Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
34/14.8TBTVR-C.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
REPÚDIO DA HERANÇA
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O repúdio de herança por parte do devedor, sendo essa herança constituída apenas por ativos, consubstancia situação prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, pelo que implica na qualificação da insolvência como culposa.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Insolvente: (…)

Recorrido / Requerente: Ministério Público

Os presentes autos consistem no Incidente de Qualificação da Insolvência como Culposa, declarada que foi a insolvência do devedor a 22/01/2014.


II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando o incidente totalmente procedente, qualificando como culposa a insolvência de (…), tendo o Tribunal de 1.ª Instância exarado que:
«a) Declara tal pessoa afectada pela qualificação.
b) Declara-a, pelo período de 2 (dois) anos, inibida para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
c) Determina a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo Insolvente.»

Inconformado, o Insolvente apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que declare a insolvência fortuita. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«1. Por sentença proferida a fls., datada de 06-06-2018, o tribunal “a quo” qualificou como culposa a insolvência de (…).
2. Da sentença recorrida não consta qualquer referência ou menção a factos não provados, apenas constando que: “Não se provaram quaisquer outros factos, inexistindo – porém – factos não provados.”.
3. Pelo que se conclui que ou estamos perante uma omissão de pronúncia, isto é o Tribunal "a quo" deixou de decidir sobre essa questão, ou pelo facto de não constar nenhum facto não provado, significa que deverão ser dados como provados todos os factos vertidos na oposição deduzida no presente incidente, caso contrário e caso não se considere como provados todos os factos elencados na oposição, estamos perante uma causa de nulidade da sentença recorrida e a mesma deverá ser revogada por os factos provados estarem em manifesta oposição com a decisão, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil.
4. Mesmo que assim não se entenda e sem prescindir, encontram-se incorrectamente julgados os factos dados como provados.
5. Os factos supra transcritos encontram-se mal julgados porquanto resulta da fundamentação de facto que o depoimento prestado irmã do insolvente (…) foi merecedor de uma indiscutível credibilidade, daí que não se compreenda como é que não foi dado como provado o facto de o insolvente sempre ter pedido muito dinheiro aos pais e por esse motivo ser vontade do pai de ambos já falecido que o insolvente repudiasse a herança, rendo sido expressamente dito pela testemunha em apreço que o pai pretendia que a herança fosse directamente transmitida para os seus netos.
6. Factos que não foram tomados em consideração pelo tribunal.
7. Encontrando-se os factos provados em contradição com a decisão da decisão de facto, dado que da motivação da decisão de facto não se retira que o insolvente tenha agido com culpa.
8. Carecendo assim o tribunal de elementos que com o mínimo de segurança possam justificar que se classifiquem como culposa a presente insolvência.
9. Termos em que deverá a sentença recorrida ser revogada nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil.
10. Resulta da motivação da decisão de facto que o tribunal valorou o depoimento do Sr. Administrador de Insolvência e da testemunha (…).
11. Daí que não se compreenda a motivação e quais os depoimentos em concreto nos quais o tribunal “a quo” se apoiou e se baseou para os factos dados como provados.
12. Existindo assim uma evidente contradição por parte do tribunal “ a quo” no que respeita à motivação da decisão da matéria de facto.
13. O que significa que estamos claramente perante um erro de fundamentação e uma contradição insanável da decisão da matéria de facto, violando-se o disposto no artigo 607.º, n.º 4 e 5, do Código de Processo Civil, o que determina um erro no dever de fundamentação da decisão conforme estabelece o artigo 154.º do Código de Processo Civil.
14. Termos em que deverá a sentença recorrida ser declarada nula nos termos do disposto no artigo 615.º, alínea c), do Código de Processo Civil.
15. Sem prescindir, o ora recorrente não se conforma com a sentença recorrida desde logo porquanto a mesma viola o disposto no artigo 186.º do CIRE.
16. Ao que acresce que não resulta dos factos dados como provados que a situação de insolvência tivesse de algum modo sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave, o que claramente não sucedeu in casu.
17. Não se mostrando provada nenhuma actuação com dolo ou culpa grave.
18. Ora, em nosso entender, do acervo de factos provados, não é possível extrair qualquer conclusão nesse sentido.
19. Por outro lado o facto de ter contraído um crédito ao consumo em 14-08-2006 não é razoável ou exigível que o insolvente devesse saber que aquela sua atuação, ao contrair novas dívidas, conduziria, com grande probabilidade, a uma situação de insolvência. Sendo de atender que estamos perante uma pessoa singular e não perante uma pessoa colectiva, não existindo a lógica empresarial exigida.
20. Motivos pelos quais se entende que não se encontram preenchidos todos os pressupostos do disposto do artigo 186.º do CIRE, mostrando-se afastada a presunção de culpa, assim como não foi feita prova do nexo causal.
21. Termos em que deverá a sentença recorrida ser revogada e em consequência deverá ser declarada a presente insolvência como furtuita e não como culposa.»

O Ministério Público, em sede de contra-alegações, pugna pela manutenção da decisão recorrida.

Assim, atentas as conclusões da alegação de recurso, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[1], são as seguintes as questões a decidir:
- da nulidade da sentença;
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- da falta de fundamento para a qualificação como culposa da insolvência.


III – Fundamentos

A – Os factos provados em 1.ª Instância

1. Por sentença proferida em 22 de Janeiro de 2014, pelas 14h25, foi (…) declarado insolvente.

2. Apresentado o relatório a que alude o artigo 155.º, do CIRE, foi no passado dia 20 de Março de 2014, pelas 10h00, realizada assembleia de credores para apreciação de tal relatório.

3. O insolvente requereu a sua declaração de insolvência em 10 de Janeiro de 2014.

4. Conforme se retira do teor da certidão de assento de óbito junta aos autos – e que aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos –, o pai do insolvente faleceu em 15 de Agosto de 2013 (cfr. fls. 13).

5. Em 30 de Novembro de 2013, e no seguimento do falecimento do pai do insolvente, (…), descendente do de cujus, efetuou no Serviço de Finanças de Tavira as declarações por óbito – (cfr. fls. 10 – comprovativo de participação de transmissões gratuitas).

6. Em tais declarações (fls. 10), indicou como herdeiros do falecido: a) …, cônjuge; b) A própria declarante, filha; c) …; d) e …, em representação do aqui insolvente, … (filhos deste e sobrinhos daquela).

7. De acordo com tais declarações, (…) repudiou a herança do seu falecido pai a 12 de Novembro de 2013.
8. No Cartório Notarial de Tavira, sito na Rua da Silva, n.º 17-A. E, Tavira, e perante o Notário Bruno Filipe Torres Marcos, a esposa do aqui insolvente, (…), munida de procuração com poderes para o efeito, no dia 12 de Novembro de 2013, declarou, em nome e representação do insolvente, repudiar a herança aberta por óbito do pai deste último, … (cfr. fls. 23-24).

9. Do acervo hereditário do falecido consta ½ do prédio urbano, com o artigo 2319.º, fração J, da Freguesia de Santiago de Tavira (entretanto extinta).

10. Foram reclamados nestes autos créditos que perfazem o total de € 904.759,71.

11. Como bens do devedor, apenas foi apurada pelo Sr. A.I. a existência de um direito de superfície sobre a fração autónoma designada pela letra G, correspondente ao 3.º andar direito, destinada a habitação, do prédio urbano sito na Avenida Dr. (…), n.º 9, em Tavira, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …/19901123 da freguesia de Santa Maria, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), imóvel esse ao qual foi atribuído o valor de € 50.000,00.

12. À data de 15 de Agosto de 2015, quanto ao ora Insolvente, verificava-se um incumprimento generalizado das obrigações tributárias vencidas, durante 6 meses consecutivos; inexistência de perspetivas de melhoria da situação económica; falta de ativo líquido; paralisação total da atividade da empresa pertencente à sociedade comercial do insolvente, (…), Unipessoal, Lda.; inexistência de alternativa à fonte de rendimento do insolvente que era constituída pela atividade da referida sociedade.

13. O devedor apenas se apresentou à insolvência em 10 de Janeiro de 2014.

14. A herança aberta por óbito do pai do insolvente é constituída apenas por ativos.

15. A aceitação da herança não permitiria satisfazer todos os créditos reclamados, mas o acervo hereditário constituía a parte substancial do património do insolvente.

16. Entre o período temporal decorrido entre 15 de Agosto de 2005 e a data em que se apresentou à insolvência, o Insolvente contraiu novas dívidas, não podendo ignorar que já em 15 de Agosto de 2005 se encontrava insolvente, e que assim prejudicava os credores.

17. Designadamente, a dívida de IRS, relativa ao exercício de 2006 e a de IMI referente aos anos de 2007 a 2011.

18. Em 14 de Agosto de 2006, contraiu um contrato pessoal de crédito ao consumo, de capital igual a € 14.940,57.
19. O montante total das dívidas que se verificaram entre 15 de Agosto de 2005 e a data de apresentação à insolvência cifra-se em € 675.834,86.

B) O Direito

Da nulidade da sentença

O Recorrente considera que a sentença é nula porquanto os factos alegados na oposição não estão elencados no rol dos factos provados, sendo certo que inexistem factos arrolados como “não provados”.

Na sentença exarou-se que não se provaram quaisquer outros factos para além daqueles que constam no rol dos factos provados e que inexistem factos a arrolar como factos não provados.

Analisada a oposição apresentada pelo Insolvente (cfr. fls. 107 vs.), constata-se que tal articulado consubstancia oposição por impugnação motivada. Para além de ser caraterizada a personalidade e forma de vida do Insolvente, impugna a factualidade em que se alicerça o pedido formulado neste incidente. Não impugna, porém, que tenha repudiado a herança de seus pais, referindo que o fez para «colocar a verdade material uma vez que tinha sido beneficiado pelos pais, relativamente à sua irmã» – cfr. art. 17 da oposição, fls. 108.

Ora, atentando-se, desde logo, no disposto no art. 571.º, n.º 2, do CPC, alcançamos a distinção entre a defesa por impugnação e a defesa por exceção: aquela verifica-se quando se contradizem os factos alegados pelo autor ou quando se nega o efeito jurídico que deles se pretende extrair; esta quando se defende a impossibilidade de ser apreciado o mérito da ação ou quando se alegam factos que sirvam de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito do autor, determinando a improcedência total ou parcial do pedido.

Seguindo de perto os ensinamentos de Alberto dos Reis (cfr. CPC Anotado, vol. III, p. 32), salientamos que a defesa por exceção configura o exercício de um contra direito do réu cujo conteúdo consiste no poder de impugnar a ação; é um direito potestativo que visa anular o efeito jurídico pretendido alcançar com a ação; paralisa a ação, obsta a que o direito do autor, apesar de existente, produza os seus efeitos. Já a defesa por impugnação põe a claro que o direito de que se arroga o autor não existe, é a defesa direta, a negação dos factos. A impugnação pode operar-se por negação motivada quando se integram os factos articulados numa diferente versão fática, afirmando-se que o evento se processou de forma parcialmente diversa ou com diversa significação jurídica, consubstanciando uma contraversão ou contra-exposição do mesmo facto.

A factualidade versada pelo Insolvente na oposição apresentada não contempla factos sobre os quais o Tribunal tivesse de emitir pronúncia. Desde logo, a caraterização da personalidade e da forma de vida do Insolvente são irrelevantes perante os factos que lhe são imputados no requerimento inicial. E não faz sentido afirmar que repudiou a herança porque pretendeu sanar o facto de ter sido beneficiado pelos pais em relação à irmã: os seus filhos passaram a ser herdeiros da parte que lhe cabia (cfr. n.º 6 dos factos provados), pelo que a sua irmã nenhum benefício colheu do repúdio da herança.

De todo o modo, a sentença deve pronunciar-se sobre os factos que julga provados e sobre aqueles que julga não provados – cfr. art. 607.º, n.º 4, do CPC. E esses factos são os factos essenciais que constituem a causa de pedir (cfr. art. 552.º, n.º 1, al. d), do CPC) e os factos essenciais em que se baseiam a exceções deduzidas (cfr. art. 572.º, al. c), do CPC); não está, pois, incumbido de classificar como provada ou como não provada circunstância invocada como razão de facto ou de direito que consubstancie oposição à pretensão deduzida (cfr. art. 572.º, al. c), do CPC), não têm de ser acolhidos factos invocados em sede de impugnação motivada.

O Recorrente sustenta ainda que a sentença é nula à luz do disposto nos arts. 154.º, 607.º, n.º 4 e 5 e 615.º, als. c) e d), do CPC. Refere, a tal propósito, o seguinte:
- encontram-se factos provados em contradição com a decisão de facto, dado que da motivação da decisão de facto não se retira que o insolvente tenha agido com culpa;
- inexistem elementos que permitam classificar como culposa a insolvência;
- não se compreende a motivação e quais os depoimentos em que o tribunal se apoiou na sua decisão;
- existe contradição no que respeita à motivação da decisão da matéria de facto, verifica-se erro de fundamentação e contradição insanável da decisão da matéria de facto.

Ora, nos termos do disposto no art.º 154.º, n.º 1, do CPC, “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. O art.º 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, por sua vez, determina que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

Na senda deste regime legal, o art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC estatui que “É nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. É ainda nula quando “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” (al. c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC), bem como quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” (al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC).

É que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras» – art. 608.º, n.º 2, do CPC.

Relativamente à nulidade por falta de fundamentação, é unanimemente entendido, na doutrina e na jurisprudência, que só a ausência absoluta de fundamentação, que não uma fundamentação escassa, deficiente, ou mesmo medíocre, pode ser geradora da nulidade das decisões judiciais.[2] A deficiente fundamentação ou motivação pode afetar o valor doutrinal intrínseco da sentença ou acórdão, mas não pode nem deve ser arvorada em causa de nulidade dos mesmos[3].

Só enferma de nulidade a sentença em que se verifique a falta absoluta de fundamentos, seja de facto, seja de direito, que justifiquem a decisão e não aquela em que a motivação é deficiente. Neste sentido, relativamente à fundamentação de facto, só a falta de concretização dos factos provados que servem de base à decisão, permite que seja deduzida a nulidade da sentença/acórdão[4]. Quanto à fundamentação de direito, “o julgador não tem de analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes: a fundamentação da sentença/acórdão contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adotada pelo julgador”[5].

A contradição entre os fundamentos e a decisão (cfr. al. c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC) verifica-se quando a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos conduziriam logicamente, não ao resultado expresso, mas a uma decisão de sentido oposto; ocorre quando a decisão briga com o fundamento, está em oposição com ele.[6]

Analisados os fundamentos apontados pelo Recorrente, constata-se que nenhum deles se reconduz aos vícios legalmente estabelecidos. Trata-se, na verdade, de considerações genéricas, sendo que a questão de saber se dos factos provados se retira que o insolvente agiu com culpa respeita ao mérito da causa, à procedência ou improcedência do incidente em apreço, não contendendo com a nulidade da sentença. Além disso, alcança-se do exarado a fls. 203 e 204 que o Tribunal deixou consignado o fundamento das respostas dadas, valorando os depoimentos testemunhais prestados em audiência.

Termos em que se conclui improcederem, neste âmbito, as conclusões da alegação do recurso.

Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto

O Recorrente invoca que «encontram-se incorretamente julgados os factos dados como provados.»[7] «Os factos (…) encontram-se mal julgados porquanto resulta da fundamentação de facto que o depoimento prestado irmã do insolvente (…) foi merecedor de uma indiscutível credibilidade, daí que não se compreenda como é que não foi dado como provado o facto de o insolvente sempre ter pedido muito dinheiro aos pais e por esse motivo ser vontade do pai de ambos já falecido que o insolvente repudiasse a herança, rendo sido expressamente dito pela testemunha em apreço que o pai pretendia que a herança fosse directamente transmitida para os seus netos.»[8]

Ora, o Recorrente não concretiza qualquer facto que considere mal julgado. O que parece pretender é que passasse a ficar provado a referida matéria afirmada por sua irmã, matéria essa, aliás, que não tinha sido alegada na oposição apresentada.

O Recorrente manifestamente não cumpriu os ónus estabelecidos nos n.ºs 1 e 2 do art. 640.º do CPC. O que implica na rejeição do recurso na parte respeitante à decisão da matéria de facto. O que se declara.

Da falta de fundamento para a qualificação como culposa da insolvência

Em 1.ª Instância, a insolvência foi qualificada como culposa nos termos do disposto no art. 186.º, n.ºs 1 e 2, al. d), do CIRE.

Sustenta o Recorrente ser de revogar tal qualificação porquanto «não se encontra preenchida a al. a) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE (…), não se encontram preenchidos todos os pressupostos do disposto no art. 186.º do CIRE, mostrando-se afastada a presunção de culpa, assim como não foi feita a prova do nexo causal.»[9]

Ora vejamos.

Nos termos do disposto no art. 185.º do CIRE, a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita.

A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência – art. 186.º, n.º 1, do CIRE.

Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário aos interesses deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º,
conforme dispõe o n.º 2 do citado art. 186.º do CIRE.

Por via do disposto no n.º 4 da mesma disposição legal, tal regime aplica-se à atuação de pessoa singular insolvente, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.

Tal como cita o Recorrente[10], os atos enunciados no n.º 2 do art. 186.º do CIRE consubstanciam uma presunção iuris et de iure de insolvência culposa, ou seja, a verificação de alguma das situações a que alude o n.º 2 do referido art. 186.º do CIRE, determina, inexoravelmente, a atribuição de caráter culposo à insolvência.[11] Mais exarou o Recorrente[12] que «é ponto assente que, no caso de verificação de qualquer das alíneas previstas no n.º 2 do art. 186.º do CIRE, a insolvência é sempre culposa, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das referidas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento».

Na verdade, verificada a existência de factos que se reconduzam às situações previstas no n.º 2 do art. 186.º do CIRE, extrair-se-á, em princípio (a lei extrai, ficciona) a ilação da verificação da insolvência culposa, sem necessidade de comprovação (ou alegação) de outros factos. «Em princípio» porquanto, a analisadas as situações previstas nas várias alíneas do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, se constata que, em algumas das situações aí previstas, será preciso alegar algo mais – v. previsão das als. h) e i) do n.º 2 do citado art. 186.º do CIRE, já que a referência a «incumprimento substancial» ou «reiterado» pressupõe a sua concretização em termos de facto que conduzam a essa conclusão.[13]

No caso em apreço, o devedor repudiou a herança de seu pai, herança essa constituída apenas por ativos. Ao que procedeu a 12/11/2013, vindo a apresentar-se à insolvência a 10/01/2014. Ora, o acervo hereditário constituía parte substancial do património do insolvente; já em 2005 o devedor não podia desconhecer que se encontrava insolvente. O que se reconduz à situação prevista na al. d) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE.

Em face do que, por via do disposto no art. 186.º, n.ºs 2, al. d) e 4 do CIRE, cabe concluir ser de considerar culposa a insolvência do devedor Recorrente.

Improcedem integralmente as conclusões da alegação do presente recurso.

As custas recaem sobre o Recorrente – art. 527.º, n.º 1 e 2, do CPC.

Concluindo: o repúdio de herança por parte do devedor, sendo essa herança constituída apenas por ativos, consubstancia situação prevista na al. d) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, pelo que implica na qualificação da insolvência como culposa.


IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Évora, 8 de Novembro de 2018
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos

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[1] Cfr. arts. 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[2] Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. V, p. 139 e 140.
[3] Ac. STJ de 16/12/2004 (Ferreira de Almeida).
[4] Ac. STJ de 28/05/2015 (Granja da Fonseca).
[5] Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, página 688.
[6] Cfr. Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. V, p. 141 e 142.
[7] Cfr. fls. 217 e conclusão 4, fls. 221.
[8] Cfr. conclusão 5, fls. 221.
[9] Cfr. fls. 220 vs.
[10] Cfr. fls. 219.
[11] O que é sustentado por Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 3.ª edição, p. 680.
[12] Cfr. fls. 220.
[13] Ac. TRP de 10/02/2011.