Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
170/14.0GBBNV.E1
Relator: GILBERTO CUNHA
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
CONTRA-ORDENAÇÃO
VEÍCULO APREENDIDO
Data do Acordão: 06/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Perante uma contra-ordenação sancionada com uma coima e com a apreensão do veículo automóvel, o agente pratica um crime de desobediência, previsto e punido, pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, se utilizar o veículo automóvel que lhe fora confiado na qualidade de depositário, depois de advertido pela autoridade competente de que não o podia fazer, sob pena de incorrer, caso o fizesse, na prática de um crime de desobediência.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

RELATÓRIO.

Decisão recorrida.

No processo abreviado nº140/14.0GBBNV da Comarca de S – Benavente – Instância Local – Secção Criminal – J1, o arguido EJSD, devidamente identificado nos autos, foi acusado pelo Ministério Público da prática, como autor material de um crime de desobediência, pp. pelo art.348º, nº1, al.b) do Código Penal.
Realizado o julgamento perante tribunal singular, por sentença proferida em 23/1/2015, o arguido foi absolvida da prática daquele crime que a acusação pública lhe havia imputado.

Recurso.

Inconformado com essa decisão dela recorreu o Ministério Público, pugnando pela condenação do arguido pela prática do mencionado crime de desobediência, rematando a respectiva motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:
1. Não obstante o respeito que as decisões judiciais, sempre e em quaisquer circunstâncias merecem, o presente recurso tem por objecto o nosso desacordo relativamente à sentença proferida a 23-01-2015, que absolveu o arguido EJSD, da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
2. Em conformidade com os argumentos desenvolvidos pelo Tribunal “a quo”, a apreensão do veículo que circula não obstante estar apreendido integra a contra-ordenação prevista no artigo 114.º, n.º 5, do Código da Estrada (C.E.), e punida pelo n.º 6, do artigo 114.º, do C.E., pelo que, considerando que o direito penal tem natureza subsidiária, a entidade policial não pode cominar com a prática do crime de desobediência a conduta de quem conduz um veículo apreendido, sendo tal ordem, se emitida, ilegal.
3. Importa saber se independentemente de existir uma infracção administrativa que levou à apreensão do veículo automóvel e respectivas sanções, o arguido pratica um crime de desobediência, previsto e punido, pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, se utilizar o veículo automóvel que lhe fora confiado na qualidade de depositário, depois de advertido pela autoridade competente de que não o podia fazer, sob pena de incorrer, caso o fizesse, na prática de um crime de desobediência.
4. Não obstante dever interpretar-se a matriz do crime de desobediência na modalidade prevista no artigo 348.º, al. b), do Código Penal à luz do princípio da necessidade ou da última ratio do direito penal, tal princípio não determina, inelutavelmente, a ilegalidade material da cominação efectuada pelo órgão de polícia criminal na específica situação que foi objecto de acusação.
5. O crime de desobediência imputado ao arguido EJSD, na acusação, consubstancia-se no facto de o arguido ter conduzido uma viatura, da qual era fiel depositário, tendo sido previamente advertido pela autoridade policial que se o fizesse incorreria na prática de um crime de desobediência.
6. No crime em análise, sanciona-se o fazer ou deixar de fazer aquilo que foi legitimamente ordenado, independentemente das consequências ou do resultado posterior, o resultado é imputado ao sujeito pela simples acção ou omissão.
7. Só haverá ilícito criminal quando o destinatário, ao lhe ser transmitida a ordem ou mandado, sabe que, se os não cumprir, incorre na prática de um crime de desobediência – assim cumpre esclarecer que: a advertência ao arguido feita pela autoridade de que a utilização da viatura após apreensão integraria o crime de desobediência, ao contrário da cominação legal, constitui, aqui, elemento objectivo do tipo, dado que estamos perante uma cominação funcional, para a qual a lei incriminadora, em apreço, exige tal advertência.
8. O Ministério Público discorda do entendimento defendido na sentença recorrida no sentido de que a conduta do arguido constitui apenas uma contra-ordenação, sancionada pelo artigo 114.º, n.º 6, do Código da Estrada e que, por isso, dado o carácter subsidiário da incriminação do artigo 348.º, n.º1, alínea b), do Código Penal, não podia o agente da autoridade efectuar a cominação do crime de desobediência.
9. Importa realçar o entendimento expendido no Acórdão da Relação do Porto de 13 de Janeiro de 2010, (disponível em www.dgsi.pt), a propósito da legitimidade da cominação como desobediência da conduta de condução de veículo apreendido.
10. A conduta do arguido em causa nos presentes autos não é punida a título de ilícito administrativo (contra-ordenação) ou de natureza diversa, contrariamente ao que entende a sentença recorrida.
11. Na verdade, independentemente de qual seja a infracção administrativa que levou à apreensão do veículo automóvel e respectivas sanções, o arguido vem acusado pelo crime de desobediência por utilizar o veículo automóvel que lhe fora confiado na qualidade de depositário, apesar de ter sido advertido de que não podia utilizar o mencionado veículo, sob pena de incorrer, caso o fizesse, na prática de um crime de desobediência.
12. Ora, a utilização de veículo automóvel pelo depositário a quem foi confiado com a obrigação de não o fazer não constitui infracção punível a título diverso do crime de desobediência previsto na al. b), do n.º1, do artigo 348.º, do Código Penal, como se invoca na sentença recorrida, pelo que não é posta em causa a natureza subsidiária daquela incriminação, contrariamente ao suposto pelo tribunal “a quo”.
13. Efectivamente, a argumentação da sentença recorrida confunde duas realidades: a condução em via pública de veículo a motor, sem dispor dos sistemas e componentes ou acessórios com que foi aprovado.
14. A apreensão do automóvel que circula nessas condições tem uma função cautelar ou preventiva, procurando anular-se a potencialidade lesiva que daí decorre.
15. Assim, se o fiel depositário reincidir na condução do automóvel apreendido sem haver regularizado a situação cometerá o crime de desobediência, caso tenha havido a regular cominação com tal crime, cominação essa que deverá considerar-se legal.
16. Não coincidem o âmbito de aplicação das normas em confronto, nem tão-pouco o interesse que visam proteger (no crime de desobediência está em causa o interesse administrativo do Estado em garantir a obediência aos mandados legítimos da autoridade), pelo que não há que fazer apelo ao princípio da fragmentariedade e subsidiariedade do direito penal - neste sentido, vejam-se, entre ouros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de Fevereiro de 2011, Processo n.º 242/07.8PQLSB.L1-5 (disponível em www.dgsi.pt).
17. Deste modo atento o exposto e subsumindo os factos às normas supra referidas, conclui-se que o arguido preencheu com a sua conduta, os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito, do crime de desobediência do artigo 348, n.º 1, al. b), do Código Penal, não podendo, por isso, deixar de ser condenado pela sua prática.
18. Assim, a decisão recorrida deverá ser revogada por ter violado o disposto no artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, que interpretou erradamente, e substituída por outra que, declarando a responsabilidade criminal decorrente dos factos que integram o objecto do processo, condene o arguido na pena de 60 dias de multa à taxa diária de cinco euros, atendendo que o arguido admitiu a prática dos factos de que foi acusado e tendo em consideração as condições pessoais do mesmo que foram apuradas em sede de julgamento.
Admitido o recurso contra motivou o arguido pugnando pela improcedência do recurso com a consequente manutenção da sentença recorrida, concluindo a formulação da seguintes conclusões:
a) Entendeu o Recorrente que o arguido, ora Recorrido, foi indevidamente absolvido do crime de que vinha acusado em virtude de a sua conduta não integrar um crime de desobediência p.p. pela alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do CP.
b) O Recurso que ora se responde, versa exclusivamente sobre a fundamentação de direito e sobre a qualificação jurídica.
c) Discordando das doutas alegações da Recorrente, entendemos que a absolvição resultou do não preenchimento dos elementos típicos do crime em apreciação;
d) O crime em apreço existe apenas para os casos em que nenhuma norma jurídica prevê o comportamento desobediente.
e) A norma em questão alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do CP) apenas deverá ser aplicada de acordo com o princípio da legalidade penal e com o princípio que determina o direito penal como a última ratio.
f) No caso em apreço, a norma infringida pelo arguido consta do n.º 5 do artigo 114.º do CE, sendo punida pelo n.º 6 do referido artigo.
g) Consideramos que nos presentes autos o Tribunal “a quo” procedeu corretamente ao enquadramento jurídico-penal dos factos em apreço.
h) De facto, não pode ser enquadrado no crime de desobediência o não cumprimento pelo arguido de uma ordem de apreensão que não foi, em si, proferida em cumprimento do legalmente estabelecido.
i) Impunha-se, pois, a absolvição do arguido, como bem decidiu a sentença recorrida.
Nesta Instância a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Observado o disposto no nº2 do art.417º do CPP não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar a audiência.
Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO.

Na sentença recorrida foi dada como provada a seguinte factualidade:
«1. No dia 2 de Outubro de 2014, pelas 01h55, na Estrada forno do tijolo, em Benavente, foi interceptado o arguido, que conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula 09-22-NI.
2. Na sequência dessa intercepção, verificou-se que o veículo referido se encontrava apreendido desde 14-02-2014, pela PSP – Esquadra de Trânsito de Oeiras, em virtude de circular sem dispor dos sistemas, componentes ou acessórios com que foi aprovado.
3. O arguido foi constituído fiel depositário do referido veículo, o que lhe foi explicado pelo agente autuante da PSP e do que ele ficou bem ciente, cujo auto de apreensão assinou.
4. O arguido vive com a companheira um filho menor de 11 anos e o filho da companheira de 12 anos numa casa cedida pelos seus pais, ganha EUR. 200,00 durante 4 meses no ano e nos restantes meses do ano recebe o equivalente ao salário mínimo nacional; beneficiam dos abonos de família dos menores;
5. O arguido confessou os factos dados como provados;
6. O arguido tem averbadas no CRC as condenações descritas a fls. 66-72 que se dá(ão) por reproduzido;
Foi dada como não provada a seguinte factualidade:
7. O arguido ficou ciente que não podia circular com o veículo, nem aliená-lo por qualquer forma, sob pena de cometer o crime de desobediência;
8. O arguido sabia que a ordem que recebera era legítima, que emanava de autoridade competente, foi-lhe regularmente comunicada e que lhe devia obediência, tendo faltado ostensivamente ao seu cumprimento ao circular com o veículo em tais circunstâncias.
9. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era vedada por lei e que incorria em responsabilidade criminal.
O Tribunal “a quo” fundamentou a formação da sua convicção da seguinte forma:
A convicção do tribunal baseou-se na ponderação crítica do conjunto da prova produzida em julgamento, (fls. Auto de notícia, fls. 2., documentação de fls. 10-14, CRC), desde logo nas declarações do arguido que admitiu genericamente os factos relativos à fiscalização realizada pela GNR e ainda quanto às suas condições pessoais e no depoimento da companheira quanto às suas condições pessoais. Quanto aos factos dados como não provados os mesmos resultam da conjugação dos factos provados com a apreciação jurídica dos mesmos, que segue.
O tribunal recorrido procedeu ao enquadramento jurídico-penal da factualidade supra descrita do seguinte modo:
Atentos os factos provados cumpre proceder ao seu enquadramento jurídico-penal.
Ao arguido é imputada a prática de um crime de desobediência p.p. pelo art.º 348º/1 al. b) do Código Penal.
Pratica o crime de desobediência, nos termos do artigo 348º n.º1, do Código Penal: “quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”.
Neste tipo legal de crime, tal como nos demais crimes contra a autoridade pública, protege-se a autonomia intencional do Estado, de uma forma particular, a não colocação de entraves à actividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos. Desobedecer é não cumprir, não respeitar “a ordem ou mandado legítimo, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente”.
Temos assim a considerar vários elementos que compõem o tipo objectivo: a ordem ou mandado; a legalidade substancial e formal da ordem ou mandado; a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão; a regularidade da sua transmissão ao destinatário; a violação dessa ordem ou mandado.
De acordo com este preceito legal, o legislador apenas confere relevância criminal à desobediência que tenha desrespeitado uma cominação prévia: legal ou expressa pelo emitente da ordem ou mandado.
Faltar à obediência devida não constitui por si só facto criminalmente ilícito. A dignidade penal da conduta exige que o dever de obediência que se incumpriu tenha uma de duas fontes: ou uma disposição legal que comine, no caso, a sua punição (cominação legal); ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou funcionário competente para ditar a ordem ou mandado (cominação funcional). - Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra, 2001, p. 351;
No caso de cominação legal, a imposição da norma de conduta é feita por norma geral e abstracta anterior à prática do facto. Daí que o crime de desobediência pareça destinado a servir de norma auxiliar (uma vez que fixa as condições básicas do ilícito e da pena) a alguns preceitos de direito penal extravagante que incriminam um determinado comportamento desobediente, sem contudo fixarem uma moldura penal própria Cristina Líbano Monteiro, ob. Cit. p. 353;
No caso de cominação funcional, a relevância penal da conduta resulta da vontade da autoridade ou funcionário, contemporânea da actuação do agente, o que determina que o tipo legal de crime seja entendido como uma norma penal em branco, cuja última determinação caberá ao julgador, no estrito respeito e cumprimento do principio da legalidade, constitucional e legalmente consagrado, e nunca à vontade a determinar em cada caso concreto, por um agente da administração.
O crime previsto na alínea b) do art.º 348º existe apenas para os casos em que nenhuma norma jurídica prevê o comportamento desobediente, o que determina que nas alíneas do nº 1 do art.º 348º se prevêem dois tipos incriminadores distintos.
Do que consta das Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, págs. 407-408, ressalta, com clareza que a actual redacção do preceito expressa a vontade do legislador de apenas conferir relevância criminal às desobediências que tenham desrespeitado uma comunicação prévia: legal ou expressa pelo emitente.
Do que não se pode é prescindir da cominação da punição por desobediência. Faltar à obediência devida não constitui, por si só, facto criminalmente ilícito. A dignidade penal da conduta exige que o dever de obediência que se incumpriu, se não tiver a sua fonte numa disposição legal que comine no caso, a sua punição, como desobediência radique na cominação da punição da desobediência, feita por autoridade ou funcionário competentes para ditar a ordem. Não satisfaz o requisito legal, por isso, a mera cominação de incorrer em procedimento criminal; tal como se exige, na alínea a), que uma disposição legal comine, no caso, a punição da desobediência, a alínea b) requer que a autoridade ou funcionário cominem, no caso, a punição da desobediência.
O requisito da legalidade material e formal do acto, bem como a competência do órgão ou agente que o pratica, emitindo o comando, não dispensa a dimensão negativa e positiva do princípio da legalidade aqui convocadas: o princípio da legalidade negativa da administração, expresso pelo princípio da prevalência da lei em todos os actos e o princípio da legalidade na sua dimensão positiva, segundo o qual o acto só pode ser autorizado ou ter por base a própria lei.
A ordem e o mandado são legítimos quando não contrariam a ordem jurídica no seu todo. A legitimidade é um elemento valorativo global.
Deve entender-se o art. 348º/1 al. b) como uma norma penal instrumental, utilizada pela Administração Publica para obrigar os cidadãos a cumprirem as normas que não têm moldura penal própria, ou seja, existe para as situações em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza, prevê o comportamento desobediente. Só aí se justifica que o legislador se tenha procurado com o vazio de punibilidade, sendo certo que o alargamento indefinido desta norma, colide verdadeiramente com o princípio da legalidade penal.
O legislador deixou em aberto esta norma legal, cabendo ao aplicador do direito integrar as condutas que nele cabem, à luz do princípio da legalidade penal e do princípio que determina o direito penal como a ultima ratio. A não ser assim, cai-se na tipificação discricionária de condutas penalmente puníveis com o risco das desigualdades inerentes e ofensa flagrante do princípio da legalidade. Só a lei formal em sentido jurídico-constitucional fundamente a incriminação e a punição. São inadmissíveis outras fontes neste domínio.
O princípio da legalidade tem uma função de garantia pela limitação do poder de punir do Estado e para a tutela dos direitos fundamentais do Homem. Desdobra-se em três vertentes fundamentais: nullum crimen sine lege previa; nullum crimen sine lege certa e nullum crimen sine lege; em concreto, a lei penal não é retroactiva; a norma legal incriminadora tem de ser certa, isto é tem de determinar com suficiente precisão o facto criminoso. A acção ou omissão em que o facto consiste não pode ser inferido da lei, tem de ser definido por esta. Não é norma incriminadora constitucionalmente válida aquela cujo teor se apaga numa cláusula geral que remeta o seu preenchimento para o arbítrio do julgador. A lei penal incerta é inconstitucional Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Verbo, 1992, p. 54.
O art. 348º/1 al. b) é uma norma controversa, destinada a servir a legislação penal extravagante, mantida pela Comissão Revisora do Código Penal com a preocupação de não desarmar por completo a Administração Pública. Mas é entendimento pacifico que seria excessivo proteger desta forma toda e qualquer ordem da autoridade, devendo restringir-se o seu âmbito de aplicação, ou em rigor, submetendo a sua aplicação aos requisitos do número 1 do art. 348º.
Sendo o crime de desobediência um crime doloso, resta lembrar que o dolo do tipo consiste no conhecimento e vontade de realização da acção típica, distinguindo-se o elemento volitivo (vontade) do elemento intelectual do dolo (conhecimento).
No caso da desobediência o tipo doloso preenche-se sempre que alguém incumpre, consciente e voluntariamente uma ordem ou mandado legítimos regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente.
É sabido que só podem ser objecto de incriminação as condutas que violem bens jurídicos carecidos de tutela jurídico-penal, como decorre dos artigos 29.º da CRP e 1.º do C. Penal. O Direito Penal só deve, pois, intervir quando a sua protecção se revele imprescindível à salvaguarda dos bens jurídicos que sejam fundamentais à defesa do Estado de Direito. E só intervém se e quando os outros ramos do Ordenamento jurídico se revelem incapazes de os defender eficazmente, o que vale por dizer que o Direito penal constitui a ultima ratio.(…)
É neste sentido que se afirma que o Direito Penal é subsidiário dos outros ramos de direito: o que é adequadamente tratado pelos outros ramos do Direito, não deve ser objecto de tutela penal. E é também neste sentido que se considera o Direito Penal fragmentário pois que, “de toda a gama de acções proibidas e bens jurídicos protegidos pelo Ordenamento Jurídico, o Direito Penal só se ocupa de uma parte ou fragmento, se bem que da maior importância.
Este carácter fragmentário do Direito Penal aparece numa tripla forma em todas as actuais legislações penais: em primeiro lugar, defendendo o bem jurídico só contra ataques de especial gravidade, exigindo determinadas intenções e tendências, excluindo a punição da comissão negligente nalguns casos, etc.; em segundo lugar, tipificando só uma parte do que nos demais ramos do Ordenamento Jurídico se considera como antijurídico; e, por último, deixando sem castigo, em princípio, as acções meramente imorais”.
Todos os actos públicos potencialmente lesivos dos direitos fundamentais, estão sujeitas aos princípios da necessidade, exigibilidade e proporcionalidade, previstos no art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, ou seja, as ordens devem visar interesses públicos legalmente previstos e na prossecução destes interesses devem sacrificar no mínimo os direitos dos cidadãos
Em obediência a estes princípios e ao princípio da fragmentariedade do Direito Penal, a punição pela prática do crime de desobediência, previsto no art. 348.º, do C.P., conforme já era reconhecido na redacção do art. 188.º do Código Penal de 1886, tem natureza subsidiária relativamente a outras formas de sancionar a desobediência pelos particulares a normas legais ou a ordens e proibições concretas determinadas por órgãos ou agentes da administração pública, nos quais se enquadra a actividade dos agentes fiscalizadores do trânsito, nestas se enquadrando as normas que prevêem a aplicação de uma coima, sanção contra-ordenacional, para a desobediência a ordens ou proibições relativas à legislação rodoviária,
Uma vez que a incriminação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 348º do Código Penal tem carácter subsidiário, a autoridade ou o funcionário só podem fazer a cominação aí prevista quando o legislador não tenha estabelecido expressamente que o comportamento deve ser sancionado diversamente, seja por uma outra incriminação, seja como um ilícito de diferente natureza.
Ora no caso, como decorre do art.º 162º do CE o legislador previu as consequências para o incumprimento da norma:
Prevê esta norma, no que ora releva:
1 – O veiculo deve ser apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes quando: (…) j) a apreensão seja determinada ao abrigo do disposto no n.º 6 do art.º 114º (…);
2 - Nos casos previstos no número anterior, o veículo não pode manter-se apreendido por mais de 90 dias devido a negligência do titular do respetivo documento de identificação em promover a regularização da sua situação, sob pena de perda do mesmo a favor do Estado.
3 - Quando o veículo for apreendido é lavrado auto de apreensão, notificando-se o titular do documento de identificação do veículo da cominação prevista no número anterior. Nos casos previstos nas alíneas c) a j) do n.º 1, o titular do documento de identificação pode ser designado fiel depositário do respetivo veículo.
Prevê ainda o art.º 161º do CE que:
O documento de identificação do veículo deve ser apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes quando: a) Suspeitem da sua contrafação ou viciação fraudulenta; b) As características do veículo não confiram com as nele mencionadas; e) o veiculo for apreendido;
Nos casos previstos nas alíneas a), c), g), h) e i) do n.º 1, deve ser passada, em substituição do documento de identificação do veículo, uma guia válida pelo prazo e nas condições na mesma indicados.
4 - Nos casos previstos nas alíneas b) e e) do n.º 1, deve ser passada guia válida apenas para o percurso até ao local de destino do veículo.
5 - Deve ainda ser passada guia de substituição do documento de identificação do veículo, válida para os percursos necessários às reparações a efetuar para regularização da situação do veículo, bem como para a sua apresentação a inspeção.
A norma infringida pelo arguido consta no art.º 114º/5 do CE e é punida pelo n.º 6:
É proibido o trânsito de veículos que não disponham dos sistemas, componentes ou acessórios com que foram aprovados ou que utilizem sistemas, componentes ou acessórios não aprovados nos termos do n.º 3.
6 - Quem infringir o disposto no número anterior é sancionado com coima de (euro) 250 a (euro) 1250, sendo ainda apreendido o veículo até que este seja aprovado em inspeção extraordinária.
Ora é patente que no caso em apreço, tendo sido apreendidos os documentos do veículo como consta de fls. 13, deveria ter sido emitida guia válida com vista à regularização pelo arguido das anomalias verificadas na inspeção. Não consta dos autos que tal tenha ocorrido. De qualquer forma, é patente que no mesmo sentido, pelas razões já expostas e pelo facto de o legislador ter previsto outras consequências para a conduta nos casos como os dos autos, entende-se que não estando preenchidos os pressupostos objectivos do tipo legal incriminador, que tem carácter subsidiário, como se disse, por não haver uma ordem legítima a que o arguido tivesse que obedecer. – neste sentido os Acórdãos TRL de 5/12/2007, TRP de 15/12/2010, P. 222/10.6FVNG, in www.dgsi.pt.
Diga-se ainda que não faz sentido que o arguido cometesse o crime de desobediência por circular com o veículo quando estava obrigado a fazê-lo, pelo menos para proceder à regularização da situação verificada (realização de 2ª inspeção).
Face ao exposto, resta concluir pela absolvição do arguido pelo facto de não estarem preenchidos os elementos típicos do crime em apreciação sendo ilegítima a ordem dada ao arguido».

Apreciando.

Objecto do recurso. Questão a examinar.

Tendo em consideração, conforme jurisprudência unânime, que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da correspondente motivação, sem prejuízo de outras questões de conhecimento oficioso, a única questão que daquelas emerge consiste em saber se perante uma infracção administrativa – contra-ordenação - sancionada com uma coima e com a apreensão do veículo automóvel, o agente, ora arguido, pratica um crime de desobediência, previsto e punido, pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, se utilizar o veículo automóvel que lhe fora confiado na qualidade de depositário, depois de advertido pela autoridade competente de que não o podia fazer, sob pena de incorrer, caso o fizesse, na prática de um crime de desobediência.
Na sentença recorrida o arguido que vinha acusado da prática desse crime e foi dele absolvido com o fundamento de que a conduta de quem conduz um veículo automóvel que se encontra apreendido por não dispor dos sistemas, componentes ou acessórios com que foi aprovado não integra a prática desse crime de desobediência mesmo que, no acto de apreensão, o fiel depositário tenha sido advertido de que a condução de tal veículo enquanto vigorasse a apreensão o faria incorrer na prática de tal ilícito criminal.
Considerou o julgador que a apreensão naquelas condições do veículo que posteriormente na vigência da apreensão é detectado a circular na via pública (não obstante estar apreendido) integra a contra-ordenação prevista no artigo 114.º, n.º 5, do Código da Estrada que é punida pelo n.º 6, do mencionado preceito pelo que, considerando o carácter subsidiário da incriminação do art.348º, nº1, al.b), do C. Penal, a entidade policial não pode cominar com a prática desse crime de desobediência a conduta de quem conduz um veículo apreendido naquelas circunstâncias, sendo tal ordem, se emitida, ilegal.
No mesmo sentido se pronunciou o arguido/recorrido.
Ao invés, o recorrente/Ministério Publico defende que o incumprimento pela proibição de circulação do veículo apreendido nas condições apuradas, de que o arguido foi constituído fiel depositário, não é sancionado a título de ilícito administrativo (contra-ordenação) ou de natureza diversa, pelo que entende não ter sido postergado a natureza subsidiária ou fragmentária da incriminação prevista na al. b) do nº 1 do art. 348ª, do C. Penal, pelo que preconiza que o arguido deve ser condenado pela prática desse crime, de que foi acusado e submetido a julgamento.
Desde já antecipamos que assiste razão ao recorrente.
Vejamos.
Em 14-02-2014 o veículo em causa foi apreendido numa acção de fiscalização de trânsito pela PSP em virtude de circular de circular sem dispor dos sistemas, componentes ou acessórios com que foi aprovado, tendo o arguido sido constituído fiel depositário do referido veículo, e advertido de que por isso não podia circular com o veículo, nem aliená-lo por qualquer forma, sob pena de cometer o crime de desobediência, o que lhe foi explicado pelo agente autuante da PSP e do que ele ficou bem ciente, cujo auto de apreensão assinou, que consta de fls.12. documento esse invocado na fundamentação da matéria de facto.
Não obstante aquela advertência, em 2-10-2014 o arguido foi interceptado a conduzir na via pública aquele veículo.
Ao circular naquelas condições (sem dispor dos sistemas, componentes ou acessórios com que foi aprovado) com o veículo o arguido incorreu na contra-ordenação prevista no nº5 do art.114º, do Código da Estrada (C.E) que expressamente diz ser «proibido o trânsito de veículos proibido que não disponham dos sistemas, componentes ou acessórios com que foram aprovados ou que utilizem sistemas, componentes ou acessórios não aprovados, sendo tal procedimento – conta-ordenação - sancionado pelo nº6 dessa norma com a coima de € 250 a € 1250, sendo ainda apreendido o veículo até que este seja aprovado em inspecção extraordinária».
Por sua vez, para o que aqui releva, relativamente aos termos da apreensão dispõe o art.162º, do C. Estrada o seguinte:
1 – O veiculo deve ser apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes quando: (…)
j) A apreensão seja determinada ao abrigo do disposto no n.º 6 do art.º 114º (…);
2 - Nos casos previstos no número anterior, o veículo não pode manter-se apreendido por mais de 90 dias devido a negligência do titular do respectivo documento de identificação em promover a regularização da sua situação, sob pena de perda do mesmo a favor do Estado.
3 - Quando o veículo for apreendido é lavrado auto de apreensão, notificando-se o titular do documento de identificação do veículo da cominação prevista no número anterior. Nos casos previstos nas alíneas c) a j) do n.º 1, o titular do documento de identificação pode ser designado fiel depositário do respectivo veículo.
Ora nas normas acabadas de citar, aplicáveis ao caso de que aqui nos ocupamos, salvo o devido respeito, ao contrário do que é afirmado na sentença impugnada, nelas não se prevê qualquer sanção para o incumprimento pela proibição de circulação do veículo apreendido, fora das situações permitidas (como é o caso, já que nada a esse respeito foi alegado) previstas nos nº4 e 5 do art.161º, do C. Estrada, ou seja, no percurso até ao local do destino do veículo ou para as reparações necessárias a efectuar para regularização da situação do veículo ou para sua apresentação a inspecção, de que o arguido foi constituído fiel depositário.
Nem naquelas normas nem em quaisquer outras, que não foram invocadas, e que nós também não descortinamos, se prevê e pune o incumprimento pela proibição de circulação do veículo apreendido de que o arguido foi constituído fiel depositário (situação essa que perdurava e estava em vigor à data dos factos aqui em causa 2-10-2014), e advertido de que por isso não podia circular com o veículo, nem aliená-lo por qualquer forma, sob pena de cometer o crime de desobediência, sendo nisto que assenta a prática do crime de desobediência por que foi submetido a julgamento.
Como já atrás dissemos não está aqui em causa que a incriminação do art.348º, nº1, al. b), do C. Penal assume natureza fragmentária ou subsidiária, mas antes se no nosso ordenamento jurídico a conduta imputada ao arguido era ou não sancionada com contra-ordenação ou a qualquer outro título sendo, como vimos, a resposta negativa.
Ora, não existindo norma legal que comine com o crime de desobediência aquela materialidade, a situação em apreço embora não seja subsumível na previsão da alínea a) do nº1 do citado art.348ºdo C. Penal, todavia enquadrar-se na previsão da alínea b) da referida disposição legal.
Com efeito, como é salientado por Cristina Líbano Monteiro, em anotação ao referido preceito, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, pag.351, a desobediência tem duas fontes: ou uma disposição legal que comine, no caso, a sua punição; ou na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar a ordem ou o mandado.
A incriminação da al.b) do nº1 do art.348º, do C. Penal existe tão-só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza, prevê um comportamento desobediente.
Efectivamente na Comissão de Revisão do Código Penal foi ponderada a necessidade de se manter o tipo, por servir a múltiplas incriminações extravagantes, restringindo-se, contudo, o âmbito de aplicação da norma àquelas ordens protegidas directamente por disposição legal que preveja essa pena. Porém, sendo considerada a «Administração Pública que temos» e para não desarmar a Administração Pública, à exigência de norma legal prévia acrescentou-se a possibilidade de a autoridade ou o funcionário fazerem a correspondente cominação [Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, pp. 407-408].
São, afinal, desobediências não tipificadas, a ficarem dependentes, para a sua relevância penal, de uma simples cominação funcional. O que não se pode é prescindir da cominação da punição por desobediência. Faltar à obediência devida não constitui, por si só, facto criminalmente ilícito. A dignidade penal da conduta exige que o dever de obediência que se incumpriu, se não tiver a sua fonte numa disposição legal que comine, no caso, a sua punição, como desobediência, radique na cominação da punição da desobediência, feita por autoridade ou funcionário competentes para ditar a ordem.
Retomado o caso concreto em apreciação constatamos que unicamente como corolário da interpretação feita na sentença impugnada, que não faz vencimento, o Exmº Juiz “a quo” considerou não provado que o arguido ficou ciente que não podia circular com o veículo, nem aliená-lo por qualquer forma, sob pena de cometer o crime de desobediência; que sabia que a ordem que recebera era legítima, que emanava de autoridade competente, foi-lhe regularmente comunicada e que lhe devia obediência, tendo faltado ostensivamente ao seu cumprimento ao circular com o veículo em tais circunstâncias e que agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era vedada por lei e que incorria em responsabilidade criminal.
Ora, não vindo invocada qualquer outra razão, que este tribunal também não vislumbra, e considerando que do documento de fls.12 invocado pelo julgador na fundamentação da matéria de facto, assinado pelo autuante e também pelo aqui arguido, consta expressamente que este foi no acto advertido e ficou ciente que não podia circular com o veículo, nem aliená-lo por qualquer forma, sob pena de cometer o crime de desobediência e sabido também que a intenção se define pela relação à infracção e é uma forma de imputação que se preenche com a representação do facto em alguma das três modalidades de dolo admitidas nos nºs 1, 2 e 3 do art.14º do C. Penal, pertencendo à vida interior de cada um sendo, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só sendo possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção, no caso vertente, impõe-se concluir pela verificação da intenção e da consciência da ilicitude tal como foi imputado ao arguido na acusação, pelo que consequentemente aqueles factos devem ser considerados incluídos nos factos provados e excluídos dos não provados.
Resulta do texto da decisão impugnada que o tribunal “ a quo” ao dar como não provados aqueles factos, extraiu uma conclusão ilógica, irrazoável e arbitrária e visivelmente violadora das regras da experiência comum, que deve presidir à valoração da prova e à formação da convicção do julgador, incorrendo em erro notório na apreciação da prova (art.410º, nº2, al.c) do CPP).
Este vício, de que este tribunal pode oficiosamente tomar conhecimento, no caso não determina o reenvio do processo para novo julgamento, ainda que restrito a essa questão, pois os autos contem todos os elementos que permitem que este tribunal ad quem proceda à alteração nos termos supra mencionados da matéria de facto (art.426º, nº1 do CPP).
Considerando a materialidade apurada - a que já constava dos factos dados como provados na sentença recorrida e aquela que agora se determinou que fosse excluída dos não provados e incluída nos factos provados - mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de desobediência pp. pelo artigo 348º, nº1, al. b) do Código Penal, de que o arguido vinha acusado e pelo qual foi submetido a julgamento.
Assente a culpabilidade do arguido (art. 368º do C.P.P.), impõe-se proceder à escolha da espécie e determinação da medida da pena concreta a aplicar, de harmonia com o disposto nos artigos 369º e segs. do C.P.P. e 70º e segs do C. Penal.
Porém, tal decisão, como temos vindo a entender em situações idênticas anteriores, deverá ser proferida pelo tribunal a quo e não por este tribunal ad quem.
Com efeito, não obstante a divergência jurisprudencial existente sobre o tema, de todos conhecida, continuamos a entender que essa é a solução imposta pelo princípio do duplo grau de jurisdição, consagrado constitucionalmente no art. 32º nº 1 da Lei Fundamental que, desde a IV Revisão Constitucional (Lei 1/97), consagra expressamente o direito ao recurso entre as garantias de defesa reconhecidas ao arguido.
Caso fosse o tribunal ad quem a proceder à determinação da espécie e medida da pena nos casos, como o presente, de irrecorribilidade da decisão do Tribunal da Relação que revoga decisão absolutória proferida em 1ª instância (cfr. art.s 400º nº 1 al. e) do CPP, seria suprimido indevidamente um grau de jurisdição, pois retirava-se ao arguido a possibilidade de ver apreciada em 2ª instância a decisão proferida em matéria de determinação da sanção.
Por outro lado, é essa a solução imposta pelo nosso modelo - processual e substantivo - de determinação da sanção.
Acresce, como é referido, entre outros, pelo acórdão desta Relação de 19-12-2006, proc.nº1752/06-1 relatado pelo Senhor Desembargador António João Latas, disponível em www.dgsi.pt a relativa autonomização do momento da determinação da sanção (quase cesure), leva a que só depois de decidida positivamente a questão da culpabilidade, o tribunal pondere e decida sobre a necessidade de prova suplementar com vista à determinação da sanção (cfr. arts.369º nº2 e 370º, do CPP) e eventual reabertura da audiência (cfr.art.371º do CPP), na qual pode ser necessário, para além do mais, ouvir o próprio arguido.
Finalmente, como destaca Damião da Cunha, in O Caso Julgado Parcial – Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção Num Processo de Estrutura Acusatória, Porto 2002, Publicações Universidade Católica, pag.410 “ os direitos de defesa do arguido, no âmbito da determinação da sanção, (…) [assumem] também uma função positiva, dentro das eventuais possibilidades de sancionamento que estejam dependentes da sua livre «vontade» “, como sucede nos casos em que é suposto o consentimento do condenado (v.g. prestação de trabalho a favor da comunidade, sujeição a tratamento médico ou plano individual de readaptação social no âmbito da pena de suspensão da execução da pena de prisão).
Assim, para além da necessidade de se cumprir o princípio do duplo grau de jurisdição, também o cabal cumprimento das normas de direito processual e substantivo relativas à escolha da espécie e determinação da pena, implicam que deva ser o tribunal de 1ª Instância a proferir a respectiva decisão, depois de ponderar sobre a eventual necessidade de reabrir a audiência e de ordenar ou levar a cabo quaisquer diligências que entenda serem adequadas.
Nesta conformidade e sem mais desenvolvidas considerações por desnecessárias, impõe-se conceder provimento ao recurso, revogando-se em consequência a sentença impugnada que deverá ser substituída por outra, que nos termos expostos condene o arguido pela prática em autoria material de um crime de desobediência, pp. pelo art.348º, nº1, al.b) do Código Penal.


DECISÃO.

Nestes termos e com tais fundamentos concede-se provimento ao recurso e, em consequência, decide-se:
- a) Revogar a sentença recorrida, devendo ser substituída por outra que nos termos expostos condene o arguido, pela prática de um crime de desobediência simples pp. pelo art.348º, nº1, al. b) do C. Penal;
- b) Determinar que o tribunal recorrido proceda à escolha da espécie e determinação da medida da pena a aplicar, após eventual produção de prova suplementar e reabertura da audiência, nos termos dos artigos 369º, 370º e 371º, do CPP.
Sem custas.
Évora, 30 de Junho de 2015.
(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).