Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1325/10.2TBVNO-A.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
DEVER DE COOPERAÇÃO PARA A DESCOBERTA DA VERDADE
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O Banco de Portugal está sujeito ao dever de segredo regulado nos arts. 80.º, 81.º-A, n.º 4, a contrario sensu, 84.º, do RGICSF, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro, sendo que os factos e elementos cobertos por tal dever só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1325/10.2TBVNO-A.E1

ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

No âmbito do processo de inventário em que figura como inventariante (…), apresenta-se o Banco de Portugal a recorrer de dois despachos em que foi condenado no pagamento de multas.

II – O Objeto dos Recursos

No decurso do processamento do inventário, o Tribunal recorrido oficiou o Banco de Portugal, ora Recorrente, para prestar informação quanto à titularidade de contas bancárias por parte do inventariado.

Deduzida escusa por parte do BP, o Tribunal informou-o que a pessoa titular das contas é o inventariado e que os interessados são seus herdeiros, pelo que «não funcionaria aqui o sigilo bancário.»

Em face da recusa manifestada pelo Recorrente, invocando que a informação pedida versava sobre matéria relativamente à qual estava obrigado ao dever de segredo de supervisão, o tribunal recorrido proferiu despacho condenando o Banco de Portugal na multa de 4 UC pela sua falta de colaboração com o Tribunal e de cumprimento de uma norma legal. Tal decisão alicerçou-se nos seguintes fundamentos:
- o inventariado é o titular da conta bancária;
- os interessados são seus herdeiros;
- o cabeça-de-casal não se veio opor à informação em causa após ter sido notificado do pedido dos outros interessados para que o mesmo fosse deferido, pelo que deu tacitamente autorização para a prestação da informação;
- tudo se passa como se os titulares das contas bancárias viessem pedir indiretamente informação quanto à sua existência;
- nunca funcionaria o sigilo bancário, aplicando-se o disposto no art. 79.º n.º 1 do DL n.º 298/92.

Inconformado, o Banco de Portugal apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que determine a comunicação do consentimento dos interessados nos termos previstos no n.º 2 do art. 80.º do RGICSF. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«i - O Tribunal a quo condenou “o Banco de Portugal na multa de 4 UCs (…), pela sua falta de colaboração com o Tribunal e de cumprimento de uma norma legal.” (destaque nosso);
ii - Entendeu que, ao caso dos autos, se aplica o art.º 79.º do RGICSF;
iii - Norma que o Banco de Portugal teria violado, assim se justificando a aplicação da multa;
iv - Considerou o Tribunal a quo que, uma vez que“(…) o cabeça de casal não se veio opor à prestação da informação em causa”,
v - Então “ter-se-á que considerar que o cabeça de casal tacitamente deu autorização para a prestação desta informação.”;
vi - Concluiu que “Deste modo, tudo se passa como se os titulares das contas bancárias viessem pedir indirectamente informação quanto à sua existência. Logo, e em qualquer dos casos, nunca funcionaria aqui o sigilo bancário alegado pelo Banco de Portugal, aplicando-se aqui o disposto no artigo 79º, nº1, do D/L nº298/92.”
vii - A posição do Tribunal a quo viola o regime jurídico do dever de segredo do Banco de Portugal, previsto no art.º 80.º do RGICSF,
viii - E, bem assim, viola o regime jurídico da BDC, previsto no art.º 81.º-A do RGICSF.
ix - Numa primeira versão legal, o regime jurídico da BDC encontrava-se previsto no n.º 3 do art.º 79.º do RGICSF (hoje revogado), norma que excecionava o dever de segredo do Banco de Portugal (art.º 80.º), relativamente aos dados da BDC, permitindo a sua comunicação às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal.
x - Atualmente, essa previsão consta do n.º 4 do art.º 81.º-A.
xi - O n.º 5 do art.º 81.º-A alarga o núcleo de entidades a quem o Banco de Portugal pode, legitimamente, transmitir a informação constante da BDC,
xii - Ambas as normas constituem exceções ao dever de segredo do art.º 80.º.
xiii - Finalmente, o n.º 6 do art.º 81.º-A prevê que os titulares dos dados têm acesso à respetiva informação constante da BDC, em conformidade com a Lei de Proteção de Dados (Lei n.º 67/98, de 26 de outubro).
xiv - Trata-se, neste último caso, do acesso, por parte de quem é titular dos dados constantes da BDC, e não da revelação daqueles dados a terceiros, por parte do Banco de Portugal.
xv - Nenhuma destas disposições autoriza o Tribunal a quo a aceder aos dados da BDC,
xvi - Nem a substituir-se aos interessados, presumindo o seu consentimento.
xvii - Em consequência, nenhuma disposição do art.º 81.º-A do RGICSF permite, sem mais, a comunicação da informação constante da BDC ao Tribunal a quo.
xviii - A informação aqui em causa deverá ser transmitida aos titulares dos dados, de acordo com a Lei n.º 67/98 (cf. n.º 6 do art.º 81.º-A do RGICSF).
xix - Todavia, tal transmissão deverá ser precedida de consentimento pessoal e expresso dos próprios, transmitido ao Banco de Portugal.
xx - Os sucessores de titular de dados falecido legitimidade podem aceder à informação constante da BDC, independentemente de terem ou não o estatuto de cabeça-de-casal, por serem titulares de direito à informação sobre o acervo hereditário.
xxi - Mas, porque a informação contida na BDC é informação sujeita a segredo por força do art.º 80.º do RGICSF, apenas pode ser transmitida mediante autorização do interessado, comunicada ao Banco de Portugal ou nos termos da lei penal e de processo penal (n.º 2 do art.º 80.º do RGICSF).
xxii - Os Tribunais superiores têm vindo a reconhecer a necessidade de observar os procedimentos legalmente estabelecidos, em matéria de prestação de informações cobertas pelo dever de segredo do Banco de Portugal;
xxiii - É, pois, inequívoco que a vigência de um regime de segredo profissional próprio do Banco de Portugal, que incide sobre a informação registada na BDC, legitima e exige a recusa de prestação da informação [al. c) do n.º 3 do art.º 418.º do CPC].
xxiv - Para efeitos do n.º 2 do art.º 80.º do RGICSF, o consentimento pode ser prestado indiretamente ao Banco de Portugal.
xxv - No caso dos presentes autos, bastará designadamente que os interessados prestem o seu consentimento pessoal, expresso e inequívoco quanto às informações em causa, perante o Tribunal a quo.
xxvi - Após, poderá o Tribunal a quo remeter ao Banco de Portugal certidão extraída dos autos, de onde conste a prestação do consentimento.
xxvii - Mas será sempre contra legem um presumido “consentimento tácito”, resultante da conjugação da qualidade de herdeiro com o interesse no conhecimento da informação pretendida.
xxviii - O Tribunal a quo não pode substituir-se aos interessados, prestando consentimento em seu lugar.
xxix - Em suma, o despacho recorrido viola o disposto no n.º 2 do art.º 80.º e nos n.os 4 e 5 do art.º 81.º-A (estes, a contrario), todos do RGICSF [cf. al. a) do n.º 2 do art.º 639.º do CPC].
xxx - E erra na invocação do art.º 79.º do RGICSF [cf. al. c) do n.º 2 do art.º 639.º do CPC], já que não é esta a norma jurídica aplicável ao caso dos autos.
xxxi - Sendo assim, como é, não há razão nenhuma para condenar o Banco de Portugal na multa de 4 UC, nem por alegada falta de colaboração com o Tribunal a quo, nem por alegada violação de normas legais.»

O Tribunal de 1.ª instância determinou nova notificação ao BP para prestar as informações em falta, com menção de que caso continuasse a recusar-se se sujeitaria às consequências legais, designadamente a condenação em multa agravada nos termos do disposto no art. 417.º n.º 2 do CPC.

Perante nova recusa por parte do BP, foi proferido despacho condenando o mesmo na multa de 10 UC por incumprimento do despacho que determinou a prestação de informações.

Inconformado, o Banco de Portugal apresentou-se a recorrer, pugnando pela declaração de nulidade da decisão recorrida por extinção do poder jurisdicional do tribunal a quo. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«i - No despacho de fls. 237 – o primeiro despacho recorrido – o Tribunal a quo condenou “o Banco de Portugal na multa de 4 UCs (…), pela sua falta de colaboração com o Tribunal e de cumprimento de uma norma legal.” (destaque nosso);
ii - Entendeu que, ao caso dos autos, se aplica o art.º 79.º do RGICSF;
iii - Norma que o Banco de Portugal teria violado, assim se justificando a aplicação da multa;
iv - Por ter entendido que a posição do Tribunal a quo viola o regime jurídico do dever de segredo do Banco de Portugal, previsto no art.º 80.º do RGICSF e, bem assim, viola o regime jurídico da BDC, previsto no art.º 81.º-A do RGICSF, o Banco de Portugal interpôs recurso daquele despacho;
v - O Banco de Portugal dá por integralmente reproduzidas, para todos os efeitos legais, as alegações do seu primeiro recurso e recorda, em especial, que:
vi - Nem o n.º 4, nem o n.º 5, nem o n.º 6 do art.º 81.º-A do RGICSF autorizam o Tribunal a quo a aceder aos dados da BDC,
vii - Nem a substituir-se aos interessados, presumindo o seu consentimento.
viii - Em consequência, nenhuma disposição do art.º 81.º-A do RGICSF permite, sem mais, a comunicação da informação constante da BDC ao Tribunal a quo.
ix - A informação aqui em causa só poderá ser transmitida aos titulares dos dados, de acordo com a Lei n.º 67/98 (cf. n.º 6 do art.º 81.º-A do RGICSF), devendo ser precedida de consentimento pessoal e expresso dos próprios, transmitido ao Banco de Portugal.
x - A vigência de um regime de segredo profissional próprio do Banco de Portugal, que incide sobre a informação registada na BDC, legitima e exige a recusa de prestação da informação [al. c) do n.º 3 do art.º 418.º do CPC].
xi - Pelo que é contra legem um presumido “consentimento tácito”, resultante da conjugação da qualidade de herdeiro com o interesse no conhecimento da informação pretendida.
xii - O Tribunal a quo não pode substituir-se aos interessados, prestando consentimento em seu lugar.
xiii - Em suma, o primeiro despacho recorrido viola o disposto no n.º 2 do art.º 80.º e nos n.os 4 e 5 do art.º 81.º-A (estes, a contrario), todos do RGICSF [cf. al. a) do n.º 2 do art.º 639.º do CPC].
xiv - E erra na invocação do art.º 79.º do RGICSF [cf. al. c) do n.º 2 do art.º 639.º do CPC], já que não é esta a norma jurídica aplicável ao caso dos autos.
xv - Quanto ao segundo despacho, de fls. 257 – 258 dos autos – e que constitui o objeto do presente recurso – disse o Tribunal a quo: “Tendo em conta que o Banco de Portugal voltou a não cumprir o despacho de fls. 237 [o despacho do qual o Banco de Portugal primeiro recorreu], não prestando as informações que lhe foram determinadas, condeno o mesmo na multa de 10 UCs (…). Volte a notificar o Banco de Portugal para enviar aos presentes autos, no prazo de 10 dias, as informações que lhe foram determinadas, designadamente se o inventariado (…) era titular de alguma conta bancária na data do seu falecimento, nos termos solicitados pelos herdeiros do inventariado nos presentes autos. Caso volte a não prestar essa informação, voltará a incorrer em multa agravada (…).”
xvi - Mais disse o Tribunal a quo: “está em causa a condenação da recorrente em multa”, “está em causa apenas a parte da decisão no [primeiro] despacho recorrido que condenou a recorrente em multa” e “o [primeiro] recurso provocará a suspensão da decisão recorrida na parte em que houve recurso, ou seja na condenação da recorrente em multa.”
xvii - O Tribunal a quo tentou restringir o âmbito do primeiro recurso interposto pelo Banco de Portugal à mera questão da multa, mas sem motivo legítimo.
xviii - O que está em causa, num e noutro recurso, é a falta de base legal para tal condenação – que se mantém, relativamente ao despacho de fls. 257 – 258 – e a concomitante violação, pelo Tribunal a quo, do disposto nos art.os 80.º e 81.º-A do RGICSF, com a correspetiva aplicação errada do art.º 79.º daquele diploma.
xix - Está especialmente em causa o entendimento do Tribunal a quo segundo o qual poderia substituir-se aos titulares dos dados da BDC, para aceder à informação pretendida, ao arrepio dos procedimentos determinados em lei expressa.
xx - O Tribunal a quo proferiu o despacho de fls. 257 – 258 já depois de o Banco de Portugal ter interposto recurso do despacho de fls. 237;
xxi - Nesse momento, já se havia esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo quanto à matéria da prestação de informações por parte do Banco de Portugal, nos termos do disposto nos n.os 1 e 3 do art.º 613.º do CPC – normas violadas pelo Tribunal a quo [cf. als. a) e b) do n.º 2 do art.º 639.º do CPC].
xxii - A interposição do primeiro recurso deu lugar à reserva de poder jurisdicional do tribunal de recurso, quanto à matéria em apreço.
xxiii - Por isso, o Tribunal a quo ficou legalmente impossibilitado de renovar a sua pretensão, pois só o Venerando Tribunal da Relação de Évora poderá, agora, pronunciar-se.
xxiv - A ratio legis do art.º 613.º do CPC implica que apenas uma instância de cada vez pode pronunciar-se sobre a matéria.
xxv - O Venerando Tribunal da Relação de Évora já conheceu da questão da extinção do poder jurisdicional por diversas vezes.
xxvi - Sendo jurisprudência constante que “Proferida a sentença ou despacho fica, imediatamente, esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Por outras palavras: relativamente à questão ou questões sobre que incidiu a sentença ou o despacho, o poder do seu signatário extinguiu-se.” (Proc.º 2359/06-2; sublinhados nossos).
xxvii - Contra a lei e contra a jurisprudência, o Tribunal a quo renovou literalmente uma pretensão que o Banco de Portugal reputou ilegal e que, por isso, sujeitou ao escrutínio do recurso.
xxviii - Pelo exposto, só pode considerar-se nulo e de nenhum efeito o despacho de fls. 257 – 258 ora recorrido.»

Não foram apresentadas contra-alegações em qualquer um dos recursos.

Assim, em face das conclusões da alegação do Recorrente, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[1], são as seguintes as questões a decidir:
- da falta de fundamento para condenação do Recorrente em multa;
- da invalidade do despacho que condena o Recorrente em multa de 10 UC.


III – Fundamentos

A – Os dados do processo a considerar são aqueles que constam relatados supra.

B – O Direito

Por via do disposto no art. 6.º do CPC, é certo que o juiz está incumbido, designadamente, de dirigir ativamente o processo e de providenciar pelo seu andamento célere, com vista a alcançar a justa composição do litígio em prazo razoável.

Em sede de instrução da causa, vigora o dever de cooperação para a descoberta da verdade, conforme consagrado no art. 417.º do CPC, dever esse que recai sobre todas as pessoas, sejam ou não partes na causa. Todas têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis, acarretando a inversão do ónus da prova se o recusante for parte, nos moldes estatuídos no n.º 2 da referida disposição legal.

As condenações em multa aplicadas ao Recorrente alicerçam-se neste normativo legal, no n.º 2 do art. 417.º do CPC.

Sustenta o Recorrente, porém, que a recusa em prestar as informações quanto à titularidade de contas bancárias do inventariado é, neste caso, legítima, pois está sujeita ao segredo estabelecido no art. 80.º do RGICSF.

Ora vejamos.

Nos termos do disposto na al. c) do n.º 3 do art.º 417.º do CPC, a recusa é legítima se a obediência importar violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4 que, por sua vez, estabelece que deduzida a escusa com tal fundamento, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado. O que nos conduz para o regime inserto no art.º 135.º do CPP, cujo n.º 2 estabelece que cabe, em primeira linha, aferir da (i)legitimidade da escusa; mostrando-se justificada a escusa, atento o disposto no n.º 3 do referido preceito legal, cumpre suscitar o incidente perante o tribunal superior, que pode decidir pela quebra do segredo, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade dos elementos e informações para a descoberta da verdade.

Efetivamente, «o dever de cooperação para a descoberta da verdade tem como limite (para além do respeito pelos direitos fundamentais enquanto limite absoluto imposto constitucionalmente), o acatamento do dever de sigilo, ou seja, o juiz não pode, pelo menos em absoluto, ao abrigo do dever de cooperação, provocar, por via da requisição de alguma informação, a violação pela entidade requisitada do segredo profissional a que a mesma se encontre legalmente vinculada.»[2] Importa, por via do dever do sigilo, proteger os direitos pessoais, como o bom nome e reputação e a reserva da vida privada, bem como o interesse da proteção das relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes.

No caso em apreço, está em causa o dever de segredo do Banco de Portugal, regulado nos arts. 80.º, 81.º-A n.º 4, a contrario sensu, 84.º do RGICSF, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31 de dezembro. Ora, nos termos do disposto no art. 80.º n.º 2 do referido diploma, «Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.»

Na medida em que a intimação dirigida pelo Tribunal ao Banco de Portugal não seguiu instruída com autorização, para o efeito visado, por parte dos interessados herdeiros do titular das contas, nem tal autorização se retira ou alcança da conduta processual adotada pelos interessados nos autos[3], cabe concluir ser legítima a escusa deduzida pelo Banco de Portugal. O que, por via do disposto no art. 417.º n.ºs 3 al. c) e 4 do CPC, implica na submissão da questão ao tribunal superior, mediante o incidente próprio, a fim de decidir pela quebra do dever de sigilo invocado.

Por conseguinte, inexiste fundamento para aplicação do disposto no n.º 2 do art. 417.º do CPC, condenando o recusante em multa.

Assiste ainda razão ao Recorrente no que respeita à indevida condenação no pagamento de multa de 10 UC por recusa da colaboração devida, nos termos do disposto no art.º 417.º n.º 2 do CPC.

Na verdade, conforme invoca o Recorrente, trata-se de decisão proferida pelo Tribunal a quo quando estava já submetida à instância recursional a questão de saber se aquela concreta escusa deduzida pelo BP com fundamento na violação do segredo profissional constituía fundamento para aplicação de multa à luz do disposto no art. 417.º n.º 2 do CPC. A determinação dirigida pelo Tribunal recorrido ao BP para prestar informações é una, a escusa deduzida é una. A posterior insistência pelo cumprimento daquela determinação, dirigida pelo Tribunal recorrido ao BP, e a reiteração deste na dedução daquela escusa não implica a constituição de nova questão litigiosa entre o Tribunal e o BP que legitime a aplicação de nova multa – de outro modo, estando pendente o recurso, submetendo à apreciação superior a questão de saber se aquela concreta recusa constituía fundamento para aplicação da sanção prevista no art. 417.º n.º 2 do CPC, suceder-se-iam as condenações, implicando na interposição de recursos sucessivos, para apreciação da mesma e única questão jurídica: a questão de saber se aquela concreta escusa com aquele concreto fundamento, perante a determinação de prestar aquela mesma e una informação constituía fundamento para aplicação da sanção prevista no art. 417.º n.º 2 do CPC.

Por via da reserva do poder jurisdicional ao tribunal de recurso relativamente à matéria objeto do recurso, resulta o tribunal recorrido impedido de sancionar novamente aquele mesma recusa, sujeito que está a apreciação superior o (des)acerto da decisão tomada sobre a ilegitimidade dessa recusa. O segundo despacho recorrido configura, assim e à luz do disposto no art. 613.º do CPC, uma decisão juridicamente inexistente.[4]

Termos em que se conclui procederem integralmente as conclusões das alegações dos recursos.

Concluindo:

- o Banco de Portugal está sujeito ao dever de segredo regulado nos arts. 80.º, 81.º-A n.º 4, a contrario sensu, 84.º do RGICSF, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31 de dezembro, sendo que os factos e elementos cobertos por tal dever só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal;
- essa autorização não se infere da conduta processual do titular do direito que não manifesta oposição à prestação da informação requisitada;
- a insistência dirigida pelo Tribunal ao recusante para que preste a informação requisitada, interposto que foi recurso da decisão que o condenou em multa pela falta da colaboração devida (submetendo à instância recursional o poder jurisdicional de aferir da (i)legitimidade da recusa), não pode constituir fundamento para aplicação de nova multa pela falta da colaboração devida.


IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela total procedência dos recursos, em consequência do que se revogam as decisões recorridas, determinando-se que o Tribunal de 1.ª instância notifique os interessados para endereçarem ao Recorrente, ainda que por intermédio do Tribunal, autorização expressa para que este preste as informações em causa, aplicando-se o disposto no art. 135.º n.º 3 do CPP, ex vi art. 417.º n.º 4 do CPC, caso as autorizações não sejam obtidas.

Sem custas.

Évora, 8 de Junho de 2017

Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria da Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura

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[1] Cfr. arts. 637.º n.º 2 e 639.º n.º 1 do CPC.
[2] Cfr. Ac. TRL de 03/07/2012 (Graça Amaral).
[3] Cfr. art. 218.º do CC.
[4] Cfr. Ac. STJ de 06/10/2010.