Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
80/20.2PAENT.E2
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. No âmbito do incidente da alteração dos factos a questão fundamental é a afirmação da estrutura acusatória do processo que tem o seu objeto balizado pela acusação (ou pela pronúncia quando a houver).

II. Não pode o Tribunal promover a alteração desse objeto para além dos limites traçados na acusação, nem condenar para além desses limites, exceto se, surgindo novos factos que não alterando substancialmente aquele objeto, razões de equidade e de lealdade processual, impostas pelo princípio da acusação e pelas garantias de defesa, imponham que se conceda ao acusado a possibilidade de contraditório, assegurando-lhe um efetivo direito de defesa.

III. Não existe alteração não substancial dos factos, nos termos previstos no artigo 358.º CPP, quando a factualidade dada como provada consiste numa mera redução daquela que foi indicada na acusação.

IV. De igual modo não será qualquer alteração da qualificação jurídica que importará a sua comunicação ao acusado. Só lhe devendo ser comunicadas as alterações que sejam relevantes do ponto de vista da sua defesa, no sentido de se lhe imputar ilícito substancialmente diverso. Não tendo de se lhe comunicada a alteração da qualificação jurídica, quando estando acusado de homicídio tentado (punível com pena de prisão de 5 anos e 4 meses a 12 anos), vem a ser condenado por ofensa à integridade física grave e qualificada (punível com pena de prisão de 3 a 12 anos).

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – RELATÓRIO

a) No 4.º Juízo (1) Central Criminal de Santarém procedeu-se a julgamento em processo comum perante tribunal coletivo de AA, nascido a …/…/1999, solteiro, desempregado, residente na Rua …, em … (atualmente preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de …), com os demais sinais dos autos, a quem foi imputada a prática de:

- um crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto nos artigos 131.º e 132.º, § 1.º e 2.º, al. g), com referência aos artigos 22.º e 23.º do Código Penal (CP);

- e de um crime de furto, previsto no artigo 203.º, § 1.º CP.

O arguido contestou, aduzindo que na data dos factos tinha 20 anos de idade e que não teve intenção de tirar a vida ao ofendido.

A final o tribunal proferiu acórdão, na qual, convolando a qualificação jurídica feita na acusação, condenou o arguido pela prática de:

- um crime de ofensa à integridade física grave e qualificada, previsto nos artigos 144.º, al. d) e 145.º, § 1.º, al. c) e § 2.º CP;

- e de um crime de furto, previsto no artigo 203.º, § 1.º CP, respetivamente nas penas de:

- 6 anos de prisão pelo crime de ofensa à integridade física grave e qualificada;

- e 1 ano e 6 meses pelo crime de furto;

Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares condenou-o na pena única de 6 anos e 4 meses de prisão.

b) Inconformado com a decisão recorreu o arguido, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«A

I

O Tribunal a quo, no Acórdão proferido em 21/05/2021 procedeu a uma alteração da matéria de facto dada como provada, com referência à matéria constante da Acusação, nomeadamente, o ponto 15;

II

E, para além disso, condenou o Recorrente por crime diverso daquele pelo qual se encontrava Acusado.

III

O Tribunal a quo nunca comunicou ao Arguido que iria proceder a uma alteração dos factos e bem assim do crime que lhe era imputado.

IV

Neste sentido, o Aresto Condenatório lido em 21/05/2021, encontra-se inquinado por violação do disposto no art.º 359º CPP, sendo, por conseguinte NULO.

V

Os factos pelos quais o Aresto Condenatório condena o Arguido Recorrente resultam de uma nova imputação criminal.

VI

Mesmo que assim não se entendesse sempre estaríamos perante uma clara alteração não substancial dos factos descritos na acusação nos termos do Artigo 358º do C.P.P.

VII

Mesmo que se considerasse que o Tribunal a quo procedeu apenas a uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, antes de proferir a referida alteração, estava obrigado a comunicar à defesa do Arguido e conceder-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

VIII

Assim, ao condenar o Recorrente por crime diverso aquele pelo qual se encontrava acusado, sem que essa alteração da qualificação jurídica lhe fosse comunicada o Tribunal a quo feriu o seu Acórdão de Nulidade, nos termos do Artigo 379º, n.º1, alínea b) do C.P.P.

B

IX

O Acórdão proferido pelo Tribunal a quo padece do vício de falta de fundamentação, exigido nos artigos 97.º, n.º 5, 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. a), todas as disposições do C.P.P.

X

Analisada a fundamentação apresentada à matéria de facto dada como provada não conseguimos vislumbrar na mesma qual a prova e o raciocínio lógico que o Tribunal a quo se socorreu para dar como provados os factos 1 a 8 e 10;

XI

Nos termos em que o Acórdão se encontra elaborado não é possível, à defesa do Recorrente, proceder a uma verdadeira impugnação da matéria de facto, porquanto, o Tribunal a quo, não refere de que prova se socorreu para dar como provados os factos que considerou;

C

XII

O Tribunal a quo parte, desde logo do princípio, erróneo, que o Arguido fugiu “… porque queria concluir a fuga eximindo-se à responsabilidade de responder pelo crime de furto praticado…”

XIII

Aquilo que resultou foi que o Arguido pretendia apenas e só, como o mesmo referiu, evitar ser agredido é que, conforme resulta à evidência saíram no seu encalço, pelo menos 4 (quatro) homens!!!!

XIV

Acontece, porém, que em face da prova produzida em audiência de discussão e julgamento deveriam ter sido julgados como NÃO PROVADOS os seguintes factos:

ponto 4, onde se escreveu “conseguiu fazer seus os mencionados produtos,”, 5, 6, 10, na parte em que se escreveu “…, sem que este se apercebesse, empunhou a navalha que trazia consigo e desferiu dois golpes na direcção do corpo de B…”, 12, na parte em que se escreveu “As lesões provocadas pelo arguido”, 13, 14, 15, 16 e 17.

XV

Quanto aos pontos 4), 5), 6)

- O Tribunal a quo não apresenta no seu Acórdão qualquer fundamentação para dar os referidos factos como provados.

- Do depoimento das testemunhas não poderia o Tribunal a quo dar como provados os referidos factos.

- Do depoimento das testemunhas, não resultou provado nomeadamente, que o Recorrente tivesse conseguido fazer seus os mencionados produtos, conforme vem descrito no ponto 4 e, por outro lado, que o Arguido se tivesse colocado em fuga com o carrinho de compras, conforme se refere no ponto 6.

- A prova que impõe decisão diversa, são nomeadamente os seguintes depoimentos:

- L (por videoconferência), ouvido na audiência de discussão e julgamento de 14/05/2021, entre as 14:19:11-14:40:48 a testemunha Esta testemunha, diz claramente que o Arguido deixa o carrinho para trás e coloca-se em fuga.

XVI

Quanto aos pontos 10), 12), 13), 14), 15), 16) e 17.

- Em face da prova produzida em audiência de discussão e julgamento não ficou provado que o Recorrente tivesse desferido quaisquer golpes no Ofendido.

- Não ficou afastada a possibilidade de as lesões que o Ofendido sofreu terem sido decorrentes de quando caiu ao solo ter caído sobre a navalha que o Recorrente tinha na mão.

- Nenhuma das testemunhas ouvidas em audiência de discussão e julgamento visualizou o Arguido a desferir qualquer golpe no Ofendido.

- O próprio Ofendido não se apercebeu que tivesse sido golpeado pelo Arguido, o que nos leva a concluir que este apenas acabou por sofrer os ferimentos graves que sofreu quando projetando-se sobre o Arguido levou a que ambos caíssem ao solo, lateralmente, o Ofendido sobre o Arguido.

- De facto, se o Arguido tivesse golpeado o Ofendido, como refere a Acusação, este não teria quaisquer dúvidas em relatar esse acontecimento e aperceber-se desse impacto.

- A prova que impõe decisão diversa, é nomeadamente a seguinte:

- B (por videoconferência), ouvida na audiência de discussão e julgamento de 18/12/2020, entre as 11:49:28-12:32:37, Ficheiro de - É o próprio Ofendido a afirmar que lançou-se sobre o Arguido agarrando-o, caindo ambos, em consequência desse ato no chão!!!

- Mais afirma que caiu lateralmente, em cima do Arguido…

- As lesões que o ofendido apresenta são na parte lateral do tronco, precisamente na parte do corpo que caiu sobre o Arguido.

- É o próprio Ofendido a referir que depois de cair lateralmente sobre o Arguido ainda rodou sobre este;

- Não ficou minimamente afastada a possibilidade de as lesões sofridas pelo Ofendido B terem ocorrido acidentalmente quando este caiu no solo sobre o arguido que empunhava a navalha.

- Igualmente importante é o depoimento da testemunha J (por videoconferência), ouvido na audiência de discussão e julgamento de 14/05/2021 entre as 13:58:38 e as 14:17:25, Ficheiro de origem: 20210514135838_2912865_2871704, passagens 00:06:13 a 00:06:45, 00:08:42 a 00:11:15 e 00:15:31 a 00:16:15.

- Também esta testemunha afirma perentoriamente que visualizou o colega B a saltar para cima do Arguido.

- Esta testemunha, vem igualmente confirmar que o Ofendido caiu sobre o Arguido de frente para ele.

XVII

Assim, e sempre com o devido respeito por opinião diversa aquilo que o Tribunal a quo poderia ter dado como provado, com referência aos referidos pontos 10 e 12 era que:

10) B ao visualizar o Arguido lançou-se sobre este vindo ambos a cair no solo, e em circunstâncias não concretamente apuradas, veio a apresentar duas feridas incisas, uma na região precordial e outra na região epigastro, sendo que o ferimento cortoperfurante, situado a cerca de 2 cm acima da zona do coração, causou a perfuração do pulmão esquerdo, com hemopneumotórax;

12) As lesões sofridas causaram ao ofendido B um período de doença de 35 dias, sendo 35 dias com afetação do trabalho geral e 35 dias com afetação do trabalho profissional, tendo ainda ficado com as seguintes sequelas:- No tórax: área cicatricial rosada, sensivelmente oblíqua ínfero medialmente, medindo 0,8 cm de comprimento, com vestígios de 3 pontos. o achado dista na sua porção média 4,5 cm da linha média e 8cm da extremidade medial da clavícula, encontrando-se aparentemente ao nível do 3.º espaço intercostal; cicatriz rosada transversal pelo terço medio da face anterolateral do tórax, medindo 2cm, com relação com aplicação de dreno torácico; - No abdómen: cicatriz rosada com vestígios de um ponto, sensivelmente transversal, medindo 1 cm de comprimento, distando ponto médio 0,5 cm da linha média e 11cm do rebordo costal;

XVIII

Por seu lado, quanto aos pontos 13, 14, 15, 16 e 17 deviam os mesmos ter sido dados como não provados.

D

XIX

Para condenação do Recorrente não podiam restar quaisquer dúvidas sobre a sua culpabilidade;

XX

No caso Sub Júdice, com o devido respeito, não existe um princípio de prova que com um mínimo de certeza tivesse permitido ao Tribunal “a quo” concluir que foi o que intencionalmente desferiu dois golpes com a navalha no Ofendido.

XXI

Através da dinâmica dos factos relatados pelas testemunhas era perfeitamente possível que as lesões sofridas pelo Ofendido tivessem decorrido de um acidente, nomeadamente, quando este se lançou sobre o Arguido vindo ambos a cair no solo, o Ofendido em cima do Arguido.

XXII

Ao analisar a prova no modo em que o fez o Tribunal a quo violou o princípio “In dubio pro Reu”.

E

DO CRIME DE FURTO SIMPLES

XXIII

Entende o Recorrente que o Arguido deveria ter sido condenado pela prática do crime de furto simples na forma tentada.

Vejamos:

XXIV

Do depoimento das testemunhas constatou-se que o Arguido foi monitorizado pela vigilância ainda no interior do estabelecimento comercial, permitiram que o mesmo saísse do interior do Estabelecimento esperando que o mesmo chegasse junto à porta de acesso para o Estabelecimento, local onde já se encontravam Seguranças à sua espera.

XXV

Assim, dúvidas não restam de que os bens que o Arguido transportava no carrinho estiveram sempre sob o controle e domínio dos Seguranças do Estabelecimento.

XXVI

O Arguido não chegou sequer a retirar os objetos do carrinho de compras. Carrinho que abandonou quando se confrontou com os Seguranças do Estabelecimento.

XXVII

Assim, dúvidas não restam que no caso sub judice como refere Nelson Hungria, a coisa nunca saiu do domínio do E.

XXVIII

Deveria, pois, o Arguido ter sido apenas, nos termos dos artigos 22º, 23º e 203º, n.º1 do C.P. punido pela prática de um crime de furto simples na forma tentada.

DO CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA GRAVE QUALIFICADA

XXIX

Considerando a matéria de facto que deveria ter sido dada como provada, deveria o Arguido ter sido absolvido da prática deste crime, como se impõem.

XXX

No caso sub judice o Tribunal a quo nunca poderia considerar verificado o circunstancialismo previsto no artigo 132º, n.º 2, alínea g) do C.P., não se verifica, desde logo a especial censurabilidade ou perversidade do agente.

XXXI

Conforme resultou à evidência o Arguido fugiu, porque temia ser agredido, sem ofender fisicamente quem quer que seja, era perseguido por, pelo menos, 4 (quatro) homens.

XXXII

O lesado sofreu as lesões que se apuraram em consequência de, por sua iniciativa, encetar, em veículo automóvel próprio, uma perseguição ao Arguido e se ter lançado sobre este.

XXIII

Nunca o Arguido se dirigiu ao Ofendido com o inteiro de o atingir com a navalha que tinha na sua posse.

XXXIV

Os acontecimentos que levaram às lesões de B, não decorreram de uma conduta pensada e planeada pelo Arguido.

XXXV

A especial censurabilidade a que alude o art. 132.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, é uma censurabilidade ou perversidade acrescida em relação à perversidade ou censurabilidade que já tem de estar presente no homicídio simples. É nessa diferença de grau, nessa especial maior culpa, que encontra fundamento a qualificação do homicídio, o que não é manifestamente o caso.

XXXVI

Entende a defesa do Recorrente que não se verifica essa especial perversidade ou censurabilidade, que vá para além da gravidade do crime que lhe foi imputado, ou seja Ofensas à integridade físicas graves, p. e p. pelo artigo 144º, alínea d) do C.P.

F

XXXVII

As penas individuais aplicadas ao Recorrente são manifestamente excessivas.

XXXVIII

Considerando as respectivas molduras penais, mesmo que se considerasse que o Recorrente praticou os crimes que lhe são imputados, o que apenas por dever de patrocínio se coloca as penas concretas a aplicar deveriam ter sido as seguintes:

- Ofensa à integridade física grave, artigo 144º, alínea d), do C.P.P. 3 anos de prisão;

- Furto Simples, artigo 203º, n.º1, do C.P. 6 meses de prisão;

Mas mais,

XXXIX

O Tribunal a quo não teve, desde logo, em consideração as concretas circunstâncias em que os alegados crimes foram cometidos, bem como a idade do Arguido.

XL

Por outro lado, não analisou nem ponderou convenientemente, conforme estipula o art. 71.º do Código Penal, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente.

XLI

Assim, considerando tudo o que acima se encontra exposto entende a defesa que deveria ser aplicada ao Recorrente, em cúmulo jurídico uma pena de prisão sempre inferior a 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.

G

XLII

Resulta do disposto nos art. 40.º e 71.º do C.P., que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral especial ou individual, está já positiva ou negativa, porque, por um lado, ressocializadora, por outro também ainda dissuasora – tudo relativamente ao delinquente – funcionando a culpa, simultaneamente, como seu pressuposto e limite máximo.

XLIII

Estamos perante um jovem que mais do que prisão, que é aquilo que a sociedade lhe oferece, necessita de acompanhamento.

XLIV

No caso em apreço, o Tribunal pode e deve subordinar a suspensão da execução da pena de prisão, ao cumprimento de deveres ou à observação de regras de conduta, e determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, nos termos do n.º 2 do art. 50.º do C.P..

XLV

Assim sendo, ponderado, o circunstancialismo descrito deverá a pena eventualmente a aplicar ao Arguido ser suspensa na sua execução, tudo nos termos dos art.s 40.º, 50.º, 71.º, 72.º e 73.º do C.P..

Termos em que deve o presente Recurso obter provimento, com o que farão V. Exas. a esperada JUSTIÇA!»

d) Admitido o recurso o Ministério Público respondeu, pugnando doutamente pela sua improcedência, aduzindo em síntese o seguinte que: - o tribunal recorrido enunciou no acórdão os factos praticados pelo arguido, descrevendo-os de forma completa e com clareza;

- para além, do elenco dos factos provados e não provados, o tribunal coletivo fez um exame crítico da prova, indicando em quais e de que modo estribou a sua convicção relativamente a tais factos;

- contrariamente ao que sustenta o recorrente, o acórdão não padece de qualquer dos vícios previstos no § 2.º do artigo 410.º CP;

- a valoração da prova foi feita de acordo com as regras legais e na perspetiva de um órgão independente e imparcial;

- na avaliação das provas o tribunal não se deparou com qualquer dúvida que tenha sido superada contra o arguido;

- o furto cometido pelo recorrente ultrapassou a mera tentativa, devendo considerar-se consumado, porquanto o legítimo possuidor dos bens subtraídos viu-se deles desapossado, entrando eles na esfera de disponibilidade exclusiva do arguido;

- e as apenas aplicadas mostram-se ajustadas aos critérios normativos.

Tudo razões pelas quais o recurso não merece provimento.

e) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu parecer, louvando-se na densidade das doutas alegações feitas na 1.ª instância, concluindo no sentido de dever ser mantido o acórdão recorrido.

f) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, respondeu o recorrente aos argumentos do aludido parecer, sustentando a tese já constante do recurso.

Os autos foram aos vistos e teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1.Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1 CPP) (2), estando suscitadas seis questões, que se enunciam pela ordem pela qual deverão ser conhecidas (artigos 368.º e 369.º, ex vi artigo 424.º, § 2.º, todos do CPP):

- Nulidades do acórdão (por preterição dos incidentes previstos nos artigos 358.º e 359.º CPP e por falta de fundamentação da matéria de facto e exame crítico das provas);

- Erro de julgamento da questão de facto;

- In dubio pro reo;

- Qualificação jurídica dos factos;

- Medida das penas.

2. O acórdão recorrido, no respeitante aos factos provados, não provados e respetiva motivação, é do seguinte teor:

«1) No dia 14-02-2020, cerca das 11h59m, o arguido, acompanhado de outro individuo cuja identidade não se logrou apurar, em execução de plano previamente traçado e em conjugação de vontade e esforços, que passava por se apropriarem de produtos aí expostos, deslocaram-se ao estabelecimento comercial denominado de “E…” situado na Rua …, na localidade e concelho do …, propriedade da pessoa coletiva T…, S.A.;

2) Em execução de tais intentos, o arguido e o referido individuo dirigiram-se ao indicado estabelecimento comercial e, no seu interior, o arguido colocou no interior de um carrinho de compras os seguintes produtos, que se encontravam expostos para venda ao público em prateleiras aí existentes:- 2 LCD no valor de 139,00 €, cada;- 1 aspirador vertical, no valor de 199,00 €;- 1 kit de escova de dentes elétrica Oral B, no valor de 139,00 €;- 1 kit de escova de dentes elétrica Oral B, no valor de 124,90 €;- 1 ferro marca Rowenta, no valor de 249,00 €;- 1 ferro marca Rowenta, no valor de 219,99 €;- 1 trotinete elétrica, no valor de 219,00 €;

3) Na posse desses produtos, no valor total de 1.428,89 €, o arguido, empurrando o carrinho de compras, passou a linha das caixas de pagamento sem os declarar ou pagar, levando-os consigo e tendo, de seguida, abandonado o local em direção ao exterior do supermercado, onde o outro indivíduo não identificado o aguardava para o ajudar a transportar os bens em apreço;

4) Com a descrita atuação o arguido quis e conseguiu fazer seus os mencionados produtos, como efetivamente sucedeu, apesar de saber que esses objetos não lhe pertenciam e que ao atuar da forma e com os propósitos descritos, o fazia sem conhecimento, contra a vontade e em prejuízo do legítimo proprietário desses bens;

5) Logo após ter passado a linha das caixas de pagamento, o arguido foi abordado por N, Diretor Comercial do estabelecimento, e pelo vigilante B, os quais o questionaram sobre o facto de não ter pago os artigos que transportava no carrinho de compras;

6) Perante isto, o arguido, de imediato, colocou-se em fuga com o carrinho de compras, saiu do exterior do estabelecimento, onde acabou por abandonar o carrinho com os objetos apropriados, e continuou a fuga, apeado, pela zona do parque de estacionamento da superfície comercial e, posteriormente, pelas ruas adjacentes;

7) O arguido, ao verificar que N continuava a persegui-lo, no intuito de o intercetar, parou a sua marcha, retirou do bolso a navalha que trazia consigo, dotada de um cabo preto, com o comprimento total de 16,5 cm e com cerca de 7cm de lâmina, empunhou-a, virou-se para N e afirmou-lhe “o melhor é deixares-me ir embora se não queres problemas para o resto da vida”;

8) Acto contínuo, o arguido prosseguiu a fuga pela via pública, passando pela Av.ª … e em direção à rotunda do cruzamento com a Rua …, continuando a ser perseguido por N e por outros vigilantes do supermercado que, entretanto, tinham vindo dar apoio com vista à sua intercepção;

9) Por seu lado, o vigilante B decidiu perseguir o arguido utilizando a sua viatura automóvel particular, por forma a alcança-lo com mais rapidez, o que fez de imediato, vindo assim a intercetar e a abordar o arguido junto à rotunda do cruzamento com a Rua …;

10) O arguido, após ser abordado por B e enquanto este o tentava imobilizar, sem que este se apercebesse, empunhou a navalha que trazia consigo e desferiu dois golpes na direcção do corpo de B, os quais lhe causaram duas feridas incisas, uma na região precordial e outra na região epigastro, sendo que o ferimento cortoperfurante, situado a cerca de 2 cm acima da zona do coração, causou a perfuração do pulmão esquerdo, com hemopneumotórax;

11) Quase de imediato, B ficou com falta de ar, com dores e a sangrar das áreas atingidas e, por correr risco de vida, veio a ser assistido pelo INEM no local e foi transportado para o Hospital de …, onde deu entrada na urgência nesse mesmo pelas 13h26m do dia 14-02-2020, tendo sido sujeito a intervenção cirúrgica e a internamento hospitalar, o qual decorreu até ao dia 18-02-2020, e só vindo a ter alta médica no dia 20-03-2020;

12) As lesões provocadas pelo arguido causaram ao ofendido B um período de doença de 35 dias, sendo 35 dias com afetação do trabalho geral e 35 dias com afetação do trabalho profissional, tendo ainda ficado com as seguintes sequelas:

- No tórax: área cicatricial rosada, sensivelmente oblíqua ínfero medialmente, medindo 0,8 cm de comprimento, com vestígios de 3 pontos. o achado dista na sua porção média 4,5 cm da linha média e 8cm da extremidade medial da clavícula, encontrando-se aparentemente ao nível do 3.º espaço intercostal; cicatriz rosada transversal pelo terço medio da face anterolateral do tórax, medindo 2cm, com relação com aplicação de dreno torácico;

- No abdómen: cicatriz rosada com vestígios de um ponto, sensivelmente transversal, medindo 1 cm de comprimento, distando ponto médio 0,5 cm da linha média e 11cm do rebordo costal;

13) Ao agir da forma descrita, pretendeu o arguido que B o deixasse de o tentar imobilizar, deixando-o livre para continuar a sua fuga, e que, assim, não viesse a ser responsabilizado pelo crime de furto que tinha acabado de cometer, o que quis e representou, bem conhecendo o carater especialmente censurável da sua actuação;

14) O arguido bem sabia que utilizava um instrumento de natureza corto-perfurante, com 7 cm de lâmina, para perfurar a zona torácica de B, local do corpo onde se alojam órgãos e vasos sanguíneos vitais, e que tal era idóneo a provocar perigo para a sua vida que por tal fosse perfurada nessa zona corporal;

15) O arguido agiu com a intenção, de ofender a integridade física de B conformando-se com a possibilidade de as lesões serem graves causando-lhe risco para a vida, tendo utilizado, para o efeito, um instrumento adequado a provocar risco para a sua vida, que cessou devido à pronta intervenção dos serviços de emergência médica;

16) O arguido agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e especialmente pérfida e censurável;

17) O arguido admitiu a possibilidade de ferir o B colocando a sua vida em risco e conformou-se com esse resultado;

18) Das condições socio económicas do arguido:

AA é natural de …, à data do seu nascimento a família encontra-se temporariamente naquela localidade.

Até aos 8 anos de idade viveu com os pais na …. O seu início de vida foi marcado por vivências emocionais intensas, no seio de uma família disfuncional e num contexto de violência doméstica.

É o mais velho de dois irmãos germanos e tem três irmãos uterinos, dois mais velhos e uma mais nova.

O arguido refere não ter relacionamento de proximidade com os irmãos uterinos, que vivem com os respetivos progenitores.

Presentemente o irmão germano encontra-se institucionalizado.

Quando tinha oito anos de idade os pais separam-se.

Nessa altura, a mãe, o arguido e o irmão germano passaram a viver com os avós maternos em …, onde se mantiveram durante um ano.

Depois, mudaram residência para …, … e integraram o agregado familiar de um tio materno. Posteriormente, a mãe encetou novo relacionamento afetivo, que ainda se mantem, e mudou residência para ….

Depois da separação apenas manteve contactos esporádicos com o pai. AA alude que o pai faleceu há cerca de 4 anos, porém, a mãe não confirma essa informação. O jovem mantém um relacionamento pouco positivo com a progenitora, que não se constituiu uma figura de referência afetiva. AA frequentou o ensino básico na escola primária da …, onde concluiu o 2º ano de escolaridade.

Seguidamente integrou a escola em … onde concluiu o 2º ciclo.

Desde cedo começou a apresentar absentismo escolar, instabilidade comportamental, rotinas tendencialmente desajustadas e comportamentos aditivos que determinaram a intervenção da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens da área de residência.

Segundo S (mãe), o arguido aos 15 anos de idade manteve contactos com o sistema da justiça tutelar educativa, pela prática de crimes de abuso sexual de menores (na pessoa do irmão germano). Neste contexto foi encaminhado para acolhimento institucional. Esteve internado na “…” na … e na casa da associação “…”, em …. Em 2016, foi acolhido na clínica “…”, em … onde permaneceu 1 ano e 4 meses.

Aqui, mantinha obrigação de integração escolar, manutenção de apoio pedopsiquiátrico e frequência de programa de educação sexual. Por apresentar dificuldade em aderir ao programa terapêutico e graves problemas comportamentais foi transferido para o Centro … e posteriormente para o Centro …, em …, de onde saiu com 18 anos de idade.

Em contexto institucional frequentou um curso EFA B3 de Jardinagem, que lhe daria equivalência ao 9º ano de escolaridade, mas não o concluiu. Durante o período em que permaneceu nas instituições, protagonizou várias fugas, ficando, por vezes, em casa de amigos ou na situação de sem abrigo. S (mãe) menciona que o arguido passou a apresentar comportamentos disfuncionais e terá sido diagnosticado com esquizofrenia, tendo sido acompanhado no início da adolescência, em consultas de pedopsiquiatria.

Porém, não deu continuidade ao acompanhamento terapêutico, em virtude de mudar frequentemente de instituição de acolhimento. Não nos foi possível apurar a eventual existência de um diagnóstico nessa altura. AA apresenta anteriores contactos com o sistema de justiça penal. Pela prática de crime de tráfico de crime de menor gravidade, foi condenado numa pena de 14 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, com regime de prova, assente num plano de reinserção social (PRS).

Os Serviços de Reinserção Social, não deram início ao acompanhamento da medida em virtude do arguido nunca ter comparecido para entrevista. Tem ainda outro processo a aguardar julgamento no qual está indiciado da prática de crime de furto.

Quando abandonou o Centro Educativo encontrava-se sem enquadramento habitacional ou familiar, pelo que foi encaminhado para a associação “…”. Porém, apresentou sérias dificuldades em acatar as normas internas da associação e abandonou a mesma.

O arguido alega que, neste período recorreu à prática de ilícitos, para se sustentar e para adquirir uma casa onde passou a residir, com uma namorada. Contudo, após contacto com a mãe do arguido no sentido de apurar a veracidade desta informação, foi possível verificar que parece tratar-se de uma narrativa fantasiosa, alegadamente, sem fundo de verdade.

Segundo a mesma, o arguido não era possuidor de qualquer imóvel e encontrava-se numa situação de grande vulnerabilidade, vivia na situação de sem abrigo, pernoitando em casa abandonadas ou em casa de amigos (que esta desconhecia), na zona de ….

A mãe reconhece que apresentou dificuldade para lidar com os comportamentos desajustados do arguido, não lhe conseguindo impor limites, verbalizando um sentimento de impotência, principalmente devido aos comportamentos desajustados que o mesmo foi apresentando desde tenra idade.

O arguido antes de ter sido preso preventivamente não mantinha qualquer actividade estruturada, referindo que o seu tempo era passado junto a um grupo de pares e familiares (avó e tios) também sem qualquer tipo de ocupação socialmente aceite.

No entanto, S (mãe) menciona que, em Lisboa não reside qualquer familiar do arguido. Mantinha consumos de produtos estupefacientes e refere que até ser preso preventivamente, experienciou consumos de vários tipos de drogas.

Em contexto prisional alega que se tem mantido abstinente.

AA demonstra ser um jovem imaturo e evidencia diversas lacunas ao nível das competências pessoais e sociais, nomeadamente ao nível da resolução de problemas.

Apresenta-se com reconhecidas fragilidades a nível emocional e uma postura de impulsividade.

Em contexto prisional tem apresentado dificuldades em manter um comportamento consentâneo com as normas e regras institucionais.

Apresenta uma infração disciplinar por agressão a outro recluso e a punição materializou-se em 9 dias de cela disciplinar.

Em meio prisional, por apresentar uma postura de instabilidade emocional mantém acompanhamento médico/psicológico, mas não reconhece a necessidade de fazer qualquer tipo de medicação.

No Estabelecimento Prisional de …-jovens, o arguido ainda não teve visitas, mas mantem contatos telefónicos esporádicos com a mãe. Esta, de futuro não se mostra disponível para o receber ou apoiar, pois os ressentimentos existentes entre ambos impedem tal intento, necessitando o arguido de recorrer a outros meios alternativos de acolhimento.

AA aparenta uma postura pouco intimidada perante este envolvimento com o sistema de justiça penal.

Manifesta dificuldade em reconhecer o desvalor dos crimes pelos quais está acusado, e demonstra uma postura de desresponsabilização e um certo distanciamento emocional.

Mostra-se despreocupado e tem uma atitude favorável e otimista em relação ao desfecho do presente processo.

O início de vida do arguido parece ter decorrido num ambiente familiar hostil, com exposição a situações de violência doméstica, o que levou a separação dos progenitores e a integração do agregado familiar da avó materna.

Desde cedo começou a manifestar problemas comportamentais e desviantes e a consumir estupefacientes, o que terá contribuído para que tivesse contactos com o sistema de justiça juvenil (tutelar educativo) e consequente encaminhamento para instituições de acolhimento.

Apresenta um percurso escolar pouco expressivo e ausência de hábitos laborais. Com anterior contacto com o sistema de justiça penal, dificuldades no processo de mudança, parece ter adotado um estilo de vida desregrado e uma postura pouco favorável às convenções sociais.

Em meio prisional tem mantido um comportamento nem sempre consentâneo com as normas e regras institucionais.

As vulnerabilidades pessoais associadas à ausência de apoio familiar sugerem um prognóstico reservado quanto ao futuro do arguido. Assim, caso seja condenado, qualquer que seja a decisão que vier a ser proferida, AA evidencia, manifestamente, uma necessidade de intervenção terapêutica ao nível psicológico/psiquiátrico, especialmente dirigido ao controlo dos impulsos e à problemática aditiva.”;

19) Do certificado do registo criminal - Por factos praticados em 05.09.2018 foi condenado por decisão transitada em 30.09.2019 pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelos artigos 21º, nº 1 e 25º, al. a) do DL 15/93, 22.01, tabela I-C na pena de 14 meses suspensa por 14 meses sujeita a regime de prova nos autos n. 166/18.3S9LSB – PCSingular que correu termos no juízo local criminal de Lisboa, Juiz 11; Por factos praticados em 20.02.2019, foi condenado por decisão transitada em 03.07.2020 pela prática de um crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203, n.º1 do CP na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5 €, nos autos n. 270/19.0S6LSB do JL pequena criminalidade de Lisboa;

(…)

FACTOS NÃO PROVADOS

Da audiência de discussão e de julgamento, com relevo, não resultaram provados os seguintes factos:

- nas circunstâncias referidas na matéria provado o arguido agisse com a intenção, integralmente representada, de tirar a vida a B tendo utilizado, para o efeito, um instrumento adequado a provocar a sua morte, o que pretendia sabendo que atingia o abdómen e o tórax de B.

*

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de discussão e de julgamento, analisada em si, entre si e de acordo com as regras da experiência comum.

O arguido prestou declarações assumindo, no essencial, os factos e justificando o seu comportamento quanto à subtracção de bens como troca de favores entre si e a pessoa que o albergava.

Negou perentoriamente que tivesse intenção de matar o ofendido pois só queria afastar quem o perseguia. Com efeito, mesmo quanto apontou a faca aos vigilantes que o seguiam apeados nunca se dirigiu aos mesmos nem o fez quando subitamente foi surpreendido pelo ofendido que consigo caiu no chão.

Respondeu em surdina, afirmativamente quanto aos golpes desferidos, num tom compungido reconhecendo que não largou a faca a não ser quando os restantes vigilantes o manietaram e aí a mesma caiu no chão. Expressou que o seu objectivo era conseguir fugir utilizando a faca como forma de evitar que o alcançassem pois repetia “ deixem-me fugir, deixem-me fugir!”. Reiterou que não queria tirar a vida a B e que sabendo o que aconteceu “não se sente bem consigo mesmo” face à gravidade do ocorrido.

O atabalhoamento no relato dos factos que norteou as suas declarações não pode ser encarado como descredibilizante pois foi transversal nomeadamente aos restantes intervenientes, funcionários N, J e L cujos testemunhos não foram coincidentes.

Naquelas circunstâncias e perante o estado de adrenalina que envolvia o arguido (desesperado para fugir) e os perseguidores (focados em o deter) estranhar-se-ia a existência de uma narrativa pormenorizada e sequencialmente imaculada.

Por outro lado, o arguido, na esteira do referido no relatório social padecerá de perturbações de personalidade efabulando aspectos da sua afectiva o que evidencia o percurso dramático do mesmo e uma ausência de valores que conduziram à tranquilidade com que justificou o furto como forma de custear despesas.

Concatenando estas declarações com o testemunho do ofendido B, foi, de igual modo possível, secundar a falência do elemento subjectivo (intenção de matar) já que , de forma clara e escorreita, é a própria vitima que, descrevendo a adrenalina da dinâmica dos acontecimentos, evidencia as expressões do arguido como sistematicamente apelando à fuga e sua libertação ( “ deixa-me fugir, deixa-me fugir!”) dando joelhadas .

Aliás, quando enceta a perseguição ao arguido no seu veiculo e o alcança numa manobra física que os compele para o chão de forma lateral, o ofendido descreve os acontecimentos sem se aperceber da faca pois que se estivesse empunhada era manifestamente visível a olho nu, o que não aconteceu de todo.

O ofendido só se apercebe que foi golpeado quando sente falta de ar e os demais vigilantes que, no momento, ali se encontravam percebem a existência de sangue no seu peito.

A partir dali o ofendido refere que não se recorda de mais nada a não ser o pânico e ansiedade causados pelas dores e sofrimento dos golpes.

Se é certo que a zona do corpo onde o arguido golpeou o ofendido respeita aos órgãos vitais também não podemos ser alheios à circunstancias dos factos que, sobressaindo a postura inequívoca do arguido em prever resultado de ofensas no corpo de terceiros ao munir-se da faca, não pode conduzir necessariamente ao dolo de homicídio.

Num crime de homicídio na forma tentada, como o dolo da atuação porque se situa no campo da subjetividade é sempre de difícil discernimento, a sua avaliação impõe o recurso a dados objetivos que sejam reveladores da verdadeira vontade colocada na actuação.

B confirmando as circunstância de tempo, modo e lugar foi mais preciso que os restantes colegas que perseguiam o arguido apeados descrevendo a sequência dos acontecimentos , “ em fracções de segundo” cujo alerta para a existência da faca .

Com efeito, N, L e J que corriam no encalço do arguido são confrontados, numa determinada altura, com a faca que o arguido empunhou, virando-se para eles, e frisando que o deixassem ir embora, proferindo a exacta expressão do ponto 7 da matéria provada. O ofendido porque perseguindo o arguido numa viatura não teve conhecimento que o arguido estava munido de uma faca.

Embora tenham reconhecido que guardaram alguma distância do arguido por receio, o certo é que aquela faca não os impediu de manter o objectivo de deter o arguido acreditando que poderia ter consigo mais bens furtados.

Estes actos, quase heroicos na pessoa do ofendido B, tinham como propósito fazer com o arguido respondesse pelo furto conseguindo, finalmente, imobiliza-lo mas com dificuldade pois, como salientou o ofendido B, o arguido “não colaborou, sempre bastante activo, esperneava e dizia deixem-me ir embora!”.

A faca, como aliás, o arguido confessou, caiu no chão por força da intervenção da testemunha J e/ou L como referido pelo primeiro no seu testemunho.

As testemunhas ouvidas foram credíveis, claras e com discurso escorreito adequado à percepção individual de uma situação manifestamente traumática e pontual (segundo a testemunha J os visados não costumam oferecer resistência ou conseguem fugir).

Os agentes da PSP P e C chegaram ao local após a ocorrência dos factos confirmando o cenário em que o arguido e arma se encontravam assinalando estado gravíssimo de B exaltado e aos gritos em notório sofrimento.

AR, inspetor da Polícia Judiciária elaborou relatório de fls. 144 embora tenha sido outro colega a deslocar-se ao local dos factos confirmando o seu teor.

A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, há-de fundar-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e se imponha aos outros mas que não poderá deixar de ser enformada por uma convicção pessoal.

Por outro lado, cumpre, ainda, sublinhar que a prova testemunhal constitui um de outros meios probatórios geradores da convicção do julgador, apreciados livremente, nos termos do artigo 127º do C. P. Penal que consagra o sistema da prova livre, decidindo o juiz segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.

Normalmente, o que sucede é que face à globalidade da prova produzida, o tribunal se apoie num certo conjunto de provas, em detrimento de outras, nada obstando que esse convencimento parta de um registo mínimo, mas credível, de prova, em detrimento de vastas referências probatórias, que, contudo, não têm qualquer suporte de credibilidade.

Obviamente que essa apreciação de prova está sujeita ao dever de fundamentação, desde logo, como decorrência do disposto no artigo 205º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, pelo que o princípio da livre apreciação das provas – supra enunciado – não tem carácter arbitrário, nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, estando antes vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado.

Assaltando-nos dúvidas sobre a intenção do arguido em tirar a vida ao ofendido, pelos motivos supra aduzidos, dúvida essa razoável, fazendo actuar o princípio do in dúbio pro reo, não damos tais factos como apurados.

**

Mais se estribou a nossa convicção no relatório final da perícia de avaliação do dano corporal, de folhas 381 a 384; relatório de exame pericial, de folhas 230 a 231;auto de notícia, de folhas 7 a 9 v.º; comunicação de notícia de crime, de folhas 2 a 3;

autos de apreensão, a folhas 26/26 v.º, 27/27 v.º, 170 e 178;listagem de bens furtados, a folhas 38; relatório de diligências iniciais, de folhas 144 a 149; relatório final, de folhas 239 a 248; auto de visionamento, de folhas 217 a 225; reportagem fotográfica, de folhas 150 a 167; documentação clínica.

A respeito do percurso, condições de vida do arguido e seus antecedentes criminais, ao relatório social corroborado, parcialmente pelo arguido, bem como ao teor CRC e respectivos averbamentos.

(…)»

3. Apreciando

3.1. Das nulidades do acórdão

3.1.1. Da alteração não substancial dos factos e sua qualificação jurídica

O recorrente refere-se ao primeiro acórdão proferido nestes autos pelo Tribunal a quo (a 21/05/2021), que foi anulado por este Tribunal da Relação em razão de omissão de pronúncia (3) (por no acórdão recorrido não se ter ponderado a aplicação do regime-regra dos jovens delinquentes com idades compreendidas entre os 16 e os 21 anos de idade) – nos termos previstos na al. c) do § 1.º do artigo 379.º CPP. E depois também a este, numa exposição algo confusa! Como referido, a nulidade declarada por este Tribunal de Relação foi assacada ao acórdão produzido, por preterição de um juízo essencial. Mas não afetou, como é óbvio, os incidentes registados em audiência de julgamento, documentados em ata constante dos autos, sobre alteração não substancial dos factos (dos descritos nos artigos 15.º e 16.º da acusação) e da qualificação jurídica (feita na acusação): justamente aqueles que o recorrente esgrime!

Ora, os efeitos da declaração de nulidade do aludido acórdão são os previstos na lei (artigo 122.º CPP). Centremos agora a nossa atenção na alegada preterição de incidente de alteração não substancial dos factos e alteração da sua qualificação jurídica, na audiência de julgamento que precedeu o acórdão ora recorrido. Conforme temos por adquirido, o processo penal é o modo formalizado de exercício do ius puniendi estadual, sendo constituído por uma sequência lógica e cronológica (ordenada) de atos processuais, tendentes à efetivação daquela finalidade. Quando surge uma nulidade, que é uma anomalia assacada a um ato processual (ou complexo de atos), a invalidade daí derivada poderá afetar outros atos que com ele(s) tenham uma relação pressuposta ou de dependência, impondo-se a sua repetição apenas quanto àqueles que se mostrem necessários e se mostrem possíveis. É o que literalmente resulta do preceito legal citado (4). A questão fundamental no âmbito da alteração dos factos é a afirmação da estrutura acusatória do processo que tem o seu objeto balizado pela acusação (ou pela pronúncia quando a houver). Quer isto dizer que a acusação (ou a pronúncia se tiver havido instrução) define e delimita o objeto do processo, fixando o thema decidendum, sendo o elemento estruturante de definição desse objeto, não podendo o Tribunal promovê-lo para além dos limites daquela, nem condenar para além desses limites, o que constitui uma consequência daquela estrutura acusatória. A isso se chama o princípio da vinculação temática do Tribunal, consubstanciando os princípios da identidade (os factos devem manter-se os mesmos, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consunção do objeto do processo penal (mesmo quando o objeto não tenha sido conhecido na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não renascer outro processo) (5). Efetivamente, um processo penal de estrutura acusatória, integrado por um princípio de investigação, como é o português, exige, para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença, sem prejuízo de se admitir que nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime possam constar da acusação, antevendo que da discussão da causa surjam factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos. Com efeito, por vezes emergem circunstâncias que exigem se amplie aquele objeto, nomeadamente em decorrência do dever de investigação da verdade, que se impõe ao tribunal (artigo 340.º CPP). E é justamente essa a matéria que encontra regulação nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal. Refere a propósito Germano Marques da Silva que «por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objeto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afetada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo.» (6) Nesses casos, por razões de equidade e de lealdade processual, impostas pelo princípio da acusação e das garantias de defesa do acusado, nomeadamente de contraditório e de audiência, tem de disso mesmo se lhe dar conta, para lhe assegurar um efetivo direito de defesa (7). O que está em causa, pois, é a plenitude das garantias de defesa do arguido, tal como prevenidas no artigo 32.º, § 1.º da Constituição, no sentido de lhe permitir que se pronuncie sobre todos os factos pelos quais poderá vir a ser condenado, evitando-se, desse modo, as decisões surpresa, que surgem apenas quendo lhe não seja dada oportunidade processual para se defender, ou que, de forma razoável, não pudesse contar.

Sucede que, como vem sendo considerado pela jurisprudência – e como o Ministério Público assinala na sua resposta -, não existe uma alteração dos factos integradora do artigo 358.º CPP, quando a factualidade dada como provada consiste numa mera redução daquela que foi indicada na acusação, por não se terem dado como assentes todos os factos aí descritos; ou quando se trate de uma simples descrição do contexto temporal e do ambiente físico em que a ação do arguido se desencadeou, quando o mesmo não é mais do que a reafirmação ou a ilação explícita de factos que sinteticamente já se encontravam narrados na acusação. (8)

Nesta mesma linha de pensamento afirma Paulo Pinto de Albuquerque, que «(…) só constitui alteração substancial dos factos a modificação que se reporte a factos constitutivos do crime e a factos que tenham o efeito de imputação de um crime punível com uma pena abstrata mais grave. A modificação dos restantes factos que constem da acusação ou da pronúncia constitui alteração não substancial dos factos, desde que sejam relevantes para a decisão da causa (…)» e que «(…) não há crime diverso em face da mera alteração das circunstâncias da execução do crime (incluindo o dia, hora, local, modo de execução e instrumento do crime), desde que essas circunstâncias não constituam elementos do tipo legal, nem constituam um outro facto histórico unitário (…)» (9)

Nesta senda, também não será qualquer alteração da qualificação jurídica que importará a sua comunicação, só devendo ser comunicadas as alterações da qualificação jurídicas que sejam relevantes do ponto de vista da defesa do arguido, como já assinalado, no sentido de se imputar ilícito substancialmente diverso, pois este é o espírito que preside a estes institutos processuais.

Ora, o que sucedeu neste caso foi isto mesmo: uma redução. Onde se imputava que o arguido «agiu com a intenção de tirar a vida a B»; veio o Tribunal recorrido a considerar que «o arguido agiu com a intenção de ofender a integridade física de B, conformando-se com a possibilidade de as lesões serem graves, causando-lhe risco para a vida…»

O sentido óbvio e simples é este: só poderá imputar-se homicídio tentado se se cogitou tirar a vida a outrem; e isso necessariamente integra (como caminho para) a ofensa grave à integridade física que se veio a considerar verificada.

Não havia, pois, necessidade de suscitar os requeridos incidentes processuais, uma vez que as alterações efetuadas em nada vulneraram as garantias de defesa do arguido/recorrente.

E tanto é o bastante para julgar improcedentes estes fundamentos do recurso.

3.1.2. Da preterição da fundamentação e exame crítico das provas

A respeito dos requisitos da sentença dispõe-se no § 2.º do artigo 374.º CPP que ao relatório se segue a fundamentação, a qual consta da «enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.»

A preterição da fundamentação com análise crítica das provas constitui nulidade, conforme prevê o artigo 379.º, § 1.º, al. a) CPP. Trata-se de consequência jurídica derivada do dever geral de fundamentação das decisões judiciais tem esteio no texto da Lei Fundamental (artigo 205.º, § 1) e constitutivo do princípio do processo equitativo, a que se reporta o § 4.º do artigo 20.º da Constituição e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (um e outro inspirados no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem). «A exigência da fundamentação é, simultaneamente, um ato de transparência democrática do exercício da função jurisdicional, que a legitima, e das diversas garantias constitucionais da motivação decisória, com destaque para os direito da defesa, de forma a aferir-se da sua razoabilidade e a obstar a decisões arbitrárias.» (10) O exame crítico das provas na sentença (11) exige, não apenas que se indiquem os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova produzidos ou apresentados em audiência. O cumprimento deste dever pressupõe que se motive, de modo sucinto embora, mas claro, o modo como se formou a convicção do julgador, de molde a permitir «ao arguido, aos demais intervenientes processuais e à comunidade em geral, uma completa compreensão das razões que motivaram a decisão proferida, das razões pelas quais só aquela decisão e não outra poderia ter sido tomada, para que demonstre, em suma, que a decisão não foi tomada de forma arbitrária» (12).

Compulsando as páginas do acórdão recorrido nele se evidencia uma fundamentação do decidido, que se não cinge à mera referência das bases probatórias, colocando em evidência como se conjugam os meios de prova e porque razão se deu mais credibilidade a uns que a outros, explicitando-se com meridiana clareza os juízos que permitiram, com base nas provas expressamente referidas, a seleção factológica (provada e não provada) efetuada. É certo que é sempre possível fazer uma interpretação e avaliação das provas diversa da que foi realizada pelo tribunal recorrido, valorizando mais umas provas (ou alguns pormenores) em detrimento de outras. Mas não pode, com seriedade, dizer-se que o Tribunal não fundamentou a sua convicção, explicando as razões pelas quais no escrutínio da prova produzida, se convenceu da verificação dos factos que considerou provados. Termos em que este fundamento de recurso se mostra improcedente.

3.2. Erro de julgamento da questão de facto

Alega o recorrente erro de julgamento da matéria de facto, reportando-se à chamada impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412.º, § 3.º CPP. Neste contexto impugna os factos constantes dos pontos 4, 5, 6, 10 e 12 a 17.

Há erro de julgamento da questão de factos quando o Tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova (pelo que deveria ter sido considerado não provado); ou quando dê como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Nesta modalidade de impugnação da matéria de facto da decisão recorrida, a reapreciação a realizar pelo Tribunal ad quem não se circunscreve ao texto daquela, antes se alargando à análise da prova produzida em audiência, nomeadamente através da audição das declarações e depoimentos gravados, e na demais que conste dos autos e sobre a qual tenha incidido contraditório. Não obstante esta reapreciação da matéria de facto não se confunde com um novo julgamento, em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento anterior não existisse. Do que se trata é, apenas, de um «remédio jurídico» que giza colmatar erros de julgamento, despistando ou corrigindo, cirurgicamente, eventuais erros in judicando (por violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (por violação de normas de direito processual).

Neste contexto não é suficiente a alegação e demonstração de uma mera divergência de convicção face à formada pelo julgador (pretendendo-se com isso sobrepor a convicção do recorrente à que foi formada por um julgador imparcial). Pois que a Constituição e a lei atribuem ao tribunal – e só a este - não apenas o poder de apreciar livre e imparcialmente as provas, como também o dever de motivar a sua convicção segundo parâmetros racionais controláveis (artigo 127.º CPP), impondo-se-lhe, para garantia de direitos fundamentais, o limite imposto pelo princípio in dubio pro reo (por força do qual só poderá julgar provado facto desfavorável ao acusado quando tal demonstração se evidencie para além de toda a dúvida razoável).

O recorrente o ónus de indicar a decisão de facto alternativa à que consta da decisão recorrida, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe a razão pela qual deveria o Tribunal recorrido ter decidido de modo diferente.

E foi isso justamente que o recorrente fez, assinalando não ter sido produzida qualquer prova direta demonstrativa da subtração dos bens a que se refere o acórdão recorrido, bem assim como a autoria (ou a autoria voluntária) das lesões sofridas pelos ofendidos.

Sustenta genericamente, com relação ao primeiro segmento factológico questionado (factos 4, 5 e 6) que a prova produzida não sustenta o juízo feito pelo tribunal recorrido, e que o depoimento da testemunha L impõe decisão diversa.

Este segmento respeita ao momento da subtração de bens do estabelecimento que o arguido decidira assaltar. As provas em que o Tribunal estribou a sua convicção nesta parte foram as declarações confessórias do arguido e nos depoimentos de B e N, funcionários do estabelecimento assaltado e que interagiram com o arguido logo após este ter passado a linha de caixa.

No essencial o depoimento de L não diz coisa diversa! Ora, segundo o recorrente o depoimento desta testemunha imporia decisão diversa!

O arguido passou com o carrinho das compras para fora da linha das caixas. E só para cá dessa linha foi abordado pelos responsáveis pela segurança do estabelecimento. Nessa altura o arguido poderia ter abandonado os bens e fugido. Mas não foi isso que fez. O que fez foi encetar fuga levando os bens consigo. E só no exterior do edifício, no parque de estacionamento de viaturas, decidiu abandonar os bens e fugir do local.

Ora é isto mesmo que, no essencial, se diz nos factos 4 a 6.

O segundo segmento factológico colocado em crise respeita a voluntariedade (por banda do arguido) no desferimento de dois golpes de navalha. Pretende o recorrente que o arguido tinha a navalha na mão e que se espetou, por duas vezes, no corpo de B, sem que o arguido tivesse a intenção de o atingir.

Nesta parte o recorrente não indica prova sustentadora da sua tese, limitando-se a afirmar que nada prova a versão que o Tribunal considerou provada. Mas não tem razão.

Tal como referiu o ofendido (testemunha B) quando este o intercetou não viu que o arguido levasse qualquer navalha na mão. Para o que evidentemente se teria precatado. A testemunha J não diz coisa diversa. E ouvidas as declarações do arguido sem preconceito, a confissão (ainda que envergonhada) também lá está.

A mais disso, o resultado clinicamente aferido evidencia que se tratou de dois golpes, nenhum deles superficial, pelo que a tese esgrimida pelo recorrente não tem nenhuma viabilidade no mundo da física. A verdade é que ele quis atingir o seu perseguidor, para dele se livrar, como o arguido de certa forma diz.

Nada há, pois, a alterar ao julgamento de facto feito na 1.ª instância.

3.3. In dubio pro reo

É dos termos dubitativos da tese do recorrente sobre a voluntariedade dos golpes de navalha no seu perseguidor que emerge o alegado in dubio pro reo, como se este fora «pau para toda a obra»!

Ora, não é.

A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, na medida em que aquele encerra uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.

Não é pelo facto de haver versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes (e nem é o que sucede neste caso), que o arguido deverá por isso ser absolvido, se ao Tribunal de julgamento, na avaliação criteriosa da prova, se não ofereceu dúvida.

Porquanto o in dubio pro reo, enquanto correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, § 2.º da Constituição), assenta na verificação de um impasse no juízo probatório depois da prova produzida.

O recorrente entende que as circunstâncias são propícias a suscitar dúvidas sobre a intenção do arguido na produção das lesões físicas no ofendido.

As únicas dúvidas que surgiram ao Tribunal respeitaram à intenção do arguido de tirar a vida ao ofendido. E o Tribunal valorou-as a favor do arguido, conforme consta dos factos provados e da respetiva motivação.

Mas o Tribunal recorrido, único terceiro imparcial na causa, não se suscitaram quaisquer outras dúvidas. E a este Tribunal de recurso, pelas razões já expendidas, também não.

E não tendo havido essa dúvida, que constitui substrato necessário à mobilização de tal princípio, carece de sentido esgrimi-lo, pelo que também improcede este fundamento.

3.3. Qualificação jurídica dos factos

3.3.1. Do crime de furto

Considera o recorrente que o crime de furto que reconhece ter cometido o foi, apenas, na forma tentada, não tendo havido verdadeira subtração dos bens de que tencionava apropriar-se, na medida em que foi monitorizado pela vigilância do estabelecimento, tendo estado sempre sobre o controlo dos vigilantes, que o intercetaram quando e onde quiseram. O Ministério Público, por seu turno, sustentando a posição do acórdão recorrido, considera que neste caso se ultrapassou o estádio da tentativa, entendendo que o arguido teve efetivo domínio de facto sobre os bens, que saíram efetivamente da esfera de domínio do fruidor do espaço onde as coisas se encontravam. O arguido adquiriu a posse dos bens, com os quais saiu, sem qualquer impedimento, levando consigo aqueles com o objetivo de os fazer seus, como fez. Sendo perseguido já no exterior do estabelecimento onde acabou por abandonar o carrinho que os continha. Só ocorrendo o reingresso dos bens ao património do dominus na sequência de uma recuperação feita por terceiros.

Vejamos.

Preceitua o artigo 203.º, § 1.º CP que:

«quem, com ilegítima intenção de apropriação, para si ou para outrem, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.»

Há uma divergência na doutrina e na jurisprudência nacionais acerca do momento em que se deve considerar consumado o furto, a qual se pode sintetizar em três posições (13):

«i) A tese da posse instantânea - doutrina tradicional - que se basta com a consumação formal, sendo suficiente que a coisa subtraída passe para a esfera do poder do agente criminoso para se considerar que ocorreu a efetiva lesão do interesse tutelado, não sendo necessário verificar-se o exaurimento total do plano do agente, nem carecendo a detenção da coisa de qualquer período temporal; ii) A tese da posse pacífica da coisa apropriada exigindo a detenção em pleno sossego ou estado de tranquilidade, encabeçada por Eduardo Correia, em reação ao primeiro entendimento citado (14); iii) A tese da tendencial estabilidade, surgida mais recentemente, que centra a questão na perda do domínio de facto por parte do anterior fruidor, podendo dizer-se que, em regra, “a subtração se verifica, e o furto se consuma, quando a coisa entra no domínio de facto do agente da infração, com tendencial estabilidade, isto é, não pelo facto de ela ter sido removida do respetivo lugar de origem, mas pelo facto de ter sido transferida para fora da esfera de domínio do seu fruidor pretérito”». (15)

Conforme preceitua o artigo 22.º CP:

«1 – Há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.

2 – São atos de execução;

a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;

b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou,

c) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.»

A punição da tentativa é, como sabido, uma resposta do sistema jurídico-penal de molde a abarcar no seu âmbito de proteção também os atos jurídicos penalmente relevantes, mas inconsumados.

Fundamental na delimitação das categorias de atos de execução é, pois, o papel desempenhado pelo elemento subjetivo da tentativa - o plano concreto do agente.

A nossa lei não distingue e pune do mesmo modo a tentativa acabada e a tentativa inacabada ou frustrada (16).

No caso do furto a consumação do ilícito ocorre com a violação do poder de facto de guardar ou de dispor da coisa que tem sobre ela o proprietário e seu detentor e com a substituição desse poder pelo poder do agente.

No caso concreto o arguido quis e praticou atos idóneos à apropriação de bens que sabia serem de terceiro, os quais, retirou do local onde o seu dono os tinha colocado, com intenção de deles se apropriar. Contudo não chegou, deveras, a integrar tais bens no seu património, pois não só esteve sempre vigiado enquanto procedia à sua escolha, como foi intercetado pelos representantes do proprietário ainda dentro do estabelecimento.

Isto é, apesar de a detenção (precária) que fez dos bens se ter mantido até que os abandonou no parque de estacionamento contíguo ao estabelecimento de onde os retirara, o arguido nunca teve, verdadeiramente, os bens de que tencionava apropriar-se à sua exclusiva disponibilidade. O mesmo é dizer, que o legítimo dono dos bens nunca viu afetado, efetivamente, o seu poder de facto sobre as coisas que o arguido precariamente deteve.

Não vale a pena ficcionar o contrário do que a realidade claramente revela. Com efeito, só através de uma ficção descaracterizadora dos conceitos, nomeadamente do conceito de subtração, se poderá considerar que o ilícito se consumou. Isto é, que os bens saíram da esfera jurídica dos poderes do seu legítimo dono para um novo dono: o arguido.

Resta pois concluir que com a sua atuação o arguido se constitui autor de um crime de furto tentado (frustrado), previsto no artigo 203.°, § 1.º, com referência aos artigos 22.°, § 1.º, al. c) e 23.º CP, com o que reconhece razão ao recorrente.

3.3. Qualificação jurídica dos factos

3.3.1. Do crime de ofensa à integridade física grave e qualificada

Manifesta o recorrente o entendimento que a factualidade provada não integra a qualificação prevista no artigo 145.º CP, na medida em que não se verifica uma censurabilidade ou perversidade que exceda aquela que é conatural à prática do crime de homicídio («simples»). Mas não tem razão. Desde logo porque os «exemplos-padrão» contidos no § 2.º do artigo 132.º CP, para o qual remete o artigo 145.º do mesmo código, são sinais (exemplos) que tal revelam. Ora, consta da al. g) daquele preceito, que é suscetível de revelar essa especial censurabilidade ou perversidade, ter em vista facilitar a fuga. E foi isso mesmo que sucedeu. O arguido sentiu-se acossado (perseguido), com vista à sua responsabilização pelo ilícito (de furto tentado) cometido, e para lograr escapar não se inibiu de usar uma navalha, que trazia oculta, logo que foi apanhado e se procurava manietá-lo.

É, pois, indubitável que o arguido/recorrente, para lograr a fuga, não só agrediu fisicamente o ofendido, como não se coibiu de usar uma navalha e com ela desferir sobre o corpo dele dois golpes, e que, ainda que sem ter a intenção de lhe tirar a vida, não pode ter deixado de admitir, e se conformar, com essa possibilidade.

Nesta parte a qualificação jurídica dos factos feita pelo Tribunal recorrido mostra-se irrepreensível.

3.4. Medida das penas

Pretende o recorrente que as penas que lhe foram aplicadas são «manifestamente excessivas». Alega que o Tribunal a quo não teve em consideração as concretas circunstâncias em que os crimes foram praticados, nem a idade do arguido à data dos factos, nem ainda as circunstâncias que depõem a favor do arguido, as quais, contudo não identifica! O Ministério Público, por seu turno, sustenta a justiça das apenas aplicadas. Importará começar por afirmar que o paradigma dos recursos penais é o de que estes são remédios jurídicos, vocacionados para colmatar erros de julgamento, despistando ou corrigindo, cirurgicamente, eventuais erros in judicando (por violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (por violação de normas de

direito processual), o qual abrange também o iter decisório sobre a pena. (17) Isto é, o tribunal ad quem não julga de novo, não determinando concretamente a pena como se inexistisse uma decisão de primeira instância que já se pronunciou sobre o tema. Antes, a reapreciação pelo tribunal superior tem em vista aferir do respeito e consideração pelo tribunal recorrido dos princípios constitucionais e legais, das regras e vetores relevantes para escolha e determinação da medida da pena. Tal reapreciação não abrange, por isso, «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada».(18) O Tribunal recorrido, após considerações gerais sobre as regras e princípios atinentes à escolha e medida das penas, escolheu e graduou as penas nos seguintes termos:

«Demandando elevadas exigências de prevenção geral, certo é que, neste conspecto, prevalência deve ser dada às exigências de prevenção especial ou de socialização do arguido.

No que respeita às exigências de prevenção especial, terá de considerar-se a imagem negativa que assume na comunidade, associada ao aparelho da Justiça e a consumos aditivos, bem assim à sua falta de inserção laboral e de apoio familiar frágil, sem descurar os seus antecedentes criminais, atinente à prática de crimes contra património, e praticou os factos em crise indiferente às condenações que foi alvo pela prática de factos de semelhante natureza, revelador de uma personalidade desconforme o Direito.

Somos, assim, a considerar, tendo em conta as necessidades de prevenção geral e as necessidades de prevenção especial que a pena de multa se mostra desajustada, mostrando-se a pena de prisão necessária a conduzir à assunção do desvalor das suas condutas e de interiorização de um comportamento conforme o Direito.

(…)

Aqui chegados importa considerar, dado o facto de o arguido à data da prática dos factos ter idade inferior a 21 anos, por força do disposto no seu artigo 1º, da eventual aplicabilidade do regime penal de jovens adultos do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.

Com efeito, dispõe o n.º 4 do citado diploma “Se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73.º e 74.º (actuais 72º e 73º) do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.”

Desta norma resulta que este regime não é de aplicação automática, apenas devendo ter lugar quando se entenda ser benéfica a sua aplicação ao jovem delinquente. Assim, serão razões de prevenção especial que poderão determinar o afastamento do mesmo.

A interpretação do artº 4º do DL 401/82 de 23 de Setembro, ainda que com algumas divergências, vem sendo feita no sentido que o regime penal de atenuação especial para jovens é o regime regra de sancionamento dos jovens penalmente imputáveis que hajam completado 16 anos sem ter atingido 21 anos - Vide v.g. Acs. STJ de 15.02.2007 e 15.03.2007, no sítio www.dgsi.pt.

Mas isso não quer dizer que a aplicação, em concreto, do regime em análise seja automática, no sentido de que para ser aplicado seja suficiente que o jovem à data da prática do facto qualificado como crime tenha completado 16 anos de idade sem ter atingido os 21 anos.

Ser o regime regra de sancionamento dos jovens incluídos no aludido escalão etário significa que o tribunal tem o poder dever vinculado de averiguar os pressupostos de facto da sua aplicação.

Já sobre as circunstâncias em que a atenuação especial da pena de prisão deverá ter lugar apreendem-se no essencial duas orientações jurisprudenciais.

Uma, mais exigente, que sustenta que só deve ter lugar o funcionamento da atenuação especial da pena quando se comprovem sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção do condenado - em sentido discordante desta orientação, vide F. Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 452.

E outra, menos exigente, que defende que a atenuação especial da pena facilita a reinserção social do jovem – traz vantagens para a reinserção social do jovem condenado, e só deve ser afastada (regime regra) quando circunstâncias concretas documentarem a sua incapacidade para introduzirem benefícios com vista a essa almejada ressocialização do jovem. Por isso, esta orientação sustenta que, nesta sede, não se deve dar relevo excessivo a factores como a ilicitude, a culpa, e a prevenção – Vide Ac. STJ de 31.01.2008, CJ, Tomo I, pág. 215 e segs., e Acs. de 07.11.2007, 15.02.2007, 17.01.2008 e de 07.01.2004, disponíveis em www.dgsi.pt.

Pela nossa parte entendemos, que por regra haverá vantagens para a reinserção social do jovem adulto na aplicação do regime especial para jovens, mas que este regime não deverá ser aplicado se dos autos resultarem elementos que contrariem tal conclusão.

Sabendo do efeito altamente criminógeno da pena de prisão, tudo aponta no sentido de quanto menor a pena de reclusão menor será aquele efeito e, consequentemente, maior a possibilidade de uma vez fora da prisão o jovem poder optar por uma vida longe do crime. Mas, a esta consideração abstrata o julgador terá que juntar elementos concretos que lhe permitam concluir que o delinquente, uma vez fora da prisão, se integrará num meio envolvente propício a que se afaste de ambientes, lugares e pessoas que o poderão levar, novamente, para a prática de actos da mesma natureza dos praticados.

Não é a culpa do arguido, consubstanciada no facto concreto que praticou, que nos poderá limitar a aplicação do regime especial de jovens adultos. A única coisa que a lei impõe como limite à aplicação desta atenuação especial é a consideração de que o arguido não tirará quaisquer vantagens para a sua reintegração social daquela diminuição.

No caso concreto, apesar do arguido ser jovem, realça-se a ausência de atitude revelador de interiorização do ilícito cometido, não permitindo firmar razões sérias para crer que a atenuação especial traga vantagens para reinserção daquele cujo modo de vida e carência de apoio familiar e não inserção laborais se encontra espelhada no relatório social. É certo que não obstante a idade jovem do arguido, à data dos factos, funciona como atenuante geral. Porém inexiste por parte do arguido qualquer acto de contrição, como mencionado.

O relatório social e os factos provados relativos à personalidade do arguido desmentem totalmente tal facto e ou indiciam, de forma segura, que o crime foi um episódio trágico, totalmente atípico e inesperado na vida daquele e que, sendo-lhe aplicada uma pena justa, especialmente atenuada, este ficará plenamente apto a regressar à convivência social e a retomar a sua vida de forma ordeira e cumpridora, tal como sempre fez.

Efectivamente e conforme jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça – Acordãos do STJ de 2/6/2010 in proc. nº 27/04.3GBTMC.S2 , in www.dgsi.pt e Ac.STJ de 21 de Outubro de 2004 , in CJ(STJ) tomo III, pg.193 - o regime especial para jovens “só deve ser aplicado quando houver razões sérias crer que a sua aplicação vai facilitar a ressocialização do jovem delinquente”, o que neste caso não se antevê, razão pela qual não se aplicará o aludido regime.

(…)

Contra o arguido militam o modo de execução do facto (usando um objecto contundente), a considerável ilicitude da conduta (lesões provocadas no ofendido), o dolo eventual que o circunda, registo criminal de quem com tenra idade tem averbadas duas condenações (crime de trafico de menor gravidade e furto simples), a tardia interiorização da gravidade do acto que perpetrou e a não integração familiar e/ou social (trabalho).

A favor do arguido apenas a confissão integral com as reservas que vieram a provar-se quanto à imputação pela prática do crime de homicídio.

Aqui chegados, importa também sopesar as medianas necessidades de prevenção geral neste tipo de crimes.

Por tudo isto, julga-se adequada ao caso uma pena que se afaste claramente do mínimo legal e mais além do termo médio aplicável aos crimes e assim:

- uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão pela prática do crime de furto;

- uma pena de 6 anos de prisão pela prática do crime de ofensa à integridade grave qualificada.

Dispõe o artigo 40.º, § 1.º e 2.º CP que a aplicação das penas visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente na sociedade; em caso algum podendo ultrapassar-se a medida da culpa. Deste programa político-criminal decorrem os seguintes vetores: «1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.» (19)

Breve: dentre os limites fixados pela medida da culpa (máximo de pena) e pela prevenção geral positiva (mínimo da pena) são as necessidades de prevenção especial que determinam o quantum concreto da pena. Noutra síntese poderá também dizer-se, com Fernanda Palma, que: «a proteção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos – prevenção geral negativa –, incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos – prevenção geral positiva –. A proteção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. A reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena.»

Vejamos agora os factos e circunstâncias mais relevantes do caso concreto para a graduação da medida da pena:

- os factos ilícitos praticados foram um crime de furto na forma tentada, que é punível com pena de prisão entre 1 mês e 2 anos (artigos 23.º, § 2.º e 73.º, § 1.º, al. a) CP); e um crime de ofensa à integridade física grave e qualificada, punível com pena de 3 a 12 anos (artigo 145.º, § 1.º, al. c) CP).

Ambos os ilícitos foram praticados na mesma ocasião, sendo o de ofensa à integridade física praticado para escapar à responsabilização pelo furto.

O arguido tinha à data da prática dos factos 20 anos de idade (20).

Confessou no essencial os factos praticados.

Mas não apresentou qualquer pedido de desculpas nem deu mostra de qualquer espécie de arrependimento. Isto é, da sua atitude não ressaltou qualquer sinal abonatório da sua personalidade, por referência aos factos ilícitos praticado.

Ora estes é que seriam dados relevantes para a atenuação das necessidades de reforço da consciência jurídica comunitária e do sentimento de segurança, face à ocorrida violação das normas (prevenção geral); e seriam esses também que poderiam, justificadamente, sustentar um juízo positivo relativamente à boa reintegração da agente da sociedade, e logo, de um menor risco de reincidência (prevenção especial).

As condições pessoais do arguido, decorrentes do relatório social e do certificado do registo criminal, são pouco abonatórias, na medida em que não traduzem que estes factos tenham sido uma espécie de acidente na sua vida. Essas circunstâncias pessoais, a mais das elevadas exigências de prevenção geral, permitem que se afaste a atenuação especial prevista no regime penal dos jovens adultos, pelas razões indicadas no acórdão recorrido. Como deixámos referido supra a qualificação jurídica dos factos relativos ao crime de furto, não excedeu a mera tentativa, remetendo-nos para uma medida da pena distinta da considerada na 1.ª instância. Considerando, no entanto, que se mostra juridicamente fundado o afastamento da pena alternativa de multa, relativamente a tal crime. No ajustamento da pena concreta consideramos dever a mesma fixar-se em 8 meses de prisão. Já no concernente à ofensa à integridade física grave e qualificada, não logramos verdadeira razão que justifique a alteração da medida da pena fixada pelo Tribunal a quo. Operando o cúmulo jurídico, nos termos previstos no artigo 77.º CP, a pena única deverá fixar-se nos 6 anos e 2 meses de prisão, nela se impregnando a expectativa de que o condenado ainda possa fazer agulha para uma reintegração plena e válida na sociedade.

Termos em que o recurso merece parcial provimento.

III – DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto decide-se:

a) Alterar a qualificação dos factos ilícitos, considerando que o arguido cometeu um crime de furto na forma tentada, previsto no artigo 203.º, § 1.º, com referência aos artigos 22.º e 23.º, todos do Código Penal; e um crime de ofensa à integridade física grave e qualificada, previsto nos artigos 143.º, § 1.º, 144.º, al d) e 145.º, § 1.º, al. c), com referência à al. g) do § 2.º do artigo 132.º, todos do Código Penal.

b) Alterar a condenação relativamente ao crime de furto tentado, fixando a pena em 8 meses de prisão.

c) Alterar a pena única em que fica condenado o arguido, para 6 anos e 2 meses de prisão.

d) Manter quanto ao mais o douto acórdão recorrido.

e) Sem custas (artigo 513.º, § 1.º CPP a contrario)

Évora, 21 de junho de 2022

J. F. Moreira das Neves (relator)

José Proença da Costa (adjunto)

Gilberto da Cunha (presidente da Secção)

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

3 Neste sentido tb. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª ed., 2011, pp. 982, ponto 2-e. viii em comentário ao artigo 379.º CPP.

4 Neste sentido pode ver-se, por todos, João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, t. I, 2019, Almedina, pp. 1284 ss.

5 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, Coimbra Editora, pp. 145.

6 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, III, 2000, pp. 273.

7 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, Lda. 1984, 1.º Vol., pp. 144 e ss.; Castanheira Neves; Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua relevância no processo penal português, pp. 240 e ss.

8 Cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 330/1997, e n.º 387/2005 in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos

9 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2011, 4.ª ed., Universidade Católica Portuguesa, pp. 44 a 47.

10 Joaquim Correia Gomes, A motivação judicial em processo penal e as suas garantias constitucionais, revista JULGAR, n.º 6, 2008.

11 Por todos, Ac. STJ proc 733/17.2JAPRT.G1.S1

12 Cf. Ac. Tribunal Constitucional n.º 47/2005.

13 Cf. (por todos) acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 23jun2021, proc. 805/18.6PDVNG.P1, Des. Maria Deolinda Dionísio.

14 A propósito afirma o autor, Direito Criminal, 1988, tomo II, Almedina, pp. 44, nota 1 que: «Enquanto a coisa não está na mão do ladrão em pleno sossego não parece que possa dizer-se que haja consumação».

15 Paulo Saragoça da Mata, Subtração de coisa móvel alheia - Os efeitos do Admirável Mundo Novo num crime “clássico”, Liber Discipulorum para J. Figueiredo Dias, 2003, Almedina, pp. 10.

16 Sobre a distinção conceptual cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal, Parte Geral, tomo I, 2019 (3.º ed.), Almedina, pp. 831 ss.

17 Neste sentido Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 295; Sérgio Gonçalves Poças, Revista Julgar, n.º 10, 2010, pp. 22; e na jurisp. (por todos) Ac. TRÉvora, de 16jun2015, proc. 25/14.9GAAVS.E1 Des. Clemente Lima; Ac. TRCoimbra, de 5abr2017, proc. 47/15.2IDLRA.C1, Des. Olga Maurício; DSum. TRE, 20/2/2019, proc. 1862/17.8PAPTM.E1, Des. Ana Brito; Ac. TRLisboa, de 12jan2021, proc. 2127/19.6PBLSB.L1-5, Des. Paulo Barreto, todos disponíveis em www.dgsi.pt

18 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas – Editorial Notícias, pp. 197.

19 Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – Sobre os Fundamentos da Doutrina Penal Sobre a Doutrina Geral do Crime, 2001, Coimbra Editora, pp. 110/111.

20 Contrariamente ao alegado pelo recorrente o Tribunal recorrido atentou, e bem, na idade do arguido. Fê-lo quando considerou não dever aplicar a atenuação especial; e depois quanto avaliou as circunstâncias relevantes para a graduação das penas concretas.