Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
112/14.3GDSTR.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: HOMICÍDIO TENTADO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FUNDAMENTAÇÃO
LEGÍTIMA DEFESA
Data do Acordão: 02/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – A convicção do juiz tem de seguir critérios transparentes e justificáveis, capazes de convencer os sujeitos processuais e o público em geral.

II - As provas não podem ser apreciadas uma a uma, de forma isolada e segmentada, devendo, isso sim, ser analisadas e valoradas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, de modo a que, ainda que sendo as provas de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear e racionalmente apreensível, fazendo o julgador inferências (ou deduções, ou presunções), a partir de factos conhecidos para firmar factos “desconhecidos”, desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica das coisas (as máximas da experiência comum).

III - A prova da autoria dos factos não tem de ser, em toda sua extensão, prova direta (testemunhal, por declarações, pericial ou documental), podendo o tribunal socorrer-se, como muitas vezes acontece, das regras da experiência (ou, o mesmo é dizer, das presunções judiciais, da prova indireta).
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO.

Nos autos de processo comum perante tribunal coletivo com o nº 112/14.3GDSTR, do Juízo Central Criminal de Santarém (Juiz 1), mediante pertinente acórdão o tribunal proferiu a seguinte “decisão”:

“Pelo exposto, com os fundamentos invocados e de acordo com as disposições legais acima citadas, julga-se a acusação parcialmente procedente, por provada, e em consequência:

a. Absolve-se o arguido CC quanto à prática de uma contraordenação p. p. pelo art.º 98º, por violação do disposto no artº 39º, nº 1 e 2, als. c) e d), da lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.

b. Condena-se o arguido CC, pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, p. p. pelos artigos 131º, 22º e 23º, todos do Código Penal, agravado por força do disposto no art. 86º, nº 3 e 4, da lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;

b. Suspende-se a execução da referida pena pelo período de 5 (cinco) anos, sendo tal suspensão sujeita a regime de prova e à condição de o arguido proceder, até um ano a partir do trânsito em julgado da presente decisão, ao pagamento, ao ofendido MM, do montante de € 3.000,00 (três mil euros), como parte da indemnização fixada a favor deste, comprovando tal pagamento nos autos;

c. Condena-se o arguido na pena acessória de interdição temporária de detenção, uso e porte de arma, prevista no art. 90º do RJAM, pelo período de 5 (cinco) anos, a qual implica a proibição de detenção, uso e porte de armas, designadamente para efeitos pessoais, funcionais ou laborais, desportivos, venatórios ou outros, bem como de concessão ou renovação de licença, cartão europeu de arma de fogo ou de autorização de aquisição de arma de fogo durante o período de interdição, devendo o condenado fazer entrega da ou das armas, licenças e demais documentação no posto ou unidade policial da área da sua residência no prazo de 15 dias contados do trânsito em julgado.

d. Condena-se o arguido nas custas do processo, em 3 UC de taxa de justiça (art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e art. 8º, n.º 9, e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).

Julga-se ainda o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante MM parcialmente procedente, por provado, e em consequência:

a) Condena-se o arguido CC no pagamento ao Demandante da quantia de € 340.583,02 (trezentos e quarenta mil quinhentos e oitenta e três euros e dois cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, a tudo acrescendo juros, desde a notificação do pedido de indemnização civil formulado até efetivo e integral pagamento.

b) Condena-se ainda o Arguido e o Demandante no pagamento das custas relativas ao pedido de indemnização civil, na proporção do respetivo decaimento (art. 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

Julga-se o pedido de indemnização civil formulado pelo Centro Hospitalar Lisboa Central, EPE, parcialmente procedente, por provado, e em consequência:

a) Condena-se o arguido a pagar 9.190,89 (nove mil cento e noventa euros e oitenta e nove cêntimos), acrescido de juros desde a notificação do pedido formulado até integral pagamento, e do montante a liquidar em execução de sentença, e correspondente ao custo a suportar pelo demandante relativo à cirurgia e cuidados de saúde prestados ao ofendido Marco Lima no British Hospital, absolvendo-o do demais peticionado.

b) Condena-se ainda o arguido no pagamento das custas relativas ao referido pedido de indemnização civil na proporção do seu decaimento (art. 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, e art. 4º do RCP)”.

Inconformado, o arguido interpôs recurso, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

“1.- Foi o arguido condenado pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 22.º e 23.º, todos do Código Penal, agravado por força do disposto no art. 86.º, n.ºs 3 e 4, da lei 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, sujeita a regime de prova e à condição de o arguido proceder, até um ano a partir do trânsito em julgado da presente decisão, ao pagamento, ao ofendido, do montante de € 3.000,00 (três mil euros), como parte da indemnização fixada a favor deste; na pena acessória de interdição temporária de detenção, uso e porte de arma, prevista no art. 90.º do RJAM, pelo período de 5 (cinco) anos; e ao pagamento, ao ofendido, da quantia de € 340.583,02 (trezentos e quarenta mil quinhentos e oitenta e três euros e dois cêntimos), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, a tudo acrescendo juros, desde notificação do pedido de indemnização civil formulado até efetivo e integral pagamento, e no pagamento ao Centro Hospitalar Lisboa Central, EPE, da quantia de € 9.190,89 (nove mil cento e noventa euros e oitenta e nove cêntimos), acrescido de juros desde a notificação do pedido formulado até integral pagamento, e do montante a liquidar em execução de sentença, e correspondente ao custo a suportar pelo demandante relativo à cirurgia e cuidados de saúde prestados ao ofendido no Bristish Hospital.

2.- O recorrente não concorda com a apreciação da matéria de facto e de direito, feita pelo douto Tribunal, conforme passa a expor-se:

a) O facto constante do ponto 4 dos factos dado como provados, no douto acórdão ora recorrido, deveria constar como facto não provado:

- Pois o arguido apenas municiou a arma depois de o assistente ter chegado de carro fazendo uma travagem brusca em frente à porta de casa do arguido e rebentando com estrondo a porta de entrada, irrompendo pela casa à procura do arguido, acabando por rebentar com a porta do quarto onde o arguido se encontrava (embora a mesma apenas se encontrasse fechada ao trinco) – conforme se verifica pelas declarações, do arguido, CC, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, consignando-se em ata que o seu início ocorreu pelas 10:15:14 horas e o seu termo pelas 14:48:58 horas – 20171023101512_2613950_2871701, que se transcreveram, supra e que se indicam as passagens, do minuto 00:10 a 06:36, 10:10 a 10:13 e 30:07 a 30:17.

b) O ponto 5 dos factos dados como provados no douto acórdão, com o devido respeito, que é muito, pelo Tribunal “a quo”, devia constar dos factos elencados como não provados, atendendo que o assistente entrou cerca de metro e meio, ou seja, entrou completamente dentro do quarto, avançando em tom ameaçador e irado para o arguido, atingindo-o na face, e não parou à solicitação do arguido para que o fizesse, nem mesmo quando verificou que o arguido estava com a arma – nem a arma o demoveu… pelo que o arguido, receoso pela sua integridade física, já que o assistente chegou mesmo a bater-lhe na cara, disparou a arma, e não, como é referido, que quando abriu a porta o arguido disparou, não corresponde à verdade, pelo que não devia ser dado como provado – conforme se verifica pelas declarações, do arguido, CC, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, consignando-se em ata que o seu início ocorreu pelas 10:15:14 horas e o seu termo pelas 14:48:58 horas – 20171023101512_2613950_2871701, que se transcreveram, supra e que se indicam as passagens, do minuto 03:03/05:10.

c) Com o devido respeito, também não andou bem o douto Tribunal “ a quo” ao dar como factos provados os constantes dos pontos 8., 9. e 11. dos factos provados, pelo que deviam também estes pontos do douto acórdão ser considerados como não provados, já que o arguido atingiu o assistente, mas nunca foi sua intenção matá-lo, como frisou o arguido por diversas vezes durante o seu depoimento, pelo que não agiu deliberadamente com intenção de tirar a vida ao assistente – conforme se verifica pelas declarações, do arguido, CC, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, consignando-se em ata que o seu início ocorreu pelas 10:15:14 horas e o seu termo pelas 14:48:58 horas – 20171023101512_2613950_2871701, que se transcreveram supra e que se indicam as passagens, do minuto 00:10/00:17, 04:47/05:10, 06:26/06:36 e 31:47/33:57.

O arguido em momento algum quis provocar a morte do assistente, pois o disparo não foi com intenção de matar o assistente, mas apenas de repelir a agressão que estava eminente, tendo o arguido sido, inclusivamente, ainda agredido na face, conforme explicou ao douto Tribunal, facto este completamente desvalorizado pelo douto Tribunal “a quo”.

d) Em consequência do supra explanado, também não andou bem o douto Tribunal “a quo” em dar como não provados os factos constantes dos pontos 1. a 6. dos factos não provados, já que estes deviam ser dados como provados, atentas as declarações do arguido em conjugação, que as corroboram, com o depoimento da Testemunha Sr. militar da GNR (esta testemunha mais concretamente quanto aos pontos 1 a 3 dos factos dados como não provados pelo douto acórdão ora recorrido) - conforme se verifica pelo depoimento da testemunha BD, militar da GNR que à data dos factos estava no posto de Pernes, na parte que aqui interessa, foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, consignando-se em ata que o seu início ocorreu pelas 11:53:03 horas e o seu termo pelas 12:21:05 horas que se transcreveram, supra e que se indicam as passagens, 03:27/04:54 e 30:07/30:17 e conforme se verifica pelas declarações, do arguido, CC, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, consignando-se em ata que o seu início ocorreu pelas 10:15:14 horas e o seu termo pelas 14:48:58 horas – 20171023101512_2613950_2871701, que se transcreveram, supra e que se indicam as passagens, do minuto 00:10/00:17, 02:45/03:02, 06:26/06:36, 10:11/10:13, 29:47/29:55 e 30:07/30:30.

Assim, os factos descritos nos pontos 1. a 6. dos factos não provados deviam ser considerados como factos provados.

À luz das regras do bom senso e da experiência comum, dúvidas não existem de que a porta de entrada da casa do arguido foi arrombada pelo assistente, até pelo depoimento do Sr. Militar da GNR, que se deslocou ao local na data dos factos, poucos minutos depois destes terem acontecido, foi perentório na sua convicção de que a porta da frente havia sido arrombada pelo assistente (embora não tenha verbalizado, mas percebe-se que de facto foi esta a perceção que a testemunha teve ao chegar ao local).

e) Pelo supra exposto, também os factos constantes dos pontos 7. a 9. dos factos dados como não provados pelo douto Tribunal “a quo”, deviam ser dados como provados.

3.- É certo que não devia o douto tribunal “a quo”, com o devido respeito, que é muito, condenar o arguido com base quase única e exclusivamente, como parece ter acontecido, nas declarações do assistente e da testemunha IM, atendendo a que ambos têm um interesse direto na condenação do arguido, designadamente no que diz respeito ao pedido de indemnização cível peticionado nos presentes autos pelo assistente.

4.- não podia o Tribunal “a quo”, com o devido respeito por opinião diversa, desvalorizar, como fez, as contradições existentes entre as declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pelo assistente e pela testemunha IM.

5.- O douto Tribunal, na valoração permitida pelo art. 127.º do CPP, consoante os factos deu primazia total aos depoimentos do assistente/ofendido e da testemunha sua companheira e menosprezou totalmente as declarações do arguido, com o devido respeito, para plasmar o que resultava da acusação.

6.- Por este motivo, consideram-se incorretamente julgados os factos, porquanto, atentas as declarações do recorrente, este não agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de tirar a vida ao ofendido/assistente.

Pelo contrário, agiu em legítima defesa.

7.- O Recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, nomeadamente os factos que supra identificou e que considera incorretamente julgados, pois atendendo à prova produzida e assente na motivação de facto, impunha-se decisão diversa da recorrida, impunha-se a absolvição do arguido.

8.- Pelo que se deixou escrito, com o devido respeito, é manifesto que o douto acórdão recorrido não observou nem as regras da experiência e senso comum, nem o máximo rigor, violando pois o disposto no art. 127.º do Código Processo Penal.

9.- O que é fundamento de recurso, e como resulta exposto, outra decisão se impunha, a saber, a absolvição do arguido.

10.- No mínimo, colocam-se dúvidas insanáveis, se não estamos perante um caso de legítima defesa, dúvidas que, em decorrência do Principio “in dubio pro reo” (que emana do principio da presunção de inocência ínsito no art.32.º, n.º 2, da CRP), teriam que ser resolvidas a favor do arguido ora Recorrente, e não contra ele.

11.- Este princípio é violado quando o tribunal dá como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que o tribunal não tenha manifestado ou sentido essa dúvida, que, porém, resulta de uma análise e apreciação objetiva da prova produzida à luz das regras da experiência e senso comum e/ou de regras legais ou princípios válidos em matéria de direito probatório (cfr. art. 127.º do CPP).

12.- Sempre com muito respeito, parece-nos que toda a fundamentação do douto acórdão ora objeto de recurso não assenta na realidade da prova produzida, mas antes é uma consequência de uma construção, aparentemente lógico-dedutiva, assente essencialmente nas declarações do assistente e da sua companheira que, como é óbvio, e até natural, têm todo o interesse na condenação do arguido - como poderão ser tidas estas declarações como imparciais? -.

13.- Em suma, nos presentes autos existe dúvida razoável quanto à culpa do arguido, pelo que a sua absolvição aparece como única atitude legítima a adotar.

14.- Pelos motivos supra expostos, o arguido ora recorrente deveria ter sido absolvido.

15.- Caso se entenda que existiu um excesso de legítima defesa, o que não se concede, sempre o arguido não devia ser punido, por esse eventual excesso, que não se admite, se ter ficado a dever às circunstâncias em que os factos ocorreram: eram 23,10h, o arguido está em sua casa, no seu quarto, as portas, nomeadamente da entrada (que é de ferro) e a do quarto são arrombadas pelo assistente - que o arguido bem conhece e sabe que por vezes se torna violento -; o assistente, embora constate que o arguido está armado, avança, quarto adentro, em direção do arguido, para o agredir (chegando mesmo a tocar-lhe na cara), ou seja, nem mesmo perante a presença de uma arma o assistente recua nos seus intentos; o arguido utiliza a arma para repelir a agressão do assistente, uma vez que receia pela sua integridade física.

16.- No que concerne ao pedido de indemnização, o arguido considera que o mesmo é destituído de razoabilidade, pois assenta no pressuposto de que o assistente não voltará a exercer qualquer atividade remunerada, o que não se concebe, pelo que a condenação é manifestamente exagerada, porquanto, face às declarações do arguido, e dos factos, este deveria ser de diminuto valor, em virtude da também diminuta culpa do arguido.

17.- Ora, na base da condenação esteve a convicção do douto Tribunal “a quo” de que o arguido teve intenção de matar o assistente, o que de facto não existiu, como supra se expôs; considerou o douto tribunal “a quo” que o arguido agiu com dolo direto, o que de facto não aconteceu, já que o arguido, como se demonstrou supra, apenas disparou após o ofendido/assistente ter entrado em sua casa, tendo para tanto arrombado a porta da entrada e bem assim a do quarto onde o arguido se encontrava, ter entrado dentro do quarto e, mesmo depois de o arguido lhe ter pedido que parasse, caminhou irado na direção do arguido, chegando a atingi-lo na face, não parando mesmo perante a presença da arma na posse do arguido - pelo que deve ser de excluir o dolo direto -.

18.- Estamos, pois, perante uma situação de legítima defesa. Pelo que se deixou dito, o arguido agiu porquanto temia pela própria integridade física. Agiu, assim, em legítima defesa, ou seja, reagiu a uma agressão atual e ilícita que ameaçava interesses seus, juridicamente protegidos. Procurou, com a sua reação, afastar/repelir a agressão que lhe era dirigida.

19.- Uma agressão, para efeitos de legítima defesa, é todo o comportamento humano que lese ou ameace de lesão um interesse digno de tutela jurídica, no caso concreto a integridade física do arguido.

20.- Para ser uma agressão ilícita, tem de se tratar de uma agressão não justificada, o que se entende ter acontecido, como supra se expôs. Nada justifica ou justificou a entrada não autorizada, com arrombamento de portas, do assistente/ofendido na casa do arguido.

21.- Refira-se que, perante tal comportamento do assistente/ofendido, o arguido não teve tempo de recorrer à força pública, estando impossibilitado de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais.

22.- O receio do arguido foi tanto, que, na verdade, procurou recorrer a um meio de defesa que intimidasse o assistente/ofendido e o desmotivasse nas razões que o levaram a dirigir-se à sua casa, arrombar a porta de entrada e seguidamente a porta do quarto com intenções de o molestar.

23.- Terão sido utilizados os meios estritamente necessários a repelir a eminente agressão do assistente/ofendido ao arguido?

24.º Em teoria, pode-se dizer que o meio necessário é aquele, dos vários meios que o agente tem à sua disposição, de eficácia mais suave, ou seja, aquele que importa consequências menos gravosas para o agressor. Mas meio de eficácia suave, mas simplesmente meio eficaz, ou de eficácia certa.

25.- Em última análise, a necessidade do meio empregue para repelir a agressão deve ser aferida em concreto, atendendo a múltiplos fatores.

Desde logo, atendendo:

- Às características da vítima (do defendente) e do agressor;
- Aos meios que o ofendente tenha à sua disposição;
- Aos meios com que o agressor ameaça de lesão o interesse jurídico protegido do defendente ou de terceiro;
- Etc..

26.- Pelo que o douto Tribunal “a quo”, com o devido respeito, devia ter absolvido o arguido do crime de homicídio na forma tentada, por o mesmo ter agido em legítima defesa.

27.- Sem conceder, sempre se dirá que, a ter-se verificado a prática pelo arguido de factos suscetíveis de integrarem o crime de homicídio na forma tentada, o que não se concede, sempre a medida da pena seria determinada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção – nos termos do art. 71.º do Código Penal.

28.- A conduta do arguido, atenta a forma como ocorreram os factos, não é ilícita, ou, caso assim não se entenda, o que apenas se admite por dever de raciocínio, o grau de ilicitude é reduzido.

29.- “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” - conforme dispõe o art. 40.º, n.º 2, do Código Penal -.

30.- Se o crime de homicídio na forma tentada é punível com pena de prisão de 2 anos, 1 mês e 18 dias, até 14 anos, 2 meses e 20 dias, a considerar-se, o que apenas se admite por dever de patrocínio, que a conduta do arguido, o que não se concede, preenche o enquadramento legal do referido crime, face ao comportamento anterior e posterior do arguido, que se encontra integrado socialmente, entende-se que a pena a aplicar, o que não se concede, deve rondar o seu limite mínimo.

Assim, considerando os fundamentos que supra se expõem, deverá ser revogado o douto acórdão ora em crise, por terem sido violados, a nosso ver e salvo o devido respeito por opinião contrária, os preceitos dos artigos:
a) 31.º, 32.º, 40.º, n.º 2, 131.º e 71.º, n.º 2, todos do CP;

b) O art.º 127.º do CPP;

c) O art. 32.º da CRP.

Termos em que, dando-se provimento ao recurso, DEVE O ARGUIDO SER ABSOLVIDO do crime que lhe foi imputado e em consequência serem ambos os pedidos de indemnização cível improcedentes na medida em que extravasam a razoabilidade. ASSIM, FARÃO VOSSAS EXCELÊNCIAS JUSTIÇA”.
*
O assistente MM respondeu ao recurso, concluindo tal resposta nos seguintes termos (em transcrição):

“1. Por acórdão datado de 8 de Janeiro de 2018, proferido no âmbito dos presentes autos, foi o arguido/recorrente condenado pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º e 131º, todos do Código Penal (de ora em diante designado por CP), numa pena de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita ao regime de prova e à condição de o arguido proceder, até um ano a partir do trânsito em julgado da presente decisão, ao pagamento ao Assistente do montante de 3.000,00 € (três mil euros), como parte da indemnização fixada a favor deste e comprovando tal pagamento nos autos. Foi ainda condenado na pena acessória de interdição temporária de detenção, uso e porte de arma, prevista no artigo 90º do RJAM, pelo período de 5 (cinco) anos, devendo o arguido fazer a entrega da ou das armas, licenças e demais documentação no posto ou unidade policial da área da sua residência no prazo de 15 (quinze) dias a contar do trânsito em julgado.

2. Da prova produzida em sede de audiência de julgamento, nomeadamente dos depoimentos do assistente, das testemunhas IM, namorada do assistente, FP, vizinho do arguido, e da prova documental e pericial constante dos autos, devidamente conjugada com as regras da experiência comum, resultou comprovada a prática, pelo arguido/recorrente, do crime pelo qual foi condenado.

3. Conclui-se assim que a análise que o tribunal fez das provas carreadas em audiência de julgamento, mostra-se coerente, lógica e racionalmente justificada, de acordo com as regras da experiência comum, da lógica e dos critérios do que se considera ser a normalidade.

4. O princípio in dubio pro reo é uma das dimensões do princípio da presunção de inocência, que, em termos genéricos, se configura como uma regra de decisão, ou seja, produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado for a dúvida, razoável e insuperável, sobre a realidade dos factos, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido.

5. Nenhuma dúvida se suscitou ao tribunal no caso em apreço, quanto aos factos que deveria dar como provados ou não provados, tendo a prova sido reputada o suficiente para a decisão da causa, ou seja, considerada bastante e não dando margem para dúvidas de que o arguido praticou os factos dados como provados.

6. Atenta a fundamentação da decisão, é perfeitamente consequente e lógico o raciocínio seguido pelo Tribunal e conducente à condenação do arguido/recorrente, dado ter considerado provados os factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos constitutivos do tipo legal de crime em causa.

7. Pelo exposto, não tem base de sustentação a imputação de violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo como pretende o arguido/recorrente.

8. Tendo-se dado como assente que o arguido se muniu da arma de fogo, nomeadamente uma caçadeira, que a carregou, e que, sabendo que o assistente estava a caminho da sua casa, o arguido aguardou por este, primeiro na rua, e depois no quarto, onde sabia que o assistente iria buscar as coisas da companheira, e que mal o assistente entrou no quarto disparou na direção deste, com intenção de o matar, não tendo a morte ocorrido por motivos alheios à sua vontade, e sabendo o arguido que uma arma de fogo, quando utilizada como arma de agressão, é apta a provocar lesões mortais e que agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, ficando desse modo excluído o intuito defensivo, e assim sendo, não houve legitima defesa nem excesso de legitima defesa.

9. A determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, quer da prevenção geral, quer especial.

10. A sentença recorrida fundamentou a escolha e a determinação da medida da pena em que o arguido foi condenado.

11. E, ponderando todo os fatores em causa, entendeu o Tribunal recorrido por adequada aplicar ao arguido a pena de 5 cinco anos de prisão, suspensa na sua execução.

12. A pena considera-se correta por se mostrar proporcional e adequada.

13. O acórdão recorrido não violou qualquer disposição, não merecendo qualquer reparo ou censura.

Por todo o exposto, deverá, pois, o recurso interposto pelo Arguido ser considerado totalmente improcedente e deverá ser, consequentemente, mantido na íntegra o acórdão proferido pelo Tribunal recorrido. Só assim se fazendo a acostumada e devida JUSTIÇA”.
*
A Exmª Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância apresentou resposta, entendendo que o recurso não merece provimento, e concluindo tal resposta nos seguintes termos (em transcrição):

“1. Por Acórdão de 8 de janeiro de 2018, proferido no âmbito dos presentes autos foi o recorrente CC condenado pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, p. p. pelos arts.º 131.º, 22.º e 23.º, todos do Código Penal, agravado por força do disposto no art.º 86.º, nsº 3 e 4 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e à condição de o arguido proceder, até um ano a partir do trânsito em julgado da presente decisão, ao pagamento ao ofendido MM do montante de € 3.000,00 (três mil euros), como parte da indemnização fixada a favor deste, comprovando tal pagamento nos autos e ainda na pena acessória de interdição temporária de detenção, uso e porte de arma, prevista no art.º 90.º do RJAM, pelo período de 5 (cinco) anos, a qual implica a proibição de detenção, uso e porte de armas, designadamente para efeitos pessoais, funcionais ou laborais, desportivos, venatórios ou outros, bem como de concessão ou renovação de licença, cartão europeu de arma de fogo ou de autorização de aquisição de arma de fogo durante o período de interdição, devendo o condenado fazer entrega da ou das armas, licenças e demais documentação no posto ou unidade policial da área da sua residência no prazo de 15 dias contados do trânsito em julgado.

2. Da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente dos depoimentos do Assistente MM (cfr. ficheiro áudio: 20171023105046_26513950_2871701, de 23.10.2017, inicio: 2:13 e fim 14:10), das testemunhas IM, namorada deste (cfr. ficheiro áudio: 20171023114257_26513950_2871701, de 23.10.2017, inicio: 14:09 e fim 36:00), FP, vizinho do arguido (cfr. ficheiro áudio: 20171023152237_26513950_2871701, de 23.10.2017, inicio: 1:20 e fim 8:30), BD, guarda da GNR que se deslocou ao local (cfr. ficheiro áudio: 20171120115702_26513950_2871701, de 20.11.2017, inicio: 05:20 e fim 11:50) e da prova documental e pericial constante dos autos, devidamente conjugada com as regras da experiência comum, resultou comprovada a prática, pelo recorrente, do crime pelo qual foi condenado.

3. Há assim que concluir que a análise que o tribunal fez das provas carreadas em sede de audiência e julgamento, mostra-se coerente, lógica e racionalmente justificada, de acordo com as regras da experiência comum, da lógica e os critérios da normalidade.

4. O princípio in dubio pro reo é uma dimensão do princípio da presunção de inocência e configura-se, basicamente, como uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado for a dúvida, razoável e insuperável, sobre a realidade dos factos, ou seja, subsistindo, no espírito do julgador, uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.

5. No caso em apreço, nenhuma dúvida se suscitou ao tribunal quanto aos factos que deveria dar como provados ou não provados, tendo a prova sido reputada suficiente para a decisão da causa, isto é, foi considerada bastante e não dando margem para dúvidas que o arguido CC praticou os factos dados como provados.

6. E, atenta a fundamentação da decisão, explanada de forma clara e pormenorizada, é perfeitamente consequente e lógico o raciocínio seguido pelo Tribunal e conducente à condenação do arguido/recorrente, dado ter considerado provados os factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos constitutivos do tipo legal de crime em causa.

7. Pelo que não tem base de sustentação a imputação de violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo como pretende o recorrente.

8. Tendo-se dado como assente que “ao munir-se da arma de fogo que destrancou, carregou e empunhou na direção do ofendido o arguido, CC, quis efetuar um disparo atingindo, como atingiu, zonas vitais do corpo de MM e, dessa forma, provocar-lhe a morte, a qual apenas não ocorreu por razões alheias à sua vontade, mais sabia o arguido que uma arma de fogo, quando utilizada como arma de agressão, é apta a provocar lesões mortais e que agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei” fica desse modo excluído o intuito defensivo, demonstrando-se, ao invés, o seu comportamento agressivo. Assim, neste caso já não se pode falar em legítima defesa nem em legítima defesa putativa (que se traduz na errónea suposição de que se verificam, no caso concreto, os pressupostos da defesa: a existência de uma agressão atual e ilícita.

9. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

10. A sentença recorrida fundamentou a escolha e a determinação da medida da pena em que o arguido foi condenado, designadamente:

- A intensidade do dolo, a qual é acentuada, uma vez que, face ao que resultou provado, este revestiu a modalidade mais intensa, de dolo direto.

- O grau de ilicitude da conduta do arguido, que é de considerar médio a elevado, para o tipo criminal em apreço, tendo sobretudo em consideração as consequências da mesma, sofridas pelo ofendido e patentes na matéria de facto provada relativa aos danos por este sofridos, alguns deles traduzidos em limitações físicas que irão perdurar por toda a sua vida.

- Ponderou ainda, desfavoravelmente, a circunstância de o arguido se ter aproveitado da deslocação do ofendido a sua casa e a entrada deste numa das divisões, para, de modo inesperado, desferir o disparo com arma de fogo que o atingiu, surpreendendo-o assim em termos que muito dificilmente permitiriam, quer a fuga, quer qualquer reação do ofendido.

11. E, ponderando todos os fatores ali mencionados, entendeu o Tribunal recorrido por adequado aplicar ao arguido a pena de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução.

12. Pena esta que se reputa correta por se mostrar proporcional e adequada.

14. O acórdão recorrido não violou qualquer disposição.

15. Não merecendo qualquer censura.

Face ao exposto, deve o Acórdão recorrido ser confirmado.
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA”.
*
Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, concluindo também pela improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, o arguido apresentou resposta, mantendo o já alegado na motivação do recurso.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais, e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO.

1 - Delimitação do objeto do recurso.

No caso destes autos, e vistas as conclusões que o recorrente extrai da motivação do recurso, são seis, em breve resumo, as questões a conhecer:

1ª - Fixação da matéria de facto (impugnação alargada da matéria de facto, visando determinados factos constantes do acórdão sub judice - quer factos aí dados como provados, quer factos aí tidos como não provados -).

2ª - Violação do princípio da livre apreciação da prova (estabelecido no artigo 127º do C. P. Penal).

3ª - Violação do princípio in dubio pro reo.

4ª - Existência de legítima defesa, ou, quanto muito, de excesso de legítima defesa.

5ª - Determinação da medida concreta da pena.

6ª - Pedidos de indemnização civil.

2 - A decisão recorrida.

O acórdão revidendo é do seguinte teor (quanto aos factos, provados e não provados, e quanto à motivação da decisão fáctica):

“A. FACTOS PROVADOS

Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados, com relevo para a decisão, os factos seguintes:

Da acusação:
1. O arguido CC é detentor de licença de uso e porte de arma nº 39-----01, bem como de carta de caçador nº 639---.

2. Desde data não concretamente apurada mas anterior a 28 de Outubro de 2014 que o arguido deteve uma arma de fogo longo, marca B.C.Miroku, modelo 3800 TR-1, nº 58600NX, com dois canos sobrepostos, calibre 12, melhor descrita no auto de exame de fls. 83 a 83v, que guardava, devidamente acondicionada no respetivo estojo, no interior do quarto.

3. No dia 28 de Outubro de 2014, cerca das 23:10h, MM dirigiu-se à habitação do arguido, CC.

4. Sabendo que o ofendido, MM se dirigia para sua habitação, o arguido dirigiu-se ao quarto, muniu-se da arma referida, municiou-a com um cartuxo e aguardou pela chegada de MM.

5. Quando MM chegou, irrompeu pela habitação do arguido, CC, após o que se dirigiu a um quarto daquela habitação, abrindo a porta, momento em que o arguido, empunhando a arma referida na direção do ofendido, efetuou um disparo na direção do corpo de MM.

6. Em consequência da atuação supra descrita, o arguido provocou em MM as lesões melhor descritas no auto de exame de fls. 171 a 173, nomeadamente, múltiplas feridas na região torácica anterior direita, na parede abdominal na região epigástrica e esfacelo complexo do terço proximal do gordo cúbal do antebraço direito e no terço médio da face posterior do antebraço direito com destruição de tecido muscular, lesões essas aptas a provocar-lhe a morte, que não sobreveio mas que lhe determinaram 350 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho.

7. Como consequência direita e necessária das lesões causadas pela atuação do arguido, o ofendido apresenta cicatriz retractil com perda da massa muscular no bordo interno do antebraço direito com cerca de 9x5cm e outra na face interna do braço direito com 5x1cm e outra na face posterior do antebraço direito com 5x3cm com vestígios de entrada de projéteis, cicatriz operatória medio-abdominal com 20cm vertical e outra no rebordo da grelha direita a 7cm da linha média numa área de 9x5cm e, apresenta, ainda, rigidez do 3º, 4º e 5º dedo por lesão do nervo cubital da mão direita, com perda da função da mão em cerca de 20%.

8. Ao munir-se da arma de fogo que destrancou, carregou e empunhou na direção do ofendido o arguido, CC, quis efetuar um disparo atingindo, como atingiu, zonas vitais do corpo de MM e, dessa forma, provocar-lhe a morte, a qual apenas não ocorreu por razões alheias à sua vontade.

9. Mais sabia o arguido que uma arma de fogo, quando utilizada como arma de agressão, é apta a provocar lesões mortais.

10. Sabia, ainda, o arguido, que, enquanto detentor de arma de fogo, estava obrigado a cumprir as normas de conduta previstas na lei, nomeadamente a de não exibir ou empunhar armas sem que exista manifesta justificação para tal e que apenas lhe é permitido disparar armas no exercício de atos venatórios.

11. O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Dos pedidos de indemnização civil
12. Em consequência da atuação acima descrita do arguido, MM apresentava limitação da mobilidade dos dedos, hipostesia do território cubital da mão.

13. Apresentava ainda, no abdómen na base do hemitorax na área de equimótica referente ao tiro de caçadeira com cerca de 15 x 15 cm, diversos projetéis intra abdominais justahepaticos, hepatorenal, colon transverso e colon sigmóide.

14. Em resultado de todas estas lesões, o ofendido foi operado no Hospital de S. José no dia 29 de Outubro, verificando-se que tinha múltiplos projéteis de chumbo alojados na cerosa do colon, condicionando pequenas lacerações e pequenas equimoses.

15. No dia 7 de Novembro, o ofendido foi submetido a uma cirurgia plástica, onde se constatou perda de substância tegumentar do antebraço, secção com perda de substância importante de massa muscular flexora do antebraço, secção com perda de substância de cerca de 3-4 cm de nervo cubital no trajeto intramuscular.

16. Foi realizado excerto venoso com dois cabos de nervo cutâneo sensitivo medial do antebraço, aproximação de topos musculares e encerramento parcial da pele.

17. Depois foi feita a aplicação de tala gessada.

18. Em resultado dos ferimentos e das operações a que teve que ser sujeito apresenta o lesado diversas cicatrizes na região abdominal e no braço direito.

19. Em consequência das lesões causadas pela atuação do arguido e das operações a que foi sujeito posteriormente, o ofendido apresenta cicatriz retratil com perda de massa muscular no bordo interno do antebraço direito com cerca de 9x5cm e outra na face interna do braço direito com 5x1cm e outra na face posterior do antebraço direito com 5x3cm com vestígios de entrada de projeteis, cicatriz operatória medio-abdominal com 20cm vertical e outra no rebordo da grelha direita a 7 cm da linha media numa área de 9x5cm.

20. O lesado não completa a extensão do 3º, 4º e 5º dedos da mão direita por lesão tendinosa.

21. Em resultado disso foram-lhe prescritos 12 sessões dos seguintes tratamentos:

Hidromassagem da mão;
Mobilização articular dos dedos; Estimulação elétrica dos pontos motores;
Massagem desfibrosante da cicatriz operatória do cotovelo.

22. O ofendido foi posteriormente submetido a nova cirurgia, para fazer prolongamento tendinoso na tentativa de recuperar a mobilidade dos dedos.

23. MM sempre foi tido como um homem honesto e trabalhador, executando trabalhos de serralharia mecânica, pintura da construção civil e jardinagem, e vivia dessas actividades.

24. Embora tenha ficado desempregado em agosto de 2014 e a data da prática do crime se encontrasse ainda desempregado, iria começar a trabalhar no dia 29 de Outubro de 2014 na empresa J… & L.. Lda. sita em Fátima, onde iria auferir o vencimento de € 505,00 mensais.

25. No entanto, em virtude da agressão da qual foi alvo, não pode ingressar no trabalho.

26. As lesões provocadas pelos atos acima descritos incapacitaram o lesado para o trabalho, visto que não tem total mobilidade nos dedos da mão direita, e os trabalhos que sempre executou carecem da utilização de ambas as mãos.

27. A perda da função da mão direita (20% de incapacidade), impede o lesado de exercer a sua atividade profissional.

28. O ofendido recebeu o valor de € 1.425,20, a título de rendimento social de inserção.

29. Em resultado das lesões supra descritas, carece o lesado de se deslocar por diversas vezes às unidades hospitalares onde é seguido.

30. Gastou, em tais deslocações, um total de € 212,60.

31. Gastou ainda, em medicamentos, € 9,20.

32. Embora tenha tido necessidade de tomar muitos outros medicamentos, a verdade é que foram pagos pelo pai da namorada, em virtude da débil situação económica em que ficou.

33. O ofendido ficou incapacitado para o trabalho.

34. Segundo o curso normal e provável da atividade do lesado, este obteria anualmente em termos de vencimentos € 7.070,00.

35. Desde a data da prática dos factos que o ofendido se sente amedrontado, tendo passado a dormir mal, a andar ansioso, nervoso e assustadiço.

36. Logo após ter alta médica o lesado deixou de frequentar os sítios que habitualmente frequentava com medo de se cruzar com o arguido.

37. Medo esse que ainda hoje se verifica visto que o arguido procura de forma deliberada cruzar-se com o lesado para lhe causar medo.

38. Aos factos seguiu-se um período de depressão e isolamento.

39. O lesado teve por diversas vezes ataques de choro e ansiedade.

40. O demandante é pessoa calma e recatada, com uma reputação imaculada e muito estimado por todos quantos com ele privam.

41. Estar envolvido nestas circunstâncias fez o ofendido sentir-se envergonhado.

42. Ficou com mazelas visíveis que lhe causam vergonha, tendo a sua mão direita uma aparência visivelmente diferente da normal, em virtude dos factos praticados pelo arguido.

43. Tal lesão não lhe permite sequer cumprimentar as pessoas com um aperto de mão.

44. Todas estas circunstâncias lhe têm causado transtorno e vergonha, pois o lesado tem consciência que será portador desta deficiência para o resto da vida.

45. Os dedos da sua mão direita estão parcialmente imobilizados.

46. Tem dores desde então, pois a recuperação é dolorosa e incómoda.

47. Numa escala de 0 a 10, sendo 0 o menor grau de dor e 10 o maior, sofreu dores agudas avaliáveis em 8/9, sendo em alguns dias de grau 10, nomeadamente no período de internamento.

48. As dores sentidas interferem com a vida quotidiana do lesado, nomeadamente com a sua vida pessoal e com o facto de não poder trabalhar.

49. Não poderá mais desempenhar as funções laborais que sempre desempenhou e que lhe eram acometidas, devido ao facto de não conseguir movimentar os dedos.

50. Vive constrangido, envergonhado e até frustrado, por não ser capaz de desempenhar o seu trabalho e sustentar a sua vida como fazia até então.

51. Neste momento o lesado vive do apoio de familiares e amigos.

52. Teve de ser submetido a diversas intervenções cirúrgicas e internamentos.

53. No momento da prática dos factos temeu pela sua vida e integridade física, continuando a temer o lesado.

54. Passou a ser uma pessoa receosa, triste e traumatizada.

55. Passando a ter uma necessidade constante de estar acompanhada por alguém, atento o medo que dele se apoderou.

56. A tranquilidade em que vivia o demandante antes de ser vítima dos factos acima descritos foi irremediavelmente abalada.

57. Passou diversas noites sem dormir, quer em consequência das dores que tinha, quer pelo facto de constantemente ter pesadelos com o dia do crime.

58. Em virtude dos factos acima descritos, no exercício da sua atividade, o Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE prestou cuidados de saúde ao ofendido MM, correspondentes aos seguintes episódios de urgência:

- n.º 14043675, de 29.10.2014 a 07.11.2014, no valor de € 9.007,59;
- n.º 14775005, de 11.11.2014, no valor de € 31,00;
- n.º 14811886, de 25.11.2014, no valor de € 31,00;
- n.º 1475005, de 11.11.2014, e 1411886, de 25.11.2014, no valor de € 59,30;
- n.º 15349198, de 19.05.2015, no valor de € 31,00;
- n.º 15724114, de 27.10.2015, no valor de € 31,00.

59. No dia 07.07.2017, o ofendido MM foi sujeito a nova cirurgia para alongamentos tendinosos da mão direita e correção de esfacelo do cotovelo direito, no British Hospital, em Lisboa, para o qual foi encaminhado pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central.

60. Em virtude das cirurgias e consultas que veio a ter posteriormente, e ainda em consequência das lesões causadas pela conduta do arguido acima descrita, o ofendido MM despendeu mais € 141,22, em deslocações a Lisboa.

Mais se provou, que:
61. O arguido foi anteriormente condenado pela prática, a 19.09.2014, de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 140 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, por sentença de 30.11.2016, transitada em julgado a 24.01.2017.

62. CC vive sozinho há vários anos, numa casa que pertenceu aos seus avós paternos e é atualmente propriedade de seu pai.

63. O imóvel fica situado em A…, localidade das proximidades de Torres Novas. O imóvel é bastante antigo e encontra-se a ser alvo de algumas pequenas obras de melhoramento, que o arguido se encontra a executar.

64. Ao longo dos últimos dez anos, o arguido tem tido uma relação privilegiada com VF, de 29 anos de idade, auxiliar num lar de idosos.

65. O arguido e VF assumem uma relação afetiva, que tem alternado períodos em que vivem juntos com outros de maior afastamento.

66. Em termos laborais, CC encontra-se desempregado desde Maio passado, tendo como projeto constituir a sua própria empresa.

67. Neste âmbito, está a articular com o Instituto de Emprego e Formação Profissional, de modo a reunir condições para a concretização do projeto.

68. Entretanto, beneficia de subsídio de desemprego, que ronda os € 419,00 mensais.

69. Como despesas fixas mensais mais significativas, tem as relativas aos consumos de eletricidade e de água, não existindo encargos de renda de casa.

70. CC perspetiva a sua situação económica como deficitária, assinalando que não é fácil gerir as receitas, face aos encargos quotidianos que possui.

71. A nível de trajetória de vida, CC integrou o agregado dos pais e irmão mais velho, residentes no Cartaxo, até ser chamado a cumprir o serviço militar.

72. Os pais eram padeiros, fazendo o pão de noite e vendendo-o de dia.

73. A infância e juventude do arguido contaram com a supervisão do irmão mais velho e dos avós maternos, que eram vizinhos do agregado.

74. A dinâmica familiar foi descrita como normativa, não se registando dificuldades entre os seus elementos.

75. CC estudou até ao quarto ano e depois foi trabalhar para os pais como padeiro.

76. Após cumprimento do serviço militar, o arguido fixou-se na zona de Torres Novas, onde viviam os avós paternos.

77. Em termos laborais, foi padeiro em Torres Novas, trabalhou numa empresa de transportes e, por fim, ingressou numa empresa de vedações, onde trabalhou durante vários anos.

78. Com a sua situação de desemprego, o arguido desenvolveu o projeto de constituir a sua própria empresa de vedações.

79. Em termos de atividades de tempos livres, CC foi, durante vários anos, atirador desportivo e também caçador.

80. A nível familiar, com o falecimento da mãe do arguido, o pai voltou a estabelecer uma nova relação afetiva.

81. O arguido não tinha especial proximidade com a madrasta, fator que, entre outros, contribuiu para que deixasse a casa do pai no Cartaxo e se fixasse em A…, Torres Novas, terra dos seus avós maternos.

82. Ao longo do seu percurso de vida, o arguido estabeleceu relações afetivas, tendo três filhos menores, sendo dois de uma relação duradoura.

83. No processo de separação com a ex-companheira, não se registaram situações de conflito entre o casal, que ainda hoje mantém uma “boa relação”.

84. Em sede de entrevista, CC demonstrou sempre cordialidade, e adotou um discurso adequado e ajustado.

85. Revelou ainda competências pessoais e sociais, percebendo os efeitos que as suas ações podem provocar.

86. O presente processo judicial surge como fator de preocupação para o arguido, situação potenciadora de alguma ansiedade contida.

B. FACTOS NÃO PROVADOS
Não resultou provado que:

Da acusação:
1. Nas circunstâncias referidas no ponto 5 dos factos provados, o ofendido MM arrombou a porta de entrada da casa do arguido.

Da contestação do arguido:
2. Na data e hora referidas no ponto 3 dos factos provados, o ofendido irrompeu pela habitação do arguido, tendo para o efeito arrombado a porta de entrada da mesma, após o que procurou o arguido, tendo-o encontrado num dos quartos da habitação, cuja porta estava fechada.

3. O ofendido irrompeu igualmente pela porta do quarto onde se encontrava o arguido, forçando a sua abertura.

4. O disparo efetuado pelo arguido, com arma de fogo que tinha na sua posse, aconteceu após este momento, quando o mesmo percebeu a ira e impulsividade que o ofendido manifestava, e por temer pela sua integridade física.

5. O disparo não foi efetuado na direção do arguido, não havendo qualquer intenção por parte do arguido de tirar a vida ao ofendido.

6. O disparo efetuado com a arma de fogo ocorreu apenas porque o arguido temeu pela sua integridade física, sendo que a sua intenção passou apenas por intimidar o ofendido, tentando dissuadi-lo de qualquer intenção que pudesse colocar em causa a integridade física do arguido.

7. Foi o arguido que, com a ajuda da sua companheira, chamou os serviços de emergência médica.

8. Perante o comportamento do ofendido, o arguido não teve tempo de recorrer à força pública, estando mesmo impossibilitado de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais.

9. O receio do arguido foi tanto, que procurou recorrer a um meio de defesa que intimidasse o ofendido e o desmotivasse nas razões que o levaram a dirigir-se à sua casa, arrombar a porta de entrada e seguidamente a do quarto com intenção de o molestar.

Dos pedidos de indemnização civil:

10. O Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE suportou as despesas de € 15,70, € 164,80, € 46,90, € 39,50, € 1.533,69, € 31,00, € 31,00, € 31,00 e € 31,00, relativas a consultas e internamento do ofendido MM.

11. Em resultado dos factos acima descritos, o Assistente aufere de um subsídio provisório de doença concedido pela Segurança Social fixado nos seguintes valores:

- De 29-10-2014 a 26-01-2015 (89 dias) no valor diário de 8.23€- 732.47€
- De 27-01-2015 a 28-10-2015 (274 dias) no valor de 1O.47€ -2868.78€
- De 29-10-2015 a 20-11-2015 (22 dias) no valor de 11.22€ - 246.84€.

Não foi considerada a matéria conclusiva, de direito, ou irrelevante para o mérito da causa.

C. MOTIVAÇÃO
O Tribunal fundou a sua convicção, quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, com base no conjunto da prova produzida, analisada criticamente, à luz das regras do bom senso e da experiência comum.

Assim, os dois primeiros factos acima descritos foram julgados provados com base no teor, respetivamente, das licenças de fls. 12-13 e do auto de apreensão de fls. 9 e relatório de exame pericial à arma de fls. 83 e ss, tendo de todo o modo o arguido, em declarações que prestou em audiência, confirmado a posse da arma em questão, que referiu guardar num quarto da sua casa.

Admitiu também o arguido, nas suas declarações, ter disparado contra o assistente, nos termos descritos no ponto 5 dos factos provados.

Contudo, sustentou o arguido apenas ter disparado a arma de fogo em questão na direção do assistente, por ter ficado com medo deste, que conhecia como sendo uma pessoa agressiva, por ter sabido que o assistente se dirigia à sua casa, referindo que se encontrava no quarto quando ouviu um carro chegar junto da sua casa, tendo ido buscar a arma e municiado a mesma ao ouvir “rebentar as portas”, após o que o assistente entrou nesse quarto, avançando para si, o que o fez acabar por disparar.

Ora, tal versão do arguido, nesta parte, revela-se desde logo destituída de credibilidade, face às regras da lógica e da experiência comum, desde logo por não resultar, do seu relato, qualquer motivo capaz de o levar a ter medo quando o assistente entrou em sua casa, de que este lhe fosse fazer algo, em termos tais que justificassem minimamente o uso de uma arma, sequer para intimidação.

Também, por não se revelar minimamente credível que o arguido, não estando sequer seguro de que fosse o assistente quem entrava na sua casa, e antes que este fizesse o que quer que fosse, fosse buscar e municiar a sua arma quando o ouviu entrar, até porque, para tanto, não teria tempo suficiente.

Por outro lado, a versão que apresenta revela-se ainda contrariada pela restante prova produzida.

Com efeito, resulta do depoimento, considerado particularmente credível e espontâneo, da testemunha IM (companheira do assistente, que se encontrava à data em casa do arguido e da companheira deste, de quem era amiga), que, ao saber – por um telefonema do pai do arguido recebido pela própria testemunha – que o assistente para ali se dirigia, o arguido foi buscar a arma, dizendo “corto-o a tiro”, e chegando mesmo a ir para a rua com a arma já municiada.

Tal depoimento foi ainda confirmado, nesta parte, pelo da testemunha FD, vizinho do arguido, do qual resulta ter o mesmo visto o arguido no exterior da sua casa, empunhando a arma, ainda antes da chegada do assistente.

Ainda em termos aptos a contrariar a versão apresentada pelo arguido, resulta do depoimento de IM que, assim que o assistente entrou (para ir buscar as roupas da testemunha, que lhe pedira para a ir buscar) no quarto onde veio a saber que o arguido se encontrava, ouviu de imediato o enorme estrondo causado pelo disparo da arma, ouvindo de seguida o arguido dizer, dirigindo-se ao assistente: “queres outro?!”.

Tal descrição, ainda que correspondendo a uma perspetiva diferente, revela-se perfeitamente compatível com o relato feito pelo assistente que, procurando descrever o ocorrido de modo objetivo e imparcial, referiu ter-se deslocado a casa do arguido para ir buscar a sua companheira, que aí se encontrava alojada na sequência de um desentendimento havido entre ambos, mas que lhe pedira que a fosse buscar. Mais referiu que, tendo sido informado, pela sua companheira, que o arguido se encontrava armado, ligou para o pai deste, pedindo-lhe que procurasse acalmar o filho, pois ia lá buscar a sua mulher, e que após se dirigiu à casa do arguido, entrando pela porta que se encontrava fechada e dirigindo-se logo ao quarto onde sabia que a sua companheira tinha as coisas que tinha levado, para ir buscá-las e levar aquela, que se encontrava logo à entrada da casa.

Por fim, referiu ainda o assistente que, ao entrar no quarto em questão, não percebeu logo que o arguido aí se encontrava, e que quando o viu este empunhava uma arma, tendo de imediato disparado na sua direção, apenas tendo o assistente tido tempo de colocar o braço à frente, por forma a proteger a zona do peito.

Foi ainda considerado o teor do auto de notícia de fls. 2 e ss, e depoimento da testemunha BD, militar da GNR que se dirigiu ao local, dos quais resulta, designadamente quem se encontrava no local, à chegada das autoridades, em termos compatíveis com o acima relatado, as fotografias impressas a fls. 564 e ss, onde é visível, além do mais, o rasto de sangue verificado no local e, quanto às lesões causadas ao assistente, o relatório de episódio de urgência de fls. 24-27, o auto de exame médico de fls. 171-173, e os relatórios de alta e consulta de fls. 174-180, sendo tais lesões compatíveis com o disparo efetuado contra o assistente e reveladoras da região (abdominal/torácica) para a qual o arguido direcionou tal disparo.

Os aspetos subjetivos relativos a tais factos praticados pelo arguido, resultaram provados com base na aplicação de regras da lógica e da experiência comum, em face da verificação dos factos objetivos apurados, os quais, pelas circunstâncias em que ocorreram, revelam claramente ter o arguido agido de forma livre, deliberada e consciente, sabendo necessariamente que, ao efetuar um disparo com arma de fogo na direção do ofendido MM, atingindo-o designadamente na região torácica e abdominal (onde se alojam órgãos vitais), agia de forma apta a causar-lhe a morte, ainda assim o tendo feito, manifestando claramente pretender atingir tal resultado, ainda que o mesmo não tenha chegado a verificar-se por motivos alheios à sua vontade.

O descrito no ponto 10 dos factos provados resulta necessariamente da circunstância de o arguido ser titular de licença de uso e porte de arma, o que forçosamente implica o conhecimento referido.

Relativamente à matéria alegada no pedido de indemnização civil apresentado pelo demandante MM, foram considerados, para prova das diversas sequelas físicas por si sofridas, tratamentos prescritos e cirurgias a que foi submetido, a informação clínica (relatórios de alta e de consultas) juntos a fls. 262 e ss, mais se tendo considerado, quanto ao período de incapacidade, a declaração emitida pela Segurança Social junta a fls. 270, quanto à necessidade de realização de novas cirurgias, os documentos (marcação de consulta de anestesia) de fls. 272-3.

A factualidade descrita sob o ponto 24, foi julgada provada com base no teor de fls. 274 e 275 (comprovativos da inscrição do assistente na segurança social e Fundo de Garantia de Trabalhadores), tendo igualmente sido confirmada pelo próprio, nas declarações que prestou, e pelas testemunhas IM e LM (companheira do assistente e pai desta), as quais deram conta de que o assistente iria auferir o ordenado mínimo.

Foram ainda considerados os documentos de fls. 296, 277-295 e 516 e ss e 276, para prova, respetivamente, das despesas suportadas pelo assistente relativas a medicamentos e deslocações ao hospital e dos montantes por este recebidos a título de rendimento social de inserção, tendo o descrito no ponto 32 sido confirmado pelas referidas testemunhas LM e IM.

A factualidade descrita no ponto 37 dos factos provados foi assim julgada com base no teor do depoimento, também nesta parte credível, coerente e revelador de espontaneidade, da testemunha IM, a qual deu conta de que, após os factos o arguido começou a frequentar o café onde ela própria e o assistente costumavam ir (em termos compatíveis com o teor do aditamento junto a fls. 241).

Foi igualmente considerado o referido depoimento para prova de toda a matéria relativa aos danos não patrimoniais sofridos pelo assistente, uma vez que do mesmo decorre que a testemunha, companheira deste, acompanhou de perto toda a sua recuperação, tendo além do mais referido que este gritava com dores durante o internamento, e que já em casa se isolou, e chorava com frequência.

Tal factualidade foi ainda em grande parte confirmada pela testemunha LM que, convivendo proximamente com o assistente, se apercebeu e deu conta de que este apresentava variações de humor, chorava e revelava sentir medo, nos tempos que se seguiram aos factos, durante os quais igualmente constatou que o assistente sofria com dores.

Com efeito, e a acrescer à credibilidade dos depoimentos em causa, os danos nesta sede invocados revelam-se perfeitamente compatíveis - e expectáveis, mesmo - por parte de quem vivesse uma situação como aquela de que o assistente foi vítima, nos termos acima descritos.

Foi ainda considerado, para prova da matéria relativa às lesões físicas sofridas pelo assistente, o depoimento da testemunha NF, médico, que referiu ter operado o assistente, a quem fez enxerto venoso e nervoso, tendo explicado que, em face da natureza de tais lesões, e após as intervenções cirúrgicas já realizadas, considerando o tempo decorrido desde a ocorrência daquelas, não é já de modo algum expectável que venha a ocorrer mais qualquer melhoria, segundo a sua experiencia profissional, na destreza, força e sensibilidade da mão direita do arguido, as quais se encontram limitadas em termos tais que não permitem a realização de trabalhos manuais.

Ora, com base no teor de tal depoimento, em conjugação com a informação clínica constante dos autos, e as declarações do assistente e das testemunhas IM e LM - no que respeita às atividades em que este usualmente trabalhava - conclui-se assim ter o arguido ficado impossibilitado de trabalhar, uma vez que não lhe é conhecida qualquer habilitação para o exercício de atividades que não impliquem o trabalho manual, assim se julgando como provado o descrito no ponto 33, enquanto a matéria a que respeita o ponto 34 foi julgada provada tendo em conta que o montante em causa corresponde ao salário mínimo nacional (acrescido de subsídios de férias e Natal).

Para prova do descrito nos pontos 58 e 59 dos factos provados, foram tidos em conta, respetivamente, as faturas de fls. 331-336 (tendo o assistente confirmado que não procedeu ao pagamento dos montantes em causa ao hospital), e a informação clínica de fls. 521-527, conjugada com o depoimento da testemunha NF, que deu conta de que o assistente foi encaminhado pelo Centro Hospitalar para cirurgia em hospital privado, por o primeiro não conseguir assegurar a realização da mesma em tempo útil.

A prova dos antecedentes criminais do arguido resultou da análise do respetivo CRC, enquanto para prova das condições pessoais e económicas do mesmo teve o Tribunal em conta o teor do relatório social elaborado, bem como as próprias declarações do arguido, das quais não se vê qualquer razão para duvidar, nesta matéria.

As testemunhas AP, CF, JV, FR e JO deram ainda conta do modo como o arguido é tido pelos que com ele convivem, em termos coincidentes com os que resultam do relatório social elaborado.

A matéria de facto não provada foi assim julgada em face da ausência de suficiente prova da respetiva verificação.

Assim, o primeiro de tais factos foi negado, quer pelo assistente, quer pela testemunha IM, sendo, quer as declarações do arguido - que referiu ter ouvido um som que identificou como arrombamento, mas sem que pudesse ver o que realmente ocorrera, por estar dentro da casa - quer o auto de notícia, (onde apenas se refere que a porta se encontrava danificada, desconhecendo-se desde quando), manifestamente insuficientes para demonstração de tal facto.

A factualidade julgada não provada e alegada pelo arguido na contestação que apresentou, resulta contrariada, nos exatos termos em que se considerou que o foram as declarações do mesmo (em sentido coincidente) pela demais prova produzida, pelos motivos já acima explanados, e que levam a que o Tribunal julgue como não provados os factos em causa (pontos 2 a 9 dos factos não provados).

Quanto ao descrito nos pontos 10 e 11 dos factos não provados, não foi produzida qualquer prova”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da impugnação alargada da matéria de facto.
Alega o recorrente que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento impõe uma decisão diversa sobre a matéria de facto, conducente à sua absolvição.

Em breve resumo, o recorrente entende que os factos dados como provados no acórdão revidendo sob os nºs, 4, 5, 8, 9 e 11 devem ser incluídos na matéria de facto não provada, ao passo que os factos considerados como não provados no mesmo acórdão sob os nºs 1 a 9 devem passar para o elenco dos factos provados.

Cumpre decidir.

Dos factos provados nºs 4 e 5 consta: “sabendo que o assistente se dirigia para a sua habitação, o arguido dirigiu-se ao quarto, muniu-se da referida arma, municiou-a com um cartuxo e aguardou pela chegada do assistente. Quando o assistente chegou, irrompeu pela habitação do arguido, após o que se dirigiu a um quarto daquela habitação, abrindo a porta, momento em que o arguido, empunhando a referida arma na direção do assistente, efetuou um disparo na direção do corpo do assistente”.

Por sua vez, dos factos provados sob os nºs 8, 9 e 11 consta o seguinte: “ao munir-se da arma de fogo que destrancou, carregou e empunhou na direção do assistente, quis efetuar um disparo atingindo, como atingiu, zonas vitais do corpo do assistente e, dessa forma, provocar-lhe a morte, a qual apenas não ocorreu por razões alheias à sua vontade. Mais sabia o arguido que uma arma de fogo, quando utilizada como arma de agressão, é apta a provocar lesões mortais. O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

Como não provado, naquilo que é questionado na motivação do recurso, o tribunal a quo elencou: “nas circunstâncias referidas no ponto 5 dos factos provados, o assistente arrombou a porta de entrada da casa do arguido. Na data e hora referidas no ponto 3 dos factos provados, o assistente irrompeu pela habitação do arguido, tendo para o efeito arrombado a porta de entrada da mesma, após o que procurou o arguido, tendo-o encontrado num dos quartos da habitação, cuja porta estava fechada. O assistente irrompeu igualmente pela porta do quarto onde se encontrava o arguido, forçando a sua abertura. O disparo efetuado pelo arguido, com arma de fogo que tinha na sua posse, aconteceu após este momento, quando o mesmo percebeu a ira e impulsividade que o assistente manifestava, e por temer pela sua integridade física. O disparo não foi efetuado na direção do arguido, não havendo qualquer intenção por parte do arguido de tirar a vida ao assistente. O disparo efetuado com a arma de fogo ocorreu apenas porque o arguido temeu pela sua integridade física, sendo que a sua intenção passou apenas por intimidar o assistente, tentando dissuadi-lo de qualquer intenção que pudesse colocar em causa a integridade física do arguido. Foi o arguido que, com a ajuda da sua companheira, chamou os serviços de emergência médica. Perante o comportamento do assistente, o arguido não teve tempo de recorrer à força pública, estando mesmo impossibilitado de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais. O receio do arguido foi tanto, que procurou recorrer a um meio de defesa que intimidasse o assistente e o desmotivasse nas razões que o levaram a dirigir-se à sua casa, arrombar a porta de entrada e seguidamente a do quarto com intenção de o molestar”.

Ora, perante o que vem alegado na motivação do recurso, e após ponderação integral da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, concluímos que a nossa convicção acerca dos factos agora enunciados não diverge daquela que o tribunal a quo alcançou e exprimiu no acórdão recorrido.

Há que concretizar.

Alega o recorrente, desde logo, que o tribunal a quo, para a decisão fáctica tomada, se baseou nas declarações do assistente e no depoimento da testemunha IM (companheira do assistente - que se encontrava, na altura dos factos, na casa do arguido e da companheira deste, de quem era amiga -), pessoas interessadas no desfecho do presente processo e cujo relato dos factos, por isso, não merece credibilidade nem é suficiente para a decisão condenatória.

Depois, na motivação do recurso pretende-se que o tribunal (quer o tribunal a quo, quer este tribunal ad quem) acredite nas declarações do arguido, as quais, no essencial, vão no sentido de confirmar a matéria de facto tida como não provada no acórdão em análise e acima enunciada.

Com o devido respeito, tais alegações não possuem qualquer fundamento válido.

Em primeiro lugar, nada obsta a que a convicção do tribunal se forme apenas com base nas declarações do assistente, desde que o seu relato, atentas as circunstâncias e o modo como é prestado, mereça credibilidade ao tribunal.

Em segundo lugar, o tribunal a quo não se baseou apenas nas declarações do assistente (como podia, repete-se), tendo apreciado todo um outro conjunto de elementos probatórios, que, em conjugação com as declarações do assistente, permitiu dar como provada toda a factualidade atinente ao cometimento do crime em questão por banda do arguido.

É que, além das declarações do assistente, o tribunal considerou ainda (e muito bem) o depoimento da testemunha IM (companheira do assistente - a qual relatou, de modo seguro, pormenorizado e convincente, que o arguido, antes da chegada do assistente e sabendo que ele vinha, foi buscar a arma, dizendo “corto-o a tiro”, chegando mesmo a ir para a rua com a arma já municiada -), bem como o depoimento da testemunha FD (vizinho do arguido - a qual viu o arguido, no exterior da sua casa, empunhando a arma, ainda antes da chegada do assistente -).

Em terceiro lugar, a versão trazida pelo arguido à audiência de discussão e julgamento, e na qual se pretende que acreditemos, não faz qualquer sentido (com o devido respeito).

Com efeito, conhecendo o arguido a pessoa do assistente (ao que resulta dos autos, e das próprias declarações do arguido, este conhecia “bem” o assistente), e estando o arguido na respetiva habitação, onde se encontrava também a “companheira” do assistente (a testemunha IM), é absolutamente inverosímil (ou seja, desligado da lógica normal das coisas, violador das elementares regras da experiência comum) a versão segundo a qual o arguido se muniu de uma arma de fogo, pronta a disparar, para se “defender” do assistente, disparando sobre este assim que o viu.

Mais: o que decorre da análise da prova produzida, conjugada com as elementares regras da experiência comum é, isso sim, que o arguido fez uma “espera” ao assistente.

Senão vejamos, mais em pormenor.

A testemunha IM (companheira do assistente) relatou que estava a residir, temporariamente, na casa do arguido e da respetiva companheira, tendo, no dia dos factos em apreço, enviado uma mensagem ao assistente a solicitar que a fosse ali buscar. A determinada altura, o pai do arguido telefonou à testemunha a perguntar o que se estava a passar, pois o assistente tinha-lhe ligado a dizer que ia a casa do filho dele para ir buscar a testemunha IM. Então, o arguido falou com o pai, através do telemóvel da testemunha, e informou-o que o assistente ia lá a casa, para ir buscar a testemunha IM.

Nessa altura, o arguido perguntou se ele ia lá e que, se fosse, não fazia mal, porque o “cortava a tiro”. De seguida, o arguido encaminhou-se para a cozinha, onde tinha a caçadeira e as munições, introduziu um cartucho, e veio para a rua com a caçadeira, completamente fora de si e a repetir que o “cortava com tiros”. Por tal razão, a testemunha IM foi atrás do arguido, e pediu-lhe para se acalmar, pois, se não o fizesse, iria chamar a polícia. E fê-lo, telefonando para a polícia. O arguido andava na rua, de um lado para o outro, com a caçadeira ao ombro. Entretanto surgiu a testemunha FD (vizinho do arguido), que tentou acalmar o arguido. Nessa altura o pai do arguido estava ao telefone com ele e tentava também acalmá-lo. O arguido só voltou para casa depois de a sua companheira ter chegado e lhe ter dito para o fazer.

A testemunha FD (vizinho do arguido) confirmou que, naquela altura, de noite, quando estava em casa, ouviu barulho na rua e foi ver o que se passava. A IM estava na rua, a gritar, a chorar e a fazer barulho. Deparou-se com o arguido com a arma na mão. Pediu-lhe para lha dar, mas ele recusou. Dizia que tinha sido ameaçado pelo assistente. Passado algum tempo foi para casa, porque temeu qualquer reação agressiva por banda do arguido.

Ora, da conjugação destes dois depoimentos resulta, claramente, que o arguido já se encontrava munido da caçadeira, devidamente carregada, mesmo antes de o assistente ter chegado à sua residência. Ou seja, e em nosso entender, o arguido fez “uma espera” ao assistente.

Relatou ainda a testemunha IM, com inteiro pormenor e total verosimilhança, que, quando o assistente chegou, se dirigiu ao quarto, onde esta estava a pernoitar, para ir buscar as suas coisas e levá-la dali. Porém, assim que ele abriu a porta, ouviu um estrondo. O assistente colocou o braço à frente e virou o corpo. Nessa altura, a testemunha entrou no quarto e colocou-se entre o arguido e o assistente. Ouviu o arguido dizer “queres outro?”. Após o arguido ter disparado sobre o corpo do assistente, saiu do quarto, deixando a caçadeira em cima da cama.

O assistente, nas suas declarações prestadas na audiência de discussão e julgamento, referiu que, quando entrou na residência do arguido, se dirigiu logo ao quarto dos fundos, onde pensava que estaria a IM a dormir, pois já lá tinha estado com ela. Ia buscar as coisas dela para a levar dali. Quando entrou, após ter aberto a porta na maçaneta, viu o arguido no centro do quarto com a caçadeira. O quarto é pequeno. Desde que entrou no quarto, deu cerca de dois passos e o arguido disparou de imediato. Apenas teve tempo de se virar para se defender. Não agrediu o arguido. Tal era impossível, porque, quando entrou, o arguido já estava a empunhar a arma. Tinha ligado para a G.N.R. antes de ir lá a casa. Se não tem enrolado o corpo, “hoje não estava cá”. Se ele não o quisesse matar tinha disparado para as pernas. O arguido estava a cerca de 2 metros e tal de si (no máximo três metros), quando disparou.

A versão dos factos assim apresentada pelo assistente, para além de ser compatível com a versão relatada pela testemunha IM, também foi confirmada pela testemunha BD, militar da G.N.R. que se deslocou ao local e que afirmou que, quando chegou, o arguido lhe disse onde estava a arma, a qual se encontrava no quarto onde tinha sido efetuado o disparo. Referiu, ainda, que havia bastante sangue dentro da casa e que o disparo foi feito já dentro do quarto. Na parede do quarto havia vestígios do disparo. Havia sangue mesmo à entrada, junto da porta. Verificou também bocado de tecido na parede. Acrescentou que o arguido, para disparar, teve que acionar o dispositivo de segurança.

Da conjugação das declarações do assistente com os depoimentos acabados de resumir resulta, quanto a nós (e sem margem para dúvidas), que o arguido se encontrava no interior do quarto onde costumava pernoitar a testemunha IM, munido da caçadeira, devidamente carregada, à “espera” do assistente.

Na verdade, se assim não fosse, o arguido teria ido para o seu quarto, e não para o quarto “atribuído” à testemunha IM, onde sabia que o assistente se dirigiria.

Da conjugação das declarações do assistente com os depoimentos acabados de enunciar resulta também que o arguido disparou quando o assistente ainda se encontrava à entrada do quarto, pois havia vestígios de sangue e de tecido na parede da entrada.

Assim, e ao contrário do alegado na motivação do recurso, o assistente não agrediu o arguido, nem se preparava para o agredir, nem o arguido teve qualquer medo que o assistente o agredisse.

Da conjugação das declarações do assistente com os depoimentos acabados de resumir resulta, igualmente, a conclusão (inequívoca) sobre a existência da intenção de o arguido disparar contra o assistente, que se encontrava desprotegido, e de lhe tirar a vida.

Face ao que vem de dizer-se, e em jeito de síntese conclusiva, nenhuma razão assiste ao recorrente na impugnação que faz da decisão fáctica tomada em primeira instância.

Por último, e face às alegações constantes da motivação do recurso, cabe deixar consignadas algumas considerações:

1ª - Ao contrário do que parece entender-se na motivação do recurso, as provas não podem ser apreciadas uma a uma, de forma isolada e segmentada, devendo, isso sim, ser analisadas e valoradas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, de modo a que, ainda que sendo as provas de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear e racionalmente apreensível, fazendo o julgador inferências (ou deduções, ou presunções), a partir de factos conhecidos para firmar factos “desconhecidos”, desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica das coisas (as máximas da experiência comum).

Com efeito, e ao invés do que parece entender o recorrente, a prova da autoria dos factos não tem de ser, em toda sua extensão, prova direta (testemunhal, por declarações, pericial ou documental), podendo o tribunal socorrer-se, como muitas vezes acontece, das regras da experiência (ou, o mesmo é dizer, das presunções judiciais, da prova indireta).

O julgador pode (e deve) recorrer à prova por presunção judicial (ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido - artigo 349º do Código Civil -).

Como bem escreve o Prof. Cavaleiro Ferreira (in “Curso de Processo Penal”, 1986, Vol. II, págs. 289 e 290), “(...) a verdade final, a convicção, terá que se obter (neste caso) através de conclusões baseadas em raciocínios, e não diretamente verificadas; a conclusão funda-se no juízo de relacionação normal entre o indício e o facto probando (…). Por outro lado, um indício revela com tanto mais segurança o facto probando, quanto menos consinta a ilação de factos diferentes”.

O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis: num primeiro aspeto, trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova. Tal depende substancialmente da imediação e aqui intervêm até elementos não absolutamente explicáveis (por exemplo, a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível, referente à valoração da prova, intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios.

Agora, as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”.

Ou seja, e ao contrário do que alega o recorrente, a decisão fáctica proferida em primeira instância assenta na “realidade da prova produzida”, não sendo, minimamente, “uma consequência de uma construção aparentemente lógico-dedutiva” (cfr. conclusão 12ª extraída da motivação do recurso).

O recorrente esquece-se, com o devido respeito, que as “presunções” são meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção (são o produto das regras da experiência: o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia, necessariamente, a existência de outro facto, o qual, como base nesse raciocínio, pode ser tido como assente).

2ª - A pretensão recursiva, nos termos em que vem fundamentada e bem vistas as coisas, parte do pressuposto, errado, de que o Tribunal da Relação pode proceder a um novo julgamento da matéria de facto (na sua totalidade), como se o julgamento em primeira instância não tivesse existido (e, por isso, o recorrente questiona toda a factualidade criminalmente relevante tida como provada a não provada no acórdão revidendo, e, além disso, pretende a reavaliação de toda a prova, na qual se baseou o tribunal a quo).

Com efeito, o recurso sobre a matéria de facto não envolve, para o tribunal ad quem, a realização de um novo julgamento, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos, mas antes tem por finalidade o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham afetado a decisão recorrida e que o recorrente tenha indicado, e, bem assim, a reanálise das específicas (e concretizadas) provas que, no entender do recorrente, impusessem (e não apenas sugerissem ou possibilitassem) uma decisão de conteúdo diferente.

3ª - Foi cumprido, no acórdão recorrido, o dever de fundamentação, designadamente com a indicação e o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal), sendo a opção decisória tomada inteiramente apreensível, lógica, legítima, e, quanto a nós, inatacável.

Em conclusão: o acórdão recorrido não merece qualquer reparo no tocante à factualidade nele tida como provada e não provada, sendo de manter o decidido, pelo que o presente recurso, em todo este primeiro segmento, é de improceder.

b) Da violação do princípio da livre apreciação da prova.
Alega o recorrente que, ao proferir a decisão fáctica nos termos em que o fez, o tribunal a quo violou o princípio da livre apreciação da prova.

Cumpre decidir.

Dispõe o artigo 127º do C. P. Penal que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

A propósito do princípio da livre apreciação da prova, refere o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Processual Penal”, 1981, Vol. I, pág. 202) que “o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida”.

E acrescenta o mesmo autor (ob. citada, págs. 202 e 203) que a liberdade de apreciação da prova tem limites inultrapassáveis: “a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada «verdade material» - , de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e de controlo”.

Como bem diz Maia Gonçalves (in “Código de Processo Penal Anotado”, 9ª ed., pág. 322), “a livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica”.

A livre apreciação da prova tem, pois, de traduzir-se numa valoração racional e crítica da prova, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, e valoração que permita objetivar e explicitar a apreciação feita dessa mesma prova (explicitação que é requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão).

Ou, por palavras mais simples: a convicção do juiz tem de seguir critérios transparentes e justificáveis, capazes de convencer os sujeitos processuais e o público em geral.

Ora, no caso destes autos, o tribunal a quo, para decidir da matéria de facto, ponderou todas as provas de que dispunha, e avaliou-as à luz das regras da experiência comum, de acordo com juízos de normalidade, com a lógica das coisas e com a experiência da vida.

Como bem se salienta no acórdão do S.T.J. de 08-11-1995 (in B.M.J., nº 451, pág. 86), “um juízo de acertamento da matéria de facto pertinente para a decisão releva de um conjunto de meios de prova, que pode inclusivamente ser indiciária, contanto que os indícios sejam graves, precisos e concordantes”. E acrescenta o mesmo acórdão que “as regras da experiência a que alude o artigo 127º têm um importante papel na convicção do tribunal”.

Na motivação do recurso considera-se ter existido errada apreciação da prova, uma vez que o tribunal recorrido não valorou certos aspetos nos termos em que o devia ter feito, alegando-se, sobretudo, que tal tribunal não deu credibilidade às declarações do arguido, quando o devia ter feito, porquanto as mesmas são verosímeis, pertinentes e conformes à realidade (merecendo, por isso, inteira credibilidade).

Simplesmente, com tais alegações o recorrente limita-se, por um lado, a trazer aos autos a perceção que ele próprio teve (ou melhor: diz ter tido) da prova, e, por outro lado, a tentar que este tribunal ad quem valorize as declarações do arguido, levando-as à letra, como se elas fossem verosímeis e credíveis (quando o não são) e esquecendo toda a demais prova produzida.

Da leitura do acórdão recorrido verifica-se ter sido seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão ilógica, arbitrária, ou violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas.

Assim, não foi violado o princípio da livre apreciação da prova, nem, também a esta luz, os factos apurados no acórdão sub judice nos merecem qualquer censura.

E, por isso, também nesta vertente o recurso é de improceder.

c) Da violação do princípio in dubio pro reo.

Entende o recorrente que o tribunal a quo, ao considerar que a prova é suficiente para a condenação, violou o princípio in dubio pro reo.

Há que decidir.
O princípio in dubio pro reo (um dos princípios básicos do processo penal) significa, em síntese, que, para conduzir à condenação, a prova deve ser plena, sendo imprescindível que o tribunal tenha formado convicção acerca da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, isto é, a formação da convicção é um processo que “só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse” (Prof. Figueiredo Dias, ob. citada, Vol. I, pág. 205).

Quando o tribunal não forma convicção, a dúvida determina inelutavelmente a absolvição, de harmonia com o princípio in dubio pro reo, o qual consubstancia princípio de direito probatório decorrente daqueloutro princípio, mais amplo, da presunção de inocência (constitucionalmente consagrado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa).

Com efeito, dispõe a C.R.P. (no nº 2 do seu artigo 32º) que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”, preceito que se identifica genericamente com as formulações do princípio da presunção de inocência constantes, além do mais, do artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e do artigo 6º, nº 2, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

Assim, “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed., pág. 203).

Este princípio tem aplicação na apreciação da prova, impondo que, em caso de dúvida insuperável e razoável sobre a valoração da prova, se decida sempre a matéria de facto no sentido que mais favorecer o arguido.

É evidente que as dúvidas do julgador quanto à prova produzida têm de ser racionais, de forma a ilidirem a certeza contrária (cfr. Ac. do S.T.J. de 01-07-2004, Processo nº 4P2791, in www.dgsi.pt), jamais podendo assentar na mera existência de versões contraditórias entre si ou na mera negação dos factos por parte dos arguidos.

Revertendo ao caso em apreço, e apesar das considerações do recorrente na motivação do seu recurso, o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida quanto à prática pelo recorrente da totalidade dos factos que foram dados como provados no acórdão recorrido, bem como também este tribunal de recurso, perante a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, com nenhuma dúvida fica relativamente à prática dos factos em causa por parte do recorrente (conforme acima exposto).

Dito de outro modo: a fundamentação da decisão de facto constante do acórdão recorrido não evidencia a existência de qualquer dúvida que tenha sido solucionada em desfavor do arguido, e, por outro lado, face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, resulta, também para nós, a certeza da prática pelo ora recorrente do crime pelo qual foi condenado.

Por conseguinte, não existindo dúvidas no espírito do julgador, afastada está, obviamente, a possibilidade de aplicação do princípio in dubio pro reo.

Assim sendo, o acórdão revidendo não merece, também neste aspeto, a censura que lhe foi dirigida pelo recorrente (violação do princípio in dubio pro reo).

d) Da legítima defesa e do excesso de legítima defesa.
Alega o recorrente que agiu em legítima defesa, pelo que o seu comportamento não é ilícito, tendo de ser absolvido.

Mais invoca o recorrente, subsidiariamente, que, mesmo a existir um excesso de legítima defesa, não deverá ser punido, por força do disposto no artigo 33º, nº 2, do Código Penal (na opinião do recorrente, o seu comportamento foi determinado por perturbação e medo não censuráveis).

Há que decidir.
Dispõe o artigo 31º, nº 1, e nº 2, al. a), do Código Penal, que “o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado em legítima defesa”.

Assim, apesar de o arguido ter tentado matar o assistente, efetuando um disparo, com uma “caçadeira”, em direção ao corpo do assistente, tal ato não será ilícito e não será punível se se considerar que o arguido agiu em legítima defesa.

Importa pois determinar se, no caso em apreço, se verifica uma atuação do arguido em legítima defesa.

Dispõe o artigo 32º do Código Penal que ”constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro”.

A legítima defesa consiste, assim, e em palavras simples, no direito que assiste a todos de se defenderem duma agressão atual e ilícita.

Como lapidarmente escreve Jescheck (in “Tratado de Derecho Penal”, Parte General, Vol. I, Barcelona, 1981, págs. 459 e 460), “a legítima defesa pode conceber-se como o direito que por natureza corresponde a todo o homem de autoafirmar-se mediante a defesa da sua própria pessoa frente ao ataque antijurídico de outrem; e, ao mesmo tempo, a autodefesa do agredido apresenta-se como salvaguarda da ordem pacífica geral quando falta a presença do auxílio da autoridade”.

Os requisitos de eficácia da legítima defesa agrupam-se em pressupostos relativos à agressão e requisitos relativos à defesa (cfr., por todos, Figueiredo Dias, “Direito Penal”, sumários das lições, Universidade de Coimbra, 1975, págs. 183 a 189, e Eduardo Correia, “Direito Criminal”, Livraria Almedina, Coimbra, 1971, Vol. II, págs. 35 a 68). Quanto à agressão, tem de ser atual e ilícita; quanto à defesa, exige-se que seja necessária (necessidade, indispensabilidade e adequação do meio de defesa empregue), e que o agente atue com animus defendendi (o agente tem de atuar com intenção de defesa).

Especificando e concretizando estes ensinamentos, podem enunciar-se nos seguintes termos os requisitos da figura da legítima defesa:

a) Existência de uma agressão atual ou iminente;
b) Que a agressão seja ilícita, não motivada por provocação do defendente;
c) A existência do animus defendendi;
d) A impossibilidade de recurso à força pública;
e) A necessidade racional do meio empregado.

Quanto ao primeiro pressuposto enunciado, ele existe quando nos situamos perante uma agressão imediatamente iminente ou que está tendo lugar.

A agressão inicia-se - já é atual - quando, colocando-nos numa perspetiva jurídico-penal, a pudermos considerar como ato de execução de uma determinada tentativa, bastando que a experiência normal indique que à conduta se seguirá, imediatamente, a prática de atos adequados a produzir o resultado, ou seja, já será considerada atual a agressão que, embora em si mesma não seja idónea a lesar o bem jurídico e nem sequer constitua um começo da execução dessa lesão, todavia é de esperar, segundo a experiência normal, que a tal conduta se seguirá, imediatamente, a prática de atos, efetiva ou objetivamente, suscetíveis de lesar o interesse jurídico passível de legítima defesa.

Por outro lado, a agressão deixa de ser atual - isto é, verifica-se o termo da atualidade da agressão - a partir do momento em que se verifica a efetiva lesão do objeto ou bem jurídico ou com a efetiva cessação ou abandono da agressão ao objeto do bem jurídico, referindo-se a mencionada cessação especialmente aos bens jurídicos pessoais e o abandono aos bens patrimoniais.

A antijuridicidade da agressão coincide com o conceito de antijuridicidade da teoria geral do delito. Em consequência, faltará a antijuridicidade da agressão quando o agressor está amparado por uma causa de justificação. Assim sendo, nunca é possível legítima defesa contra legítima defesa, estado de necessidade justificante ou outra atuação protegida por direitos de intromissão.

Questão muito debatida na doutrina nacional e estrangeira é a de saber se é exigido o terceiro requisito enunciado, ou seja, o animus defendendi. Porém, a interpretação dominante na nossa doutrina, ao que julgamos, é no sentido da exigência legal do animus defendendi (cfr. Maia Gonçalves, in “Código Penal Português”, 10ª ed., 1996, pág. 191, Eduardo Correia, ob. citada, págs. 44 e 45, e Leal Henriques e Simas Santos, in “O Código Penal de 1982”, págs. 224 e 225).

No que tange ao último dos pressupostos, sendo função da legítima defesa apenas o impedir ou repelir a agressão atual ou iminente, compreende-se a exigência da lei no sentido de o defendente só utilizar o meio considerado, no momento e nas circunstâncias concretas, suficiente para suster a agressão.

Meios adequados para impedir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes, eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor, serão considerados desnecessários e, assim, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido.

Ou seja, impõe-se que, havendo vários meios adequados à sua disposição, o agredido utilize o menos gravoso para o agressor.

Como é óbvio, o juízo sobre a adequação do meio de defesa não pode deixar de ter em conta as circunstâncias do caso concreto: a espécie e intensidade da agressão, a capacidade físico-atlética do agressor e do agredido, a utilização ou porte de armas (de fogo ou brancas, ou de outros instrumentos que podem servir para agredir ou para defender), e a espécie do bem jurídico agredido ou ameaçado pela agressão (entre outras circunstâncias possíveis).

Como bem ensina o Prof. Taipa de Carvalho (in “A Legítima Defesa”, Coimbra Editora, 1995, págs. 318 e 319), “exemplos da necessidade da ponderação concreta das características da agressão e da defesa, a fim de se decidir da necessidade (utilização, de entre os meios eficazes de defesa, daquele que menos danos causar no agressor) ou não da ação de defesa, eis o que não parece necessário apresentar. É evidente que, diante de uma tentativa de agressão a soco, não pode o defendente, dado ser um boxeur, defender-se a tiro, quando não estando armado o agressor, lhe bastava agarrar o braço deste”.

Por outras palavras, talvez mais simples: o ato de defesa, para ser legítimo, deve ser adequado e deve limitar-se à utilização do meio ou meios suficientes para suster e fazer cessar a agressão.

Designadamente, a legítima defesa não pode ser oportunidade para que o agredido exerça sobre o agressor atos de desforço ou de vingança.

Em suma, tem de se considerar, em cada caso concreto, face às suas circunstâncias, uma certa exigência de proporcionalidade e um ponderado juízo de razoabilidade.

Feito este excurso teórico, facilmente se intui que o acervo factológico dado como provado nestes autos não preenche os requisitos enunciados para a legítima defesa.

Na verdade, não ficou provado no acórdão revidendo (opção decisória mantida neste Tribunal da Relação - conforme acima já decidido -) que o assistente tenha arrombado a porta de entrada da casa do arguido, e que, após tal arrombamento, tenha procurado o arguido e tenha irrompido pela porta do quarto onde se encontrava o arguido, forçando a sua abertura; que o disparo efetuado pelo arguido tenha sucedido após tal momento, quando o arguido percebeu a ira e a impulsividade que o assistente manifestava, e por temer pela sua integridade física; que o disparo não tenha sido efetuado na direção do arguido, não tendo existido qualquer intenção, por parte do arguido, de tirar a vida ao assistente; ou que o disparo tenha ocorrido porque o arguido temeu pela sua integridade física, sendo intenção do arguido apenas intimidar o assistente, tentando dissuadi-lo da prática de atos que colocassem em causa a integridade física do arguido.

O que ficou provado foi, isso sim, que o arguido disparou uma arma de fogo contra o corpo do assistente, com intenção de o matar (atuando, pois, com dolo direto), o que só não conseguiu por razões alheias à sua vontade, e sem que o assistente o tivesse agredido, de alguma forma que fosse, ou estivesse na iminência de o agredir.

Assim, não existe, in casu, manifestamente, qualquer situação de legítima defesa.

Alega-se ainda na motivação de recurso que, caso se entenda que se configura, na presente situação, um excesso de legitima defesa, sempre o arguido não deverá ser punido por esse eventual excesso, dado o mesmo se ter ficado a dever às circunstâncias em que os factos ocorreram, designadamente que eram 23,10 horas, que o arguido estava em sua casa, que as portas, designadamente a da entrada (que é de ferro) e a do quarto (onde ocorreu o disparo) foram arrombadas pelo assistente, assistente que o arguido bem conhece, sabendo que, por vezes, o mesmo se torna violento; que o assistente, embora constate que o arguido está armado, avança, quarto adentro, em direção ao arguido, para o agredir (chegando mesmo a tocar-lhe na cara), ou seja, nem mesmo perante a presença de uma arma o assistente recua nos seus intentos.

Assim, na opinião expressa na motivação do recurso, o arguido usou a arma para repelir uma agressão do assistente, porquanto, justificadamente, receou pela sua integridade física.

Por tudo isso, invoca o recorrente, subsidiariamente, que, a existir excesso de legítima defesa, o mesmo não pode ser punido, por força do disposto no artigo 33º, nº 2, do Código Penal (“o agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis”).

Com o devido respeito por tais alegações, não assiste qualquer razão ao recorrente, porquanto, como se nos afigura evidente, só pode existir excesso de legítima defesa se estivermos perante uma situação de legítima defesa, situação que, como já vimos, não se configura, minimamente, no caso destes autos.

Por outras palavras: para que pudesse ser configurado e ponderado um excesso da legítima defesa, não punível, teriam de estar verificados, previamente a tais configuração e ponderação, todos os requisitos da legítima defesa.

Ora, repete-se, tais requisitos não estão preenchidos na presente situação, porque, e nomeadamente, não existiu qualquer agressão (ou iminência de agressão), atual e ilícita, relativamente a quaisquer interesses juridicamente protegidos (do arguido ou de terceiros), nem o arguido agiu, minimamente, com animus defendendi (isto é, o arguido não atuou, disparando sobre o corpo do assistente, com intuito de defesa).

Em suma: não houve excesso de legítima defesa, porquanto nem sequer existiu legítima defesa.

Como muito bem refere a Exmª Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância (na resposta ao recurso), em considerações totalmente acertadas, “o arguido podia ter-se refugiado no seu quarto quando teve conhecimento de que o Assistente iria à sua residência buscar a companheira. Mas preferiu, desde logo, carregar a caçadeira e vir esperá-lo à rua, não obstante, segundo alega, bem conhecer e saber que por vezes se torna violento. Porém, depois, decidiu ir esperá-lo no quarto que estava a ser utilizado pela companheira do Assistente, local onde sabia que aquele se deslocaria para ir apanhar os seus pertences. Depois, pelo facto de ter disparado logo que aquele entrou no quarto. Sendo certo que, como já ficou referido, não é viável a sua versão de que o assistente lhe chegou a tocar na face. Ora, tendo-se dado como assente que ao munir-se da arma de fogo que destrancou, carregou e empunhou na direção do ofendido o arguido, CC, quis efetuar um disparo atingindo, como atingiu, zonas vitais do corpo de MM e, dessa forma, provocar-lhe a morte, a qual apenas não ocorreu por razões alheias à sua vontade, mais sabia o arguido que uma arma de fogo, quando utilizada como arma de agressão, é apta a provocar lesões mortais e que agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, fica desse modo excluído o intuito defensivo, demonstrando-se, ao invés, o seu comportamento agressivo. Assim, neste caso já não se pode falar em legítima defesa nem em legítima defesa putativa (que se traduz na errónea suposição de que se verificam, no caso concreto, os pressupostos da defesa: a existência de uma agressão atual e ilícita)”.

Por tudo o predito, também neste segmento é de improceder o recurso.

e) Da medida concreta da pena.

Alega-se na motivação do recurso que a pena (principal) aplicada é desproporcionada e exagerada, face ao grau reduzido da ilicitude e ao comportamento anterior e posterior do arguido (que se encontra socialmente integrado), devendo tal pena rondar o seu limite mínimo.

Cumpre decidir.
O recorrente foi condenado como autor de um crime de homicídio simples, na forma tentada, tal como previsto nos artigos 131º, 22º, 23º, 72º e 73º do Código Penal, e 86º, nºs 3 e 4, do RJAM, na pena (principal) de 5 anos de prisão.

O crime em causa é punível, em abstrato, com pena de prisão de 2 anos, 1 mês e 18 dias (limite mínimo), a 14 anos, 2 meses e 20 dias (limite máximo).

Preceitua o artigo 40º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2).

O artigo 71º do mesmo diploma estipula, por outro lado, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (nº 2 do mesmo dispositivo).

Dito de uma outra forma, a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspetos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim o delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa proteção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Como refere Claus Roxin (in “Derecho Penal - Parte General”, Tomo I, tradução da 2ª edição alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas, págs. 99 e 100), em asserção perfeitamente consonante com os princípios basilares do direito penal português, “a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada”.

Mais refere o mesmo autor (ob. citada, pág. 101) que “a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva”.

Por fim, escreve ainda Claus Roxin (ob. citada, pág. 103), “a pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais”.

No caso sub judice há que ter em consideração:
- As exigências de prevenção geral, que são muito elevadas quanto ao crime em discussão, já que a conduta do recorrente atingiu um bem jurídico essencial à vida em comunidade (a vida humana - bem supremo e absoluto, que constitui valor fundamental e princípio universal e eminentemente inviolável -).

- O grau de ilicitude dos factos, que, in casu, terá de aferir-se, desde logo, a partir da concreta situação da vítima e dos padecimentos por ela sofridos decorrentes da atuação delitiva do arguido. Ora, no presente caso, a vítima deparou-se com um tiro de “caçadeira”, contra ela desferido inopinadamente, em consequência do qual suportou graves padecimentos (físicos e psicológicos). É, por conseguinte, muito elevado o grau de ilicitude dos factos.

- O grau de violação dos deveres impostos ao arguido é, de igual modo, muito elevado, tendo em conta, por um lado, a integração social do arguido (sem nada de relevante a apontar), e, por outro lado, a existência de um plano prévio para a execução dos factos, designadamente o municiamento da arma com que perpetrou o ato criminoso em análise (o arguido aproveitou a deslocação do assistente a sua casa e a entrada deste numa das divisões, para, de modo inesperado, desferir um disparo com uma arma de fogo, que atingiu o corpo do assistente, surpreendendo o assistente em termos que muito dificilmente permitiriam, quer a fuga, quer qualquer reação do assistente).

- O dolo, que revestiu a modalidade de dolo direto, o que, como é sabido, consubstancia a forma mais intensa de dolo.

- A situação pessoal, familiar e social do recorrente, que é regular e estabilizada.

- Os antecedentes criminais do recorrente (o mesmo possui uma condenação criminal anterior, pela prática, em 2014, de um crime de ofensa à integridade física - cfr. facto dado como provado no acórdão recorrido sob o nº 61 -).

- Na perspetiva da prevenção especial, a pena a aplicar não pode deixar de representar um justo castigo para o arguido, que, na audiência de discussão e julgamento, nem sequer deu mostras de reconhecer (pelo menos em toda a sua plenitude) o mal que praticou.

Ora, da ponderação de todos estes descritos fatores, na sua globalidade complexiva, conclui-se, facilmente, que a medida concreta da pena de prisão (aplicada pela prática do crime de homicídio tentado em questão) não é excessiva, ao contrário do que alega o recorrente (não se mostrando violadas, por conseguinte, quaisquer disposições legais, designadamente as citadas pelo recorrente a este propósito).

Em síntese, ponderando a medida da culpa e as exigências de prevenção, e atendendo a todas as circunstâncias acabadas de enunciar, a pena de 5 anos fixada no acórdão sub judice não se mostra desadequada, desequilibrada, ou excessiva, nada impondo a redução da mesma.

Assim, soçobra a pretensão do recorrente consistente em ver reduzida a medida concreta da pena aplicada em primeira instância.

f) Dos pedidos de indemnização civil.
Alega o recorrente (cfr. conclusão 16ª extraída da motivação do recurso), no que concerne ao pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente, que o mesmo é destituído de razoabilidade, pois assenta no pressuposto de que o assistente não voltará a exercer qualquer atividade remunerada, sendo também a condenação manifestamente exagerada, porquanto, face às declarações do arguido, e perante os factos, tal indemnização deveria ser de diminuto valor, em virtude da também diminuta culpa do arguido.

Conclui ainda o recorrente, na pretensão formulada a final da motivação do recurso, que ambos os pedidos de indemnização civil devem ser julgados “improcedentes na medida em que extravasam a razoabilidade”.

Cabe decidir.
Em primeiro lugar, as alegações e a pretensão formuladas em sede recursiva, neste segmento (indemnizações civis), partem do pressuposto (acima denegado) da alteração da decisão fáctica proferida em primeira instância.

Assim, não tendo ocorrido a alteração dos factos, nos termos propugnados na motivação do recurso, fica prejudicado, manifestamente, o essencial da pretensão recursiva agora em análise.

Em segundo lugar, na parte em que o recorrente parece discutir a valor atribuído a título de indemnização ao assistente, verifica-se que essa discussão não está minimamente fundamentada (na motivação do recurso), não tendo sido aduzidos, pelo recorrente, argumentos (apreensíveis e rebatíveis) que a sustentem, pelo que, obviamente, não compete a esta instância recursiva apreciar e decidir uma questão que lhe é suscitada sem, na motivação do recurso, vir argumentada.

Com efeito, e de acordo com a previsão dos artigos 411º, nº 3, e 414º, nºs 1 e 2, do C. P. Penal, o requerimento de recurso é sempre motivado (sob pena de rejeição do recurso), sendo que, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do mesmo diploma legal, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Mais: versando sobre matéria de direito, as conclusões da motivação indicam, sob pena de rejeição, as normas jurídicas violadas, o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada, e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada (cfr. artigo 412º, nº 2, do C. P. Penal).

Ora, na parte da motivação do recurso relativa aos pedidos de indemnização civil (quer o pedido do assistente, quer o pedido hospitalar), o recorrente não enuncia, especificadamente, os fundamentos do recurso, com indicação dos pontos de divergência e das razões - de facto e de direito - pelas quais entende que a decisão impugnada não se deve manter.

Por isso, o recorrente não colocou, perante este tribunal ad quem, de forma mínima sequer, as razões (de facto e de direito) que o levam a discordar da decisão proferida em matéria cível, de molde a que este tribunal possa apreciá-las (rebatendo ou confirmando os argumentos aduzidos e pronunciando-se sobre o que é pedido - em concreto, e não de modo geral, abstrato e inapreensível -).

Limita-se, pois, o recorrente a proclamar que a indemnização atribuída é “destituída de razoabilidade”, que a condenação é “manifestamente exagerada”, que a mesma devia ser “de diminuto valor”, e que os pedidos de indemnização civil devem ser julgados improcedentes porquanto “extravasam a razoabilidade”.

Com o devido respeito, tudo isso não traduz a adução, de algum modo, dos motivos concretos do inconformismo do recorrente, nem o recorrente indica, com base nos factos (dados como provados e como não provados no acórdão revidendo), quais as soluções de direito que deveriam ter sido percorridas e quais as normas jurídicas que se mostram violadas.

Mais do que a falta de cumprimento do nº 2 do artigo 412º do C. P. Penal (se a omissão do recorrente a isto se limitasse, haveria que endereçar-lhe convite para suprir a deficiência, conforme estabelecido no artigo 417º, nº 3, do mesmo diploma legal), o que se verifica, em todo este segmento recursivo, é a falta da própria motivação de recurso, falta que, a nosso ver e em termos conceptuais, compreende não só a inexistência total da peça processual descrita no nº 1 do artigo 412º, mas também a motivação deficiente e meramente formal, isto é, a motivação que não expõe os fundamentos (como sucede in casu).

Em terceiro lugar, no “pedido” formulado no final da motivação do recurso constata-se que não é apresentada, com a mínima clareza e o exigível rigor, qual a parcela da indemnização atribuída ao assistente que se considera exagerada (qual o montante de tal indemnização que, nas palavras do recorrente, “extravasa a razoabilidade”), nem é indicado o valor que, em contraposição ao decidido em primeira instância, o recorrente entende ser adequado, justo e equilibrado.

O recorrente não indica, pois, quais os montantes indemnizatórios que entende serem ajustados ao caso (aliás, e bem vistas as coisas, o recorrente nem sequer especifica quais os montantes atribuídos no acórdão revivendo que considera excessivos).

Nestes termos, e nesta parte (pedidos de indemnização civil), o recurso não pode ser apreciado (de qualquer modo, cabe acrescentar que, a nosso ver, não existem razões para, oficiosamente, discordar de qualquer interpretação jurídica vertida no acórdão sub judice).

Por tudo o que se deixou dito, o recurso é totalmente de improceder.

III - DECISÃO.

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso do arguido, mantendo-se, consequentemente, o douto acórdão revidendo.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 19 de fevereiro de 2019

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(João Manuel Monteiro Amaro)

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(Laura Goulart Maurício)