Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1225/10.6T2STC-A.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
NEGÓCIO SIMULADO
Data do Acordão: 06/05/2014
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: LEVANTAMENTO/QUEBRA DE SIGILO
Sumário:
Existindo a necessidade de verificar os movimentos bancários realizados entre as partes envolvidas em negócio alegadamente simulado – como elemento de prova idóneo a desvendar essa simulação – deve levantar-se o sigilo bancário a que a instituição financeira, à partida, estaria obrigada (art.º 417.º, n.º 4, CPC).

Sumário do relator
Decisão Texto Integral:
Por apenso à acção declarativa comum, pauliana, com processo ordinário, a correr seus termos no Juízo de Grande Instância Cível do Tribunal Judicial da comarca do Alentejo Litoral, com o n.º 1.225/10.6T2STC, em que é Autor JR..., residente … – assistido pela sua curadora, MO…, por estar inabilitado por sentença de 2 de Outubro de 2009 – e Réus HG..., residente …, e AM... e marido, JM..., residentes …, vem pelo Autor suscitado este incidente para levantamento/quebra do sigilo bancário (vide douto requerimento de fls. 31 a 32 e doutos despachos de fls. 34 e 39), porquanto a instituição bancária “Banco ...”, a quem foram pedidas as informações requeridas pelo Autor sobre contas de que são titulares os Réus, se recusou a fazê-lo e invocou “o dever de segredo profissional” (a fls. 37), tendo a Mm.ª Juíza a quo convocado a intervenção deste Tribunal Superior e considerando o autor/requerente, em síntese, que “a obtenção das informações bancárias em causa é a única forma de demonstrar probatoriamente os factos em apreço e porque está em causa a descoberta da verdade material dos factos e a realização da justiça”, pois “o Autor está seguro de que se tratou dum negócio simulado, sendo componente dessa simulação a transferência de quantias entre as contas dos Réus, com o fito de atribuir credibilidade ao negócio” (fls. 30/32).
Apreciando, pois, o incidente que é colocado a este Tribunal da Relação.
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Segundo os termos estabelecidos na alínea c) do n.º 1 do artigo 652.º do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, incumbe ao relator julgar sumariamente o objecto do recurso (neste caso, leia-se incidente), “nos termos previstos no artigo 656.º”. E, por este último normativo da lei, isso poderá vir a ocorrer quando o relator entenda que a questão a decidir é simples ou que o recurso/incidente é manifestamente infundado (aí proferindo “decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para as precedentes decisões, de que se juntará cópia”).
Naturalmente, não cremos que o incidente seja in casu manifestamente infundado – tem até toda a razão de ser, dados os interesses que lhe subjazem, maxime o de desencadear um mecanismo que poderá contribuir decisivamente para a boa decisão da causa principal, sendo que a questão técnico-jurídica que é suscitada se apresenta perfeitamente pertinente –, mas parece que o tema não oferecerá dificuldades de maior que imponham a intervenção dum colectivo de juízes desembargadores.
Termos em que o incidente será já julgado pelo relator.
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Provam-se os seguintes factos com interesse para a decisão:

1) O Autor JR... intentou acção declarativa comum, para impugnação pauliana de negócio, com processo ordinário, demandando os Réus HG... e AM... e marido JM... – acção distribuída no Juízo de Grande Instância Cível do Tribunal Judicial da comarca do Alentejo Litoral, e aí a correr com o n.º 1225/10.6T2STC, conforme à sua douta petição inicial, e que constitui agora o documento de fls. 4 a 10, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido.
2) Proferido despacho, a 22 de Outubro de 2013, nos termos da respectiva transcrição a fls. 23 a 25 dos autos, onde se identificou o objecto do litígio e se enunciaram os temas de prova, veio o Autor apresentar o seu requerimento de provas, onde, além do mais, solicitava (vide fls. 30 a 32 dos autos):

Notificação de entidade bancária para prestar informações.
Requer-se ao abrigo do disposto no artigo 417º do CPC, a notificação do ‘Banco ...’, para esclarecer, com referência a qualquer conta bancária que naquela instituição seja titulada por qualquer dos Réus, o seguinte:
a) Se desde a data em que foi proferida a sentença no processo n.º 435/06.5TBGDL – Juízo de Sines (10/05/2010), houve transferências de valores entre as contas dos Réus, e, em caso afirmativo, em que datas e quais os montantes.
b) Por que forma foi pago ao Réu HG… o cheque junto à contestação da Ré, como documento n.º 6, designadamente, se foi pago em dinheiro.
c) Se entre Janeiro de 2011 e a presente data houve depósitos em dinheiro, superiores a € 2.500,00 em contas tituladas por qualquer dos Réus; em caso afirmativo, quem os realizou, quais os seus valores e respectivas datas.
A pretensão agora em causa visa esclarecer o tema de prova identificado sob o número um, pois embora resulte documentalmente que o negócio teve carácter oneroso (conforme certidão do registo predial que se junta, renovada) o A. está seguro de que se tratou de um negócio simulado, sendo componente dessa simulação a transferência de quantias entre as contas dos RR., com o fito de atribuir credibilidade ao negócio! Aliás, esta convicção do Autor decorre da matéria que alegou em sede de articulado superveniente, a qual veio a ser admitida como objecto da causa.
Considerando o princípio da cooperação ínsito no artigo 266.º, n.º 1, do CPC, os Réus deverão ser desde já notificados, para informarem, se autorizam que tais informações sejam prestadas pela entidade bancária em causa.
Recorde-se que foi invocado pelo A. em sede de articulado superveniente que ‘entre Setembro e Dezembro de 2010, o Réu HG… terá transferido de uma conta que titulava no Banco ... para a conta bancária que a R. AM… titulava na mesma instituição, o valor necessário (ou valor aproximado a este) ao pagamento do cheque que foi junto aos autos sob o número 6 da contestação desta Ré’.
Invocou ainda o Autor que ‘o cheque em causa terá sido descontado pelo Réu HG..., em dinheiro’ e ainda que ‘o dinheiro resultante do pagamento (meramente simulado) do cheque foi, depois, faseadamente – desde Janeiro de 2011 até, provavelmente, data recente – depositado na conta bancária da Ré AM... junto do Banco ... (voltando assim à sua proveniência)’.
A matéria aqui em causa apenas pode ser confirmada ou inferida através do deferimento do requerimento agora apresentado.
Caso os Réus não autorizem a prestação da informação em causa e considerando que a instituição bancária alegará a impossibilidade de prestar as informações em apreço, por força do sigilo bancário, requer-se a V. Ex.ª que desde já promova, nos termos do disposto no n.º 4, do artigo 417.º, do CPC, o levantamento de tal sigilo, considerando que a obtenção das informações bancárias em causa é a única forma de demonstrar probatoriamente os factos em apreço e porque está em causa a descoberta da verdade material dos factos e a realização da justiça”.
3) Mas, por ofício junto em 26 de Março de 2014, veio o “Banco ...” negar esse tipo de informações, escudando-se no dever de segredo/sigilo profissional e dizendo-se a aguardar os ulteriores termos do processo, conforme ao teor desse ofício, a fls. 37 a 38 dos autos, aqui ainda dado por reproduzido.
4) E os Réus haviam também negado a sua autorização para que o Banco prestasse aquelas informações (vide o douto requerimento de fls. 36 dos autos).
5) Tendo o Mm.º Juiz do processo proferido doutos despachos a ordenar a instauração do correspondente incidente e a sua subsequente remessa a este Tribunal da Relação, conforme decisões de fls. 39 e 40 dos autos, proferidas em 12 e 15 de Maio de 2014, respectivamente, e cujos teores aqui se deixam ainda reproduzidos na íntegra.
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E a questão que hic et nunc demanda apreciação e decisão da parte deste tribunal ad quem é a de saber se se apresenta oportuno ou não dispensar o banco “Banco ...” do cumprimento do chamado dever de segredo bancário em relação às concretas informações que lhe foram solicitadas na acção (consabido que estão aí presentes, pelo menos, dois interesses dignos de tutela e que não deixam de conflituar entre si, seja o da boa decisão de causa judicial, seja o da necessária discrição que deverá envolver a actividade bancária legal).
Não poderá, por isso, deixar de aludir-se aqui ao sistema de levantamento e dispensa do sigilo bancário, e ao dever geral de colaboração com o Tribunal.

E, assim, nos termos do artigo 417.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados”. A recusa daquela colaboração será sancionada nos termos do seu n.º 2, mas pelo n.º 3, alínea c), do mesmo preceito, “A recusa é, porém, legítima se a obediência importar violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4”, que reza: “Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.
E o artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal dá essa competência ao “tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado”, que terá que decidir “segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante”: idem.

Por seu turno, nos termos do artigo 78.º do Decreto-lei n.º 298/92, de 31 Dezembro (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras), estas estão sujeitas ao sigilo bancário, nomeadamente quanto a informações respeitantes a nomes de clientes, contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias (seu n.º 2).
Já o artigo seguinte estabelece as excepções, de que para aqui releva a do seu n.º 2, alínea d): “os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados nos termos previstos na lei penal e de processo penal”.
Está, assim, encontrada a harmonia do sistema, com as diferentes leis que tratam da matéria a encaixarem-se devidamente umas nas outras.

Aqui chegados, cremos bem, salva melhor opinião, que os contornos do caso sub judicio são precisamente daqueles em que o segredo bancário deve ser levantado. Pois que se discute exactamente o valor de dinheiros depositados em – e transferidos entre – contas bancárias, devidamente situados no tempo, e que poderão elucidar na disputa entre as partes por causa de um negócio de compra e venda alegadamente simulado, feito para prejudicar a satisfação dos créditos do Autor, que aqui está em causa, em ordem a uma ponderação que se pretende justa e abrangente para a boa decisão da causa.
Ora, nessas circunstâncias, se não se puder averiguar o que se passou no tempo indicado com as movimentações dessas contas bancárias – uma vez que persiste um radical desentendimento entre as partes sobre a matéria (um a dizer que houve movimentações de dinheiros apenas para credibilizar a simulação do negócio) –, repete-se, se não se puderem averiguar aquelas contas e o que delas consta, cremos bem que a acção ficará fortemente bloqueada, que o mesmo é dizer, não servirá ao fim a que tende, pelo que se nos afigura, na senda do que parece até óbvio, que as informações solicitadas se mostrarão essenciais para a boa decisão da causa.
[Vide, nos dois sentidos, um a manter o sigilo bancário e outro a levantá-lo, os doutos acórdãos da Relação do Porto, da mesma Secção, publicados pelo ITIJ, o primeiro de 19 de Setembro de 2006, com a referência n.º 0623992 e o segundo de 07 de Julho de 2009, com a referência n.º 15/08.0TBMUR-A.P1.]

Como assim, nesse enquadramento fáctico e jurídico, importa ultrapassar o impasse a que se chegou, devendo a Instituição Bancária em causa prestar as informações solicitadas, que deixam de estar abrangidas pelo sigilo bancário.

E, em conclusão, dir-se-á:
Existindo a necessidade de verificar os movimentos bancários realizados entre as partes envolvidas em negócio alegadamente simulado – como elemento de prova idóneo a desvendar essa simulação – deve levantar-se o sigilo bancário a que a instituição financeira, à partida, estaria obrigada (art.º 417.º, n.º 4, CPC).
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Decidindo.

Assim, face a tudo o que se deixa exposto, dou provimento ao incidente e ordeno a prestação das informações solicitadas.
Custas pelo vencido, a final.
Registe e notifique.
Évora, 05 Junho de 2014
Mário João Canelas Brás