Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
573/16.6T8STC.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
NEGLIGÊNCIA
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - A deserção da instância resulta da falta, negligente, de impulso da parte em promover o andamento do processo quando só a ela incumbe fazê-lo;
- Por isso, a deserção da instância constitui um meio que pretende combater a eternização dos processos quando a parte que está onerada com o impulso da instância revela desinteresse ou inércia na tramitação destinada a prover à resolução do litígio.
- A negligência a que se refere o artigo 281.º, n.º 1, do C.P.C., é a negligência processual retratada objectivamente no processo, pelo que a assunção pela parte de uma conduta omissiva que, necessariamente, não permite o andamento do processo, estando a prática do acto omitido apenas dependente da sua vontade, é suficiente para caracterizar a sua negligência e, por via disso, inexiste fundamento legal, nomeadamente à luz do princípio do contraditório, para a prévia audição das partes nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do C.P.C.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 573/16.6T8STC.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

Na presente acção declarativa comum que os AA., (…) e mulher, (…), instauraram contra os RR., (…) e mulher, (…) e (…), veio a ser proferida decisão pela M.ma Juiz “a quo” a julgar deserta a instância, atendendo a que o processo se encontrava a aguardar o impulso processual das partes há mais de 6 meses, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, nºs 1 e 4, do C.P.C.

Inconformado com tal decisão dela apelou o A. (…), tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1ª - O Autor foi notificado, em 14/09/2019, do despacho com a refª 87997577, para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos certidões de óbito ou assento de nascimento onde estivessem averbados os óbitos de (…), (…), (…) e (…);
2ª - Por despacho, datado de 26/05/2020 (90302180), notificado ao Autor em 01/06/2020, foi declarada “deserta a instância” e julgada “extinta a instância por deserção”;
3ª - Entendeu a Mmª Juiz que os presentes autos se encontravam “parados, por falta de impulso processual das partes, desde Setembro de 2019”;
4ª - Nos termos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Civil, “considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”;
5ª – Salvo melhor opinião, à data em que foi proferido o despacho, datado de 26/05/2020, (90302180), de que ora se recorre, ainda não tinha decorrido o prazo superior a 6 meses para que pudesse ser declarada deserta a instância e extinta a mesma;
6ª – Do despacho recorrido não consta que o processo esteja parado, por falta de impulso processual por parte do Autor há mais de seis meses nem sequer que a ausência de impulso processual se deva a negligência daquele, pelo que inexiste fundamentação do mesmo;
7ª - Previamente ao despacho, não foi facultado às partes o direito a exercerem o contraditório relativamente à eventual deserção de instância;
8ª – A deserção da instância cominada no n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Civil não opera automaticamente pelo decurso do prazo superior a seis meses sem que exista impulso processual pelas partes;
9ª- Exigindo-se ainda que o tribunal diligencie, antes da declaração de deserção da instância, do circunstancialismo factual que permita sustentar a afirmação do comportamento negligente da parte que pretende sancionar-se com a cominada deserção;
10ª – É este o entendimento unânime da jurisprudência, veja-se: Ac. TRE, proferido em 26/03/2020, no âmbito do Proc. 2095/16.6T8SLV.E1; Ac. TRE, proferido em 28/02/2019, no âmbito do Proc. 2998/10.1TBDAR.E2, todos consultados em 07/07/2020, in www.dgsi.pt;
11ª – Assim, o douto despacho recorrido violou o disposto nos artigos 3.º, 195.º e 281.º do Código Processo Civil.
12ª - Termos em que deverá ser julgado procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se o prosseguimento dos autos, como é de direito e de inteira Justiça.
Pelos RR. não foram apresentadas contra-alegações de recurso.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável ao recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo 635.º) [3] [4].
Por isso, todas as questões que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pelo A., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se ainda não haviam decorrido os 6 meses para que a instância fosse declarada extinta por deserção, nem existiu comportamento negligente da sua parte para que pudesse ser sancionado com a aludida deserção da instância, prevista no artigo 281.º, n.º 1, do C.P.C..

Apreciando, de imediato, a questão suscitada pelo recorrente importa, desde já, ter presente o que, a tal propósito, dispõe o artigo 281.º, n.º 1, do C.P.C. que passamos a transcrever:
- Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
Deste modo, constata-se que a deserção da instância declarativa depende da falta de impulso processual durante mais de seis meses e da negligência da parte onerada com tal impulso processual.
Ora, com este meio da deserção pretendeu o legislador combater a eternização dos processos quando a parte que está onerada com o impulso da instância revela desinteresse na tramitação destinada a prover a resolução do litígio. «Para a boa ordem dos serviços», verifica-se a necessidade de se não manter indefinidamente parados nos tribunais processos em relação aos quais as próprias partes deles se haviam desinteressado – cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao C.P.C., Vol. 3.º, pág. 432 e segs.
Com efeito, esta figura da deserção da instância radica no princípio da auto-responsabilidade das partes, encontrando a sua razão de ser no facto de não ser desejável, numa justiça que se pretende célere e cooperada, que os processos se eternizem em tribunal, quando a parte se desinteressa da lide ou negligencia a sua actuação, não promovendo o andamento do processo quando só a ela lhe compete fazê-lo.
Assim sendo, actualmente, ou seja, após a entrada em vigor do novo C.P.C., “com a extinção da figura da interrupção da instância, o requisito da negligência das partes em promover o impulso processual transita para a deserção. Sendo manifestamente injustificado o abandono da lide pelos seus sujeitos durante largos meses ou anos, a deserção da instância fixa-se agora em seis meses” – cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2013, Vol. I, pág. 249.

Haverá, pois, que averiguar se, no caso em apreço, o processo esteve a aguardar impulso processual por mais de seis meses, por negligência das partes.
Ora, a este propósito pode ver-se o Ac. do STJ de 20/9/2016, disponível in www.dgsi.pt, onde se afirma que está aqui em causa a negligência retratada ou espelhada objectivamente no processo (negligência processual ou aparente). Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inacção se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência.
Ora, como decorre da análise dos autos, os AA. foram notificados em 14/9/2019 do despacho da Julgadora “a quo” para juntarem aos autos, em 10 dias, quatro certidões de óbito de pessoas devidamente identificadas no processo, documentos esses que se mostravam essenciais para a resolução do litígio.
Sucede que os A. não juntaram tais documentos no aludido prazo, nem tão pouco justificaram a razão desta sua inércia processual, pelo que a Julgadora “a quo”, posteriormente, veio a proferir despacho nos autos do seguinte teor:
- Aguardem os autos o impulso processual do Autor, sem prejuízo do decurso do prazo previsto no artigo 281.º do Código de Processo Civil.
Este despacho foi notificado aos AA. em 20/3/2020 e, uma vez mais, remeteram-se aqueles ao mais completo e puro silêncio, nada vindo dizer aos autos, nomeadamente explicitando quais as razões que, eventualmente, obstavam à junção ao processo das referidas certidões de óbito!
Por isso, em 26/5/2020, proferiu a Julgadora “a quo” a decisão recorrida, na qual, por falta de impulso processual dos A.A. em dar andamento ao processo, julgou extinta a instância por deserção, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do C.P.C.
Ora, de todo o circunstancialismo fáctico supra descrito, resulta claro que, objectivamente, está demonstrada uma conduta assaz omissiva por parte dos AA. por mais de 6 meses – decorrente da sua inércia prolongada em juntar aos autos os documentos acima identificados ou justificar os motivos para não o fazer – que traduz, de forma evidente, o comportamento negligente daqueles e ao qual alude expressamente o n.º 1 do citado artigo 281.º.
Assim sendo, ao contrário do que é sustentado pelo recorrente, não foi violado, “in casu”, o princípio do contraditório e o disposto no artigo 3.º, n.º 3, do C.P.C. pelo facto dos AA. não terem sido previamente ouvidos antes da prolação da decisão recorrida.
Neste sentido, pode ver-se, entre outros, o Ac. do STJ de 8/3/2018, disponível in www.dgsi.pt, no qual, a dado passo, foi afirmado seguinte:
- No contexto da deserção da instância, inexiste fundamento legal, nomeadamente à luz do princípio do contraditório, para a prévia audição das partes com vista a aquilatar da negligência da parte sobre quem recai o ónus do impulso processual.
- A negligência a que se refere o artigo 281.º, nº 1, do C.P.C., é a negligência retratada objectivamente no processo (negligência processual ou aparente), pelo que a assunção pela parte de uma conduta omissiva que, necessariamente, não permite o andamento do processo, estando a prática do ato omitido apenas dependente da sua vontade, é suficiente para caracterizar a sua negligência.
Em sentido idêntico ou similar veja-se ainda o Ac. desta Relação de 13/9/2018, também disponível in www.dgsi.pt, onde se afirmou que:
- Não dando o demandante nota no processo de dificuldades na obtenção dos elementos de facto indispensáveis à propositura do pertinente incidente de habilitação, devido ao falecimento de um co-Réu, antes se remetendo ao silêncio, esta sua conduta processual é suscetível de, só por si, ser rotulada de negligente.
- Decretar, nestas circunstâncias, a cessação da instância, por deserção, “não impõe uma prévia audição das partes, designadamente para funcionamento do princípio do contraditório”, uma vez que é uma consequência típica de uma realidade “retratada ou espelhada objetivamente no processo”, do conhecimento dos sujeitos processuais.
Deste modo, tendo decorrido, no caso em apreço, mais de 6 meses sobre o despacho notificado aos AA. para juntarem aos autos documentos essenciais para a resolução do litígio – o que estes não fizeram, nem justificaram a sua omissão – e tendo sido os AA. posteriormente notificados de que o processo aguardava que eles impulsionassem o seu andamento – mantendo aqueles o seu comportamento omissivo – forçoso é concluir que a prolação da decisão recorrida, que julgou deserta a instância após o decurso dos referidos 6 meses, não consubstancia, de todo, uma decisão surpresa e, por isso, não havia lugar ao cumprimento do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do C.P.C.
Assim, uma vez que nenhum acto foi praticado pelos AA. no processo decorridos que foram mais de 6 meses, importa concluir que aqueles incumpriram o dever de impulso processual que lhes cabia, actuando de forma assaz negligente, o que implica a deserção da instância à luz do disposto nos artigos 281.º, n.º 1 e 277.º, alínea c), ambos do C.P.C.
Neste sentido – e retratando um caso semelhante ao dos presentes autos – pode ver-se, também, o Acórdão desta Relação de 22/2/2018, disponível in ww.dgsi.pt, sendo que o seu relator é o mesmo deste aresto.
Nestes termos, dado que o recurso em análise não versa outras questões, entendemos que a decisão recorrida não merece qualquer censura ou reparo, sendo, por isso, de manter integralmente. Em consequência, irrelevam, “in totum”, as conclusões de recurso formuladas pelo A., aqui apelante, não tendo sido violados os preceitos legais por ele indicados.

***

Por fim, atento o estipulado no n.º 7 do artigo 663.º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)
***
Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto pelo A. e, em consequência, confirma-se integralmente a decisão proferida pela Julgadora “a quo”.
Custas pelo A., ora apelante.
Évora, 11 de Fevereiro de 2021
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás
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[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, n.º 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ n.º 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ n.º 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr. neste sentido Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3.º, p. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3.º, 1972, pp. 286 e 299).