Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
84/20.5T8ORM.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: VENDA EXTRAJUDICIAL
REMUNERAÇÃO
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Quando o n.º 6 do art. 17º do Regulamento das Custas Processuais estabelece que as entidades encarregadas da venda extrajudicial recebem “a quantia fixada pelo tribunal até 5 % do valor da causa ou dos bens vendidos, se este for inferior”, deve entender-se que a expressão “bens vendidos” se reporta ao concreto objecto da compra e venda efectuada, pelo que no caso da venda recair sobre uma metade indivisa de um imóvel é esse o bem vendido a considerar para o efeito, e não o próprio imóvel.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

1 – RELATÓRIO
No Juízo Local Cível de Ourém, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, correu termos a presente acção de divisão de coisa comum instaurada por AA e BB contra a Herança Indivisa de CC, legalmente representada pelos seus herdeiros.
Vinha pedido que se procedesse à divisão de um prédio de que os requerentes e a herança requerida eram titulares em comum, na proporção de metade para cada uma das partes, concretamente uma fracção autónoma designada pela letra ..., do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o nº ...93, da freguesia ..., inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artigo ...89.
Tendo sido decidida a indivisibilidade do imóvel, foi determinada a sua venda, a fim de cessar a indivisão, e nomeado encarregado da venda DD.
Na sequência dessa decisão, e uma vez que requerentes e requerida eram ambos donos de metade indivisa do prédio, a indivisão veio a cessar com a aquisição por parte dos requerentes da metade indivisa que até então era pertencente à requerida.
Consumado o negócio e cessada a indivisão, o processo foi declarado findo, uma vez que tinha sido atingida a sua finalidade.
Entretanto, o senhor encarregado de venda apresentou nota de honorários e despesas.
Nessa nota, além das despesas, o encarregado da venda pretendia que se fixasse como remuneração pela venda a quantia de dez mil euros, consignando que no negócio foi atribuído ao imóvel o valor de €200.000 pelo que a transmissão da metade vendida foi feita por €100.000.
Sobre essa nota de honorários e despesas recaiu decisão, em despacho proferido no final do processo, que, tendo em conta o valor alcançado com a venda em causa nos autos, ou seja, 100.000 euros, estabeleceu em 5.000 euros (100.000 euros x 5% = 5.000 euros) a remuneração do encarregado de venda, pela realização da mesma.
Mais se decidiu, o que para aqui não releva, determinar o pagamento ao encarregado de venda das despesas por ele reclamadas na nota que juntou aos autos.
Não se conformando com o decidido na parte referente aos honorários, o encarregado da venda reagiu através deste recurso de apelação, defendendo que, como constava da sua nota de honorários, devia ser fixado o montante de €10.000 (uma vez que o preço da coisa vendida foi estabelecido em €200.000, o valor de 5% equivale a €10.000) e não €5000 conforme ficou decidido no despacho recorrido.
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2 – DO RECURSO
No final das suas alegações de recurso, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
“1 - A presente Acção de divisão de coisa comum tinha como finalidade pôr termo à indivisão que existia relativamente à fracção ... do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o número ...93, da freguesia ..., inscrito na matriz urbana daquela freguesia sob o artigo ...89.
2º - Tendo o imóvel sido considerado indivisível, e não tendo havido acordo para a adjudicação na Conferência de Interessados, foi ordenada a sua venda e foi nomeado o recorrente para a realização dessa venda.
3º - Uma vez ordenada a venda, os próprios consortes podem apresentar propostas para a aquisição do bem comum, e assim sucedeu nestes autos.
4º - Foi de 200.000,00 € a melhor oferta apresentada para a aquisição do imóvel, e seria esse o preço a depositar nos autos se o proponente fosse estranho à titularidade do bem.
5º - Sendo comprador um co-titular do imóvel, na proporção de metade indivisa, este apenas procedeu ao depósito de 100.000,00 €, que era a parte do preço destinada aos restantes comproprietários, que detinham a outra metade do imóvel.
6º - O comprador pagou apenas 100.000,00 €, correspondente a metade da fracção, porque a outra metade já lhe pertencia.
7º - Mas não pode confundir-se o preço do imóvel, que é de 200.000,00 €, com o preço de 100.000,00 € declarado na escritura para o pagamento da metade que pertencia aos vendedores.
8º - Nos termos do disposto no artigo 868º do Código Civil, sendo o comprador simultaneamente devedor e credor de 50% do preço do imóvel, não tinha que depositar a parte do preço que a ele próprio pertencia.
9º - A percentagem de 5% fixada pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo para remuneração do recorrente, deve incidir sobre o valor total do imóvel e não sobre o valor de uma parte do mesmo.
10º - Devendo a remuneração ser fixada no montante de 10.000,00 € (200.000,00 € x 5% = 10.000,00 €).
11º - A decisão recorrida, na parte em que fixou a remuneração do recorrente em 5.000,00 € (100.000,00 € x 5% = 5.000,00 €), violou as normas do artigo 868º do Código Civil, e do nº 6 do 17º do Regulamento das Custas Processuais – RCP.
12º - Tal decisão deve ser revogada pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora (se não for reformada nos termos do nº 2 do artigo 613º e do artigo 614º do CPC), e substituída por outra que atribua a quantia de 10.000,00 € ao recorrente a título de remuneração pela realização da venda do imóvel dos autos.
9º - Assim se fazendo a costumada Justiça”
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3 – DO OBJECTO DO RECURSO
Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelo recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, tendo em conta as conclusões apresentadas, a questão colocada ao tribunal de recurso resume-se em decidir qual a remuneração a atribuir ao encarregado da venda nomeado nos autos, se a quantia de €5.000 como foi decidido na primeira instância ou se a quantia de €10.000 como pretende o recorrente.
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4 – APRECIANDO E DECIDINDO
Como se constata, a questão a decidir depende apenas da interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes.
Com efeito, não se perfila nenhuma controvérsia sobre factos, sendo de considerar para a decisão do recurso tão só os dados do processo que foram descritos no relatório inicial, e que são mencionados também nas conclusões do recorrente, os quais se afiguram bastar para a boa decisão da causa.
O que está em causa é a remuneração do encarregado de venda, a decidir de acordo com o artigo 17º nº 6, do Regulamento das Custas Processuais.
Recordamos somente, para principiar a análise das razões do recorrente, e por tal se afigurar útil à plena compreensão da questão, que a venda aludida na polémica que nos é presente é a que consta da escritura de compra e venda lavrada no dia 12 de Outubro de 2022 no Cartório Notarial de Ourém, tal como aliás vem bem explicado pelo apelante.
Nesse instrumento ficou declarado que os vendedores nela identificados, EE, FF e GG, que intervinham na qualidade de herdeiros de CC (era esta herança indivisa a requerida nos autos) venderam metade indivisa do imóvel pelo preço de €100.000.
O segmento decisório impugnado pelo apelante é aquele que na decisão final do processo ficou exarado a propósito da remuneração do encarregado da venda:
“Atendendo ao valor alcançado com a venda do bem comum em causa nos autos, consistente na fracção autónoma designada pela letra ... do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o nº ...93, da freguesia ..., ou seja de 100.000 euros, fixo em 5.000 euros (100.000 euros x 5% = 5.000 euros) a remuneração do sr. encarregado de venda, pela realização da venda desse imóvel.”
A discordância do recorrente baseia-se no seu particular entendimento do disposto no artigo 17º nº 6, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Dec.-Lei nº 34/2008, de 26/2, no que respeita às remunerações fixas dos processos, concretamente quando estabelece que os liquidatários, os administradores e as entidades encarregadas da venda extrajudicial recebem a quantia fixada pelo Tribunal, até 5% do valor da causa ou dos bens vendidos ou administrados.
Diz o recorrente que o Meritíssimo Juiz a quo fixou a remuneração ao recorrente em 5% do valor da venda, mas calculou a remuneração com referência a €100.000, quando, na realidade, o imóvel foi vendido tendo como referência o preço de €200.000, concluindo que “a remuneração do recorrente, pela realização da venda do bem comum identificado nos autos, deve ser fixada em 10.000,00 € (200.000,00 € x 5% = 10.000,00 €).
Neste ponto impõe-se precisar que a norma legal em referência, o n.º 6 do art. 17º do RCP, na parte relevante, diz concretamente que “os liquidatários, os administradores e as entidades encarregadas da venda extrajudicial recebem a quantia fixada pelo tribunal, até 5 % do valor da causa ou dos bens vendidos ou administrados, se este for inferior”.
E diremos desde já que o entendimento defendido pelo recorrente se apresenta claramente equivocado, conforme explicaremos.
No caso presente, atento o elevado valor da causa, muito superior ao valor daquilo que foi efectivamente vendido, o valor a considerar para efeito da fixação da remuneração do encarregado da venda terá que ser o valor dos “bens vendidos”, reproduzindo a expressão utilizada na norma.
Mas qual foi afinal o “bem vendido” nos autos?
A resposta consta da própria escritura de compra e venda já aludida, outorgada no dia 12 de Outubro de 2022 no Cartório Notarial de Ourém, em que o recorrente teve intervenção pessoal e cuja cópia juntou aos autos.
Como ali se pode ler, o primeiro outorgante (o ora recorrente, encarregado da venda) consumou a venda de metade indivisa do imóvel em causa, como estava encarregado, pelo preço de €100.000.
É também isto mesmo o que se retira da motivação apresentada pelo próprio recorrente, e de todos os elementos dos autos, aliás convergentes na confirmação da mesma factualidade.
O que foi vendido foi um direito, ½ de uma coisa em situação de compropriedade, a metade indivisa do imóvel a que se reportam os autos, e o preço do negócio foi esse, de cem mil euros.
Diremos neste passo que a invocação do art. 868º do Código Civil, mencionado pelo recorrente como norma violada na decisão, vem inteiramente a despropósito para o caso.
O art. 868º do CC refere-se a uma forma de extinção das obrigações (a confusão): “Quando na mesma pessoa se reúnam as qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, extinguem-se o crédito e a dívida.
Raciocina o recorrente que o comprador interveniente na escritura só não pagou €200.000 por na sua pessoa se terem reunido as condições de credor e devedor de metade dessa quantia; mas não tem qualquer razão, o negócio jurídico em causa teve como objecto apenas a parte do imóvel indiviso que ainda não estava na titularidade do adquirente, visto que a parte restante já lhe pertencia.
Não foi a “confusão” que extinguiu a obrigação de pagar por aquilo que já tinha, essa obrigação era obviamente inexistente.
A circunstância de ser uma venda a comproprietário do imóvel indiviso (situação expressamente prevista na parte final do n.º 2 do art. 929º do Código de Processo Civil, quando refere que podem “os consortes concorrer à venda”) trouxe como consequência inevitável ter sido feita a compra e venda apenas da parte indivisa que ainda não pertencia ao comprador.
Ou seja, o senhor encarregado da venda não procedeu à venda do imóvel, mas sim à venda da metade indivisa dele. E o preço praticado foi realmente de €100.000.
É aqui que reside o equívoco que alimenta toda a argumentação do recorrente: não houve venda de um imóvel, mas sim de um direito sobre ele, a metade indivisa do mesmo.
Na verdade, o recorrente tinha sido nomeado encarregado da venda do imóvel em questão; mas a circunstância de ter sido um dos contitulares a propor o fim da contitularidade através da aquisição da parte pertencente aos outros consortes fez com que não chegasse a haver venda do imóvel mas sim apenas dessa parte indivisa que não pertencia ao proponente.
Assim sendo, julga-se que na decisão impugnada não houve qualquer violação do disposto no n.º 6 do art. 17º do Regulamento das Custas Processuais, e antes foi seguido o único entendimento possível sobre a norma em questão.
A expressão “bens vendidos” tem um sentido jurídico claro, e, como estatui o n.º 3 do art. 9º do Código Civil, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
No caso, na decisão impugnada o senhor juiz fixou a remuneração pela venda realizada em 5% do valor da mesma, estabelecendo dessa forma a remuneração no limite superior previsto na norma que aplicou (5% do valor de €100.000, correspondente ao valor da venda realizada que teve o recorrente como encarregado).
A terminologia utilizada no despacho em questão, ao falar em venda “do imóvel”, não foi realmente a mais rigorosa, mas a decisão tomada apresenta-se conforme ao preceito legal a ter em conta para o caso.
Sendo certo que a norma inclui a possibilidade de gradação do valor da remuneração devida ao encarregado da venda, tendo em conta os critérios que normalmente orientam essa fixação, designadamente as atividades desenvolvidas pelo encarregado da venda, a maior ou menor complexidade das mesmas, o tempo despendido, os contactos efectuados, os interessados angariados, o certo é que no caso a decisão tomada fixou a remuneração no seu ponto mais elevado.
Não podia o julgador, atento o conteúdo imperativo da norma citada, satisfazer a pretensão do recorrente, ficcionando a venda do imóvel a que se reportava a acção de divisão de coisa comum.
Nestes termos, conclui-se que o recurso é improcedente, impondo-se a confirmação da decisão impugnada.
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4 - DECISÃO
Pelo que fica dito, julgamos improcedente o presente recurso de apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante, considerando o decaimento (cfr. art. 527º, n.º 1, do CPC).
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Évora, 30 de Março de 2023
José Lúcio
Manuel Bargado
Albertina Pedroso.