Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4003/19.3T8FAR-C.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
Data do Acordão: 06/06/2022
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Sumário:
1 - No incidente de levantamento do dever de sigilo bancário impõe-se dar prevalência ao interesse preponderante, mediante um juízo casuístico, considerando em concreto os contornos do litígio.
2 – Só a ponderação dos interesses em confronto, por um lado o interesse tutelado pelo segredo bancário e por outro o interesse na boa realização da justiça, permite resolver esse conflito de interesses.
3 – Para tanto há que ter em conta, nomeadamente, o pedido, a causa de pedir, o objecto do litígio, os temas de prova, bem como os ónus probatórios, de modo a concluir pela verificação dos fundamentos excepcionais que justificam ordenar a quebra do sigilo bancário.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
I – RELATÓRIO
O autor, F. instaurou acção contra A. e “Década d’Aplausos, Lda., pedindo que seja declarada a nulidade de uma escritura de compra e venda de dois imóveis, que identifica, e seja ele autor declarado o único e legítimo proprietário das fracções autónomas a que se refere essa escritura, ou em alternativa sejam os Réus condenados a pagarem-lhe solidariamente o montante de €108.050, correspondente ao preço total atribuído às fracções autónomas que foram objecto do negócio.
Alega para tanto, em resumo, que a escritura citada foi outorgada pelo primeiro réu na qualidade de procurador do próprio autor, dono e vendedor desses imóveis, e também pelo mesmo réu como legal representante da compradora, a segunda ré.
Consta da escritura que os dois imóveis foram vendidos pelo preço total de €108.050 e €38.000 e o pagamento foi efectuado e recebido na data da escritura, através de cheque do Banco Comercial Português.
Porém, nessa data já o autor tinha revogado a procuração que permitiria ao primeiro réu fazer aquela venda em sua representação, tendo ele agido à revelia e contra a vontade do autor, que nunca recebeu quaisquer quantias provenientes da venda das referidas fracções.
Prossegue o autor dizendo (artigos 68º, 69º e 70º da petição) que na verdade nem o 1º Réu quis vender à 2ª Ré nem esta quis comprar as fracções, não tendo o 1º Réu recebido o dinheiro nem a 2ª Ré pago o preço declarado na escritura de compra e venda, no montante de 108.050,00€ (cento e oito euros e cinquenta cêntimos); e que na realidade o 1º Réu quis subtrair as fracções ao património do Autor, integrando-as, de forma gratuita no património da 2ª Ré, em benefício desta, dos seus sócios e do próprio 1º Réu; e ainda que os Réus acordaram entre si ocultar a doação com a compra e venda formalizada pela escritura pública de 23 de Março de 2018.
Em contestação, o réu A. defendeu-se tanto por impugnação como por excepção, deduzindo ainda reconvenção. Alegou nomeadamente que os prédios em causa sempre foram seus, e que só estiveram em nome do autor, seu filho, por conveniências familiares.
Quanto à factualidade acima referida, constante dos arts. 68º, 69º e 70º da petição, o réu impugnou-a expressamente no art. 58º da sua contestação.
Em sede de despacho saneador, a Juíza do processo consignou que era objecto do litígio, além do mais, “apreciar se o negócio jurídico consubstanciado na escritura pública de compra e venda de 23/3/2019 padece de ineficácia em relação ao autor, em virtude de ter sido celebrado com base em procuração falsa. Em alternativa, caso se apure que o negócio foi validamente celebrado, mas sem que fosse pago o respetivo preço, há que apreciar o direito do autor obter dos réus o pagamento da quantia por ele reclamada.”
E consequentemente foi incluído entre os temas da prova, além do mais, os de saber se o réu apenas pretendeu subtrair as frações ao património do autor, integrando-as gratuitamente no património da 2.ª ré, em benefício de si próprio e dos sócios daquela sociedade e se o réu entregou ao autor o preço recebido por aquelas vendas (números 4 e 5).
Pronunciando-se sobre os requerimentos de prova, foi deferido o que tinha sido requerido pelo autor no final da sua petição inicial, quanto ao pedido de informação ao Banco sobre o cheque aludido como meio de pagamento no negócio controvertido, ordenando-se que se oficiasse ao BCP nos termos pretendidos pelo autor:
(“Mais se Requer a V. Exa. que seja oficiado o Banco Comercial Português, S.A. no sentido de esclarecer os autos se o cheque com o número nove dois cinco um dois dois zero nove quatro nove, no montante de 108.050,00€ (cento e oito mil e cinquenta euros) foi debitado da respectiva conta, identificação do seu titular e qual a conta para onde foi creditado e respectivo titular.”
Tendo sido oficiado nos precisos termos referidos, o Banco destinatário veio a responder, invocando o sigilo profissional bancário, dizendo em suma que a “instituição só está habilitada a prestar informações e elementos, que conheça pelo claro exercício da sua atividade, caso se verifiquem as exceções legais ao segredo profissional bancário, previstas no nº2 do artº79 do Decreto Lei nº298/92 de 31 de Dezembro, na redação introduzida pelo Dec.Lei nº201/2002 de 26 de Setembro, ou caso esteja devida e licitamente autorizado pelos seus clientes, nos termos do nº1 do artº79 do referido decreto lei”, pelo que só poderia dar seguimento ao pedido “havendo autorização por parte do titular da conta sobre a qual foi emitido o cheque referenciado”.
Em face da comunicação do Banco, o autor veio então requerer que, fazendo-se a necessária notificação dos Réus para que estes concedessem a autorização e caso estes recusassem ou nada dissessem, fosse aberto incidente de quebra de segredo profissional bancário nos termos do disposto no artigo 135.º, n.º 3 do CPP, aplicável por força do disposto no artigo 417.º, n.º 4 do CPC.
Não tendo sido obtida a autorização referida, a Meritíssima Juíza proferiu então despacho suscitando o presente incidente de dispensa de sigilo bancário, com vista à obtenção dos elementos solicitados, consignando que se lhe afigurava essencial a obtenção de tais elementos, pese embora a legitimidade da recusa face aos deveres de sigilo existentes.
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II - OS FACTOS
A factualidade a considerar na decisão é a que consta do relatório que antecede, para o qual remetemos, onde ficaram expostos todos os elementos necessários para conhecer do incidente em apreço.
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III - O DIREITO
A Senhora Juíza do processo pronunciou-se sobre a questão a decidir, nos seguintes termos:
Nos presentes autos afigura-se essencial apurar se o cheque bancário com o n.º 9251220949, no montante de € 108 050,00 (cento e oito mil e cinquenta euros) foi efetivamente levantado da respetiva conta, a identificação do respetivo titular e para qual conta foi creditado e respetivo titular.
Tais elementos afiguram-se de extrema relevância por forma a apurar se as partes intervenientes no contrato de compra e venda celebrado no Cartório Notarial da Sertã no dia 23 de março de 2018 quiseram, efetivamente, transmitir as fracções em causa ou se, como é alegado, apenas pretenderam subtraí-las ao património de F., integrando-as, gratuitamente, no património da sociedade DÉCADA D´APLAUSOS, beneficiando esta sociedade e seu pai, A..
Na ponderação dos interesses em causa, considera-se que o interesse da realização da justiça e o dever de colaboração com as autoridades judiciárias tem um valor manifestamente superior ao da manutenção de uma relação de confiança entre a entidade bancária e o seu cliente, impondo-se a quebra do sigilo invocado.
Em face dos pedidos deduzidos, da causa de pedir, do objecto do litígio e dos temas da prova, concordamos com a primeira instância e perfilhamos o entendimento exposto.
As informações pretendidas são realmente essenciais à boa decisão da causa nos autos em que foi suscitado o incidente, e no caso concreto o interesse da administração da justiça deve prevalecer sobre os interesses protegidos pelo sigilo bancário, que se reconhecem existir mas que aqui excepcionalmente deve ceder.
Com efeito, o Banco baseou a sua recusa em prestar as informações pedidas no art. 78º nº 2 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, o qual impõe o dever de segredo a todos os que prestem serviços nas instituições de crédito, considerando como tal “designadamente, (…) os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias”.
Como se sabe, o dever de sigilo bancário é uma manifestação do direito à reserva da vida privada, direito este constitucionalmente garantido nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 26º da Constituição da República Portuguesa.
Para garantia de protecção desses direitos de personalidade o legislador comum estabeleceu mesmo a criminalização das condutas violadoras dos deveres de sigilo (a revelação de informações cobertas pelo dever de sigilo importa responsabilidade criminal - cfr. art. 195º do Código Penal).
O Banco detentor das informações solicitadas só pode, pois, aceder ao pretendido pelo tribunal verificando-se o consentimento do visado ou as excepções contempladas na lei.
Na verdade, o mesmo legislador não concebeu como absoluta a protecção desse direito ao sigilo, de forma a não comprometer outros interesses também eles merecedores de tutela constitucional, como é obviamente o caso do direito de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art. 20º nº 1 da CRP, e que se materializa muitas vezes na necessidade de obtenção de provas em processo judicial.
Ou seja, se por um lado a lei impõe o dever de colaboração para a descoberta da verdade por outro reconhece o direito de recusa em determinadas situações, nomeadamente quando a colaboração pedida implica a violação de sigilo profissional (cfr. art. 417º nº 3 al. c), CPC).
Nestes termos, apresenta-se clara a natureza excepcional da quebra do sigilo, e a necessidade da sua justificação casuística por meio de uma prudente ponderação dos interesses em conflito.
Recordamos que, perante a recusa de colaboração, “é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado” (nº 4 do art. 417º do CPC).
E o art. 135º do Código de Processo Penal dispõe por seu turno seguinte:
1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, (…), pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
Porém, no caso aqui em apreço pretende-se informação sobre se um determinado cheque, que segundo o autor foi utilizado para fingir o pagamento do preço mencionado numa escritura de compra e venda, dizendo ainda o autor que o mesmo nunca foi apresentado a pagamento.
São informações relativas a uma operação bancária, pelo que não se discute que estão abrangidas pelo dever de segredo bancário e que a escusa do Banco é legítima.
E verifica-se que os factos alegados pelo autor, e que a ele compete provar, por força da repartição do ónus da prova fixada no art. 342º nº 1 do Código Civil, são como dissemos essenciais à demonstração das razões dos seus pedidos.
Acresce que, obviamente, ele não pode fazer essa prova por outro meio, já que nenhum meio de prova se apresenta susceptível de substituir essa informação dos dados sujeitos a sigilo bancário (a não ser a confissão, mas esta não se apresenta nada provável, atenta a posição assumida na contestação e a própria falta de autorização ao banco para revelar a dita informação).
Por conseguinte, temos por comprovado que as informações solicitadas são necessárias à boa decisão da causa e que a quebra do sigilo bancário para o efeito pretendido se afigura imprescindível, atentos nomeadamente os temas de prova elencados na audiência preliminar, o objecto do litígio, e a própria repartição do ónus da prova.
Assim, e em consequência, cabendo a este Tribunal decidir sobre a dispensa do dever de sigilo, nos termos do nº 3 do art. 135º do CPP, não temos dúvidas em afirmar que o interesse na realização e boa administração da justiça deve aqui prevalecer sobre o interesse dos Réus em manter o sigilo sobre os seus hipotéticos movimentos bancários, ou a ausência deles.
Confrontando os interesses em colisão, nomeadamente o interesse subjacente ao segredo bancário e o interesse na realização da justiça, deve no caso dar-se prevalência a este.
A eventual lesão da esfera privada assim provocada afigura-se bem pequena em face do prejuízo resultante para a acção da justiça com a omissão das informações em causa.
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V - DECISÃO
Pelo que fica exposto, julgando-se verificados os pressupostos necessários, determina-se o levantamento do sigilo bancário no que toca à informação pedida nos autos ao BCP, ordenando-se a prestação da informação solicitada.
Custas do incidente a cargo dos Réus.
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Évora, 6 de Junho de 2022
O Relator,
José Lúcio