Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
127/09.3PBSTB.E2
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
Data do Acordão: 09/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DECRETADA A NULIDADE DA SENTENÇA
Sumário:
1. Sob pena de preterição da prevalência da lei mais favorável ao agente e, inerentemente, da proibição da irrectroactividade de lei menos favorável, com assento constitucional (art. 29.º, n.º 4, da Constituição), a aferição do regime a aplicar no tempo, em concreto e no seu todo, implica a respectiva comparação, reportando-se a sucessão de leis.

2. É nula a sentença que, perante uma sucessão de regimes, omitiu pronúncia sobre o regime concretamente mais favorável ao agente.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, submetido a julgamento e por sentença proferida em 21.12.2011 (depositada em 27.12.2011), o arguido AJ foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do Código Penal (CP), na pena de 30 (trinta) meses de prisão suspensa na execução pelo período correspondente.

Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, formulando as conclusões:
I
A Assistente AP auto-infligiu as lesões ilustradas nas imagens de fls. 19 e 20, conforme decorre pacificamente das suas próprias declarações consignadas em acta de fls. 532 a 544, gravações de minuto 00 a 45:42 e minuto 00 a 16:40, onde em resumo, declara que o arguido a agrediu estando sempre de frente para si, versão que é frontalmente contrariada pelo parecer técnico de fls. 444 e 445, onde se demonstra que tais lesões só poderiam ter sido efectuadas por trás ou auto-infligidas,

II
Verificando-se que, admitindo a falência da sua versão dos acontecimentos, se compreende então porque razão o medicamento que o arguido lhe entregou em mão não se partiu ou descaminhou, nem foi parar miraculosamente em cima do varão do elevador, ou seja, tal agressão não existiu, pura e simplesmente,

III
O que é confirmado pela testemunha ocular BC, conforme declarações consignadas em acta de fls. 549 a 553, gravação de minuto 00 a 18:55, que viu o arguido entregar o medicamento à Assistente, viu-os a falar no átrio do prédio, não vendo qualquer agressão, nem nada na postura do arguido quando este regressou para a viatura, que revelasse ter acabado de agredir e/ou ter tido uma qualquer altercação séria com a Assistente,

IV
Não sendo credíveis igualmente as agressões anteriores invocadas pela Assistente, e que teriam ocorrido em 17.12.2006 e 01.09.2008, nada existindo nos sinais dos autos que corrobore tais afirmações, excepto o declarado pela Assistente, o que falece em função da falta de credibilidade patenteada no seu depoimento, ou ainda um suposto relatório da APAV, constante a fls. 137, que não está assinado por ninguém nem carimbado, o qual, valendo o que vale, mais não faz do que transcrever a versão da Assistente dos acontecimentos alegadamente ocorridos em 17.12.2006 e 18.01.2009, nada referindo quanto aos de 01.09.2008, o que é estranho, sendo ainda mais estranho que não faça a mínima referência às lesões existentes e visíveis no pescoço da Assistente, as das imagens de fls. 19 e 20,

V
Os elementos que o tribunal “a quo” valorou para se decidir pela condenação do arguido ora recorrente, para além do depoimento da Assistente, consistiram no testemunho de um médico amigo da Assistente e da família desta, nomeadamente de sua mãe, a testemunha JA, que conforme consignado em acta de fls. 549 a 553, gravação de minuto 00 a 20:47, viu a Assistente no seu domicílio alguns dias depois da alegada agressão de 18.01.2009, não soube precisar quantos, posteriormente elaborou a declaração constante a fls. 511, recorrendo-se da sua memória, já que não tinha qualquer registo escrito da consulta que efectuara no domicílio da Assistente, perguntando inclusivamente à Assistente quando esta lhe solicitou a declaração de fls. 511, em que data lá fora consultá-la, afirmando ter visto hematomas circulares no pescoço da Assistente, os quais mais ninguém viu, quer o companheiro da Assistente, JM, quer a mãe desta, MP, conforme consignado em acta de fls. 532 a 544, respectivamente, gravações de minuto 00 a 25:41 e minuto 00 a 16:44, afirmando a testemunha JM que não viu mais nenhumas marcas a não ser as que fotografou, e a testemunha MP que a Assistente se queixava que lhe doía a garganta e a cabeça, e que alguns dias depois lhe “inchou” o pescoço, nada referindo quanto às lesões que alegadamente a testemunha JA terá visto e descreveu em juízo, os tais hematomas circulares no pescoço da Assistente,

VI
Sendo que, decorre do bom senso, seja normal na sequência de auto-infligir os arranhões visíveis nas imagens de fls. 19 e 20, os mesmos tenham provocado algum inchaço, o que nada tem a ver com as lesões circulares mencionadas pela testemunha JA, e as quais mais ninguém viu, apesar da convivência de todos os dias, como é o caso do companheiro e mãe da Assistente, testemunhas que claramente afirmam nada ter observado,

VII
Assim, quanto aos concretos pontos de facto incorrectamente julgados pelo tribunal “a quo”, temos que deverá colher a versão explanada pelo arguido AJ, consignada em acta de fls. 532 a 544, gravação de minuto 00 a 40:46, que protesta a sua inocência, afirmando nunca ter praticado os actos de que o acusa a Assistente, nomeadamente os referenciados como tendo ocorrido em 17.12.2006, 01.09.2008 e 18.01.2009,

VIII
Bem como não deve merecer credibilidade a versão apresentada pela Assistente AP, consignada em acta de fls. 532 a 544, gravações de minuto 00 a 45:42 e minuto 00 a 16:40,
IX

Não merecendo igualmente credibilidade o testemunho de JA, consignado em acta de fls. 549 a 553, gravação de minuto 00 a 20:47, quer pela falibilidade patenteada no modo como elaborou a declaração de fls. 511, de memória, quer pela relação de proximidade existente entre ele a Assistente e a mãe desta, acrescendo que as lesões circulares que referiu, mais ninguém as viu, nomeadamente o companheiro e mãe da Assistente,

X
Contrariamente, deve merecer credibilidade o depoimento da testemunha ocular BC, consignada em acta de fls. 549 a 553, gravação de minuto 00 a 18:55, presente nos acontecimentos de 18.01.2009, e que não viu qualquer agressão perpetrada pelo arguido à Assistente,

XI
Assim como deverá ser entendido como seguro, independente, e com valia e rigor científico, o parecer técnico elaborado por RG, cirurgião geral do Hospital de São Bernardo desde 1993, detentor de vasta experiência neste campo, constante a fls. 444 e 445, que conclui que as lesões apresentadas pela Assistente e patenteadas nas imagens de fls. 19 e 20, ou foram praticadas por trás ou auto-infligidas,

XII
Quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, relativamente à Assistente AP, das declarações consignadas em acta de fls. 532 a 544, gravações de minuto 00 a 45:42 e minuto 00 a 16:40, deverão as mesmas levar a considerar provado que as lesões ilustradas nas imagens de fls. 19 e 20 foram auto-infligidas, bem como dar como provado que não existiram as alegadas agressões supostamente ocorridas em 17.12.2006, 01.09.2008 e 18.01.2009,

XIII
Assim como do depoimento do companheiro da Assistente, JM, consignado em acta de fls. 532 a 544, gravação de minuto 00 a 25:41, deverá ser dado como provado que nunca viu quaisquer lesões circulares no pescoço da Assistente, e que quanto às alegadas agressões anteriores, o seu conhecimento de ciência é de ouvir dizer, ou seja, tem um registo histórico que lhe foi comunicado pela Assistente, nunca tendo presenciado, directa ou indirectamente o quer que seja relativo a tais alegadas agressões, devendo ainda ser dado como provado que a sua companheira foi a um médico amigo, que a acompanhou desde pequena, referindo-se a JA,

XIV
Devendo igualmente ser dado como provado, quanto ao depoimento da mãe da Assistente, MP, consignado em acta de fls. 532 a 544, gravação de minuto 00 a 16:44, que nada sabe nem nada lhe foi relatado pela Assistente quanto às supostas agressões de 17.12.2006 e 01.09.2008, bem como dado como provado que nunca viu quaisquer lesões circulares no pescoço da sua filha,

XV
Assim como deve ser dado como provado que o arguido AJ, na sequência das suas declarações consignadas em acta de fls. 532 a 544, gravação de minuto 00 a 40:46, nunca agrediu a Assistente, quer em 17.12.2006, 01.09.2008 e 18.01.2009, sendo que nesta última data apenas se limitou a, num primeiro momento, entregar o filho menor à Assistente, e num segundo momento, a entregar-lhe o medicamento do menino, devendo ser dado como provado que não infligiu à Assistente quer as lesões longitudinais ilustradas nas imagens de fls. 19 e 20, quer as alegadas lesões circulares invocadas por JA, e que mais ninguém viu,

XVI
Assim como deve ser dado como provado que a testemunha ocular BC, na sequência do depoimento consignado em acta de fls. 549 a 553, gravação de minuto 00 a 18:55, presenciou, num primeiro momento, a entrega do menino à Assistente, e num segundo momento à entrega do medicamento por parte do arguido à Assistente, não tendo visto qualquer agressão perpretada pelo arguido a AP,

XVII
Deve ainda ser dado como provado que o médico JA não viu quaisquer marcas circulares no pescoço da Assistente, dado a falta de rigor temporal inerente, quer à elaboração da declaração de fls. 511, quer à fundamentação de tal declaração, baseada em elementos de memória, obviamente falíveis, o que veio irremediavelmente enquinar as suas declarações consignadas em acta de fls. 549 a 553, gravação de minuto 00 a 20:47, seguramente influenciado pela versão que lhe foi adiantada pela Assistente, sua paciente desde pequena,

XVIII
Tudo ponderado, e sempre com o Mui Douto Suprimento de V. Exas, Venerandos Desembargadores, deverá o arguido AJ ser absolvido da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº1, al. b) e nº2 do Código Penal, em que foi sentenciado na 1ª Instância, com o que se fará a habitual JUSTIÇA.

Caso V. Exas., Venerandos Desembargadores, entendam que para a boa decisão da causa se impõe renovação da prova, aqui se requer, muito respeitosamente, que se dignem ordenar a renovação da prova relativamente a:

a) AP, Assistente, declarações consignadas em acta de fls. 532 a 544, gravações de minuto 00 a 45:42 e minuto 00 a 16:40,

b) AJ, arguido, declarações consignadas em acta de fls. 532 a 544, gravação de minuto 00 a 40:46,

c) JM, testemunha, depoimento consignado em acta de fls. 532 a 544, gravação de minuto 00 a 25:41,

d) MP, testemunha, depoimento consignado em acta de fls. 532 a 544, gravação de minuto 00 a 16:44,

e) BC, testemunha, depoimento consignado em acta de fls. 549 a 553, gravação de minuto 00 a 18:55,

f) JA, testemunha, depoimento consignado em acta de fls. 549 a 553, gravação de minuto 00 a 20:47.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:

1. A sentença condenatória, na fundamentação da decisão, enumera os factos provados e não provados, faz uma exposição completa, dos motivos de facto e de direito, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, tal como estatui o artigo 374.º do Código de Processo Penal.

2. Da prova testemunhal produzida em sede de Audiência e Julgamento, resultam versões contraditórias dos mesmos factos, os quais foram negados pelo arguido.

3. Porém as declarações da Assistente e das testemunhas JM, MP e JA afiguraram-se ao Tribunal como credíveis e em consequência serviram para sustentar a convicção do Tribunal.

4. Ora, uma vez que tal análise da prova teve por base a imediação, sendo elaborado um juízo objectivável e racional, inexiste fundamento válido para proceder à sua alteração.

5. Da leitura da decisão recorrida resulta que, na sua fundamentação, o tribunal não manifesta dúvidas sobre a ocorrência dos factos e de quem foi o seu autor.

6. Da sentença em recurso não se infere qualquer contradição insanável de fundamentação nem transparece do texto da decisão recorrida erro notório na apreciação da prova, pelo que não estão reunidos os pressupostos legais para a renovação da prova, nos termos das disposições conjugadas dos artigo 410.º, n.º2, 412.º, n.º 3, alínea c) e artigo 430.º do Código de Processo Penal

Nestes termos deverá ser negado o provimento ao Recurso interposto pelo Recorrente e, consequentemente, confirmar-se na íntegra a Decisão recorrida.

Por seu lado, a assistente apresentou resposta, concluindo dever manter-se a decisão.

O recurso foi admitido.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual suscitou a questão, prejudicial ao conhecimento do recurso, da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia relativamente ao regime concretamente mais favorável ao recorrente, decorrente da alteração legislativa da Lei n.º 59/2007, de 04.09, quanto à agravante do n.º 2 do art. 152.º do CP.

Cumprido o n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), a assistente respondeu, discordando desse parecer e, para tanto, alegando que o recorrente foi condenado num único crime que se consumou com o último acto de execução, que teve lugar em 18.01.2009.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

*

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as de nulidade da sentença, a que alude o art. 379.º do CPP e os vícios da decisão, previstos no n.º 2 do art. 410.º do CPP, conforme pacificamente resulta do disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPP e, designadamente, da jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, publicado in D.R. I-A Série n.º 298/95, de 28.12.1995.

Delimitando-o, reconduz-se a impugnação de matéria de facto julgada provada pelo tribunal “a quo”, visando a reapreciação da prova que o recorrente indica, ainda que sem especificar, como se impõe no art. 412.º, n.º 3, alínea a), do CPP, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

Não obstante, conforme referido, foi suscitada, em douto parecer do Ministério Público nesta Relação, a nulidade da sentença, o que se configura como questão prévia que importa apreciar, de acordo com o art. 368.º, n.º 1, do CPP.

Ainda que o recorrente a não tenha invocado, trata-se de matéria que deve ser conhecida em recurso, o mesmo é dizer, que o seu conhecimento é oficioso, consubstanciando um regime especial relativamente ao disposto no art. 120.º do CPP, que precede, logicamente, outras questões que se coloquem.

Prende-se com a circunstância, segundo aquele parecer, do recorrente ter sido condenado pelo crime de violência doméstica, agravado pelo n.º 2 do art. 152.º do CP – No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos -, atinente a factos ocorridos em 17.12.2006 e, assim, na versão anterior à actual, em que era tida como configurando crime de maus tratos (então n.º 2 desse art. 152.º) e sem menção a esse tipo de gravação (v. n.º 4 do mesmo preceito, correspondendo ao actual n.º 3).

No que aqui releva, consta da sentença recorrida:

Factos provados:

1. O arguido e AP, viveram como se de marido e mulher se tratassem, em comunhão de casa, mesa e cama durante cerca de 18 meses, entre Novembro de 2004 e Julho de 2006, na residência sita na Rua..., em Setúbal.

2. Dessa relação nasceu, em 20 de Abril de 2005, MR.

3. Durante a vivência em conjunto, o arguido disse pelo menos duas vezes a AP em privado que devia ir receber tratamento médico e que não estava bem da cabeça.

4. O casal separou-se.

5. Após a separação do casal, o arguido por três vezes dirigiu-se a AP e apertou-lhe o pescoço, sendo a primeira em 17.12.2006, a segunda no dia 01.09.2008 e a terceira em 18.01.2009.

6. No dia 17.12.2006, na sequência de um desentendimento, o arguido apertou o pescoço de AP, após o que a agarrou pelo pescoço e arrastou pelo corredor, na presença do filho de ambos.

7. No dia 01.09.2008, quando se encontravam sozinhos na sala de aula do filho de ambos, na escola Vale ----, após uma troca de palavras, o arguido apertou o pescoço de AP.

8. Em outra ocasião, ocorrida no dia 18.01.2009, cerca das 19:45 horas, o arguido dirigiu-se à residência da ofendida, sita Rua..., em Setúbal, a fim de lhe entregar um medicamento que o filho de ambos se encontrava a tomar.

9. Ali chegado, o arguido tocou à campainha da porta da entrada, após o que digitou o código de acesso, abrindo a respectiva porta.

10. Então, AP desceu ao átrio do prédio, sendo que quando a porta do elevador se abriu, o arguido já a aguardava, tendo-lhe perguntado: “Deixaste o menino sozinho?”, ao que AP respondeu: “Não, o menino está com o João”.

11. Acto contínuo, o arguido entrou no elevador onde AP ainda se encontrava e agarrou-a pelos cabelos, após o que lhe agarrou o pescoço com as duas mãos, elevando-a e encostando-a às paredes do elevador enquanto encostava o seu corpo ao corpo de AP e lhe dizia em tom alto e com foros de seriedade: “tu comigo não gozas”.

12. O arguido continuou, então, a apertar o pescoço de AP até esta desfalecer e cair, sem sentidos, no chão do elevador.

13. Em consequência das actuações do arguido, AP sofreu dores.

14. As escoriações bilaterais que AP apresentava no pescoço logo após os eventos referidos em 11. demandaram um período de sete dias de doença com incapacidade para o trabalho.

15. O arguido actuou das formas descritas com o propósito de molestar fisicamente AP, sabendo e querendo produzir nesta, como aconteceu, as mencionadas dores.

16. O arguido sabia que as condutas que adoptou eram idóneas a causar medo e inquietação a AP, o que veio a acontecer, causando naquela receio que o arguido atentasse contra a sua vida.
17. O arguido aproveitou-se, sempre, da sua superioridade física e do seu ascendente sobre AP, para agir das formas descritas.

18. O arguido sempre agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e, ainda assim, não se inibiu de as prosseguir.

Do Direito:
- Enquadramento jurídico-penal

Fixados os factos provados, cumpre proceder ao seu enquadramento jurídico-penal.

O arguido vem acusado da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº1, alínea b) e nº 2 do Código Penal.

Dispõe o nº1 do referido artigo que comete o crime em causa que

Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: (…) b) a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; (…).

Relativamente aos elementos objectivos do tipo temos:

O crime em causa pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos, neste caso que se trate de pessoa com quem mantenha ou tenha mantido relação análoga à dos cônjuges.

As condutas que integram o tipo objectivo do crime previsto no artigo 152° do Código Penal podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (ofensas à integridade física) e maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças, injúrias), e podem ser susceptíveis de, singularmente consideradas, constituírem, em si mesmas, outros crimes, a saber, ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria, difamação.

O tipo não exige uma reiteração de condutas[1]. O que releva para a verificação deste elemento objectivo é não necessariamente a habitualidade das agressões, uma conduta plúrima e repetitiva, mas essencialmente que a pessoa ofendida fique numa situação tal que se deva considerar uma vítima.

De acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime, as condutas que integram o tipo de ilícito não são individualmente consideradas enquanto integradoras de um tipo de crime para serem atomisticamente perseguidas criminalmente, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido que signifique maus tratos sobre o cônjuge

Finalmente e no que respeita ao elemento subjectivo, este tipo de ilícito restringe-se ao conhecimento dos elementos objectivos típicos e à vontade de agir por forma a preenchê-los, isto é, dolo genérico – artigos 13º e 14º do Código Penal.

Nos termos do disposto no artigo 152º, nº2 Código Penal, as condutas descritas no nº 1 foram praticadas contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, a pena é agravada.

Ora, atenta análise do tipo que se deixa feita e, bem assim, a factualidade dada como provada, dúvidas não nos restam que o arguido incorreu na prática do crime que lhe vem imputado.

Com efeito, apurou-se que, após a separação, no dia 17.12.2006, na sequência de um desentendimento, o arguido apertou o pescoço de AP, após o que a agarrou pelo pescoço e arrastou pelo corredor, na presença do filho de ambos.

No dia 01.09.2008, quando se encontravam sozinhos na sala de aula do filho de ambos, na escola Vale ---, após uma troca de palavras, o arguido apertou o pescoço de AP.

No dia 18.01.2009, cerca das 19:45 horas, o arguido dirigiu-se à residência da ofendida, sita Rua ....agarrou AP pelos cabelos que puxou para trás, após o que lhe agarrou o pescoço com as duas mãos, elevando-a e encostando-a às paredes do elevador enquanto encostava o seu corpo ao corpo da ofendida e lhe dizia em tom alto e com foros de seriedade: “tu comigo não gozas”.

O arguido continuou, então, a apertar o pescoço de AP até esta desfalecer e cair, sem sentidos, no chão do elevador.

De referir que, nesta parte, não se consideraram as condutas dadas como provadas em 3. já que, em si mesmas e descontextualizadas, não são de molde a que se possa concluir pela sua integração no tipo em apreço.

Mais se apurou que o arguido actuou das formas descritas com o propósito de molestar fisicamente AP, sabendo e querendo produzir nesta, como aconteceu, as mencionadas dores. Sabia que as condutas que adoptou eram idóneas a causar medo e inquietação a AP, o que veio a acontecer, causando naquela receio que o arguido atentasse contra a sua vida.

O arguido aproveitou-se, sempre, da sua superioridade física e do seu ascendente sobre AP, para agir das formas descritas.

O arguido sempre agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e, ainda assim, não se inibiu de as prosseguir.

Atenta a factualidade dada como provada, dúvidas não restam de que, ao agir como aí se descreve, o arguido agrediu fisicamente a ofendida, causando-lhe medo, provocando-lhe dores e conseguindo a submissão desta, sendo certo que sobre si recaía o dever de a tratar com respeito e consideração, atentos os laços que os uniam, designadamente o facto de terem um filho em comum.

É esta situação de vítima e a existência de um tratamento incompatível com a dignidade e liberdade da pessoa ofendida que caracterizam o crime de violência doméstica, situação que, no caso concreto, atenta a factualidade provada se verifica.

Acresce que uma das condutas foi praticada na presença de menor e duas delas no domicílio da vítima, razão pela qual se mostra igualmente verificada a agravação prevista no n.º 2 do preceito em análise.

Em face do exposto, e não se revelando existir qualquer circunstância que exclua a ilicitude dos factos ou a culpa do arguido, deverá o mesmo, a final, ser condenado pela prática do crime que lhe vem imputado.

- Escolha e medida da pena:

Cabe agora proceder à determinação da pena a aplicar.

A moldura penal quanto ao crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º1, al. b) e nº 2 é de prisão de dois a cinco anos.

Dentro da referida moldura penal abstractamente aplicável, e não se verificando mais nenhuma circunstância agravante ou atenuante susceptível de influenciar as mesmas, cabe proceder à concretização da pena concreta a aplicar.

A pena concreta a aplicar será determinada, dentro da moldura referida, em função da culpa dos arguidos enquanto limite máximo da punição, e ainda das exigências de prevenção, geral e especial, postas pelo caso em apreço – em cuja valoração se atenderá a todas as concretas circunstâncias que, no caso, não fazendo parte do tipo legal, deponham contra ou a favor do arguido (arts. 71º n.º 2 do CP), designadamente:

- o grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente [releva, no caso, as agressões concretamente perpetradas – estrangulamento – culminando numa situação de intensidade superior, bem como o desvalor ínsito nas expressões proferidas e a atitude de frontal oposição ao comando; não se apuraram consequências especialmente gravosas];

- a intensidade do dolo ou negligência [o dolo foi directo e intenso];

- os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram [nada de relevante se apurou nesta matéria];

- as condições pessoais do agente e a sua situação económica [o arguido mostra-se socialmente integrado, possuindo um grau de educação superior, o que eleva a censurabilidade da sua conduta, por lhe ser mais exigível que adoptasse um comportamento diferente];

- a conduta anterior ao facto e posterior a este [o arguido não tem antecedentes criminais];

- a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena [nada de relevante se apurou a este propósito].

Tendo em conta estes dados, julga-se ajustada a fixação de uma pena de 30 [trinta meses] de prisão.
*
Da suspensão da execução da pena

A pena concretamente aplicada permite a suspensão da sua execução, nos termos previstos no art. 50º do Código Penal, desde que atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, o tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

À opção pela suspensão pela suspensão da execução da pena de prisão, enquanto medida de reacção criminal autónoma, são alheias considerações relativas à culpa do agente, valendo exclusivamente as exigências postas pelas finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização (artigo 40.º, do Código Penal). De molde que a opção por esta pena deverá assentar, em primeira linha, na formulação de um juízo positivo ou favorável à recuperação comunitária do agente através da censura do facto e da ameaça da prisão, sem a efectiva execução desta prisão, que ficaria suspensa, mas desde que esta opção não contrarie ou prejudique a necessidade de reafirmar a validade das normas comunitárias, ou seja, desde que o sentimento comunitário de crença na validade das normas infringidas não seja contrariado ou posto em causa com tal suspensão.

Este juízo não deve ter como fundamento uma certeza, sendo suficiente uma simples expectativa, isto é, que a ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição.

No caso, tendo em conta que o arguido se encontra separado da ofendida, que desde a instauração do processo não há noticia da ocorrência de outros factos semelhantes ou da mesma natureza, bem como o facto de o arguido estar socialmente integrado e ter suporte familiar, pensamos que ainda é possível formular o aludido juízo de prognose favorável.

Nos termos do disposto no art. 50.º, nº 5 do Código Penal, a duração da suspensão será por 30 [trinta] meses a contar do trânsito em julgado da presente sentença.”
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Resulta, então, do que ficou descrito, que o tribunal “a quo” condenou o recorrente pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo actual art. 152.º do CP (ainda que, certamente por lapso, se refira, em sede da medida da pena, ao crime de maus tratos do, também actual, art. 152.º-A), agravado pelas circunstâncias dos factos terem ocorrido na presença de menor e no domicílio da vítima, nas datas de 17.12.2006, 01.09.1008 e 18.01.2009.

Só a primeira situação – de 17.12.2006 - o foi “na presença de menor”, como refere a sentença e, ao invés do que também menciona, as restantes não o foram no “domicílio da vítima”, como manifestamente decorre dos factos respectivos, sob os números 7 e 11.

Com efeito, a verificada em 01.09.2008 ocorreu quando arguido e vítima se encontravam sozinhos na sala de aula do filho e, a de 18.01.2009, quando estavam no elevador do prédio da residência da vítima, o que não se compadece com o conceito, aqui restritivo, de “domicílio” desta, abrangendo, tão-só, o espaço realmente confinado ao domicílio no sentido habitacional, dada a maior dificuldade de reacção da vitima e de haver quem testemunhe esses actos, só assim se justificando a agravação desse comportamento.

Além desta discrepância de fundamentação jurídica face aos factos provados, o tribunal recorrido descurou pronunciar-se quanto à circunstância de que os factos de 17.12.2006 foram praticados ainda na vigência do anterior art. 152.º, na redacção prévia à conferida pela referida Lei n.º 59/2007, segundo a qual essa agravação dos actos serem cometidos “na presença de menor” não era prevista.

Ainda que a conduta que foi dada por provada revele um carácter reiterado e isso nem fosse exigível, como se fundamentou na sentença, para o preenchimento do tipo legal em causa (o que também vinha sendo entendido relativamente ao regime anterior do crime de maus tratos, conforme, entre outros, o acórdão do STJ de 14.11.1997, in CJ acs. STJ, ano V, tomo III, pág. 235), afigura-se que, sem prejuízo da análise valorativa da globalidade da mesma, enquadrando, pois, um único crime, não se mostra que a circunstância dos últimos actos (e dos que imediatamente os precederam) terem ocorrido já na vigência da Lei n.º 59/2007, permitam, sem mais, que se enverede pela agravação do ilícito, quando esta, unicamente por via desta Lei, surgiu.

Na verdade, tendo a conduta do recorrente se manifestado com a pluralidade dos actos que foram dados por provados, o crime em apreço caracteriza-se, em concreto, como de actuação tendencialmente habitual, não se podendo, com vista à determinação do momento da sua consumação, conferir prevalência a qualquer um desses actos em detrimento dos restantes, ainda que o último tenha ocorrido já na vigência do actual art. 152.º.

A sua configuração como um único crime não contende com esta realidade, nem dispensa que sobre isso tenha de existir pronúncia do tribunal.

Sob pena de preterição da prevalência da lei mais favorável ao agente e, inerentemente, da proibição da irrectroactividade de lei menos favorável, com assento constitucional (art. 29.º, n.º 4, da Constituição), a aferição do regime a aplicar no tempo, em concreto e no seu todo, implica a respectiva comparação, reportando-se a sucessão de leis.

E, mormente, quando nenhuma referência resulta da sentença quanto a esta problemática, sendo que, mesmo que não existisse a aludida incorrecção no tocante a considerarem-se os factos de 01.09.2008 e 18.01.2009 como praticados “no domicílio da vítima”, a conclusão não deixaria de ser a mesma.

Conforme Taipa de Carvalho, in “Sucessão de Leis Penais”, Coimbra, 1990, “a solução mais conforme com as rationes da irretroactividade da lei penal desfavorável, sem menosprezar a função de prevenção geral da lei nova – na medida em que aquelas razões o permitam – é a seguinte: deve aplicar-se a lei antiga, a não ser que a totalidade dos pressupostos da lei nova se tenham verificado na vigência desta”, por respeito aos princípios da segurança jurídica e da culpa.

Já se vê, pois, que o tribunal omitiu o desiderato imposto no art. 2.º, n.º 4, do CP – averiguação do regime concretamente mais favorável ao agente -, atendendo à sua importância, na medida em que a oficiosidade da apreciação e do conhecimento de todas as questões que são pertinentes à decisão da causa resulta da natureza dos interesses que se visam proteger, na realização de opções fundamentais de política criminal, que o julgador não pode olvidar, sendo certo que a própria letra da lei, ao usar a expressão «devesse» com significado literal de injunção, outro sentido não consente (acórdão do STJ de 07.12.1999, in CJ, ano VII, tomo III, pág. 234).

Tal omissão configura omissão de pronúncia sobre questão que o tribunal recorrido devia apreciar e conhecer, prevista no art. 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP,

Constitui, por isso, fundamento para a nulidade da sentença, a suprir pelo tribunal “a quo”.

Fica, assim, prejudicada a apreciação do referido objecto recursivo.

3. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se:

- declarar a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia sobre questão que devia apreciar e conhecer nos termos que ficaram descritos e, consequentemente,

- dever ser proferida outra decisão que não enferme da mesma.

Sem custas.

Processado e revisto pelo Relator.

Évora, 18-09-2012
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(Carlos Berguete Coelho)

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(João Gomes de Sousa)
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[1] Como aliás já vinha sendo entendido pela jurisprudência relativamente ao crime de maus tratos punido pela anterior versão do artigo 152º, “Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge. O que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade da vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.” Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.01.2003, Relator, Serafim Alexandre, cujo sumário está disponível para consulta in www.dgsi.pt. (no mesmo sentido vd Acórdãos Supremo Tribunal de Justiça de 06.04.2006, Relator Simas Santos, Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 04.11.2004, Relator João Carrola, todos disponíveis para consulta in www.dgsi.pt ).