Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
215/18.5T8SLV.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: LEGITIMIDADE PROCESSUAL
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 12/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O interesse, enquanto elemento definidor da legitimidade processual, vai para além do mero interesse, ainda que jurídico, na procedência ou improcedência da acção. Exige-se também que esse interesse em demandar ou contradizer seja directo, não bastando um mero interesse indirecto, reflexo ou derivado (artigo 30º do C.P.C.).
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 215/18.5T8SLV.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) instaurou a presente acção declarativa comum contra (…) – Agência Imobiliária S. A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe uma indemnização no montante de € 8.015,05, a que acrescem os juros legais que se vencerem, desde a data da citação, até integral pagamento.
Para o efeito alegou, em resumo, que celebrou com a R. um contrato através do qual o A. lhe entregou um imóvel mobilado, devidamente identificado nos autos, para que aquela o aplicasse na exploração da actividade de prestação de serviços de alojamento temporário, nos termos previstos no regime jurídico da instalação, exploração e funcionamento dos empreendimentos turísticos (D.L. 15/2014, de 23/1). Assim, e por força desse contrato, a R., no Verão de 2017, dispôs do referido imóvel, sendo que na semana de 14 a 21 de Setembro, angariou seis clientes estrangeiros para aí se alojarem. Sucede que tais clientes, numa festa que organizaram no dito imóvel, causaram vários danos no mesmo, que totalizaram o montante de € 4.541,53. Além disso, pelo período de cinco semanas durante as quais a casa não esteve em condições de ser usada, dado o modo com foi vandalizada pelos clientes da R., deve esta pagar ao A., a título de lucros cessantes, o montante de € 4.973,52. Todavia, aos valores acima referidos, deve ser descontada a quantia inerente à caução, no montante de € 1.500,00, que o A. recebeu e lhe foi entregue pela R.
Devidamente citada para o efeito, veio a R. excepcionar a sua legitimidade para figurar na presente lide, alegando, em suma, que a petição não a identifica como sendo ela a causadora dos danos e prejuízos invocados, referindo que os autores dos danos e prejuízos alegados foram (…), (…), (…), (…), (…) e (…), sendo certo que foi a sociedade (…) Solutions, (…) Portugal, SA, quem efectuou a reserva da moradia em nome das pessoas supra indicadas, servindo apenas a R. de intermediária na reserva entre aqueles e o A.
Notificada a A. para, querendo, se pronunciar quanto à invocada excepção, veio a mesma pugnar pela sua improcedência alegando, em síntese, que a R. responde pelos actos ilícitos praticados pelos seus clientes.
De seguida foi proferido despacho saneador, pelo qual a M.ma Juiz “a quo” julgou procedente a excepção de ilegitimidade passiva deduzida pela R. e, em consequência, determinou a sua absolvição da instância.

Inconformado com tal decisão dela apelou o A., tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
I - Se a presente acção tivesse sido intentada, somente, contra os cidadãos que vandalizaram a casa do autor, os mesmos, após quatro ou cinco anos de rotação de cartas rogatórias, expedidas para diferentes países, com os textos do processo traduzidos nas línguas dos destinatários, se, por caridade e sentido cristão de cooperação com a Justiça Portuguesa, se dessem ao trabalho de nomear advogado e contestar a acção, viriam dizer que eram parte ilegítima, nos termos do artigo 30.º do Código de Processo Civil, dado não saberem quem é o autor e nunca terem tido qualquer relação jurídica com o mesmo.
II - Perante o apuro formal da sentença recorrida, chega-se ao ponto em que se é obrigado a concluir que se a acção tivesse sido intentada, somente, contra os autores materiais dos danos, os mesmos, sem apelo nem agravo, seriam parte ilegítima, dado que entre eles e o autor jamais existiu qualquer relação de qualquer natureza.
III - A Ré obrigou-se a promover “junto de operadores Nacionais e internacionais” a comercialização do “imóvel para a finalidade a que se contrata”, a qual, foi: “A prestação de serviços de alojamento temporário nos termos do vigente regime jurídico da instalação, exploração e funcionamento dos empreendimentos turísticos, conforme Decreto-Lei n.º 15/2014, de 23 de Janeiro.”
IV - A entidade que procedeu à actividade de “Prestação de serviços de alojamento temporário (…)” foi a (…) e não o autor, que se limitou a ceder o seu imóvel para esse fim. O que foi ignorado, na decisão recorrida.
V - A Ré recebeu dos utentes, ou consumidores, a remuneração que lhes pediu pelo uso do imóvel. A qual o autor desconhece, mas que a habilitava a remunerar o autor, nos termos do anexo I ao texto do contrato, junto aos autos, não sendo, ao contrário do que pretende, uma simples intermediária.
VI - A Ré é a entidade que a lei qualifica como: “titular da exploração do estabelecimento de alojamento local”, embora, através de um sistema de agências, ou entidades comerciais angariadoras dos utentes dos “serviços de alojamento temporário” (os consumidores) procure dissipar a sua actividade, atribuindo-a ao proprietário do imóvel, pelo que é parte legítima na acção.
VII - Na sentença recorrida escreveu-se:
“Por força desse contrato, a Ré angariou seis clientes que ocuparam a casa, no Verão de 2017, entre 14 e 21 de Setembro, tendo estes causado danos decorrentes da degradação da casa e dos seus cómodos no montante de € 4.541,53 e lucros cessantes no montante de € 4.973,52.”
O que é verdade, mas não consubstancia toda a verdade, porque a douta sentença não esclareceu de quem eram esses seis clientes. Menciona-os, mas não atribuiu qualquer relevo à questão de saber a quem os mesmos pagavam o preço de utilização da casa do autor.
VIII - Os seis cidadãos estrangeiros eram, tal como a acção foi escrita e formulada, clientes da Ré e somente da Ré, limitando-se o autor a ser fornecedor da mesma, por que a habilita com um imóvel, que ela utiliza para vender: a dita “prestação de serviços de alojamento temporário”.
IX - Sobre a Ré, devido à sua qualidade, recaiam as obrigações e deveres previstos no artigo 16.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 15/2014, de 23 de Janeiro, o que a fazia responder pela: idoneidade do edifício para a prestação de serviços de alojamento; que o mesmo respeita as normas legais e regulamentares aplicáveis; independentemente da existência de culpa, pelos danos causados aos destinatários dos serviços ou a terceiros, decorrentes da actividade de prestação de serviços de alojamento, em desrespeito ou violação do termo de responsabilidade referido na alínea b) do nº 2 do artigo 6º.”
X - O vocábulo terceiros, inserido no texto da disposição legal citada, inclui o autor, ou seja, o dono do imóvel temporariamente locado.
XI - A interpretação que a Ré faz do estatuído no n.º 3 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 128/2014 não é consistente, nem pode ser aplicada no ordenamento jurídico nacional, por que procede a uma violação do princípio da igualdade de todos os cidadãos, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República.
XII - O termo de responsabilidade, mencionado no n.º 2, alínea b), do artigo 6.º, revela que o legislador quis, que se garanta “a idoneidade do edifício ou sua fração autónoma para a prestação de serviços de alojamento e que o mesmo respeita as normas legais e regulamentares aplicáveis;” o que só se pode interpretar como a subordinação da entidade “titular da exploração do estabelecimento” à aplicação de todas as normas legais e regulamentares em vigor em Portugal e entre elas, naturalmente, o Código Civil.
XIII - A Ré, ao vender, no mercado, o direito à ocupação e fruição do imóvel do autor, praticou um acto comercial lucrativo, destinado ao seu enriquecimento, pelo que, quando os ditos consumidores, ou utentes se instalam no imóvel estão a agir, reciprocamente, no interesse da Ré e no interesse pessoal deles.
XIV - Logo “os prepostos agiram, ao momento da prática do facto danoso, no interesse do preponente.” Pelo que se conclui que a relação de “comitente” e “comissário” entre a Ré e os utentes do imóvel do autor foi alegada e está confirmada.
XV - Os prepostos pagaram um preço à Ré pela fruição do imóvel do autor, logo, quanto usaram e fruíram a casa do autor agiram no interesse da Ré e no seu próprio interesse, pelo que “agiram, ao momento da prática do facto danoso, no interesse do preponente.” Sendo esta a realidade, tal como a acção foi escrita.
XVI - Logo, o previsto no artigo 500.º e seguintes do Código Civil é aplicável à presente relação jurídica, discutida nestes autos.
XVII - Sobre a Ré recai a obrigação de, nos contratos, prever a obrigação dos utentes ou consumidores não danificarem, nem emporcalharem os imóveis que vão usar e fruir; estatuindo, também, que terão de indemnizar os proprietários dos mesmos e a própria Ré, por todos os danos que provoquem.
XVIII - Se a Ré tivesse agido com a diligência que lhe é exigível teria contratado os mecanismos que lhe permitiriam reclamar a aplicação da “dependência funcional que pode resultar de uma qualquer relação jurídica, mas também de uma mera relação económica, de índole pessoal ou social.”
XIX - Na sentença recorrida considerou-se legal e oponível ao autor a cláusula contratual, segundo a qual: “primeiro outorgante (… – Agência Imobiliária, SA) em caso algum será responsável seja a que título for, por qualquer dano ou prejuízo causado ao imóvel pelos clientes finais ou por terceiros (…)”
XX - Porém, a dita cláusula está ferida da nulidade estatuída no artigo 294.º do Código Civil, por ser celebrada contra “disposição legal de caráter imperativo”. Sendo que a disposição legal de carácter imperativo, que impede que o n.º 7 da cláusula terceira do contrato seja aplicável e vigore, na Ordem jurídica nacional, é a do n.º 2 do artigo 280.º do Código Civil.
XXI - Se, se concluir que o texto do estatuído no n.º 7 da cláusula terceira do contrato, vigora no território nacional, por ser compatível com a Ordem Pública Nacional e não ser ofensivo dos bons costumes, então, nessa eventualidade, são as normas essenciais à formulação dessa conclusão, constantes dos números 2 e 3 do artigo 9.º do Código Civil que são inconstitucionais, por violarem os seguintes preceitos da constituição da república: Artigo 2.º; nº 2 do artigo 12.º; nº 4 do artigo 20.º.
XXII - O inciso contratual em causa, é de tal modo ilegal, por violar a Ordem Pública, os bons costumes e o equilíbrio das relações entre as partes num negócio jurídico, que constitui uma esperteza de mau gosto.
XXIII - A douta sentença esqueceu que o autor, na petição, alegou que:
1.º) A Ré é uma sociedade comercial, que, entre outras, explora e vende a terceiros, a actividade de locar casas para os mesmos, nelas se encontrarem durantes curtos períodos;
2.º) A Ré age nesses termos, tendo em vista o lucro;
3.º) A Ré publicita essa sua actividade, na Internet, no seu sítio, ao qual se acede, escrevendo a sua designação social, em qualquer motor de busca – facto público e notório;
4.º) A Ré publicitou o imóvel do autor, pelos meios que melhor entendeu, “junto de operadores Nacionais e internacionais” como sendo destinado à “prestação de serviços de alojamento temporário nos termos do vigente regime jurídico da instalação, exploração e funcionamento dos empreendimentos turísticos, conforme Decreto-Lei n.º 15/2014, de 23 de Janeiro”;
5.º) Actividade que era prosseguida pela Ré e não pelo autor, que não é uma agência de turismo.
6.º) Os cidadãos estrangeiros, que se instalaram em casa da Ré e decidiram, durante a festa que lá realizaram, destruir a mesma, foram contratados pela Ré, e tinham com ela uma relação de comissários.
Factos que são idóneos a determinar a responsabilidade civil da Ré pelos danos causados pelos seus clientes, no imóvel do autor.
XXIV - Termos em que se pede que a sentença recorrida seja removida da ordem jurídica nacional e substituída por outra, que declare a Ré parte legítima, por que, decidindo desse modo, se faz Justiça, timbre desse Alto Tribunal.
Pela R. foram apresentadas contra alegações de recurso, nas quais pugna pela manutenção da sentença recorrida.

Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art.º 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (artigo 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pelo A., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se a R. é (ou não) parte legítima para ser demandada na presente acção.

Apreciando, de imediato, a questão suscitada pelo recorrente importa, desde já, ter presente o que, a tal respeito, dispõe o art. 30º do C.P.C.:
1 - O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor.
Desta norma resulta que o interesse, enquanto elemento definidor da legitimidade processual, vai para além do mero interesse, ainda que jurídico, na procedência ou improcedência da acção. Exige-se também que esse interesse em demandar ou contradizer seja directo, não bastando um mero interesse indirecto, reflexo ou derivado (neste sentido vide Teixeira de Sousa, A Legitimidade Singular em Processo Declarativo, BMJ 292, pág. 75).
A legitimidade é um pressuposto processual, ou seja, uma condição necessária para o juiz se ocupar do mérito da causa. Com efeito, para que o juiz possa apreciar do fundo da causa, não basta que as partes tenham personalidade judiciária, capacidade judiciária e estejam devidamente representadas. É necessário que sejam dotadas de legitimidade para aquela lide em concreto.
Por isso, afirma Antunes Varela que, ser parte legítima na acção, quer significar, “ter poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista; e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é directamente atingida pela providência requerida” – Cfr. Manual de Processo Civil, 2ª ed. revista e actualizada, págs.128 e 129.

Ora, voltando agora ao caso em apreço, constata-se, da factualidade carreada para os autos, que os actos que geraram os danos no imóvel propriedade do A. foram praticados por força da existência de um contrato celebrado entre o A. e a R., no âmbito da actividade comercial exercida por esta última.
Na verdade, do teor do referido contrato, resulta claro que o A. entregou à R. um imóvel, devidamente mobilado, para que esta o aplicasse na exploração da actividade de prestação de serviços de alojamento temporário, nos termos que se encontram previstos no D.L. 39/2008, de 7/3, com a redacção actual, dada pelo D.L. 15/2014, de 23/1.
Com efeito, resulta claro que a R., colocando a casa do A. no mercado, explora a actividade comercial de “prestação de serviços de alojamento temporário”, pela qual é ou foi remunerada.
Para o A., tal como a causa de pedir está descrita na petição inicial, os cidadãos estrangeiros que praticaram os danos no imóvel são clientes da R. e o A., ele próprio, também, é cliente da R., sendo seu fornecedor, porque a habilita com um imóvel, o qual esta utiliza para vender a dita “prestação de serviços de alojamento temporário”.
Por isso, a R., como entidade gestora do alojamento local está obrigada a controlar o que os seus clientes fazem no imóvel do A., não podendo permitir que tudo suceda e ocorra, como estes melhor desejem e queiram, pois é a R. que recolhe o ganho, ou benefício da actividade por ela comercializada, sendo a R. quem, nos termos do artigo 4.º do regime jurídico regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de alojamento local, constante do D.L. 128/2014, de 29/8, exerce a “actividade de prestação de serviços de alojamento”.
E, o nº 2 do referido preceito legal estatui que:
- Presume-se existir exploração e intermediação de estabelecimento de alojamento local quando um imóvel ou fração deste:
a) Seja publicitado, disponibilizado ou objeto de intermediação, por qualquer forma, entidade ou meio, nomeadamente em agências de viagens e turismo ou sites da Internet, como alojamento para turistas ou como alojamento temporário; ou
b) Estando mobilado e equipado, neste sejam oferecidos ao público em geral, além de dormida, serviços complementares ao alojamento, nomeadamente limpeza ou receção, por períodos inferiores a 30 dias.
Além disso, o n.º 3 do artigo 16.º do mesmo diploma legal estipula que:
– Sem prejuízo de outras obrigações previstas no presente decreto-lei, o titular da exploração do estabelecimento de alojamento local responde, independentemente da existência de culpa, pelos danos causados aos destinatários dos serviços ou a terceiros, decorrentes da actividade de prestação de serviços de alojamento, (...).
Sendo certo que, nos termos do n.º 1 da citada disposição legal:
– Em todos os estabelecimentos de alojamento local deve existir um titular da exploração do estabelecimento, a quem cabe o exercício da actividade de prestação de serviços de alojamento.
Daí que, por força das disposições legais supra citadas, é nosso entendimento que a R. consubstancia a posição de “titular da exploração do estabelecimento, a quem cabe o exercício da actividade de prestação de serviços de alojamento”, sendo que, por isso, responde, “independentemente da existência de culpa, pelos danos causados (...) a terceiros, decorrentes da actividade de prestação de serviços de alojamento”.
Por último, sempre se dirá que, ressalvado o devido respeito, não é possível sustentar – como o faz a decisão sob censura – que a eventual responsabilidade da R. está afastada, de todo, por virtude da cláusula 3ª, ponto 7, do contrato celebrado entre as partes, na qual se prevê que o primeiro outorgante (a R.), em caso algum será responsável, seja a que título for, por qualquer dano ou prejuízo causado ao imóvel pelos clientes finais ou por terceiros.
A tal propósito, diremos apenas que, a nossa visão, é que tal cláusula sempre será nula, por ter sido celebrada contra “disposição legal de carácter imperativo” (cfr. artigo 294º do Cód. Civil).
Acresce que a “disposição legal de carácter imperativo” – que impede que a dita cláusula 3ª, ponto 7, do aludido contrato seja aplicável e vigore na ordem jurídica nacional – é a que consta do nº 2 do art. 280º do Cód. Civil, a qual estipula que “é nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.”
Na verdade, uma cláusula contratual pela qual uma das partes de um contrato se exclui, de forma expressa, de toda e qualquer responsabilidade dos actos praticados pelas pessoas que ela angaria e coloca num imóvel alheio, para com o temporário arrendamento desse imóvel, ganhar dinheiro e obter lucros, é, indubitavelmente, contrária à ordem pública nacional e, manifestamente, ofensiva dos bons costumes, pelo que, a consequência a retirar daí, é ser nula a dita cláusula, o que aqui se declara para os devidos e legais efeitos.
Deste modo, atentas as razões e fundamentos acima expostos, forçoso é concluir que a sentença recorrida não se poderá manter, de todo, revogando-se a mesma em conformidade e, consequentemente, declara-se a R. como parte legítima na presente acção, devendo os presentes autos prosseguir os seus ulteriores termos na 1ª instância (onde deverá ser apreciado, desde logo, o incidente de intervenção principal provocada suscitado pela R. na sua contestação – cfr. arts. 17º e 18º do referido articulado).

Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:

- O interesse, enquanto elemento definidor da legitimidade processual, vai para além do mero interesse, ainda que jurídico, na procedência ou improcedência da acção. Exige-se também que esse interesse em demandar ou contradizer seja directo, não bastando um mero interesse indirecto, reflexo ou derivado (cfr. artigo 30º do C.P.C.).
- Para o A., tal como a causa de pedir está descrita na petição inicial, os cidadãos estrangeiros que praticaram os danos no imóvel são clientes da R. e o A., ele próprio, também, é cliente da R., sendo seu fornecedor, porque a habilita com um imóvel, o qual esta utiliza para vender a dita “prestação de serviços de alojamento temporário”.
- Por isso, resulta claro que, em função da posição das partes na relação material controvertida, tal como ela foi configurada e apresentada pelo A. na petição inicial, a R. é parte legítima na presente acção.


Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, nos exactos e precisos termos acima explanados.
Custas pela R., ora apelada.
06-12-2018
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás

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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).