Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
831/14.4T8STR-G.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: LIQUIDATÁRIO JUDICIAL
REMUNERAÇÃO
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. A remuneração do liquidatário judicial, nomeado no período de vigência do CPEREF, deve ser fixada no final do processo, de acordo com as dificuldades vencidas e os resultados obtidos.
2. A remuneração global do liquidatário judicial apenas se vence no momento de cessação de funções, pelo que só nesse momento é possível a formulação de um juízo global sobre o seu desempenho e quantificar definitivamente a remuneração devida.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário: (…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Por sentença de 04-06-2002, foi decretada a falência de Empresa (…), Lda., e nomeada Liquidatária Judicial P….
Por despacho de 17-02-2003 foi fixada à Liquidatária Judicial a remuneração mensal de € 400,00, a suportar pelo CGT.
Nessa sequência, os cofres pagaram à Liquidatária Judicial, entre Março de 2003 e Dezembro de 2006, a quantia global de € 18.400,00.
Apenas foi apreendida uma verba para a massa insolvente, um imóvel que tinha um registo de alienação a terceiros.
Em 02-05-2003 foi proposta pela massa insolvente a acção de impugnação pauliana.
Em 28-02-2012 foi a instância suspensa nessa acção, face ao óbito de um dos RR..
A habilitação desse RR. foi requerida apenas em 08-02-2017 e a sentença de habilitação de herdeiros proferida em 30-01-2020.
Prosseguiu a instância na acção de impugnação pauliana e, após julgamento, foi proferida sentença, em 12-07-2021, julgando-a totalmente improcedente. Esta sentença transitou em julgado.
Em consequência, o apenso de liquidação do activo foi extinto, atenta a inexistência de bens susceptíveis de apreensão, o que se decidiu por despacho de 15-09-2021.
Nessa sequência, a Liquidatária Judicial requereu o pagamento da sua remuneração, a calcular nos termos do despacho de 17-02-2003 e até ao encerramento da liquidação.
Este requerimento foi indeferido pelo despacho requerido, porquanto “analisados os autos principais e apensos, constata-se que a Sra. Liquidatária não desenvolveu qualquer actividade susceptível justificar o recebimento de novas quantias para além dos valores que já lhe foram processados, motivo porque se fixa a remuneração da Sra. Liquidatária no valor correspondente às remunerações já processadas e pagas.”

Recorre a Liquidatária Judicial e conclui:
1. Por decisão datada de 15.06.2022, determinou o M.mo Juiz a quo, no que ao âmago do presente recurso interessa, que “fixa a remuneração da Sra. Liquidatária no valor correspondente às remunerações já processadas e pagas”.
2. Ora, quanto a tal divergência e no que respeita à remuneração devida à Liquidatária Judicial, temos que, nos autos de falência, foi proferido despacho de fls. 169 dos presentes autos, em 17.02.2003 e devidamente transitado em julgado, que fixou a referida remuneração da Liquidatária Judicial em € 400,00 mensais, acrescido de IVA à taxa legal em vigor.
Desde logo;
3. Ora, salvo melhor opinião, proferido o despacho pelo M.mo Juiz a quo, esgotou-se o respectivo poder jurisdicional, pelo que o meio processual próprio para obter a reversão de tal despacho é a interposição de recurso do mesmo.
4. Assim, o aludido despacho de fls. 169 dos presentes autos, proferido em 17.02.2003, transitou definitivamente em julgado, já que,
a. além de se debruçar expressamente sobre a fixação da remuneração da Liquidatária Judicial;
b. Procedeu à respectiva fixação mensal, por referência “a três factores: o parecer dos credores, a prática de remunerações seguidas na empresa e as dificuldades estimadas das funções cometidas ao gestor” e;
c. Não foi objecto de recurso.
5. Como tal, a sentença é violadora do caso julgado, porquanto a questão eivada nos presentes autos já foi previa e expressamente apreciada, nestes mesmos autos falimentares. De facto;
6. Ademais, tal situação é tanto mais inultrapassável na medida em que a Liquidatária Judicial cumpriu com o judicialmente ordenado, o que importou o cumprimento das suas obrigações processuais ao longo dos autos, os quais nunca foram postos em causa pelo Tribunal a quo ou pelos credores, constituindo-se a violação do caso julgado.
7. Assim, verifica-se que a decisão quanto à remuneração da recorrente, já foi julgada nos presentes autos, com as consequências daí decorrentes, não tendo sido posta em causa pela via legalmente aplicável, devendo a sentença ora recorrida ser substituída por outra que revogue o despacho recorrido, mantendo-se a validade do despacho de 17.02.2003.
Sem prescindir;
8. Caso assim não se entenda, ainda assim, a decisão que determinar que nada mais será pago à Liquidatária Judicial para além das remunerações já processadas até DEZEMBRO/2006 é manifestamente ilegal e injusta. É que;
9. Conforme consta do despacho de 17.02.2003, aquele procedeu à fixação da remuneração mensal, por referência “a três factores: o parecer dos credores, a prática de remunerações seguidas na empresa e as dificuldades estimadas das funções cometidas ao gestor”.
10. Destarte, o Tribunal a quo envereda pela “reapreciação” de apenas um de três factores, para fazer um “haircut” total à remuneração da Liquidatária Judicial, aqui recorrente.
11. Contudo, alicerça o Tribunal a quo a sua decisão apenas no último critério das dificuldades das funções cometidas à Liquidatária Judicial, mas;
12. Com o devido respeito, nem tal critério está correctamente aplicado, pelo menos para justificar a eliminação do direito a qualquer retribuição da Liquidatária Judicial de Janeiro/2007 e Dezembro/2021, ou seja, durante quinze (15) anos!!! É que;
13. Para tanto, sustenta o Tribunal a quo que “Por despacho proferido em 17/11/2017 foi declarado suspenso o apenso de liquidação até que fosse proferida decisão final no apenso D relativo a acção de impugnação pauliana”.
14. Ora, como se vê, a suspensão da Liquidação do Activo apenas ocorreu em Novembro/2017, pelo que;
15. Entre Janeiro/2008 e Novembro/2017 a Liquidatária Judicial manteve a sua actividade, prosseguindo as suas funções no âmbito do Processo de Falência e da Liquidação do Activo.
16. E mesmo depois disso, as referidas funções mantiveram-se a ser desempenhadas, já que, considerando que “Por decisão proferida em 11/07/2021 foi julgada improcedente a acção de Impugnação Pauliana (Apenso D), de onde poderia reverter para a Massa falida o único património localizado à insolvente.”, a Liquidatária Judicial teve de acompanhar o respectivo processo, o seu andamento processual, com todas as suas vicissitudes, e todas as funções de representação processual da Massa Falida.
17. Ainda que não se entendesse pela verificação de caso julgado, ainda assim, a decisão ora recorrida é, sempre com o devido respeito, manifestamente inconstitucional.
18. A ora recorrente, no âmbito das suas funções, incorreu em trabalho e despesas, os quais se mantiveram na pendência da acção e cujo trabalho despendido será quantificável em nunca menos de 1500 horas, ao longo de vinte (20) anos.
19. Tal trabalho tem de ser condignamente respeitado e remunerado.
20. Tal pedido remuneratório assenta na consagração do artigo 59.º da CRPortuguesa que garante a retribuição do trabalho, entendimento aplicável ao desempenho da função de Liquidatária Judicial, tornando-se por essa via, inadmissível a prestação de serviços a título de gratuitidade, em benefício de terceiros;
21. Devendo ser determinado o pagamento da remuneração fixada nos termos do despacho de 17.02.2003.
Cautelarmente;
22. Ainda que por força dos critérios de equidade e de razoabilidade e tendo em conta o trabalho desenvolvido pela recorrente/Liquidatária Judicial, o tempo pelo qual o Processo de Falência esteve pendente, a ausência de oposição dos credores e a generalidade das remunerações mínimas, quer praticadas na empresa, quer devidas nos processos de falência, o despacho recorrido desconsidera substancialmente o processado dos autos. Na verdade;
23. Com o devido respeito, a interpretação monetária efectuada pelo Tribunal a quo quanto ao desempenho das funções da recorrente/Liquidatária Judicial é manifestamente redutora e desvirtuadora das funções desempenhadas.
24. Como tal, e com o devido respeito, deveria, o Tribunal a quo ter fixado, ainda que com recurso a critérios de equidade, razoabilidade, legalidade e oportunidade, o valor da remuneração da Liquidatária Judicial, não se legitimando a simples denegação do pagamento de qualquer remuneração entre Janeiro/2007 e Dezembro/2021;
25. Pelo que, ainda que com recurso a tais critérios, deverá ser revogada a decisão proferida e substituída por outra que fixe a remuneração devida à Liquidatária Judicial, entre Janeiro/2007 e Dezembro/2021, em valor nunca inferior a € 3.000,00 (três mil euros) anuais, no valor global de € 45.000,00, acrescido de IVA devido à taxa legal, o que se pugna como minimamente razoável e justo.
Em suma;
26. A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 133.º do C.P.E.R.E.F. e 5.º do Decreto-Lei n.º 254/93, de 15 de Julho e 59.º da CRPortuguesa.
27. Outra interpretação que não esta, nomeadamente no sentido do não pagamento de qualquer remuneração pelo labor processual da Liquidatária Judicial após Dezembro/2006, enquanto órgão da falência e colaboradora do Tribunal, revelar-se-ia manifestamente inconstitucional;
28. Inconstitucionalidade essa que, cautelar e expressamente, se invoca, por violação do direito constitucionalmente consagrado do direito à retribuição pelo trabalho efectivamente prestado, nos termos dos artigos 58.º e 59.º, n.º 1, alínea a), da CRPortuguesa;
29. Devendo a decisão recorrida ser objecto de revogação e substituída por outra que, da lavra dos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, determine:
a. o pagamento da remuneração fixada nos termos do despacho de 17.02.2003 ou;
b. cautelarmente, seja fixada segunda as regras da equidade, em montante nunca inferior a € 3.000,00 anuais, entre Janeiro/2007 e Dezembro/2021, no valor global de € 45.000,00, acrescido de IVA à taxa legal em vigor.

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.
Os factos a ponderar na decisão são os constantes do relatório.

Aplicando o Direito.
Da remuneração da Liquidatária Judicial
Entendeu a sentença recorrida que o despacho de 17-02-2003 não conferia um direito ad aeternum a auferir a remuneração mensal ali fixada, aplicando o artigo 34.º, n.º 3, do CPEREF, o qual dispõe que “A remuneração a que se refere o n.º 1 pode ser alterada, a todo o tempo, em função das dificuldades e dos resultados que vierem a verificar-se durante a gestão da empresa.”
A decisão recorrida estriba-se no Acórdão desta Relação de Évora de 17-01-2019 (Proc. n.º 142/04.3TBBNV-T.E1), publicado na página da DGSI e, adiante-se desde já, não encontramos motivos bastantes para divergir da fundamentação ali utilizada.
Na verdade, os termos da norma – aplicável por força do artigo 5.º, n.º 1, do DL n.º 254/93, de 15 de Julho – são impressivos e em bom rigor só no final do processo de falência pode o juiz aferir quais as dificuldades vencidas e quais os resultados obtidos, e assim fixar justamente a remuneração do liquidatário judicial. Como se afirma no citado aresto, “na fixação da remuneração do liquidatário judicial deve-se ter em conta o trabalho efectivamente desenvolvido, o tempo gasto nas funções relativas à concreta falência, a dificuldade do exercício da função, a complexidade do processo.”
Esta é a orientação que também tem sido adoptada noutros arestos, aqui se citando, a mero título exemplificativo, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 26-09-2006 (Proc. n.º 1308/2006-7), e de 09-03-2010 (Proc. n.º 518-C/1996.L1-1), também na página da DGSI.
Por outro lado, não se pode afirmar a existência de caso julgado formal do despacho que de 17-02-2003, pois essa norma não afasta a possibilidade de alteração da remuneração, nos termos do artigo 34.º, n.º 3, do CPEREF, que demanda uma verificação a posteriori das dificuldades e dos resultados obtidos.
Na verdade, a remuneração global do liquidatário apenas se vence no momento de cessação de funções, que normalmente ocorre com a aprovação das contas, pelo que só nesse momento é possível a formulação de um juízo global sobre o seu desempenho e quantificar definitivamente a remuneração devida.
Como se afirma no citado Acórdão da Relação de Évora de 17-01-2019, “(…) isso não obsta a que se estabeleça, segundo um critério de previsibilidade e com carácter provisório, adiantamentos por conta da remuneração global, como se extrai das normas dos artigos 34.º, n.ºs 2 e 5, e 133.º, ao preverem a existência de adiantamentos por conta da remuneração devida ao liquidatário e daí que a atribuição de determinada quantia mensal esteja sujeita a uma correcção final, segundo o critério já exposto, como à amplitude e complexidade do trabalho efectivamente desenvolvido e aos resultados obtidos, tanto mais que o direito à remuneração é indissociável do exercício efectivo das funções do liquidatário.”
Finalmente, não se vislumbra que a citada norma do artigo 34.º, n.º 3, do CPEREF represente alguma forma de ofensa ao princípio da justa remuneração, que decorre do artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição. Independentemente da questão de saber se tal norma também é aplicável aos liquidatários judiciais, o que está em apreciação no caso dos autos é a determinação da justa retribuição, e esse foi o critério seguido pela decisão recorrida.
Na verdade, não se vislumbra a especial dificuldade do processo que justifique o pagamento de mais que os € 18.400,00 já recebidos dos cofres, em especial quando o resultado da liquidação foi nulo. O processo esteve parado por longos períodos – vide, por exemplo, o tempo que mediou entre a suspensão da instância na acção de impugnação pauliana e a apresentação do requerimento de habilitação de herdeiros, quase cinco anos (!) – e não se vislumbra uma especial dificuldade da gestão do processo que justifique algo mais que aquilo que já foi pago.
Por esse motivo, o recurso não procede.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente.
Évora, 10 de Novembro de 2022
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Alves Simões