Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
36/15.7PAENT.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Data do Acordão: 11/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
IO bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é plural e complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana.

II - O crime de violência doméstica é muito mais que a soma dos diversos ilícitos que o podem preencher, não sendo as condutas que integram o tipo consideradas autonomamente, mas antes valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador daquele crime.

III - Assim, a pedra de toque da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


I - RELATÓRIO
Nos autos de processo comum, com intervenção do tribunal coletivo, com o nº 36/15.7PAENT, da Comarca de Santarém (Santarém - Instância Central - Secção Criminal - Juiz 2), realizada a audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferido pertinente acórdão, onde se decidiu:

“a) Condenar A. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, 77.º e 152.º, n.ºs 1, alínea b), 2, 4 e 5, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão e na pena acessória de proibição de contacto com M. pelo período de 3 (três) anos; de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, 77.º e 152.º, n.ºs 1, alínea d), 2, 4 e 5, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão e na pena acessória de proibição de contacto com M. pelo período de 3 (três) anos.

b) Determinar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada a A. pelo período de 5 (cinco) anos, sujeita à obrigação de afastamento – num perímetro de 400 (quatrocentos) metros – do local de residência e do local de trabalho de M. e de MF, e a regime de prova, assente em plano social de recuperação a elaborar pelo Instituto de Reinserção Social, prevendo, além do mais, os seguintes objetivos: (1) comparência em consulta de avaliação alcoológica por médico e serviço a indicar pela Direção Geral da Reinserção e dos Serviços Prisionais, (2) acompanhamento por médico da especialidade e (3) submissão a tratamento se este for considerado necessário em resultado da referida avaliação, consignando-se que o arguido prestou o necessário consentimento para o efeito;

c) Condenar A. a pagar a M. uma indemnização no valor de €1.200,00 (mil e duzentos euros) e a pagar a MF uma indemnização no valor de €1.000,00 (mil euros);

d) Condenar A. a pagar as custas criminais, fixando em 3UC a taxa de justiça devida”.
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Inconformado com o acórdão condenatório, dele interpôs recurso o arguido, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:

“1.ª Foi o recorrente condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de violência doméstica, um deles previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, 77.º e 152.º n.ºs 1, alínea b), 2, 4 e 5, e o outro pelos artigos 14.º, 26.º, 77.º e 152.º n.ºs 1, alínea d), 2, 4 e 5, todos do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão e na pena de três anos de prisão, respetivamente. E em cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de cinco anos, sujeita à obrigação de afastamento do local de residência e de trabalho das ofendidas e a regime de prova.

2.ª Foi ainda condenado, na pena acessória de proibição de contacto com M, pelo período de três anos e a pagar a esta uma indemnização no valor de mil e duzentos euros e a MF uma indemnização no valor de mil euros.

3.ª Entende o ora recorrente que, face à factualidade dada como provada e o Direito aplicável, a pena aplicada pelo crime perpetrado sobre M revela-se pouco criteriosa e desequilibradamente doseada e que deveria ter sido absolvido do crime de violência doméstica relativamente a MF.

4.ª Para tanto, o tribunal a quo deu como provado que:

- O recorrente e M vivem como se fossem casados há cerca de vinte cinco anos, residindo juntamente com estes MF;

- Desde o início da vivência em comum, e sempre que se excedia no consumo de bebidas alcoólicas, era habitual o recorrente apodar M de “puta, vaca, cabra e porca” e acusá-la de possuir amantes, sendo que em Dezembro de 2014, o recorrente encontrando-se novamente alcoolizado disse àquela «andas a foder com o teu filho, ele tem a picha maior que a minha, fodes com toda a gente»;

- Na sequência do facto anterior, M tentou encaminhar o recorrente para fora da residência, ao que este reagiu desferindo-lhe um soco que a atingiu na região torácica e aquando MF puxou o cabelo ao recorrente, com o intuito de «auxiliar» aquela, este deferiu um soco na testa desta última, não tendo nenhuma delas necessidade de receber tratamento médico;

- Em 2007, o recorrente apalpou os seios de MF e, há cerca de cinco anos, beijou-a na boca, sendo que esta, nascida em 1973, é portadora de uma deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 82%;

- O recorrente aufere uma reforma de cerca de trezentos e sessenta euros, não tem antecedentes criminais e, em termos sociais, não lhe são atribuídas condutas agressivas ou de conflitualidade.

5.ª A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais. A ação não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de algumas liberdades da vítima tutelada por outros tipos legais de crime, mas tem que constituir uma situação de “maus tratos” e estes só se verificam quando a ação do agente traduza crueldade, insensibilidade ou ofenda a integridade física ou psíquica da vítima de um modo especialmente desvalioso e que a coloque numa relação de domínio que a deixe em situação degradante ou em estado de agressão permanente.

6.ª No caso em apreço, o recorrente, em 2007, apalpou os seios a MF, em 2011 beijou-a na boca, e, em 2014, desferiu-lhe um soco na testa, sem haver necessidade de receber tratamento médico.

7.ª Ora, na perspetiva do recorrente, estas condutas não podem considerar-se como atos violentos, por forma a traduzirem crueldade ou insensibilidade, nem ofendem a integridade física e/ou psíquica da ofendida de um modo especialmente desvalioso, nem traduzem uma conduta maltratante especialmente intensa ou uma relação de domínio que a deixou em situação degradante ou em estado de agressão permanente, ou seja, estas condutas não integram o conceito de “maus tratos”.

8.ª Assim, o Tribunal a quo, ao não absolver o recorrente do crime de violência doméstica perpetrado sobre a MF, violou o artigo 152º do Código Penal, porquanto fez uma errada subsunção jurídico-penal dos factos provados.

9.ª O soco que o recorrente desferiu sobre a ofendida MF, deveria ser qualificado como ofensa à integridade física simples e os factos de cariz sexual, eventualmente, qualificados como abuso sexual de pessoa incapaz de resistência. Porém, estes crimes dependem de queixa e a ofendida não manifestou, em prazo, a vontade de exercer a ação penal. Razões pelas quais, violou o tribunal a quo o artigo 152º do Código Penal ao condenar o recorrente pelo crime de violência doméstica, ao invés de absolvê-lo.

10.ª Ademais, o Tribunal a quo violou o disposto no n.º 2, do artigo 410.º do CPP, porquanto o acórdão recorrido padece do vício a que alude a alínea b), ou seja, existe uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. Os factos provados estão em oposição com a fundamentação do acórdão e esta está em contradição com a decisão. Isto porque se deu como provado que «MF … é portadora de uma deficiência … o que a condiciona a sua capacidade de se opor às investidas de A…» e que «…é portadora de deficiência que condicionava a sua capacidade de lhe oferecer resistência.». Porém da fundamentação consta que o atestado médico de incapacidade revela que MF é portadora de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 82% mas, não esclarece se essa incapacidade a impede de oferecer resistência às investidas do recorrente, sendo que, a própria mãe revelou desconhecer se existe nexo de causalidade, pelo que não tendo a perícia médica realizada abarcado esta factualidade, nem tido sido produzido qualquer outro elemento probatório neste sentido, considera-se que somente se demonstra que não registou qualquer oposição, desconhecendo-se se a mesma tinha incapacidade para apreender o alcance dos atos sexuais perpetrados pelo recorrente. Ora, se a vítima é incapaz mas, não se demostrou que essa incapacidade a impediu ou não de dar o seu consentimento aos atos perpetrados pelo recorrente deveria, sem sombra de dúvida, ser este absolvido de qualquer crime porquanto, para se aferir dessa capacidade/incapacidade não pode recorrer-se a presunções ou às regras da experiência.

11.ª Discorda o recorrente da pena concreta que lhe foi aplicada pelo crime perpetrado sobre M porquanto, na fixação da medida da pena é necessário ordenar, relacionando-as, a ilicitude, a culpa, a prevenção geral e a prevenção especial, tendo-se, para isso, em conta os quadros agravativos e atenuativos, sob pena de se frustrarem as finalidades da sanção.

12.ª Para determinação da medida da pena, o acórdão atendeu ao grau de ilicitude, que considerou ser «elevado». Porém, dos factos dados como provados retira-se que o grau de ilicitude não é, de modo algum, elevado porquanto, consistiram em injúrias e num soco, sem que tivesse havido especiais requintes de malvadez. Pelo que, só se pode concluir que o grau de ilicitude é reduzido, que é o que se impõe por força da alínea a) do nº 2 do artigo 71º do Código Penal, violou-se este dispositivo na determinação da medida concreta da pena.

13.ª Quanto à culpa do recorrente temos que a dignidade da pessoa humana impede que a pena ultrapasse a culpa. Por mais repugnante que seja o crime e por mais dramáticos que sejam os seus efeitos, nunca pode ser infligida ao recorrente uma pena que vá além dos limites impostos pela medida da sua culpa. E, de acordo com os factos provados o recorrente só quando se excedia no consumo de bebidas alcoólicas é que a apodava de «puta, vaca, cabra e porca» e a acusava de ter amantes. Acresce que, em vinte cinco anos de vida em comum ocorreu apenas uma única agressão física, sem consequências de maior, em virtude de o recorrente estar alcoolizado e como «resposta» à conduta das ofendidas. Logo, a medida da culpa do recorrente impõe que a pena não seja superior a dois anos de prisão. Tendo-se violado o disposto no artigo 40º do Código Penal.

14.ª Refere o acórdão recorrido que, no que concerne às necessidades de prevenção geral, as mesmas não se fixam num grau muito elevado. Não podemos, contudo, olvidar que foi violada a honra e consideração e a integridade física, sendo, esta última, por uma única vez, sem consequências de maior e durante toda a vida em comum que durou vinte cinco anos. Assim, as necessidades de prevenção geral não justificam que se aplique uma pena de prisão superior a dois anos.

15.ª As necessidades de prevenção especial atenuam-se pela total ausência de antecedentes criminais. Ademais, o recorrente não é, não sua essência, uma pessoa com personalidade delituosa. Os crimes praticados foram-no sempre enquanto estava alcoolizado e num quadro de resposta, embora desadequada, na interação com a ex-companheira. Fora do lar conjugal o recorrente é respeitador, cumpridor, honesto, trabalhador e responsável.

16.ª Como circunstâncias atenuantes depõem a favor do recorrente o reduzido grau de ilicitude, ter havido ao longo de vinte cinco anos de vida em comum um único episódio de ofensa à integridade física, a sua conduta posterior à prática dos factos, que revela que o mesmo vem envidando esforços no sentido de se afastar das ofendidas, a sua idade, a assunção de culpa, a adequada inserção social, a disponibilidade para receber acompanhamento médico especializado para tratamento ao problema de alcoolismo de que padece, a institucionalização até à maioridade, as suas fracas habilitações literárias, a imagem discreta em termos sociais e a ausência de condutas agressivas ou de conflitualidade fora do contexto familiar.

17.ª Por último, caso se entenda não ser de absolver o recorrente do crime de violência doméstica perpetrado sobre Maria de Fátima, deve ser fixada pena não superior a dois anos de prisão porquanto a que lhe foi aplicada se considera desadequada atendendo à ilicitude, gravidade e ao espaçamento temporal dos factos praticados.

18.ª Temos assim, no entender do recorrente, os seguintes parâmetros:

- Deve este ser absolvido do crime de violência doméstica perpetrado sobre a ofendida MF ou, caso assim não se entenda, não ser a pena superior a dois anos de prisão.

- Não deve o mesmo ser condenado em pena superior a dois anos de prisão pelo crime perpetrado sobre a ofendida M, devendo ser revogada a pena acessória aplicada, uma vez que as circunstâncias atenuantes apontam nesse sentido. Condenando o arguido em três anos e seis meses e três anos de prisão, violou-se o disposto nos artigos 40º, 71º e 152º do Código Penal, porquanto a medida concreta da pena ultrapassa a medida da culpa.

19.ª Deve o recorrente ser absolvido da indemnização cível arbitrada a MF, ou reduzidas ambas as indemnizações arbitradas às ofendidas para valor que não ultrapasse os quatrocentos euros, atendendo às parcas condições económicas daquele.

Nestes termos, deve ser revogada a decisão recorrida, sendo:

- O arguido absolvido do crime de violência doméstica perpetrado sobre MF ou, caso assim não se entenda, ser o mesmo condenado a pena não superior a dois anos de prisão.

- O arguido condenado pelo crime de violência doméstica perpetrado sobre M em pena não superior a dois anos de prisão.

- Revogada a pena acessória em que o arguido foi condenado.

- O arguido absolvido da indemnização arbitrada a MF ou, caso assim não se entenda, serem ambas as indemnizações reduzidas para valor nunca superior a quatrocentos euros cada”.
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A Exmª Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu, pugnando pela improcedência do recurso apresentado, e concluindo a sua resposta nos seguintes termos (em transcrição):

“1 - A leitura de toda a factualidade dada como provada, que não a leitura espartilhada da mesma, permite concluir que os factos praticados sobre a pessoa da MF ocorreram no seu domicílio, o mesmo domicílio que partilhava com o arguido e com a sua mãe, a ofendida M, pelo que a agravação da moldura penal prevista para o crime de violência doméstica decorrente do nº 2 do art.º 152º do Código Penal não podia ser arredada.

2 - O douto acórdão recorrido refere quais os elementos de prova e qual o processo lógico que permitiram dar os factos que o foram como provados; a matéria de facto constante do nº 14 assentou não só no relatório médico de fls. 27, na perícia médica de fls. 57 a 59, mas também nas declarações prestadas pelo arguido e por M, e o facto dado como provado sob o nº 16 foi-o com recurso às regras da experiência comum.

3 - Dos autos resulta que MF sofre de paralisia cerebral, com consequências ao nível da sua compreensão oral – cfr. relatório de fls. 57 e 59 –, que tem uma incapacidade de 82% (v. fls. 197), o que tudo condicionará o seu relacionamento com os outros e a reação a atitudes que adotem para consigo, o que de resto resulta do senso e experiência comum.

4 - Não se verifica o apontado vício previsto na alínea b) do nº 2 do art.º 410º do CPP, que apenas ocorre quando a contradição não pode ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com o recurso às regras da experiência.

5 - Atenta a matéria de facto dada como provada, e o levantamento legislativo e jurisprudencial constante do douto acórdão recorrido no qual se analisam de forma detalhada as relações de concurso entre os diferentes tipos de crimes à qual se equacionou que poderia a mesma ser subsumida, mostra-se irrepreensível o enquadramento jurídico nele levado a cabo, impondo-se a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica sobre a pessoa de MF.

6 - A limitação pessoal de MF, da qual o arguido era naturalmente conhecedor, impõe que se considere a sua conduta para com aquela, e concretamente no que respeita aos atos que não poderão deixar de ser qualificados como ofensas sexuais, como especialmente censurável e atentatória da sua dignidade enquanto pessoa humana.

7 - Face à matéria de facto dada como provada, a pena aplicada ao arguido pela prática do crime de violência doméstica sobre a pessoa de MF mostra-se adequada à satisfação das necessidades de prevenção geral e especial, às finalidades da punição, face à gravidade dos factos cometidos, e à ressocialização do arguido.

8 - Face à matéria de facto dada como provada, à reiteração da conduta do arguido para com M, naturalmente debilitadora da sua saúde psíquica, entende-se que deverão ser mantidas as penas principal e acessória aplicadas ao arguido tal qual o foram, por se mostrarem adequadas à satisfação das necessidades de prevenção geral e especial, às finalidades da punição e à ressocialização do arguido.

9 - Consequentemente é entendimento do Ministério Público que a pena aplicada ao arguido em cúmulo jurídico deverá ser mantida.

Termos em que, deve ser negado provimento ao recurso interposto e, consequentemente, mantido o douto acórdão recorrido”.
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Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto foi de parecer que o recurso não merece provimento (devendo, contudo, ser corrigidos os manifestos lapsos constantes de fls. 216 dos autos - pág. 17 do acórdão revidendo -).

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, o arguido apresentou resposta, reafirmando, no essencial, o já alegado na motivação do recurso.

Efetuado o exame preliminar e corridos os vistos, foi designada data para conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.
Tendo em conta as conclusões apresentadas pelo recorrente e acima enunciadas, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, são cinco as questões que vêm suscitadas no presente recurso:

1ª - Existência do vício prevenido no artigo 410º, nº 2, al. b), do C. P. Penal (contradição insanável entre a fundamentação e a decisão).

2ª - Enquadramento jurídico-penal dos factos (os factos provados, relativamente à ofendida MF, não preenchem os elementos do tipo legal de crime de violência doméstica).

3ª - Medida concreta das penas (as penas aplicadas - penas parcelares e pena única - são excessivas).

4ª - Aplicação da pena acessória de proibição de contactos com a ofendida M (pena que o recorrente considera desajustada).

5ª - Montantes das indemnizações arbitradas às ofendidas (que o recorrente entende serem exagerados).

2 - A decisão recorrida.

O acórdão revidendo é do seguinte teor (quanto aos factos, provados e não provados, e quanto à fundamentação da decisão fáctica):

“1.º FACTOS PROVADOS
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da mesma:

1)A. e M vivem em comunhão de mesa, leito e habitação, como se fossem casados, há cerca de 25 (vinte e cinco) anos, tendo fixado residência na Rua..., na freguesia de N.ª Sra. de Fátima, do concelho do Entroncamento.

2) Do relacionamento de A. e M não resultaram filhos em comum.

3) MF, fruto de um anterior casamento de M, reside juntamente com esta e A. na morada indicada em 1).

4) Desde o início da vivência em comum, e sempre que se excedia no consumo de bebidas alcoólicas, era habitual A. apodar M. de “puta, vaca, cabra e porca” e acusá-la de possuir amantes; comportamento que se intensificou desde há cerca de 5 (cinco) anos, quando o mesmo passou à situação de reformado.

5) Em data não concretamente apurada, mas que se situa no ano de 2007, no interior da residência comum, identificada em 1), A. abordou a M. na cama do casal e aproveitando-se do facto de esta se encontrar a dormir sob medicação para o efeito, penetrou-a no ânus com o seu pénis ereto, bem sabendo que a mesma se encontrava debilitada e a recuperar de um episódio de lombociatalgia.

6) No momento da penetração, M. acordou e repeliu A., o qual se afastou de imediato.

7) No mesmo ano de 2007, A. apalpou os seios de MF enquanto a mesma se debruçava sobre o lavatório da casa de banho e cuidava da sua higiene pessoal.

8) Há cerca de 5 (cinco) anos, em data não concretamente apurada, A. beijou MF na boca, enquanto lhe prendia as mãos junto ao corpo, colocando as suas próprias mãos sobre as dela.

9) Em dia não concretamente apurado do mês de Dezembro de 2014, cerca das 22 horas, no interior do domicílio comum, J, sem motivo aparente, se não o de se encontrar novamente alcoolizado, dirigiu-se a M, chamando-lhe “puta, vaca, cabra e porca” e dizendo-lhe “andas a foder com o teu filho, ele tem a picha maior do que a minha, fodes com toda a gente”.

10) Nesta sequência, M tentou encaminhar A. para o exterior da residência, com o escopo de se acalmar, ao que o mesmo reagiu, desferindo um soco que atingiu a mesma na região torácica e lhe provocou dores.

11) Alertada pelo grito de dor de M, MF acorreu ao local, aproximou-se por trás e puxou o cabelo de A. com o intuito de fazer cessar a ofensa que o mesmo perpetrava sobre a sua mãe.

12) Ato contínuo, A. desferiu um soco na testa da MF, causando-lhe dores.

13) M. e MF não necessitaram de receber tratamento médico.

14) MF, nascida a 31 de Março de 1973, é portadora de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 82% (oitenta e dois por cento), o que condiciona a sua capacidade de se opor às investidas de A..

15) A. agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o intuito, que logrou concretizar, de ofender a sua companheira M. na respetiva honra e consideração, bem como de molestar o corpo e a saúde da mesma, durante toda a vivência em comum, causando-lhe angústia e sofrimento, o que fez no interior da residência comum, em violação dos mais elementares deveres de respeito e consideração, que devem vigorar entre duas pessoas que vivem em condições análogas às dos cônjuges.

16) Com as condutas descritas em 7), 11) e 13) pretendeu A. molestar o corpo e a saúde da MF, bem como de a constranger a contacto de natureza sexual, o que conseguiu de todas as vezes, ciente de que a mesma era (e é) portadora de deficiência que condicionava a sua capacidade de lhe oferecer resistência.

17) Sabia A. que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se coibindo de, ainda assim, atuar da forma descrita.

18) A. é filho de um casal que teve mais três filhos, sendo que, quando tinha oito anos, na sequência de problemas de saúde da mãe, foi institucionalizado; situação que se manteve até este atingir a maioridade.

19) A. iniciou a escolaridade em idade normal, frequentou a escola até ao 4º ano e, posteriormente completou uma formação de cozinheiro, atividade que exerceu durante alguns anos.
20) Mais tarde, A. trabalhou na construção civil, estando reformado há cerca de cinco anos.

21) Antes da atual relação afetiva com M., A. teve uma relação anterior, da qual tem quatro filhos, maiores de idade e autónomos.

22) A cônjuge de A. faleceu há mais de 27 (vinte e sete) anos, vítima de doença, tendo, nesta sequência, A. iniciado a relação com M.

23) Na perspetiva de A., a sua relação com M, apesar de ter contornos de alguma instabilidade, nunca se pautou pela agressividade.

24) Por seu turno, M. perspetiva este relacionamento como pouco satisfatório, identificando em A. comportamentos com características de impulsividade e baixo autocontrolo, potenciados sobretudo pelo efeito da ingestão, com uma periodicidade praticamente diária, de bebidas alcoólicas.

25) A. vive não só com a companheira, M. e com a filha desta MF, mas também com um outro filho da primeira, com 28 (vinte e oito) anos de idade, que frequenta um curso de formação profissional.

26) Residem numa casa de habitação social, que se localiza numa zona onde prevalecem várias problemáticas sociais.

27) Presentemente, o casal composto por A. e M. na prática vive separado, não existindo qualquer tipo de relacionamento íntimo entre eles, que não partilham alguns dos espaços da casa.

28) Em termos económicos, A. aufere uma reforma de cerca de €360,00 (trezentos e sessenta euros), M. recebe uma reforma de idêntico montante, o mesmo acontecendo com a filha desta, que recebe mensalmente cerca de €330,00 (trezentos e trinta euros); recebendo, por sua vez, o filho uma bolsa.

29) A. não assume a sua problemática aditiva, referindo que bebe num contexto social, apresentando dificuldade em reconhecer o papel desestruturante de eventuais consumos, adotando por vezes uma atitude de legitimação dos mesmos.

30) Em termos sociais, A. tem uma imagem discreta, não lhe são atribuídos condutas com características agressivas ou de conflitualidade, fora do contexto familiar.

31) A. não tem uma forma estruturada de ocupação de tempos livres, nem a prática de atividades pro sociais.

32) Em termos das características pessoais, A. evidencia dificuldades ao nível da resolução de problemas e ao nível de autocontrolo, deixando transparecer uma baixa autocritica e não identificando vitimas para além dele próprio.

33) A. já diligenciou no sentido de reorganizar a sua vivência familiar totalmente afastado de M. e MF, tendo encontrado colocação profissional numa quinta situada em Outeiro Pequeno, concelho de Torres Novas, local onde poderá iniciar, de imediato, atividade profissional como trabalhador rural e, simultaneamente, residir.

34) A. não tem antecedentes criminais.

2.º FACTOS NÃO PROVADOS
Nenhuns outros factos se provaram com interesse para a boa decisão da causa, designadamente, e no essencial, que:

I.Noutra ocasião, em data não concretamente apurada, A. apalpou a região genital de MF.

II. Através da conduta descrita em 5), agiu A. com o propósito concretizado de limitar a sua companheira M. na respetiva autodeterminação sexual, constrangendo-a a manter consigo ato de natureza sexual, encarando com indiferença o estado de debilidade física, e consequentemente, de maior fragilidade, em que a mesma se encontrava na altura.

3.º MOTIVAÇÃO DE FACTO
O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente as declarações do arguido, os depoimentos das testemunhas, a prova pericial e a prova documental produzida e examinada em audiência.

O critério de valoração da prova é o da livre apreciação, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

A factualidade provada em 1) a 14) baseou-se na conjugação do teor do assento de nascimento de MF constante de fls. 113 e ss com as declarações do arguido e da assistente, que se referiram de forma praticamente convergente e convicta a esta factualidade.

Na verdade, o arguido confirmou o circunstancialismo espácio-temporal em que ocorreram os factos e descreveu alguns dos episódios ocorridos tanto na constância do relacionamento análogo ao dos cônjuges, como na vivência em comum com MF, descritos no libelo acusatório – designadamente, as concretas expressões que dirigiu à vítima M, as agressões físicas perpetradas na mesma e na sua filha MF (ainda que tenha referido que se limitou a desferir em empurrão nas mesmas com o escopo de a afastar) e ainda os abusos sexuais infligidos à última (tendo, contudo, negado ter apalpado a região genital da mesma).

Sem prejuízo da sua confissão parcial, as declarações do arguido denotaram algumas obscuridades e incoerências, evidenciando resistência em relatar com rigor os episódios vivenciados: seja pela natural tendência humana de procurar minimizar a sua responsabilidade e a gravidade dos comportamentos assumidos quando confrontado com a necessidade de os assumir publicamente, seja pelo condicionamento da capacidade da sua memória em virtude dos efeitos dos seus comportamentos aditivos (considerando que a própria vítima M. asseverou que os comportamentos ilícitos do arguido ocorriam precisamente após o mesmo ter ingerido relevante quantidade de bebidas alcoólicas).

Daí que tenha sido decisivo o depoimento da vítima M, que confirmou, praticamente na íntegra, os factos descritos na acusação pública, com exceção de aspetos pontuais que constam do elenco dos factos não provados. Este depoimento mereceu total credibilidade face à notória espontaneidade, sinceridade e objetividade com que descreveu o desenrolar de todos os acontecimentos e à coincidência da sua descrição com os relatos do próprio arguido (na parte anteriormente aludida). Aliás, a ofendida referiu até factos que de algum modo favorecem a posição do arguido, designadamente que as atuações do mesmo ocorriam geralmente quando se encontrava embriagado e que as ofensas à integridade física ocorreram como reação a comportamentos das vítimas, ainda que a atuação das ofendidas fosse perfeitamente lícita.

Efetivamente, a testemunha M, companheira do arguido, apesar desta relação de proximidade e do seu envolvimento na causa (enquanto vítima), revelou imparcialidade no depoimento que prestou e fez um relato dos factos que a que assistiu absolutamente convincente e credível. Neste contexto, foi particularmente impressivo o modo como esta testemunha demonstrou cingir-se no seu depoimento aos factos que efetivamente vivenciou e presenciou, afirmando, designadamente que “ouviu dizer” que a sua filha referiu ao perito médico que o arguido lhe apalpou a zona genital quando foi sujeita ao exame médico-legal – o que realmente avulta da análise do relatório pericial de fls. 57 e ss, cuja autenticidade e veracidade de conteúdo não foi, por qualquer modo, posta em causa -, mas que nunca verificou pessoalmente a ocorrência destes factos. Daí que, tendo o arguido negado esta factualidade e não ressaltando do mencionado relatório pericial a existência de quaisquer vestígios objetivos destes abusos (cfr. conclusões vertidas a fls. 59 dos autos), se tenha considerado como não provada esta factualidade (cfr. facto não provado I).

Acresce que, M. explicou igualmente de forma natural e credível as particularidades do relacionamento de cariz mais íntimo que mantinha com o arguido, esclarecendo que o mesmo normalmente “curtia a sua bebedeira” no sofá, que ia ter com ela à cama que partilhavam já tarde (“às vezes já às 4 horas da manhã”), que “levava o que queria” (referindo-se ao ato sexual) e que se voltava a afastar após este relacionamento mais íntimo. Mais referiu que normalmente dormia virada de costas para o arguido em virtude da dificuldade que tinha em suportar alguns dos seus odores corporais.

Neste contexto, e uma vez que M. explicou que no circunstancialismo referido em 5) e 6) o arguido, apesar de ter conhecimento do seu estado de saúde, se aproximou da mesma com o escopo de manterem relações sexuais, mas se afastou quando, imediatamente após a penetração, se apercebeu a oposição da mesma, considera-se que existe fundamento para crer que o seu propósito seria simplesmente manter relações sexuais com a sua companheira nos moldes que, de acordo com a descrição da vítima, pareciam ser os habituais, e não necessariamente limitar a sua companheira M. na respetiva autodeterminação sexual, constrangendo-a a manter consigo ato de natureza sexual, encarando com indiferença o estado de debilidade física, e consequentemente, de maior fragilidade, em que a mesma se encontrava na altura.

Nesta conformidade, tendo em atenção o princípio do in dubio pro reo, o Tribunal não poderia deixar de dar como não provada esta factualidade (cfr. facto não provado II).

Mais cumpre salientar que o atestado médico de incapacidade junto aos autos a fls. 189, documento que se afigura ser manifestamente idóneo, revela que a vítima MF é portadora de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 82% (oitenta e dois por cento), mas não esclarece se essa incapacidade a impede de oferecer oposição ou resistência às investidas do arguido. Aliás, a própria mãe revelou desconhecer se existe este nexo de causalidade, pelo que não tendo a perícia médica realizada abarcado esta factualidade, nem tendo sido produzido qualquer outro elemento probatório neste sentido, considera-se que somente se demonstra que não se registou qualquer oposição desta vítima e que a sua debilidade, naturalmente, à luz das regras da experiência comum, condiciona a sua capacidade de manifestar esta oposição (cfr. facto provado 14); desconhecendo-se se a mesma tinha eventualmente incapacidade para apreender o alcance dos atos sexuais perpetrados pelo arguido.

Os factos subjetivos provados em 15) a 17), porque insuscetíveis de prova direta, dada a sua natureza, extraem-se dos factos objetivos provados, que, tendo em conta as regras da experiência comum e com base em presunção natural, permitem de forma segura inferir tal factualidade.

A factualidade provada em 18) a 33), respeitante às condições sócio económicas e familiares do arguido, alicerçou-se nas declarações do mesmo, que foram, no essencial, corroboradas pelo depoimento da testemunha M, coonestada com a análise do relatório social reproduzido a fls. 165 e ss.

A ausência de antecedentes criminais do arguido, factualidade provada em 34), resulta do teor do Certificado de Registo Criminal do arguido junto a fls. 145.

Os factos não provados resultaram de não ter sido produzida qualquer prova sobre esta matéria, nos moldes anteriormente explanados”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

O recorrente considera que o acórdão revidendo enferma do vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, porquanto os factos provados estão em oposição com a fundamentação do acórdão e esta está em contradição com a decisão.

Isto porque se deu como provado que a ofendida MF é portadora de uma deficiência, o que condiciona a sua capacidade de se opor às investidas do arguido, e que é portadora de deficiência que condicionava a sua capacidade de oferecer resistência ao arguido.

Porém, da fundamentação da decisão fáctica consta que o atestado médico de incapacidade revela que a ofendida MF é portadora de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 82%, mas não esclarece se essa incapacidade a impede de oferecer resistência às investidas do recorrente, sendo que a própria mãe (a ofendida M) revelou desconhecer tal circunstância, pelo que, não tendo a perícia médica abarcado esta factualidade, nem tendo sido produzida qualquer outra prova nesse aspeto, deve considerar-se que apenas se demonstra que a ofendida em causa não registou qualquer oposição aos atos do arguido, desconhecendo-se se a mesma tinha ou não capacidade para apreender o alcance dos atos sexuais perpetrados pelo recorrente.

Por isso, se a ofendida MF é incapaz, mas não se demostrou que essa incapacidade a impediu (ou não) de dar o seu consentimento aos atos perpetrados pelo recorrente, deverá este ser absolvido, não podendo, nesta sede (capacidade/incapacidade), recorrer-se à prova por presunção judicial (às regras da experiência).

Cumpre apreciar e decidir.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ocorre quando se dá como provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando, simultaneamente, se dão como provados factos contraditórios.

No dizer de Simas Santos e Leal Henrique (in “Recursos em Processo Penal”, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 75), existe contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão quando ocorre “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”.

Referem os mesmos autores (ob. e local citados) que “há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada”.

Só pode falar-se no vício da contradição insanável da fundamentação, quando um determinado facto provado seja logicamente contraditório com outro dado factual que serviu de base à decisão final ou quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida por haver colisão entre os fundamentos.

Ora, lendo o acórdão revidendo, verificamos que nenhuma razão assiste ao recorrente quando invoca a existência do apontado vício, pois a conjugação da factualidade provada com a fundamentação (e com a subsequente decisão) é totalmente coerente.

Há que concretizar (com sublinhados nossos).

No facto provado nº 14 consta: “MF, nascida a 31 de Março de 1973, é portadora de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 82% (oitenta e dois por cento), o que condiciona a sua capacidade de se opor às investidas de A.”.

Por sua vez, no facto provado nº 16 escreve-se: “com as condutas descritas em 7), 11) e 13) pretendeu A. molestar o corpo e a saúde da MF, bem como de a constranger a contacto de natureza sexual, o que conseguiu de todas as vezes, ciente de que a mesma era (e é) portadora de deficiência que condicionava a sua capacidade de lhe oferecer resistência”.

Por último, em sede de fundamentação da decisão fáctica refere-se: “mais cumpre salientar que o atestado médico de incapacidade junto aos autos a fls. 189, documento que se afigura ser manifestamente idóneo, revela que a vítima MF é portadora de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 82% (oitenta e dois por cento), mas não esclarece se essa incapacidade a impede de oferecer oposição ou resistência às investidas do arguido. Aliás, a própria mãe revelou desconhecer se existe este nexo de causalidade, pelo que não tendo a perícia médica realizada abarcado esta factualidade, nem tendo sido produzido qualquer outro elemento probatório neste sentido, considera-se que somente se demonstra que não se registou qualquer oposição desta vítima e que a sua debilidade, naturalmente, à luz das regras da experiência comum, condiciona a sua capacidade de manifestar esta oposição (cfr. facto provado 14); desconhecendo-se se a mesma tinha eventualmente incapacidade para apreender o alcance dos atos sexuais perpetrados pelo arguido”.

Perante o que se deixou assim consignado no acórdão revidendo, constata-se que se deu como provado que a ofendida MF é portadora de uma deficiência, a qual, muito embora não especificamente caracterizada, a condiciona, e não se deu como provado se tal deficiência a incapacita (ou não) para reagir às investidas do arguido.

Por isso é que, na caracterização do elemento subjetivo, o tribunal a quo se limita a dizer (facto provado nº 16) que o arguido estava “ciente de que a mesma era (e é) portadora de deficiência que condicionava a sua capacidade de lhe oferecer resistência”.

Neste ponto, na estrita medida da conclusão assim obtida e explicitada, e ao contrário do que alega o recorrente, o julgador pode (e deve) socorrer-se das chamadas presunções naturais, que lhe permitem retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.

Tais presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência. Ou seja: o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto.

Como lapidarmente refere o Prof. Vaz Serra (in “Direito Probatório Material”, BMJ, nº 112, pág. 190), “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (...) ou de uma prova de primeira aparência".

A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente, certos factos são a consequência de outros.

Assim sendo, e no caso dos autos, na passagem do facto conhecido (deficiência da ofendida MF) para a aquisição (para a prova) do facto não conhecido ou não diretamente provado (o arguido estava ciente de que a deficiência da referida ofendida “condicionava a sua capacidade de lhe oferecer resistência”) existe uma probabilidade próxima da certeza (isto é, para além de toda a dúvida razoável).

Aliás, no fundo e bem vistas as coisas, o recorrente (ainda que subliminarmente - ou, pelo menos, não expressamente -) quer passar a ideia de que, in casu, ocorreu um consentimento presumido da ofendida MF (que não se sabe se teria ou não capacidade para o dar).

Contudo, tal ideia (do consentimento da vítima) é totalmente desmentida, além do mais, pelo facto de o arguido, quando beijou, na boca, a ofendida MF, ter sentido necessidade de lhe prender “as mãos junto ao corpo, colocando as suas próprias mãos sobre as dela” (cfr. facto provado nº 8, não questionado na motivação do recurso).

Mais: dos autos resulta que a ofendida MF sofre de paralisia cerebral, com consequências ao nível da sua compreensão oral (cfr. relatório pericial junto de fls. 57 e 59), que, em conformidade, tem uma incapacidade de 82% (cfr. atestado de incapacidade junto a fls. 197), e, como é óbvio (pois resulta das mais elementares regras da experiência comum), tudo isso condiciona, necessariamente, o seu relacionamento com os outros e a sua reação a atitudes que adotem para consigo (nomeadamente atitudes de conotação e relevo sexuais).

Em resumo: os factos dados como provados no acórdão sub judice não se mostram incompatíveis com a circunstância de não ter sido apurado se a ofendida MF tinha (ou não) real (in)capacidade para apreender o alcance dos atos sexuais e de neles consentir ou não, pois o que de relevante ficou assente, nesta matéria, é que o arguido estava ciente de que a deficiência da referida ofendida “condicionava a sua capacidade de lhe oferecer resistência”.

Não ocorre, pois, o invocado vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (artigo 410º, nº 2, al. b), do C. P. Penal), o qual sempre teria de resultar do próprio texto do acórdão recorrido (por si só ou conjugado com as regras da experiência comum), não se confundindo tal vício, como é consabido, com a impugnação alargada da matéria de facto (com o devido respeito, o recorrente parece esquecer essas diferenças, porquanto parece pretender que este tribunal ad quem julgue certa factualidade de modo diferente do efetuado no tribunal de primeira instância, sem, contudo, dar cumprimento, minimamente, ao preceituado no artigo 412º, nºs 3 e 4, do C. P. Penal).

Por conseguinte, é de improceder toda esta primeira vertente do recurso interposto pelo arguido (ocorrência do vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão).

b) Do enquadramento jurídico-penal dos factos.

Alega o recorrente que os factos considerados provados no acórdão revidendo, relativamente à ofendida MF, não são suscetíveis de integrar o tipo legal de crime de violência doméstica pelo qual foi condenada em primeira instância (relativamente a tal ofendida).

Cabe decidir.

Sob a epígrafe “violência doméstica”, dispõe o artigo 152º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na vigente redacção:

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a)Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.

O crime de violência doméstica é muito mais que a soma dos diversos ilícitos que o podem preencher, não sendo as condutas que integram o tipo consideradas autonomamente, mas antes valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador daquele crime.

Assim, a pedra de toque da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida.

O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é, pois, plural e complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana.

Como bem se assinala no Ac. deste T.R.E. de 08-01-2013 (relator João Gomes de Sousa, in www.dgsi.pt), o crime de violência doméstica “pode criar uma relação de concurso aparente de normas com outros tipos penais, designadamente as ofensas corporais simples (artigo 143º, nº 1 do Código Penal), as injúrias (artigo 181º), a difamação (artigo 180º, nº 1), a coação (artigo 154º), o sequestro simples (artigo 158º, nº 1), a devassa da vida privada (artigo 192º, nº 1, al. b)), as gravações e fotografias ilícitas (artigo 199º, nº 2, al b))”, devendo fazer-se apelo à imagem global do facto, o que pressupõe, no “polo objetivo, uma agressão ou ofensa que revele um mínimo de violência sobre a pessoa inserida em relação, e, subjetivamente, uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo, o reflexo negativo e sensível na dignidade da vítima, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual”.

Revertendo ao caso dos autos, e como se reconhece, expressamente, na motivação do recurso (cfr. conclusão 6ª extraída de tal motivação), ficou provado que o arguido, em 2007, apalpou os seios a MF, em 2011 beijou-a na boca, e, em 2014, desferiu-lhe um soco na testa, sem haver necessidade de receber tratamento médico.

Mais ficou provado que o arguido apalpou os seios da ofendida em causa aproveitando-se do facto de esta estar debruçada sobre o lavatório da casa de banho, enquanto cuidava da sua higiene pessoal, que o arguido beijou e mesma ofendida na boca enquanto lhe prendia as mãos junto ao corpo, colocando as suas próprias mãos sobre as dela, e que o arguido desferiu um soco na testa da ofendida visando impedir que ela ajudasse a sua mãe enquanto esta era insultada e agredida pelo arguido.

Na perspetiva do recorrente, estas condutas não podem considerar-se como atos violentos, por forma a traduzirem crueldade ou insensibilidade, nem ofendem a integridade física e/ou psíquica da ofendida MF de um modo especialmente desvalioso, nem traduzem uma conduta maltratante especialmente intensa ou uma relação de domínio que a deixou em situação degradante ou em estado de agressão permanente.

Com o devido respeito por tal opinião, a mesma é indefensável e até manifestamente despropositada.

Na verdade, e tendo também em conta a deficiência da ofendida MF, que o arguido bem conhecia, é, para nós, totalmente claro que os referidos atos do arguido traduzem uma ofensa à integridade física e psíquica da dita ofendida que é especialmente desvaliosa, pois revelam uma conduta maltratante muito intensa, e deixam transparecer, com nitidez, agressões repetidas, degradantes e humilhantes.

Globalmente apreciados e valorados os atos do arguido para com a ofendida MF, consideramos, sem dúvidas ou hesitações, que esses atos possuem uma gravidade e uma importância tais que colocam a ofendida numa situação inconciliável com a dignidade própria de qualquer ser humano (e, em breve súmula, no crime de violência doméstica tutela-se, bem vistas as coisas, a dignidade humana da vítima).

Aliás, no crime de violência doméstica não se exige a prática habitual dos atos ou a repetitividade das condutas, porquanto o normativo acima transcrito (artigo 152º do Código Penal) prevê tanto situações repetitivas ou plúrimas como situações de natureza una.

Em conclusão: a conduta do arguido para com a ofendida MF integra a previsão do crime de violência doméstica, pelo qual está condenado no acórdão revidendo.

Improcede, por isso, também neste ponto, o recurso do arguido.

c) Da medida concreta das penas.
Discorda o recorrente das penas aplicadas (penas parcelares e pena única), entendendo que o foram em medida excessiva.

Há que decidir.

O arguido foi condenado pela prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, als. b) e d), e nº 2, do Código Penal, crimes esses que são puníveis, em abstrato, com pena de prisão de dois a cinco anos.

É de acordo com o disposto no artigo 71º do Código Penal que há de fazer-se a pertinente determinação da pena em concreto adequada.

Dispõe o artigo 71º, nº 1, do Código Penal que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

Vários modelos têm surgido para solucionar a questão de saber a forma como estas entidades distintas (culpa e prevenção) se relacionam no processo unitário da medida da pena.

De todo o modo, face ao disposto no artigo 40º, nº 1, do mesmo Código Penal, as finalidades da punição são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

A medida da pena há de, primordialmente, ser dada por considerações de prevenção geral positiva, isto é, prevenção enquanto necessidade de tutela dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expetativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida, que fornece uma “moldura de prevenção”, isto é, que fornece um “quantum” de pena que varia entre um ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se até atingir o limiar mínimo abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.

A culpa - juízo de apreciação, de valoração, que enuncia o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser do ponto de vista da validade lógica e da moral ou do direito, conforme se expendeu no acórdão do S.T.J. de 10-04-1996 (in C.J., Acs. S.T.J., ano IV, tomo II, pág. 168) - constitui o limite inultrapassável da medida da pena, funcionando assim como limite também das considerações preventivas (limite máximo), ligada ao princípio de respeito pela dignidade da pessoa do agente.

Como muito bem salienta o Prof. Figueiredo Dias (in “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 3, 2º a 4º, Abril-Dezembro de 1993, págs. 186 e 187), o modelo de determinação da medida concreta da pena consagrado no Código Penal vigente “comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida ótima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente”.

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva - entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável -, podem e devem atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.

Ainda, no dizer da Prof.ª Fernanda Palma (in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, ed. 1998, AAFDL, pág. 25), “a proteção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A proteção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial”.

Como bem refere o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, ed. 1993, pág. 214), “culpa e prevenção são assim os dois termos do binómio com auxílio do qual há de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito ou de determinação concreta da pena)”.

No caso dos autos, a prevenção geral, no sentido de prevenção positiva (ou seja, no dizer do Prof. Figueiredo Dias - ob. agora citada, pág. 72 - o “reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida”), faz-se sentir de forma premente e clara. Com efeito, este tipo de criminalidade (violência doméstica) tem sido fonte de crescente alarme social, dadas as suas nefastas consequências para as vítimas e para a sociedade em geral, pelo que grandes são as necessidades de prevenção geral agora em análise.

Também ao nível da prevenção especial, entendida como dissuasão do próprio delinquente, as necessidades reveladas são elevadas, ponderando o modo de execução dos factos, o prolongado tempo de execução, e a postura revelada pelo arguido perante os atos que ia praticando.

Ora, ponderando todos estes elementos, e atendendo à medida abstrata da pena aplicável (pena de prisão de 2 a 5 anos), afigura-se-nos que as penas aplicadas no acórdão revidendo (3 anos e 6 meses de prisão relativamente ao crime em que é ofendida M, e 3 anos de prisão no tocante ao crime em que é ofendida MF) o foram em medida justa e correta: sensivelmente a meio da moldura penal abstratamente aplicável.

Conclui-se, assim, que a medida concreta das penas (parcelares) não é excessiva, ao contrário do que alega o recorrente (não se mostrando violado, por conseguinte, o disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal).
*
Importa, por último, aquilatar da pena única encontrada (5 anos de prisão).

A moldura abstrata da pena do concurso tem como limite máximo a soma das penas de prisão concretamente aplicadas aos vários crimes (não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e 900 dias, tratando-se de pena de multa), e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77º, nº 2, do Código Penal).

No caso destes autos, o limite máximo da pena a ponderar é de 6 anos e 6 meses de prisão (soma das penas parcelares aplicadas ao recorrente), e o limite mínimo dessa mesma pena é de 3 anos e 6 meses de prisão (pena parcelar mais elevada).

Dentro da moldura abstrata assim encontrada, é determinada a pena do concurso, para a qual a lei estabelece que se considere, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º, nº 1, do Código Penal), sem embargo, obviamente, de ter-se também em conta as exigências gerais da culpa e da prevenção a que manda atender o artigo 71º, nº 1, do mesmo Código Penal, bem como os fatores elencados no nº 2 deste artigo, referidos agora à globalidade dos crimes (e porque aqui se atende a tais fatores referidos ao conjunto dos factos, enquanto que nas penas parcelares esses fatores foram considerados em relação a cada um dos factos singulares, intocado fica o princípio da proibição da dupla valoração).

Como bem salienta o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, ed. 1993, págs. 291 e 292), tudo deve passar-se, por conseguinte, “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade; só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.

No caso, é acentuada a gravidade do ilícito global (além do mais, os factos praticados pelo arguido e ora em apreciação ocorreram num período de tempo que decorre durante vários anos).

No contexto da personalidade unitária do arguido, os elementos conhecidos permitem dizer que a globalidade dos factos é reconduzível a um desvalor que radica, claramente, na personalidade (do arguido), manifestamente desconforme aos valores sociais que o direito penal tutela.

Pelo que fica exposto, e tendo também em devida conta os elementos diretamente conexionados com as condições de vida do arguido, tem-se como adequada a pena única fixada em primeira instância - 5 (cinco) anos de prisão (no ponto médio da moldura do cúmulo).

Face a tudo quanto fica dito, e nesta parte (medida concreta das penas), soçobra, pois, o recurso do arguido.

d) Da pena acessória de proibição de contacto com a ofendida.

Alega o recorrente que a aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a ofendida M. é injustificada e desajustada.

Cabe decidir.
Dispõe o artigo 152º, nº 4, do Código Penal: “nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica”.

A pena acessória de proibição de contacto com a vítima, que pode incluir o afastamento do arguido da residência ou do local de trabalho da mesma, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância (tal como previsto no nº 5 do referido artigo 152º do Código Penal), e como resulta da sua própria natureza, não visa, em primeira linha, finalidades de natureza retributiva, pretendendo, sobretudo, dar satisfação a exigências preventivas, ligadas, por um lado, à necessidade da efetiva proteção da vítima, e, por outro lado, à tentativa de o arguido mudar o rumo da sua vida, de modo a não repetir a prática de atos da mesma natureza.

A propósito da aplicação dessa pena acessória, escreve-se no acórdão recorrido: “consideramos que a proibição do contacto com a vítima M. garantirá a efetiva cessação das condutas delituosas e promoverá o esforço desenvolvido pelo arguido no sentido de reorganizar a sua vida de forma autónoma ao contexto relacional com esta sua companheira que propicia a perpetração dos ilícitos na pessoa da mesma e da respetiva filha dependente”.

Subscrevemos, inteiramente, esta argumentação.

Com efeito, face à matéria de facto dada como provada, à reiteração da conduta do arguido, naturalmente debilitadora da saúde física e psíquica da ofendida M, justifica-se, plenamente, a aplicação da referida pena acessória, por forma a garantir a defesa, no futuro, da pessoa da vítima.

Além disso, só o afastamento do arguido da ofendida permitirá, cabalmente, que o mesmo “mude de vida”, não cometendo, de novo, ilícitos da mesma natureza da dos agora em apreciação.

Assim sendo, é de improceder, também nesta vertente, o recurso do arguido.

e) Dos montantes indemnizatórios.
Alega o recorrente que deve ser absolvido da indemnização civil arbitrada à ofendida MF, porquanto deve ser absolvido do crime de violência doméstica perpetrado sobre tal ofendida.

Mais entende o recorrente que as quantias arbitradas, no acórdão revidendo, a título de indemnização, são exageradas, não devendo exceder os 400 euros para cada uma das ofendidas, sobretudo atendendo às parcas condições económicas do próprio recorrente.

Cumpre decidir.

O conhecimento da primeira questão suscitada (a pretendida absolvição da indemnização civil arbitrada à ofendida MF) está prejudicado pelo já acima decidido (o arguido cometeu um crime de violência doméstica relativamente à aludida ofendida).

Resta, por isso, apreciar a segunda questão apontada (montantes das indemnizações atribuídas a ambas as ofendidas).

Sob a epígrafe “danos não patrimoniais”, estabelece o artigo 496º do Código Civil:

1 - Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.

4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores”.

Por sua vez, dispõe o artigo 494º do mesmo diploma legal que a indemnização deve ser fixada equitativamente, tendo em consideração o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

À luz destes preceitos legais, e em primeiro lugar, cumpre dizer que, na ponderação do quantum indemnizatório a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais, não deve esquecer-se o ensinamento constante do Ac. do S.T.J. de 16-12-93 (in C.J., 1993, Tomo 3, pág. 181): “a indemnização por danos não patrimoniais deve ser correta, e a compensação por danos não patrimoniais deve tender, efetivamente, a viabilizar um lenitivo ao lesado, já que tirar-lhe o mal que lhe foi causado, isso, neste âmbito, já ninguém e nada consegue! Mas - “et por cause”- a compensação por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico”.

Em segundo lugar, também não deve esquecer-se o ensinamento de Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, 1º vol., pág. 499): “a gravidade do dano há de medir-se por um padrão objetivo, e não à luz de fatores subjetivos - de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada -”.

Por último, e a nosso ver, o montante da compensação por danos não patrimoniais deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades.

A reparação por danos não patrimoniais reveste uma natureza mista: por um lado, visa compensar, de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pelos lesados, e, por outro lado, pretende reprovar ou castigar, no plano civilístico, com os meios adequados do direito privado, a conduta dos causadores da lesão (cfr., neste mesmo sentido, Prof. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 3ª ed., 1980, Vol. I, pág. 502).

Ora, voltando ao caso concreto posto nestes autos, e no que respeita à condição do lesante e das lesadas, ficou apurado no acórdão recorrido o seguinte (cfr. factos provados nºs 25 a 28):

- As ofendidas recebem pensões de reforma de muito baixo montante (pouco mais de 300 euros mensais).

- A ofendida MF não possui autonomia de vida, do ponto de vista económico-financeiro, vivendo com a mãe (a ofendida M).

- Residem numa casa de habitação social, situada numa zona onde existem várias problemáticas sociais.

- O arguido é também reformado, auferindo uma pensão de reforma de cerca de 360 euros por mês, mas possui ainda possibilidades e perspetivas de trabalho (como trabalhador rural - como decorre do facto provado no acórdão revidendo sob o nº 33 -).

No que concerne à gravidade do dano causado às ofendidas, ficou provado que, durante vários anos, o arguido, dolosamente, as agrediu, na sua integridade física e psíquica, perturbando-as seriamente, e na sua própria casa.

Como bem se escreve no acórdão revidendo, “no caso em análise estamos perante a prática de crimes dolosos, em que o grau de culpa do agente se mostra muito elevado e em que as suas consequências não se podem deixar de se considerar como muito relevantes”.

Ponderando todos os elementos referidos, entende este tribunal de recurso não serem excessivos os montantes de 1.200 euros e de 1.000 euros fixados no acórdão revidendo para compensação dos danos não patrimoniais sofridos, respetivamente, pelas ofendidas M. e MF.

Tais montantes (de 1.200 euros e de 1.000 euros) não nos merecem, posto tudo o que precede, a censura que o recorrente lhes dirige.

Assim, também neste aspeto o recurso é de improceder.

Nada há, por conseguinte, a apontar à decisão da primeira instância nos concretos aspetos suscitados no presente recurso ou em aspetos que sejam do conhecimento oficioso deste Tribunal da Relação.

Também não nos compete corrigir, por tal correção carecer de sentido prático ou de alcance decisório (ou seja, ser um ato inútil, e, por isso, não devendo ser praticado), o segmento do texto que, por puro lapso, consta da fundamentação jurídica da decisão da primeira instância, a fls. 216 dos autos (pág. 17 do acórdão revidendo), onde se alude a “diversas ameaças”, “comportamentos intimidatórios” e “recurso ao uso de arma de fogo”.

Na verdade, tais manifestos lapsos em nada relevaram para a decisão da primeira instância (que, ao que pensamos, trabalhou o texto, informaticamente, em cima de um texto anterior, esquecendo-se de o eliminar nesse segmento) e em nada relevaram para a decisão deste tribunal ad quem.

E, por isso, tais menções, respeitando a processo diferente e tendo sido irrelevantes para a decisão (como o foram - quer em primeira instância, quer nesta instância recursória -), devem, pura e simplesmente, ter-se como não escritas, nada mais havendo a ponderar ou a decidir nessa matéria.

Posto tudo o que precede, é de manter o que foi “decidido” em primeira instância, improcedendo totalmente o recurso.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se, consequentemente, o douto acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 29 de novembro de 2016

João Manuel Monteiro Amaro


Maria Filomena de Paula Soares