi emitido recibo (n.º 100) atinente àquela factura, o que tem de ser interpretado como manifestação de quitação desse valor.
Por seu lado, quanto à factura n.º 159, o extracto bancário de fls. 225/228, concretamente de fls. 228, bem como a emissão de recibo (n.º 112), consentem a conclusão de que o seu recebimento teve lugar.
5 – A propósito de H (facturas n.ºs 132, 133 e 158), a recorrente preconiza só existir prova do recebimento da factura n.º 158, conforme recibo de fls. 249.
Na verdade, no restante, apenas constam dos autos cópias dos rostos dos cheques de fls. 250 e 251, cuja relação com as mencionadas facturas, ainda que admitida, não redunda em que tenham sido efectivamente cobrados, para o inerente recebimento pela recorrente, além de que o depoimento de C foi no sentido de transmitir essa incerteza, mormente, ao referir-se a não ter logrado obter os elementos necessários, apesar das diligências que encetou.
Acresce que, da informação contabilística de fls. 136, nada se retira, em contrário, como relevante.
6 – No que respeita a I (facturas n.ºs 121 e 145), no entender da recorrente apenas se provou que o recebimento se verificou quanto à factura n.º 121, através do extracto bancário de fls. 263 e das cópias dos cheques de fls. 265 e 266.
Esquece, todavia, que, relativamente à factura n.º 145, idêntico tipo de prova existe, ou seja, o extracto bancário de fls. 264 e verso e a cópia do cheque de fls. 267, pelo que comprovado está, também, esse recebimento.
7 – Relativamente a J (facturas n.ºs 125 e 153), a recorrente defende que nenhuma prova existe nesse aspecto.
Assim não se afigura.
Quanto à factura n.º 125, já que, do extracto de conta da cliente, de fls. 137, é mencionado recibo (n.º 82) coincidente com data de emissão e valor da mesma, o que, na ausência de elementos que o contradigam, tem de interpretar-se como reflexo do recebimento, segundo as regras da experiência e da normalidade dos procedimentos comerciais.
Por seu lado, acerca da factura n.º 153, identicamente de fls. 137 decorre a emissão de um recibo (n.º 106) e de uma nota de crédito (n.º 19), cujo valor no global corresponde ao daquela, em períodos perfeitamente compatíveis com a respectiva data de emissão e a dilação usual para o pagamento.
8 – No que respeita a K (facturas n.ºs 124, 134, 150 e 164), a recorrente não contesta o respectivo recebimento, fundando-se este, efectivamente, na informação de fls. 295/296 e nas cópias dos cheques de fls. 301/310.
9 – Quanto a L (facturas n.ºs 130, 131, 139 e 160), defende a recorrente a ausência de prova do recebimento.
Não tem razão.
Basta atentar no extracto de conta da cliente, de fls. 142, para verificar que foram emitidos os recibos (n.ºs 83, 89 e 114) correspondentes, comprovando esse recebimento.
Analisados ficaram os aspectos invocados a propósito dos clientes que forneceram elementos aos autos.
Na parte sobrante, ainda que a recorrente não o fundamente senão na preconizada ausência de prova do respectivo recebimento, se apreciará a prova disponível na medida do estritamente necessário, tendo em conta que o depoimento de C foi no sentido de ter chegado a conclusão positiva, mas sem que se possa prescindir, porque aqui decisivo, da análise da documentação junta por BB.
Concretizando:
10 – Quanto a M (factura n.º 122), consta de fls. 140 a emissão de recibo (n.º 79) correspondente, comprovando o recebimento.
11 – Acerca de N (facturas n.ºs 123 e 144), o recebimento decorre de fls. 140, através da emissão dos recibos (n.ºs 81 e 103) respectivos.
12 – A propósito de O (facturas n.ºs 126 e 138), apenas existe nota, de fls. 142, da emissão das facturas, sendo que dos elementos contabilísticos de fls. 118 e 126, nada se colhe, antes pelo contrário, para poder afirmar-se que o recebimento se tenha verificado.
13 – Quanto a P (factura n.º 128), embora a emissão da factura conste do extracto de fls. 134 e a conta respectiva, conforme fls. 118, apresente saldo devedor em valor inferior ao da mesma, afigura-se que estes elementos não são suficientes para prova do recebimento.
14 – Sobre Q (facturas n.º 129 e 156),os recibos (n.ºs 84 e 102) que se alcançam de fls. 142 comprovam o recebimento.
15 - No que concerne a R (factura n.º 135), dos elementos disponíveis (fls. 118, 126 e 137), inexiste prova suficiente do recebimento.
16 – Quanto a S (factura n.º 136), resulta emitido recibo (n.º 109), comprovando o recebimento.
17 – Relativamente a T (facturas n.º 137 e 155), revelando-se pela conta a si respeitante que, pelo menos quer em Outubro, quer em Dezembro, de 2009, apresentava saldo credor (fls. 118 e 141), entende-se que o recebimento está suficientemente demonstrado.
18 – No que respeita a U (factura n.º 140), o recibo (n.º 96), conforme fls. 134, revela o recebimento.
19 – Quanto a V (facturas n.ºs 142 e 161), um dos recebimentos está demonstrado pela existência de recibo (n.º 110) e, o outro, pela circunstância de, também através de recibo (n.º 92), neste se incluindo, dado o seu valor global, essa e uma outra factura aqui não relevante (nº. 115), como decorre de fls. 138.
20 – Acerca de W (factura n.º 148), o emitido recibo (n.º 94), de fls. 141, comprova o recebimento.
21 – Respeitante a X (factura n.º 151), consta recibo (n.º 101), conforme fls. 143, denotando o recebimento.
22 – Quanto a Y (factura n.º 152), a consulta aos elementos de fls. 127 e 143 não permite concluir pelo recebimento.
23 – Sobre Z (factura n.º 157), o recibo (n.º 104), como decorre de fls. 137, comprova o recebimento.
24 – Relativamente a AA (factura n.º 162), consta recibo (n.º 111), de fls. 143, revelador do recebimento.
Assim, analisada a prova produzida e examinada, conclui-se, em síntese, que não existe prova cabal do recebimento relativo às facturas n.ºs 126, 128, 132, 133, 135, 138 e 152, pelo que, em conformidade, os montantes relativos a IVA não devem ser considerados como recebidos pela recorrente.
Para além desta circunstância, decorre, ainda, manifesto que os valores recebidos, pelo menos em parte, não o terão sido em Outubro e Novembro de 2009, contrariamente ao dado por provado pelo tribunal.
Como tal, apelando a toda a documentação já aludida, dispensando a sua reprodução, fixam-se (tanto quanto se pode inferir) as datas de recebimento das facturas, como se indica:
119 - 07.Dez.2009
120 - 25.Nov.2009
121 - 23. Out.2009
122 - 01. Out.2009
123 - 01.Out. 2009
124 - 01.Out.2009
125 - 01.Out.2009
127 - 20.Jan.2010
129 - 01.Out.2009
130 - 01.Out.2009
131 - 01.Out.2009
134 - 21.Dez.2009
136 - 01.Dez.2009
137 - 01.Out.2009
139 - 01.Dez.2009
140 - 01.Dez.2009
141 - 30.Mar.2010
142 - 01.Dez.2009
143 - 25.Jan.2010
144 - 01.Dez.2009
145 - 11.Jan.2010
146 - 29.Dez.2009
148 - 01.Dez.2009
149 - 01.Dez. 2009
150 - 10.Fev.2010
151 - 01.Dez.2009
153 - 01.Dez.2009
154 - 29.Nov.2009
155 - 01.Dez.2009
156 - 01.Dez.2009
157 - 01.Dez.2009
158 - 05.Dez.2009
159 - 01.Dez.2009
160 - 01.Dez.2009
161 - 01.Dez.2009
162 - 01.Dez.2009
163 - 15.Mar.2010
164 - 12.Abril.2010
Em razão do que ficou expendido, impõe-se proceder a modificação do facto em apreço e nos termos que adiante se consignarão.

c) -
No tocante ao facto provado em 2.1.5. (“Àqueles montantes de IVA liquidados e recebidos, a arguida deduziu o imposto suportado naquelas operações, referentes a tais períodos (Outubro e Novembro de 2009), o que originou o Imposto apurado de IVA a entregar nos Cofres do Estado, nos seguintes montantes (…)”), a recorrente não apresenta qualquer prova para infirmá-lo, não obstante a referência aos montantes “recebidos” deva ora ter em conta a modificação de facto a que se aludiu.
De qualquer modo, tal facto resultou dos termos em que a recorrente apresentou as declarações periódicas e das deduções que aí verteu, redundando para o cálculo do IVA a pagar, situação que, inevitavelmente, deixou transparecer através da informação que prestou à administração fiscal.
Isso não só decorre do teor dessas declarações, de fls. 41/46, como foi confirmado pelo depoimento de C, pelo que inexiste fundamento para contrariá-lo, a não ser que a recorrente desconhecesse e/ou pusesse em causa o que BB, dentro das suas atribuições, tivesse feito, o que, de todo, não decorre da prova recolhida.
*

Por tudo quanto ficou explicitado, a matéria de facto provada é modificada no seu ponto 2.1.4., sendo que, ainda, à mesma é aditado o ponto de facto 2.1.4.–A., bem como na matéria de facto não provada se insere o ponto 2.2.1., passando a constar deles o seguinte:

2.1.4. Pelos arguidos foi liquidado IVA nos meses de Outubro e Novembro de 2009, nos seguintes montantes:
N.º Factura Data Base Tributária IVA Total Observações (Clientes)
119 Out de 2009 9866,00 1973,20 11839,20 F
120 Out de 2009 2801,00 560,20 3361,20 E
121 Out de 2009 2476,00 495,20 2971,20 I
122 Out de 2009 2196,00 439,20 2635,20 M
123 Out de 2009 657,00 131,40 788,40 N
124 Out de 2009 28,00 5,60 33,60 K
125 Out de 2009 2679,00 535,80 3214,80 J
126 Out de 2009 1310,00 262,00 1572,00 O
127 Out de 2009 7109,00 1421,80 8530,80 D
128 Out de 2009 3449,00 689,80 4138,80 P
129 Out de 2009 993,00 198,60 1191,60 Q
130 Out de 2009 7136,00 1427,20 8563,20 L
131 Out de 2009 317,03 63,41 380,44 L
132 Out de 2009 2404,00 480,80 2884,80 H
133 Out de 2009 105,50 21,10 126,60 H
134 Out de 2009 3616,50 723,30 4339,80 K
135 Out de 2009 893,00 178,60 1071,60 R
136 Out de 2009 537,00 107,40 644,40 S
137 Out de 2009 795,00 159,00 954,00 T
138 Out de 2009 120,00 24,00 144,00 O
139 Out. de 2009 8008,00 1601,60 9609,60 L
Total Out. 2009 57496,03 11499,21 68995,24
140 Nov. 2009 2256,00 451,20 2707,20 U
141 Nov. 2009 5149,00 1029,80 6178,80 D
142 Nov. 2009 1248,00 249,60 1497,60 V
143 Nov. 2009 3647,00 729,40 4376,40 E
144 Nov. 2009 1720,12 344,02 2064,14 N
145 Nov. 2009 1681,00 336,20 2017,20 I
146 Nov. 2009 5183,40 1036,68 6220,08 F
148 Nov. 2009 676,00 135,20 811,20 W
149 Nov. 2009 10002,00 2000,40 12002,40 G
150 Nov. 2009 8770,00 1754,00 10524,00 K
151 Nov. 2009 770,00 154,00 924,00 X
152 Nov. 2009 618,12 123,62 741,74 Y
153 Nov. 2009 2508,00 501,60 3009,60 J
154 Nov. 2009 1740,00 348,00 2088,00 F
155 Nov. 2009 878,00 175,60 1053,60 T
156 Nov. 2009 1676,00 335,20 2011,20 Q
157 Nov. 2009 1931,00 386,20 2317,20 Z
158 Nov. 2009 1851,00 370,20 2221,20 H
159 Nov. 2009 564,00 112,80 676,80 G
160 Nov. 2009 5815,00 1163,00 6978,00 L
161 Nov. 2009 1931,00 386,20 2317,20 V
162 Nov. 2009 1026,00 205,20 1231,20 AA
163 Nov. 2009 2989,00 597,80 3586,80 D
164 Nov. 2009 8204,00 1640,80 9844,80 K
Total Nov. 2009 72833,64 14566,72 87400,37
Total Out./Nov.2009 130329,67 26065,93 156395,93

2.1.4.-A. Pelos arguidos foi recebido o IVA, por referência às seguintes facturas e nos montantes respectivos referidos em 2.1.4., nas datas que se indicam:
N.º Factura Data de Recebimento
119 07.Dez.2009
120 25.Nov.2009
121 23. Out.2009
122 01. Out.2009
123 01.Out. 2009
124 01.Out.2009
125 01.Out.2009
127 20.Jan.2010
129 01.Out.2009
130 01.Out.2009.
131 01.Out.2009
134 21.Dez.2009
136 01.Dez.2009
137 01.Out.2009
139 01.Dez.2009
140 01.Dez.2009
141 30.Mar.2010
142 01.Dez.2009
143 25.Jan.2010
144 01.Dez.2009
145 11.Jan.2010
146 29.Dez.2009
148 01.Dez.2009.
149 01.Dez. 2009
150 10.Fev.2010
151 01.Dez.2009
153 01.Dez.2009
154 29.Nov.2009
155 01.Dez.2009.
156 01.Dez.2009
157 01.Dez.2009
158 05.Dez.2009
159 01.Dez.2009
160 01.Dez.2009
161 01.Dez.2009
162 01.Dez.2009
163 15.Mar.2010
164 12.Abril.2010

2.2.1. Pelos arguidos foi recebido o IVA, por referência às facturas adiante indicadas e nos montantes respectivos referidos em 2.1.4.:
N.º Factura
126
128
132
133
135
138
152
*

Assente a matéria de facto da forma que ficou referida, extraem-se as consequências que da mesma se retiram, ao nível da punibilidade da conduta da recorrente.

Quanto ao enquadramento jurídico, fundamentou-se, designadamente, na sentença recorrida:
O crime de abuso de confiança fiscal encontra-se previsto e punido pelo artigo 105º do RGIT.
Dispõe o n.º 1 deste artigo que “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
E, na alínea a) do n.º 4 deste preceito consigna-se que para a instauração do procedimento criminal pelos factos aí previstos é necessário que tenham decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
Enquanto que a alínea b) deste n.º4 estabelece que “a prestação comunicada à administração tributaria através da correspondente declaração não for paga, acrescida de juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.
O crime de abuso de confiança fiscal tem como pressuposto objectivo a apropriação total ou parcial da prestação tributária, que foi previamente deduzida pelo agente nos termos da lei e que o mesmo está obrigado a entregar ao credor tributário, daí advindo um prejuízo para o património fiscal, não sendo, por isso, necessário que o mesmo retire um proveito directo das quantias retidas (Acórdão do S.T.J. de 12 de Outubro de 2000, in CJSTJ, Ano VIII, tomo 3 , pág. 194).
Ou seja, “O crime de abuso de confiança fiscal é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, haja ou não haja entrega da declaração tributária” (Acórdão da Relação de Coimbra de 11-03-2009).
Filia-se o crime de abuso de confiança fiscal, no seu essencial, na doutrina sobre o abuso de confiança, e que se pode desenhar como a ilegítima apropriação de coisa móvel que foi entregue por título não translativo da propriedade.
Todavia, enquanto no abuso de confiança comum, previsto no artigo 205º, do Código Penal, se exige “...a apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio...”, ou seja, “...a violação da propriedade alheia, através da apropriação sem quebra de posse ou detenção...” (Jorge de Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense ao Código penal, Tomo II, pág. 94), no abuso de confiança fiscal, apenas é necessário a não entrega total ou parcial de prestação tributária.
A não entrega total ou parcial da prestação tributária ou equiparada traduz-se num apropriar-se, num fazer sua coisa alheia, sendo que aqui a apropriação sucede a posse ou detenção.
Inicialmente, o agente obtém, validamente a coisa, passando a possui-la ou detê-la licitamente, a título precário ou temporário, só que a dispor da coisa “ ut dominus ”. Então deixa de possuir em nome alheio e faz entrar a coisa no seu património ou dispõe dela como se fosse sua, ou seja, com o propósito de não a restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava ligada, ou sabendo que não o poderia fazer.
Aqui a inversão do título resulta da não entrega a que o agente estava legalmente adstrito, elemento que releva ainda para a determinação do momento da consumação do ilícito.
Isto é, o crime de abuso de confiança supõe uma entrega válida da coisa móvel, no caso a prestação tributária, ou equiparada, entrega feita por título não translativo da propriedade e que não se justifique a apropriação, antes se constituindo a obrigação de afectação a um uso ou fim determinado, ou de restituição, no caso de abuso de confiança fiscal na entrega à Administração Tributária.
Para que se verifique este elemento basta que o agente esteja investido de um poder sobre a coisa que lhe dê a possibilidade de a desencaminhar ou dissipar, não sendo necessário um prévio acto material de entrega do objecto.
Existe por isso uma relação de confiança, que se traduz no facto de a prestação deduzida ter sido legalmente confiada à entidade substituta para que ela a devolva posteriormente, colocando a lei o devedor substituto numa situação de detenção e de domínio sobre a prestação – entrega jurídica – para que ele posteriormente a devolva.
No caso em apreço nos presentes autos, as prestações tributárias em causa são referentes ao imposto sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.).
“ O imposto sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.) é um imposto que visa tributar todo o consumo em bens materiais e serviços, abrangendo na sua incidência todo o circuito económico desde da produção ao retalho, repercutindo-se o mesmo no consumidor final, fica, assim, a base tributável limitada ao valor acrescentado em cada fase. Determina-se aplicando a taxa ou valor global das transacções da empresa em determinado período, deduzindo o imposto suportado pela empresa nas compras reveladas nas facturadas de aquisição. (...) Trata-se de um imposto de autolançamento, em que a liquidação cabe ao contribuinte.” (Acórdão do STJ de 15 de Janeiro de 1997, in CJSTJ, Ano V, tomo 1, pág. 190).
Está provado nos autos que a arguida estava enquadrada, em termos de I.V.A., no regime normal de periodicidade mensal.
Este regime prevê a obrigatoriedade do sujeito passivo proceder ao apuramento do imposto nos termos dos artigos 19º a 25º e 71º do Código do I.V.A.
O apuramento do imposto é feito nos seguintes termos: os sujeitos passivos deduziram ao imposto incidente sobre as transmissões de bens e prestações de serviços que efectuam (imposto liquidado), o imposto que lhe foi facturado nas aquisições de bens e serviços por outros sujeitos passivos (imposto dedutível). A diferença daí resultante constitui o montante de imposto a entregar ao Estado, no caso do I.V.A. liquidado ser superior ao suportado. E o montante de imposto exigível, apurado nos termos dos preceitos legais referidos, deverá ser entregue no Serviço de Administração do Imposto sobre o Valor Acrescentado, de harmonia com o disposto no nº 1 do artigo 26º e nos prazos previstos no nº1, alínea b) do artigo 40º, ambos do Código do I.V.A., ou seja no caso do arguido até ou décimo quinto dia do segundo mês seguinte àquele a que respeitam as alterações.
Sucede que, como ficou provado nos presentes autos, a arguida, em Outubro e Novembro de 2009, não entregou o valor correspondente à prestação tributária devida aos cofres do Estado, nem no prazo legalmente estabelecido para o efeito nem nos 90 dias subsequentes, [que configura uma verdadeira condição objectiva de punibilidade (Cf. JORGE LOPES DE SOUSA e MANUEL SIMAS SANTOS, in Regime Geral das Infracções Tributárias, Anotado, 2ª Edição, Lisboa, 2003,p. 646)].
Para além disso, também não procederam ao pagamento da prestação em falta, respectivos juros e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.
Em face da factualidade apurada, deve concluir-se que estão preenchidos todos os elementos objectivos deste tipo de ilícito, devendo ainda acrescentar-se que “as prestações parcelares” cobradas a título de IVA que depois não foi entregue nos cofres das Finanças, são todas superiores ao indicado limite dos € 7500,00.
Ou seja e em suma: resultou provado que a arguida B, em representação da sociedade A, procedeu à liquidação e recebimento do IVA apurado na referida facturação, no lapso de tempo acima descriminado.
Porém, não entregou, no respectivo prazo legal, nos 90 dias posteriores, nem no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito, tais quantias, devidas a título de IVA, nos Serviços das Finanças, antes se apropriou das mesmas, as quais fez suas e usou-as para fazer face a outras dívidas da sociedade arguida.
Por outro lado, importa realçar que a arguida actuou em nome e representação da referida sociedade e no interesse dela, já que era a sua sócio-gerente de facto e de direito, pelo que a sua responsabilidade penal devirá dessa actuação em nome de outrem, nos termos previstos no citado art. 6.º do mesmo diploma legal.
Dúvidas não restam, pois, que se encontra preenchido o elemento objectivo do tipo legal em apreço e, bem assim, a apontada condição objectiva de punibilidade aplicável ao caso.
E, desde já se adianta, outro tanto se deve entender relativamente ao elemento subjectivo deste tipo de ilícito.

As considerações gerais operadas na sentença relativamente ao crime por que a recorrente foi condenada apresentam-se pacíficas, não obstante imponham ainda a relevância de dois aspectos que aí não foram expressamente focados, sobretudo, um deles, que poderá assumir relevância na sequência da modificação da matéria de facto provada.
O primeiro, prendendo-se, tão-só, com o tipo da prestação tributária em causa, uma vez que se trata de prestação que, tendo sido recebida, há obrigação legal de a liquidar, remetendo a situação, em rigor, para a previsão do n.º 2 do aludido art. 105.º (Alfredo José de Sousa, in “Infracções Fiscais”, Almedina, 3.ª edição, pág. 109).
Como se sublinhou no acórdão do STA de 28.05.2008 (www.dgsi.pt), No âmbito do IVA fala-se de dedução de imposto relativamente ao imposto que o sujeito passivo tem a receber (…) não se referindo qualquer situação em que o sujeito passivo tenha de entregar imposto que tenha deduzido. De facto, no âmbito do referido direito à dedução, os sujeitos passivos não têm de entregar à administração tributária a prestação tributária que deduziram (…), mas antes, pelo contrário, apenas têm de fazer entrega do imposto na medida em que excede o IVA a cuja dedução têm em direito, isto é, do imposto que não deduziram.
Por seu lado, o segundo, ou seja, aquele que “in casu” poderá revestir interesse, tem a ver com a exigência, ou não, para o preenchimento do tipo legal, de que a prestação tributária tenha sido efectivamente recebida e até que momento.
Aparentemente, a sentença não descurou essa vertente, que já transparecia da acusação, ao ter conferido importância ao recebimento de acordo com a factualidade que considerou provada, mas, contudo, sem que, através da fundamentação, se tivesse detido na mesma.
Em breve síntese, duas tendências se têm desenhado na jurisprudência quanto à necessidade de prova no sentido de saber se o IVA liquidado foi realmente recebido.
Sem preocupação exaustiva:
No sentido negativo, se pronunciaram, os acórdãos: da Relação do Porto de 01.10.2008; da Relação de Lisboa de 04.02.2009: da Relação de Coimbra de 21.09.2011 e de 24.10.2012; e da Relação de Guimarães de 20.11.2006 (acessíveis in www.dgsi.pt); essencialmente fundando-se na circunstância do crime de abuso de confiança fiscal se revestir como um crime omissivo e, como tal, em que a exigibilidade do pagamento do IVA se verifica logo que decorra o prazo para tanto.
Contrariamente, no sentido da exigência do recebimento do IVA, detectam-se os acórdãos: do STJ de 13.12.2001; desta Relação de Évora de 03.12.2009, de 17.09.2013 e de 26.11.2013 (em que o ora relator foi adjunto); da Relação de Coimbra de 27.06.2001, de 15.12.2010 e de 29.02.2012; e da Relação de Guimarães de 09.06.2005, de 13.06.2011, de 03.12.2012, de 13.03.2013 e de 22.04.2013 (todos in www.dgsi.pt).
É esta última a posição que, não obstante a argumentação no sentido diverso, se afigura ser de perfilhar.
Aqui, acompanhamos o vertido no citado acórdão da Relação de Guimarães de 22.04.2103, em que é mencionada, também, doutrina confortante:
É certo que o IVA é devido desde a respectiva venda, facturação, liquidação e declaração aos serviços, e não desde o momento do pagamento da transacção que lhe deu origem. Por isso, o pagamento do IVA liquidado e declarado é exigível logo que decorra o respectivo prazo, tenha ou não sido recebido do devedor seguinte.
Mas se as coisas se passam assim a nível fiscal, não é, porém, lícito concluir que para efeitos criminais, isto é da consumação de um crime de abuso de confiança fiscal, é indiferente saber se ocorreu ou não efectiva a cobrança do imposto aos clientes.
Salvo o devido respeito, importa não confundir a responsabilidade tributária pelo imposto devido com a responsabilidade penal tributária. O facto gerador da responsabilidade tributária é autónomo da responsabilidade criminal: a obrigação tributária existe independentemente do crime.
Também, segundo Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Tributário”, Lisboa, 2009, pág. 113, O facto gerador da dívida de imposto existe independentemente da prática de qualquer crime: a obrigação tributária é autónoma relativamente à responsabilidade penal pela prática de crime tributário e é geralmente proveniente da prática de facto ilícito, ainda que entre a dívida tributária e a responsabilidade pelo crime exista conexão.
Acaba a posição sufragada por fundar-se na configuração jurídica intrínseca ao depósito, subjacente à do contribuinte para efeitos de IVA.
Como refere Paulo Marques, in “Infracções Tributárias, Investigação Criminal”, vol. I, ed. Ministério das Finanças, Direcção-Geral dos Impostos, 2007, págs. 136/137, O depositário terá que receber previamente uma coisa alheia, para se poder entender que inobservou o dever de restituição ao legítimo proprietário. passando a ser infiel depositário («inversão do título da posse»). Se a não tiver recebido previamente, como poderemos falar em incumprimento ilícito e doloso do dever de restituição ou entrega?
Só assim se justificará a intervenção penal e em razão da pressuposta dignidade da culpa do agente.
Se assim é, tornando relevante, pois, além do mais, dilucidar se a recorrente recebeu os montantes liquidados, situação a que o aditado facto provado em 2.1.4. –A. fornece resposta, também o momento importante para essa determinação só pode ser aferido, em concreto, por referência ao disposto no art. 41.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do CIVA, isto é, ter esse recebimento ocorrido até à data em que as declarações periódicas tivessem de ser apresentadas, o que equivale a dizer, até ao dia 15 do 2.º mês seguinte ao mês do ano civil a que respeitam as operações.
Como tal, em concreto, em relação às operações de Outubro de 2009, só se consideram os recebimentos que tenham ocorrido até 15.Dez.2009 e, quanto às verificadas em Novembro de 2009, os que se tenham dado até 15.Jan.2010.
Por isso, tendo em conta o provado em 2.1.4.-A., haverá que excluir, para o efeito de preenchimento do crime:
- quanto a Outubro de 2009, os montantes do IVA das facturas n.ºs 127 e 134 (no global de € 2.145,10);
- relativamente a Novembro de 2009, os montantes do IVA das facturas n.ºs 141, 143, 150, 163 e 164 (no global de € 5.751,80).

Conclui-se, então, para o efeito do disposto no art. 105.º, n.º 1, do RGIT, na medida em que, relativamente a cada uma das declarações em apreço, necessário é que, para o cometimento do crime, seja de valor superior a € 7500, que deduzindo, respectivamente, esse referido valor global (Out.2009 - € 2145,10; Nov.2009 - € 5.751,80) ao valor total de IVA liquidado por cada uma, aditada da dedução dos montantes respectivos reportados às facturas indicadas em 2.2.1., cujo recebimento se não provou (Out.2009 – € 1.656,30; Nov.2009 – € 123,62), se obtém, para a relativa a Outubro de 2009, o montante final de € 7.697,81 e, para a referente a Novembro de 2009, o valor final de € 8.691,30.
Deste modo, nada obsta ao preenchimento do crime, pelo que, apesar da operada modificação da matéria de facto, subsiste fundamento para a condenação da recorrente.

Finalmente, acolhendo no fundamental as razões que determinaram a fixação da pena aplicada, tendo o tribunal ponderado, como se consignou na sentença: - a ilicitude da conduta da arguida face ao montante de imposto não entregue ao Estado e ao modo de execução do crime; - a intensidade do dolo, que se apresenta sob a forma de dolo directo; - as consequências da conduta ilícita: num prejuízo de - € 24.276,1 para a Fazenda Nacional; - a inexistência de antecedentes criminais da mesma natureza, afigura-se que, perante as alterações a que se procedeu na matéria de facto, menor desvalor de acção e de resultado é de imputar ao comportamento.
Tal releva para a apreciação da pena adequada e proporcional, pelo que, não obstante em curta medida, atentando sobretudo nas exigências de prevenção geral, se entende reduzir a pena.
Destarte, fixa-se em 65 dias de multa à razão diária que foi fixada.
*

3. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se:
- conceder parcial provimento ao recurso interposto pela arguida e, assim,
- modificar a matéria de facto nos termos que ficaram explicitados;
- alterar a pena aplicada para 65 dias de multa, à razão diária de €5;
- no mais, manter a sentença.

Sem custas (cfr. art. 513.º, n.º 1, do CPP).
*

Processado e revisto pelo relator.
*
25.Março.2014

Carlos Berguete Coelho
João Gomes de Sousa