Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
319/12.8GBGDI.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: MUNICÍPIO
ACTIVIDADES PERIGOSAS
SEGURO
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
Data do Acordão: 06/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O município que viola a obrigação legal de exigir a prova da existência de um contrato de seguro para o licenciamento de uma actividade circense itinerante perigosa é solidariamente responsável pelo ressarcimento dos danos causados por essa actividade.
Decisão Texto Integral: Proc. 319/12.8GBGDL.E1
1ª Sub-Secção

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÂO DE ÉVORA

1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida


No processo comum singular nº 319/12.8GBGDL, do Comarca de S, Instância Local de G, Secção Competência Genérica, J2, foi decidido :

- Condenar o arguido HFP, pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p.p., pelo Artº 148 nº1 do C. Penal, na pena, por cada um, de 100 ( cem ) dias de multa à taxa diária de € 5,50 e em cúmulo jurídico, na pena única de 150 ( cento e cinquenta ) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 ( cinco euros e cinquenta cêntimos ), o que perfaz o montante global de € 825,00 ( oitocentos e vinte e cinco euros ) ;

- Julgar procedente o pedido de indemnização cível formulado por NMJP em representação do filho menor NMJP e, em consequência, condenar o demandado HP ao pagamento de uma indemnização no valor de € 4.053,62 (quatro mil e cinquenta e três euros e sessenta e dois cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4% ao ano (ou outra que legalmente lhe sobrevier), desde a data da notificação para contestar até integral e efectivo pagamento;

- Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por CAPG, em representação do filho menor JAGF e, em consequência, condenar os demandados HP e MN ao pagamento de uma indemnização no valor de € 774,22 (setecentos e setenta e quatro euros e vinte e dois cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4% ao ano (ou outra que legalmente lhe sobrevier), desde a data da notificação para contestar até integral e efectivo pagamento, bem como, no valor que vier a ser definido em liquidação de sentença pelos danos não patrimoniais e patrimoniais futuros causados ao menor JF, até ao limite de € 75.000,00, absolvendo o Município de G do pedido ;

- Julgar improcedente o pedido de indemnização cível formulado por CAPG e absolver os demandados HP, MN e Município de G do pedido.

- Julgar procedente o pedido de indemnização cível formulado pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central EPE e, em consequência, condenar o demandado HP ao pagamento de uma indemnização no valor de € 4.148,08 (quatro mil, cento e quarenta e oito euros e oito cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4% ao ano ( ou outra que legalmente lhe sobrevier ), desde a data da notificação para contestar até integral e efectivo pagamento.
B – Recurso

Inconformada com o assim decidido, recorreu a demandante CAPG, por si e na qualidade de legal representante do menor JAGF, tendo concluído as respectivas motivações da seguinte forma (transcrição) :

I.O presente recurso é restrito â matéria de direito, aceitando-se integralmente toda a matéria considerada provada.
II. O objeto do presente recurso restringe-se apenas a três aspetos da douta decisão recorrida, os quais a recorrente pretende ver sindicados por V. Excias, Venerandos Desembargadores; concretamente os seguintes:

A) A absolvição do Município de G, por falta de um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, concretamente, a alegada ausência de nexo causal entre o facto ilícito praticado e o dano sofrido.
B) A improcedência do pedido de indemnização civil formulado pela recorrente, em nome pessoal, por alegadamente não ter sofrido danos indemnizáveis (danos reflexos não ressarcíveis).
C) A condenação em indemnização ilíquida, por alegada falta de elementos para liquidação integral dos danos.

Quanto à questão identificada em A)

I.
III. O tribunal de primeira instância considerou reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos do demandado Município de G, à exceção da verificação de nexo causal entre o dever de exigir o comprovativo do seguro de responsabilidade civil (resulta do disposto no 5.º, n.º 1 e n.º 4, do citado Decreto-Lei n.º 268/2009, de 29 de Setembro) e os danos causados à demandante e seu representado.
IV. Sublinhou o tribunal a quo que os danos em causa são as lesões provocadas ao menor e não a circunstância de estes virem a ser efetivamente ressarcidos pelos sujeitos obrigados a indemnizar.
V. No entanto, ao contrário do que entendeu o tribunal a quo e salvo o devido respeito por esta posição, entende a recorrente que existe efetivo nexo causal entre o comportamento omissivo e o dano, se entendermos este como toda a ofensa dos bens e interesses juridicamente tutelados do lesado e que o direito a uma reparação efetiva é de facto um direito especialmente tutelado, neste caso, por uma norma concreta que o define com a exigência de um seguro de responsabilidade civil, para o licenciamento de uma atividade perigosa por natureza!
VI. De acordo com o n.º 1, do artigo 7.º, da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, “O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas (…)”, e, a dificuldade em obter ressarcimento indemnizatório ou mesmo a de ficar sem ele, configura um dano que resulta de uma omissão ilícita do Município de G.
VII. Tal dano ainda que não seja um dano diretamente decorrente dos factos praticados pelo arguido, é um dano indireto ou reflexo e tem como causa adequada a omissão de exigir seguro de responsabilidade civil.
VIII. Não entendendo assim a questão, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil e o n.º 1, do artigo 7.º, da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, tudo nos termos e com os fundamentos invocados na presente motivação de recurso.

II.
IX. Ainda que assim se não entendesse, sempre o tribunal a quo deveria ter equacionado a responsabilidade do Município de G pelo risco, pois o artigo 11.º, da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, prevê que “O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público respondem pelos danos decorrentes de atividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos”.
X. O reconhecimento da perigosidade e do potencial danoso de atividades como as que estão em causa, resulta desde logo diretamente da Lei, quanto esta exige para o licenciamento a apresentação de um seguro de responsabilidade civil!
XI. De tal modo que o Município de G, ao não exigir o seguro para a realização da atividade perigosa que está em apreço assume, por força da Lei, a responsabilidade civil pelo risco inerente à atividade perigosa que o legislador quis salvaguardar pela imposição da existência de um seguro subjacente ao licenciamento.

XII. Aqui a responsabilidade pelo risco decorre da perigosidade associada ao licenciamento de atividades especialmente perigosas, isto em função das consequências que pode potenciar, caso se verifique – como sucedeu in casu – o desrespeito pelas normas jurídicas subjacentes!
XIII. Importante é, salvo melhor opinião, concluir que, tendo o Município de G omitido a exigência de apresentação de seguro para o licenciamento da atividade em questão, terá obrigatoriamente que responder na mesma posição em que o faria a seguradora que garantisse a responsabilidade civil do promotor do espetáculo de Circo Ambulante, pois só assim será dado pleno cumprimento à ratio legis implícita ao artigo 5.º, n.º 1 e n.º 4, do citado Decreto-Lei n.º 268/2009, de 29 de Setembro.
XIV. Ao não entender a questão deste modo, afigura-se que o tribunal a quo terá violado o disposto no artigo 5.º, n.º 1 e n.º 4, do citado Decreto-Lei n.º 268/2009, de 29 de Setembro, e, bem assim, o preceituado no artigo 11.º, da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, tendo esvaziado de conteúdo e tornado incompreensivelmente inconsequente o desrespeito por aquele primeiramente referido comando legal.
XV. Consequentemente, o Município de G deveria ter sido responsabilizado solidariamente com os demais obrigados pelo ressarcimento dos danos provocados à ora recorrente e seu filho menor, sendo condenado a pagar as indemnizações peticionadas em regime de solidariedade com os demais obrigados.

Quanto à questão identificada em B)

XVI. A demandante reclamou indemnização em nome próprio, pelos danos morais que sofreu, pelo facto de ter acompanhado os tratamentos e o sofrimento de seu filho menor, o que lhe provocou uma constante angústia, tristeza e desespero, lhe retirou o sono e a vontade de trabalhar, de falar e de conviver com outras pessoas (factos considerados provados).
XVII. Tais danos, embora reflexos dos danos sofridos pelo menor seu filho, constituem lesão direta de um direito próprio da demandante, concretamente, o direito à sua integridade psíquica, sendo que a lesão de tal direito tem causa direta e necessária nos atos praticados pelo arguido.
XVIII. Salvo melhor entendimento, atendendo à sua gravidade, estes danos são, ao contrário do que decidiu a douta sentença, danos indemnizáveis, por força do disposto no artigo 483.º e n.º 1, do artigo 496.º, do Código Civil, que devem ser entendidos no sentido de que o critério especial a atender para a ressarcibilidade dos danos morais é apenas o da sua gravidade; sendo certo que nem todos os danos reflexos, indiretos ou por ricochete serão indemnizáveis, pois só os que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito deverão sê-lo.
XIX. Nenhum aspeto justifica que o tribunal a quo não tenha, na vertida situação, perfilhado o entendimento plasmado do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2014, que uniformizou jurisprudência no seguinte sentido: “Os artigos 483.º, n.º1 e 496.º, n.º1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave.”
XX. A situação em causa nos autos é em tudo semelhante à decidida no citado e douto aresto de uniformização de jurisprudência, considerando o tipo de danos – morais – o grau de parentesco que liga a lesada à vítima imediata dos factos danosos e a gravidade dos danos sofridos.
XXI. Sendo certo que neste acórdão o Supremo Tribunal de Justiça considerou ser necessária uma interpretação atualista dos artigos 483.º e 496.º, n.º 1, do Código Civil, que pelas suas características não é vedada pelo artigo 11.º, do mesmo diploma.
XXII. A douta sentença deveria ter reconhecido o direito próprio da demandante à peticionada indemnização de €: 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros); ao não o fazer violou os aludidos normativos legais, uma vez que os danos em causa são graves o suficiente para merecerem a tutela do direito.

Quanto à questão identificada em C)

XXIII. O pedido formulado pela demandante em representação de seu filho menor foi relativo aos danos morais por este sofridos, incluindo o dano biológico (também ele não patrimonial), mas já não os danos patrimoniais futuros, por ter entendido que o ressarcimento daqueles primeiramente referidos danos, reparariam suficiente e adequadamente a lesão, desde que o quantitativo indemnizatório fosse o peticionado.
XIV. O tribunal de primeira instância veio a condenar no quantitativo que se viesse a liquidar em execução de sentença, até ao limite do pedido, condenando, portanto, em quantia ilíquida nos termos genericamente previstos e permitidos pelo artigo 82.º, n.º 1, do CPP.
XV. Entende no entanto a demandante, que o tribunal dispunha de todos os elementos (considerando os factos provados) para, na ponderação equitativa que lhe é imposta pelo n.º 3, do artigo 566.º, do Código Civil, fixar a indemnização líquida pelo montante peticionado.
XVI. Na verdade e pelos motivos melhor fundamentados na presente motivação de recurso, o tribunal só poderia relegar para liquidação de sentença a fixação do montante indemnizatório, quando – como refere o saudoso Prof. Alberto dos Reis – “de todo em todo, seja impossível, por falta de elementos”, efetuar a liquidação no processo declarativo.
XVII. O tribunal a quo tinha, salvo melhor perspetiva, os elementos suficientes para poder decidir com propriedade, reconhecendo ao menor um dano biológico e outros danos morais relevantes, e, deveria ter recorrido a critérios de equidade – como impõe o n.º 3, do artigo 566.º, do Código Civil – para fixar a indemnização peticionada pela ora recorrentes; até porque em danos desta natureza, não existe outra solução que não seja a equidade, tal é a impossibilidade de alcançar elementos que permitam um outro diverso juízo.
XVIII. Pela gravidade dos danos e sua natureza permanente e persistente e tendo em conta todo o enquadramento do pedido cível formulado e os factos considerados provados, o tribunal de primeira instância deveria ter julgado procedente o pedido de indemnização civil e condenado os demandados a pagar ao representado da demandante a quantia de €: 75.000,00 (setenta e cinco mil euros).
XIX. Ao não decidir deste modo, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, e, bem assim, o disposto no artigo 82.º, n.º 1, do CPP, por tê-lo aplicado fora do condicionalismo que o justifica.
XXX. Se não entendesse (o que só como hipótese de raciocínio se admite), deveria o tribunal ter fixado, desde logo e ao abrigo do disposto no n.º 2, do artigo 82.º, do CPP, uma parte da indemnização líquida, a qual viria a ser posteriormente considerada aquando da liquidação da sentença; não procedendo desde modo, mesmo que se considerasse razoável a relegação para liquidação de sentença a fixação do quantitativo indemnizatório global, sempre o tribunal a quo teria violado o n.º 2, do artigo 82.º, do CPP, que deveria ter aplicado oficiosamente e nos termos sobreditos.
Nestes termos e nos melhores de direito, deverá ser dado provimento ao presente recurso e em consequência, revogar-se a douta sentença recorrida, na parte relativa às três questões objeto do presente recurso e identificadas nas conclusões do mesmo, para que assim, com rigor, se faça sã, serena, objetiva e verdadeira JUSTIÇA

C – Resposta ao Recurso

Só o Município de G, como demandando, respondeu ao recurso, concluindo da seguinte forma (transcrição):

1. O ato de licenciamento do espetáculo de variedades foi licito, por não se estar em presença de um espaço delimitado.
2. Não existiu no licenciamento qualquer conduta culposa por ação ou omissão por parte do Município de G.
3. Não existe nexo de causalidade entre a atividade licenciada pela Câmara Municipal de G e o dano ocorrido no espetáculo e de que foram vitimas os Recorrentes.
4. Em consequência não existe “in casu” obrigação de indemnizar por parte do Município.
Termos em que deve manter-se a douta sentença recorrida com o que se fará, JUSTIÇA

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos os autos e efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal
de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 ( neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria ) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Na verdade e apesar do recorrente delimitar, com as conclusões que extrai das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.
In casu e cotejando a decisão em crise, não se vislumbra qualquer uma dessas situações, seja pela via da nulidade, seja ainda, pelos vícios referidos no nº2 do Artº 410 do CPP, os quais, recorde-se, têm de resultar do acórdão recorrido considerado na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos que ao mesmo sejam estranhos, ainda que constem dos autos.
Efectivamente, do seu exame, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal a quo, revelando-se a mesma como coerente com as regras de experiência comum e conforme à prova produzida, na medida em que os factos assumidos como provados são suporte bastante para a decisão a que se chegou, não se detectando incompatibilidade entre eles e os factos dados como não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Assim sendo, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª Instância sobre a matéria de facto.
Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada (Artº 410 nº3 do CPP)
Posto isto, inexistindo qualquer questão merecedora de aferição oficiosa, o objecto do recurso cinge-se, tão só, às conclusões do recorrente, nas quais se contesta a decisão da instância recorrida em três questões de natureza eminentemente civil e que são as seguintes :

1) A absolvição do Município de G ;
2) A improcedência do pedido de indemnização civil formulado pela recorrente em nome pessoal;
3) A condenação em indemnização ilíquida;

B – Apreciação

Definida a questão a tratar, importa considerar o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida.
Aí, foi dado como provado e não provado, o seguinte (transcrição):

2. Fundamentação de Facto
2.1. Matéria de Facto Provada
A) No dia 3 de Setembro de 2012, pelas 23.50, na Praça da Republica, em G, o arguido executava um espectáculo circense que consistia em colocar líquido inflamável na boca, aproximar uma tocha em fogo e cuspir o líquido, assim projectando chamas pela boca.
B) O referido espectáculo decorreu ao ar livre, na referida Praça, tendo sido para tal efeito colocadas duas filas de cadeiras para crianças e, atrás destas, dias filas de cadeiras para adultos.
C) O arguido executava tal exibição a cerca de 3 metros de distância da primeira fila de cadeiras, inexistindo qualquer barreira física entre o arguido e as crianças sentadas na primeira fila, bem como qualquer extintor ou dispositivo para extinguir fogos.
D) NMSP, nascido a 5-08-2003 e JAGF, nascido a 26-11-2004, estavam sentados na segunda fila de cadeiras, a assistir ao mencionado espectáculo.
E) Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, e após projectar uma chama, o arguido não limpou a boca e o queixo, aí deixando líquido inflamável.
F) Nesse momento e quando aproximou uma das tochas da boca para provocar uma nova chama, o referido líquido inflamou-se, pegando fogo à cara do arguido.
G) Em aflição, o arguido expeliu o líquido que tinha no interior da boca e levou a mão à cara.
H) Acto contínuo, o arguido sacudiu a mão e cuspiu, assim projectando o líquido em chamas sobre o público.
I) Ao fazê-lo, o arguido atingiu os referidos menores NMSP e JF, o que fez com que as roupas destes pegassem fogo.
J) Seguidamente, os aludidos menores foram assistidos por familiares e outras pessoas presentes, tendo sido transportados para o Quartel dos Bombeiros Voluntários de G e daí para o Hospital D. Estefânia
L) Como consequência directa e necessária da conduta do arguido:
i) NMSP sofreu queimaduras no membro superior direito e nos membros inferiores as quais determinaram 303 dias de doença, sendo 16 dias de afacetação da capacidade de trabalho profissional e 16 dias com afectação da capacidade de trabalho geral;
ii) JF sofreu queimaduras nos membros inferiores, as quais lhe determinaram 303 dias de doença, sendo 39 dias com afectação da capacidade de trabalho geral.
M) Ainda como consequência directa e necessária da conduta do arguido, resultaram para os referidos NMSP e JF as cicatrizes constantes dos relatórios de fls. 153 a 155, 252 a 254, 264 a 265 e fls. 158 a 160, 236 a 238, 268 e 269, respectivamente cujo teor aqui se dá por reproduzido, cicatrizes essas que ainda se encontram em consolidação progressiva associada ao crescimento do corpo.
N) O arguido agiu de forma livre e consciente, sem as cautelas exigíveis à execução do espectáculo em apreço, já que não guardou suficiente distância do público, não cuidou de se limpar de forma adequada antes de aproximar a tocha da boca e sacudiu os braços contendo líquido em chamas na direcção do público.
O) Omitiu o arguido os mais elementares deveres de cuidado e diligência que, segundo as circunstâncias descritas e as suas capacidades, estava obrigado e de que era capaz, desse modo provocando o acidente acima descrito e causando as lesões sofridas por NMSP e JF, resultado que não previu nem quis.
P) Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Q) O arguido trabalha sazonalmente na área da madeira e efectua espectáculos; aufere cerca de € 250,00 a € 300,00 por mês; reside sozinho em casa arrendada pela qual paga € 200,00 de renda; tem uma filha de 5 anos à qual não paga alimentos; tem o 6º ano de escolaridade. Revela tristeza pelo sucedido.
R) O arguido exerce à actividade de pirofagia há cerca de 15 anos, revelando profundo desconhecimento dos riscos inerentes á mesma.
S) O arguido já foi condenado:
i) No 2º Juízo de Instância Criminal de Estarreja no processo n.º 217/03.6GBETR por sentença transitada em julgado em 27/11/2006, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de introdução em lugar vedado ao público em 08/10/2003, na pena única de 265 dias de multa à taxa legal de € 7,50, tendo tal pena sido substituída por 176 dias de prisão subsidiária.
ii) No Juízo de Instância Criminal de Estarreja no processo n.º 87/05.0GAETR por sentença transitada em julgado em 31/07/2007, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada em 19/04/2005, na pena de 190 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, tendo sido substituída por 126 dias de prisão subsidiária. Tal pena veio a ser declarada extinta pelo pagamento da pena de multa.
Mais se provou:
S.1) Foi MN quem contratou o arguido e quem tratou de montar o recinto para o espectáculo.
S.2) O recinto do espectáculo tinha a configuração constante da fotografia de fls. 615.
S.3) Todas as pessoas apelidaram o espectáculo em causa de “Circo ao ar livre”.
Do pedido de indemnização cível de fls. 338
T) CAPG é mãe do menor JF, a quem se encontra cometido o exercício das responsabilidades parentais.
U) MAFN foi o responsável pela organização do evento durante o qual ocorreram os factos supra descritos, tendo sido ele a promover o licenciamento do espectáculo.
V) O Município de G por via postal de 15/11/2012 informou que não constava do processo de licenciamento do espectáculo qualquer cópia de apólice de seguro.
X) O circo ambulante onde o arguido actuava já tinha estado em outras alturas na Vila de G.
Z) O espectáculo em causa decorria desde Sábado.
AA) O menor esteve internado no Hospital D. Estefânia pelo período de 39 dias consecutivos, tendo dado entrada no dia 3/09/2012 e recebido alta, para tratamento em ambulatório em 12/10/2012.
AB) No dia 29/10/2012, o menor JF foi submetido a cirurgia, com excerto dermo-epidérmico na coxa direita (face anterior), com zona dadora na face lateral da mesma coxa.
AC) As queimaduras da coxa direita facetaram parte substancial do tecido cutâneo, que foi consumido pelo fogo.
AD) O menor sofreu de inúmeras dores e de prurido intenso na zona queimada que apenas atenua após aplicação de medicação prescrita.
AE) A perna direita do menor apresenta enorme cicatriz.
AF) Não permite a realização normal de todos os movimentos com facilidade.
AG) Os tecidos da coxa direita em função das queimaduras não voltaram à normalidade.
AH) O menor JF não voltou a andar de bicicleta, não pode correr e não se consegue colocar na posição de cócoras.
AI.) Os tecidos repuxados da coxa direita causam-lhe dores se realizar tais tarefas.
AJ) O menor JF passou a ter medo do fogo, não se aproximando de qualquer local onde haja uma chama.
AL) Ainda hoje o menor é acompanhado em serviço ambulatório.
AM) Teve que se deslocar ao Hospital para tratamento por diversas vezes.
AN) Ainda hoje o menor continua a ter que utilizar diariamente e sem excepção, uns calções em material compressivo.
AO) O menor sente uma permanente comichão naquele membro, o que lhe causa grande desconforto.
AP) A demandante CG acompanhou o seu filho em todos os tratamentos, permanecendo com ele no Hospital onde se encontrava internado.
AQ) A demandante não conseguia dormir, sentindo uma constante angústia e desespero.
AR) Perdeu a vontade de trabalhar, de falar ou de conviver com outras pessoas.
AS) A demandante viu-se forçada a realizar diversas despesas com tratamentos, deslocações, num total de € 774,22.
Do pedido de indemnização cível deduzido a fls. 428
AT) Na sequência das lesões sofridas pelos menores JF e NMSP, o Centro Hospitalar de Lisboa Central E.P.E. prestou-lhes assistência hospitalar.
AU) O custo da referida assistência importa a quantia de € 4.148.00.
Do pedido de indemnização cível de fls. 478
AV) O menor NMJP esteve internado no Hospital D. Estefânia desde 4 a 17 de Setembro de 2012.
AX) Durante o mencionado período o menor deslocou-se 4 vezes ao bloco operatório.
AZ) O progenitor, legal representante do menor, esteve sempre presente junto do mesmo.
AAA) Para acompanhar o filho menor, o Assistente esteve de baixa de dia 4 de Setembro ao dia 28 de Setembro de 2012, tendo recebido a título da mesma € 479,69, apesar do seu vencimento ser de € 857,74, deixando de auferir a quantia de € 236,21.
AAB) O menor não pode apanhar sol directamente.
AAC) Actualmente, o menor não pode frequentar piscina, praia e deslocar-se ao ar livre sem que tenha a pele hidratada.
AAD) Para tanto, o progenitor tem de adquirir cremes e gel específicos que lhe foram receitados.
AAE) Os mencionados cremes, protectores e gel não têm qualquer tipo de comparticipação.
AAF) Desde Outubro de 2012, o menor tem de se deslocar aproximadamente de 4 em 4 semanas ao Hospital D. Estefânia, para ser acompanhado na unidade de queimados e reabilitação.
AAG) As deslocações são efectuadas pelo progenitor que o acompanha e transporta para o referido Hospital, ficando a cargo deste todas as despesas de combustível e portagens.
AAH) A título de despesas com portagens, combustível, alimentação, roupa específica e medicamentosa com o menor, o progenitor despendeu a quantia de € 817,41.
AAI) O menor NP sofreu inúmeras dores devidas às queimaduras no membro superior direito e nos membros inferiores.
Da contestação de fls. 612
AAJ) Em 14/08/2012, MAFN apresentou um requerimento a solicitar a autorização para realização na via pública, nos dias 1 a 4 de Setembro de 2012, de um espectáculo de variedades ao ar livre.
AAL) Segundo o requerimento formulado, tratar-se-ia de um espectáculo de rua para crianças com cadeiras para o público que incluía ilusionismo, o cão cantor, malabaristas e palhaços.
AAM) O espectáculo teve parecer favorável dos Bombeiros Voluntários de G que impuseram com condicionalismo, que o evento finalizasse às 00 horas.
AAN) Os serviços pronunciaram-se de modo favorável embora com condicionalismos.
AAO) Nestas circunstâncias, o Município de G emitiu o alvará n.º 116/12, autorizando a ocupação da via pública.

2.2. Matéria de Facto Não Provada
Não se provou:
1) Que o arguido tivesse pegado ao seu braço.
2) Que o espectáculo decorria desde Sexta-feira.
3) Durante todo o período em que esteve internado, o menor esteve acamado, apenas se deslocando em cadeira de rodas.
4) O menor sofria de dores atrozes, mesmo após a ingestão de fortes analgésicos.
5) Mesmo após a alta hospitalar, o menor continuou a sentir fortes dores.
6) Ainda hoje tem dores significativas na coxa direita.
7) A perna direita do menor ficou deformada.
8) A mãe do menor J caiu num estado sorumbático e depressivo, pois sentia-se culpada pelo evento que vitimizou o filho uma vez que até ao último momento esteve para não ir ao espectáculo com a criança.
9) A demandante está medicada e sem vontade de conviver com quem quer que fosse.
10) O progenitor, legal representante do menor N tinha a seu cargo todos os pequenos-almoços.
11) Após dia 17 de Setembro a 28 de Setembro de 2012, o menor esteve na sua residência sita em G, impedido de se ausentar da mesma.
12) Apenas começou a ir à escola com várias limitações, após 28 de Setembro de 2012,
13) O menor teve de utilizar vestuário 100% algodão cujo custo de aquisição foi integralmente suportado pelo progenitor.

B.1. Da absolvição do Município de G

Dirigiu a recorrente o seu pedido de indemnização civil também contra o Município de G, que dele foi absolvido, os termos que agora se transcrevem:

No que respeita ao Município de G a questão afigura-se um pouco mais complexa, uma vez que não respondendo este pelo risco, se terão de observar os requisitos gerais da responsabilidade civil já elencados.
Não temos qualquer dúvida em afirmar que a emissão de um licenciamento para um espectáculo de variedades é um acto administrativo.
Por outro lado, também não temos qualquer dúvida em afirmar que estriba a demandante o seu pedido no acto administrativo praticado pelo Município de G, por entender que o mesmo foi mal praticado, não tendo sido exigidos no acto de licenciamento todos os documentos impostos por lei. E nesta matéria concordamos com a demandante.
Com efeito, o regime do licenciamento dos recintos itinerantes e improvisados, bem como as normas técnicas e de segurança aplicáveis à instalação e funcionamentos dos equipamentos de diversão instalados nesses recintos encontra-se previsto no Decreto-Lei n.º 268/2009 de 29 de Setembro.
Nos termos do artigo 2º, n.º 1 do mencionado diploma, consideram-se recintos itinerantes os que possuem área delimitada, coberta ou não, onde sejam instalados equipamentos de diversão com características amovíveis e que, pelos seus aspectos de construção, podem fazer-se deslocar e instalar, nomeadamente: a) circos ambulantes (…).
Nos termos do n.º 2, do mesmo preceito, consideram-se recintos improvisados os que têm características construtivas ou adaptações precárias, sendo montados temporariamente para um espectáculo ou divertimento público específico, quer em lugares públicos quer privados, com ou sem delimitação de espaço, cobertos ou descobertos, nomeadamente: a) tendas; b) barracões; c) palanques; d) estrados e palcos; e) bancadas provisórias.
Da redacção do preceito descrita avultam desde logo duas conclusões: o elenco do que seja recinto itinerante ou recinto improvisado é meramente exemplificativa, atento o termo “nomeadamente” utilizado. O legislador pretendeu abarcar com a amplitude da descrição efectuada, um rol bastante extenso de eventos de diversão.
Nos termos do artigo 3º do diploma em análise, o licenciamento relativo à instalação de recintos itinerantes e improvisados compete à câmara municipal territorialmente competente, sendo que o pedido de licenciamento deve ser instruído com fotocópia da apólice de seguro de responsabilidade civil e de acidentes pessoais – n.º 4, do artigo 5º e n.º 4, do artigo 15º.
E o dissenso com o Município começa aqui: entende o Município que o pedido de licenciamento que lhe foi formulado não integra a noção de recinto itinerante ou improvisado. Não se compreende porquê!
Resultou provado que o espectáculo em causa tinha quatro filas de cadeiras e a configuração constante da fotografia de fls. 615 (que aliás consubstancia o pedido), designadamente o pano por detrás das cadeiras e os postes de iluminação.
Durante todo o julgamento, todas as testemunhas e o arguido apelidaram o espectáculo de “Circo” e instados esclareceram, tratar-se de um “circo ao ar livre”.
O espectáculo já havia estado em anos anteriores na Vila e mesmo no ano em causa, era já a segunda vez que o mesmo se instalava em G.
Não entendemos e muito menos é aceitável que o Município se escude no pedido de licenciamento e na circunstância de o mesmo apenas referir “Ilusionismo”, “o cão cantor”, “malabarista” e “Palhaços”.
O regime jurídico estabelecido no diploma supra mencionado não estabelece tipo de números, nem elenca tipos de perigos.
Nos termos do n.º 2, considera-se recintos improvisados os que têm características construtivas ou adaptações precárias, sendo montados temporariamente para um espectáculo ou divertimento público específico, quer em lugares públicos quer privados, com ou sem delimitação de espaço, cobertos ou descobertos como sejam palcos ou bancadas provisórias.
Entendemos assim e à imagem da demandante que o licenciamento do espectáculo em causa nos autos se encontra submetido ao regime previsto no mencionado diploma, razão pela qual o Município ao ter autorizado o licenciamento, emitindo o respectivo alvará, não verificando todo os requisitos necessários, praticou um acto ilícito (no sentido de contrário à lei) nos termos definidos pelo artigo 9º da lei n.º 67/2007 de 31 de Dezembro, diploma onde se regula o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.
Nos termos do capítulo II de tal diploma, sob a epígrafe de “responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função administrativa”, o Estado e as demais pessoas colectivas de direito público respondem pelos danos que resultem de acções e omissões ilícitas cometidas pelos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes quer os mesmos assentem em culpa leve, dolo ou diligência e zelo inferiores àqueles que seriam exigíveis (não sendo relevante por ora cuidar das diferenças de regime previstas no artigo 7º e 8º do mencionado diploma).
E, independentemente da qualificação que se faça de tal facto ilícito – se por acção mediante erro no licenciamento, se por omissão, por não ter exigido os documentos exigidos pela lei para o dito licenciamento – a verdade é que o diploma em apreço não prescinde, naturalmente, do devido de nexo de causalidade entre a acção ou omissão e o dano. E no caso vertente, é no requisito do nexo causal que a imputação da responsabilidade civil do Município de G falece.
Com efeito, entre o licenciamento efectuado sem exigência do seguro de responsabilidade civil e os danos não existe nexo de causalidade. Os danos são as lesões causadas aos menores e não o cumprimento da obrigação de indemnização que venha a ser fixada para ressarcimento/compensação destes. Não é a circunstância de dificilmente os menores virem as indemnizações pagas pelos demais demandados cíveis, que justifica a condenação do Município pelo seu pagamento.
O licenciamento do espectáculo mal efectuado não foi causa do dano, não interferiu no processo causal e nem sequer potenciou ou incrementou o risco do mesmo. Logo, não se encontram reunidos os pressupostos de que depende a condenação do demandado Município de G.

Como se vê, a decisão recorrida absolveu o Município de G do pedido de indemnização civil formulado pela ora recorrente por entender que não se verificava um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, concretamente, o nexo causal entre o facto ilícito praticado, traduzido na circunstância da autarquia ter licenciado o evento em causa, emitindo o respectivo alvará, sem cópia da apólice de seguro de responsabilidade civil e acidentes pessoais, e o dano sofrido pelo menor.
Como bem nota a recorrente, a decisão do tribunal a quo é de elevada qualidade, na definição dos pressupostos de indemnização civil, no enquadramento da legislação aplicável e no estudo das questões que se colocam nos autos, independentemente de se concordar com o que ali foi decidido.
Na verdade, como bem afirmou o tribunal a quo, o enquadramento da situação sub judice deve ser feita nos termos do D.L. 266/09 de 29/09, qualificando o espectáculo em causa como uma actividade itinerante de circo, pelo que, nos termos do Artº 5 nsº1 e 4 do citado D.L., o respectivo pedido de licenciamento é necessáriamente instruído com fotocópia da apólice de seguro de responsabilidade civil e de acidentes pessoais.
Esta é uma matéria que nem sequer é discutida pelo recorrente e da qual decorre, inevitavelmente, que o Município de G não poderia ter procedido ao licenciamento da actividade em causa sem a demonstração da existência do aludido seguro, pelo que, ao ter procedido dessa forma, cometeu um acto ilícito, no sentido de ser contrário à lei, como o é definido pelo Artº 9 da Lei 67/07 de 31/12.
A este nível, importa apenas acrescentar que ao contrário do afirmado pelo recorrido, não é verdade que não se tenha apurado que o promotor do espectáculo não tivesse seguro para o mesmo, pois isso decorre implicitamente do ponto V) da factualidade apurada.
Ora, sabendo, como se sabe, que o Estado e as demais pessoas colectivas de direito público, nos termos do Artº 7 nº1 da mencionada Lei, são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas, o que, necessariamente, implica o estabelecimento do devido nexo de causalidade entre a acção ou omissão e o dano em causa, só existirá a pretendida responsabilidade civil da demandante se for possível desenhar esse nexo de causalidade.
A decisão recorrida entende que o mesmo não se verifica porquanto as lesões causadas aos menores são um produto do referenciado espéctaculo e não da circunstância do seu licenciamento ter sido incorrectamente realizado pelo Município de G.
Com o devido respeito pelo entendimento expendido pelo tribunal a quo, perfeitamente compreensível e defensável, entende-se todavia que outra deve ser a conclusão a retirar na análise da questão em aferição, aderindo-se, na íntegra, ao recorrente, razão pela qual, com a devida vénia, se reproduzem as suas motivações, por se entender que ali é realizado o mais justo enquadramento jurídico, pouco mais havendo a acrescentar.
« Quanto ao nexo de causalidade adequada, há a referir que teoria da adequação assenta num juízo de prognose póstuma: causa será a condição adequada à produção do dano quando este, tomadas em consideração as circunstâncias reconhecíveis à data do facto, fosse previsível (Antunes Varela - Da Obrigação em Geral - 2ª Edição - Vol. I, pág. 748). A nossa Lei consagrou a teoria da causalidade adequada, ao prescrever - "A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (artigo 563º do C. Civil).
Se apreciássemos o nexo causal de acordo com a teoria conditio sine quo non, concluiríamos que caso o Município de G tivesse feito cumprir a Lei, o espetáculo de Circo Ambulante não teria sido realizado, e, consequentemente, nunca os danos se teriam, obviamente, produzido, porque na verdade o proprietário do Circo Ambulante não dispunha de seguro de responsabilidade civil e a Lei não admite o licenciamento do espetáculo nestas circunstâncias. Obviamente que estas circunstâncias são irrelevantes para efeitos de causalidade adequada.
Por outro lado, se considerarmos o dano apenas como as lesões sofridas diretamente pelo menor (danos morais, no caso), é evidente que entre o ato omissivo ilícito do Município de G (falta de exigência do seguro) e as queimaduras sofridas pelo menor, não existe qualquer nexo causal, pois um facto não é causa adequada a produzir o outro, nem o primeiro criou um risco juridicamente relevante, proibido pela ordem jurídica, e, nem sequer aumentou o risco existente ou não diminui um risco proibido. Desta óptica, também não se verificaria qualquer possibilidade de preencher este pressuposto da responsabilização daquele demandado.
Mas já por outro lado e para que possamos abarcar o problema em toda a dimensão, há que considerar que mesmo que os danos se tivessem produzido sem qualquer contributo do comportamento omissivo do demandado Município de G é certo que se forem efetiva e devidamente ressarcidos não terão o mesmo impacto nem a mesma dimensão do que aquela que subsistirá sem qualquer ressarcimento!
Ao contrário do que propugna a douta sentença, o simples facto da demandante não ver ressarcidos os danos diretamente sofridos configura efetivamente um dano em si, dano este que, embora já no plano mediato, não teria ocorrido sem o comportamento ilícito e culposo do demandante Município de G!
Aqui chegados importa ter em atenção que o dano, em termos de conceito no direito civil, vem sendo aceite como toda a ofensa dos bens e interesses juridicamente tutelados do lesado, sendo de caracterizar como dano patrimonial todo aquele que for susceptível de avaliação pecuniária.

Com efeito e salvo melhor opinião, a perspetiva defendida na douta sentença subverte a verdadeira questão, pois na verdade, caso existisse seguro de responsabilidade civil que assegurasse a reparação efetiva dos danos provocados, ainda que estes fossem produzidos, os mesmos poderiam ser ressarcidos, o que, a não acontecer, comporta em si mesmo um verdadeiro e autónomo dano! Quer-se dizer que, o facto de não ser possível o ressarcimento dos danos constitui em si um dano que tem causa adequado no comportamento omissivo do Município de G, pois caso tivesse exigido o seguro de responsabilidade civil para licenciar o espetáculo, os danos verificados nunca ficariam por ressarcir!
O Município de G, ao violar a obrigação a que estava adstrito de exigir um seguro de responsabilidade civil previamente ao licenciamento do espetáculo de circo ambulante, violou um direito da demandante e de seu filho menor; direito que a Lei lhe quis atribuir e que pretendeu tutelar: facilitar o ressarcimento dos danos caso eles se viessem a verificar por causa da atividade licenciada.
A impossibilidade ou simples dificuldade acrescida em obter compensação efetiva pelos danos diretamente decorrentes da atividade que foi licenciada pelo Município de G, traduz-se, em última análise num verdadeiro dano, que embora mediato, indireto ou reflexo, tem efetiva causa no comportamento omissivo do demandado Município de G. »
Subscreve-se, por inteiro, este entendimento, porquanto se entende que a exegese da questão em apreço ultrapassa, com o devido respeito, os pressupostos que para ela foram estabelecidos na sentença recorrida e que se prendem com a mera existência de seguro de responsabilidade civil, o que, inevitavelmente, levará á conclusão que, com ou sem seguro de responsabilidade civil, sempre os danos em causa se teriam produzido.
Na verdade, a circunstância da inexistência do dito seguro impossibilitar, ou dificultar grandemente, por si só, o ressarcimento dos danos, constitui, em si mesmo, um dano, ainda que indirecto ou mediato, mas que é, única e exclusivamente, produto da conduta do Município de G, ao ter permitido um licenciamento ilícito do espectáculo em causa, violando uma obrigação decorrente da lei e que existe, precisamente, para facilitar aquele ressarcimento, caso haja produção de danos em consequência da actividade desse modo licenciada.
Tal entendimento aliás, sempre levaria a idêntica conclusão, quanto mais não fosse, pela consideração da responsabilidade pelo risco, imputada ao Município de G pela actividade em causa, que, por natureza, é especialmente perigosa, tal como o define o Artº 11 da mencionada Lei 67/07 de 31/12.
Foi, por certo, a consciência dessa perigosidade, que levou o legislador a exigir o licenciamento dessas actividades e incluir, como requisito obrigatório do mesmo, a existência de seguro, como garantia da ressarcibilidade dos danos que dela pudessem advir e tendo por claro objectivo, como se alcança da leitura do preâmbulo do mencionado D.L. 268/09 de 29/09, a segurança dos utilizadores dos equipamentos de diversão e dos espectadores de tais actividades.
Pelo que, sempre, pelo menos, a título do risco, sempre seria de imputar ao Município de G a responsabilidade pelos danos resultantes do indevido licenciamento ao funcionamento de actividades desta natureza, traduzido no facto de ter emitido o respectivo alvará sem o devido comprovativo da existência de seguro de responsabilidade civil e de acidentes pessoais, respondendo assim, nesses termos, na mesma posição em que o faria a seguradora que garantisse a responsabilidade civil do promotor do espetáculo em causa.
Essa é, crê-se, a ratio legis subjacente ao Artº 5 nsº1 e 4 citado D.L. 268/09, de 29/09, quando exige que o pedido de licenciamento de instalação de recintos itinerantes seja instruído com fotocópia da apólice de seguro de responsabilidade civil e de acidentes pessoais.
Entende-se assim que o tribunal recorrido violou, na interpretação jurídica que efectuou, a aludida norma, bem como, os Artsº 7 e 11 da Lei 67/07 de 31/12, pois, face aos mesmos, o Município de G terá de ser responsabilizado solidariamente com os demais obrigados pelo ressarcimento dos danos provocados à ora recorrente e seu filho menor, em consequência de ter omitido a exigência de apresentação de seguro para o licenciamento da atividade em questão.
Procede, pois, o recurso, nesta parte.
B.2. Do pedido de indemnização formulado em nome pessoal da recorrente

Tendo a recorrente deduzido um pedido de indemnização civil por danos próprios, foi tal matéria indeferida, por se entender que os mesmos, ainda que reflexos da conduta danosa, não são ressarcíveis, como resulta da transcrição do que, a tal propósito, se escreveu na decisão da 1ª instância :

Peticiona a demandante a condenação dos demandados no pagamento de uma indemnização na quantia de € 75.000,00 a favor do menor a título de danos não patrimoniais; na quantia de € 7.500,00 a seu favor a título igualmente de danos não patrimoniais a que acresce a quantia de € 774,22 a título de danos não patrimoniais.
Por esta responderá, nos termos já supra analisados os demandos HP e MN, mas já não o Município de G.
No que respeita aos danos patrimoniais peticionados tem a demandante o direito a ser ressarcida pelos mesmos.
No que respeita ao pedido de indemnização formulado por si e a título de danos não patrimoniais, a questão não é líquida, é objecto de vasta divergência doutrinal e jurisprudencial: situamo-nos no campo do direito à indemnização dos danos não patrimoniais reflexos em casos de lesões graves da vítima imediata, para cuja análise iremos seguir a explanação efectuada pelo Exmo Senhor Desembargador, Pinto de Almeida, em texto apresentado no dia 2 de Março de 2010 no Curso de especialização Temas de Direito Civil, organizado pelo CEJ (disponível em www.trp.pt).
Dispõe o artigo 495º do Código Civil que “1. No caso de lesão de que proveio a morte, é o responsável obrigado a indemnizar as despesas feitas para salvar o lesado e todas as demais, sem exceptuar as do funeral.
2. Neste caso, como em todos os outros de lesão corporal têm direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima.
3. Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.
Quaisquer das hipóteses previstas nesta disposição, incluindo as despesas de funeral quando suportadas por terceiro, reflectem excepções ao regime geral da responsabilidade, estabelecendo-se que os beneficiários da indemnização são terceiros, só reflexa ou indirectamente prejudicados com o evento lesivo.
Prevê-se assim neste artigo a cobertura de danos, reflexos, para os quais não bastariam as regras gerais, atribuindo-se legitimidade a terceiros para reclamar, por direito próprio, contra o responsável, indemnização pelos prejuízos que o dano da vítima tenha causado. Incluem-se aí as despesas com tratamento e assistência ao lesado – despesas médicas, hospitalares, de transporte – e, bem assim, do funeral.
Nos termos do n.º 2, do artigo 496º do Código Civil, no que respeita a danos não patrimoniais, verificando-se a morte da vítima, o direito à reparação é atribuído pela ordem seguinte: cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
De acordo com a parte final do nº 3 da mesma disposição, no caso de morte podem ser atendidos os danos sofridos pela própria vítima e os danos sofridos pelos referidos familiares iure proprio.
Pois bem, existem situações de lesões graves que se repercutem nos familiares da vítima de forma tanto ou mais acentuada quanto as situações de morte. Lesões que geram nesses familiares, ligados à vítima por fortes laços afectivos, estados de intranquilidade, de angústia e de desespero ou que provocam grave perturbação no seu modo de vida.
São frequentemente discutidos nos nossos tribunais, por exemplo, acidentes de que resultam lesões corporais gravíssimas em menores, em que é patente o enorme desgosto e sofrimento dos pais desses menores. E não é apenas essa dor sofrida pelos pais: basta pensar nas situações de absoluta dependência funcional em que podem ficar as vítimas e na mudança radical que isso pode implicar na vida dos pais, pela necessidade de assistência permanente ao filho lesado.
A questão que se põe é a de saber se os danos não patrimoniais sofridos por esses familiares devem ser ressarcidos.
Aparentemente, numa interpretação literal do artigo 496º nºs 2 e 3, a resposta parece ser negativa.
O entendimento tradicional (No sentido desta doutrina, clássica, e especificamente sobre a não ressarcibilidade dos danos não patrimoniais dos parentes da vítima de lesões graves, Antunes Varela, Ob. Cit, 620 e 621 e também na RLJ 103-250, nota 1 (2ª coluna) e RLJ 123-381; Sinde Monteiro, Revista de Direito e Economia, Vol. XV, 370; Revista dos Tribunais 82-409; Dario M. Almeida, Ob. Cit., 165; Oliveira Matos, Código da Estrada Anotado, 5ª ed., 396; Célia Sousa Pereira, Arbitramento de Reparação Provisória, 139) nesta matéria pode sintetizar-se nestes termos:
Só tem direito a indemnização por danos não patrimoniais o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação da disposição legal, afirmando-se que os danos de natureza não patrimonial a ressarcir são apenas os sofridos pelo próprio ofendido, por serem direitos de carácter estritamente pessoal.
Na verdade, só o titular do direito violado tem direito a indemnização (artigo 496º nº 1), pelo que não estão incluídos na indemnização os danos sofridos directa ou reflexamente por terceiros, salvo no caso de morte.
Sublinha-se a natureza excepcional do artigo 496º nº 2, o que impede a interpretação analógica dessa norma (artigo 11º). E a interpretação extensiva também não será possível, por o legislador apenas ter querido abranger as pessoas indicadas no preceito, como decorre do elemento histórico.
Com efeito, o Prof. Vaz Serra interveio nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, tendo formulado uma norma que previa claramente a ressarcibilidade daquele tipo de danos, no § 5 da proposta de redacção do artigo 759º da parte do Direito das Obrigações, preceito este que, nessa parte, não passou para o texto final, por essa pretensão ter sido rejeitada.
Acrescenta-se que, tendo o legislador regulamentado os familiares que têm direito a serem indemnizados em caso de morte da vítima, não o fez para o caso de a mesma não haver falecido, o que aponta para a interpretação no sentido de não ter querido admitir a ressarcibilidade deste tipo de dano.
Outros autores, porém, têm-se pronunciado no sentido da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais sofridos pelos parentes da vítima que não faleceu.
Assim:
Vaz Serra, em comentário ao Acórdão do STJ de 13.01.70 (RLJ 104-14) – que se debruçou sobre acidente de viação de que resultou para um menor a perda do antebraço com aleijão, afirmando-se na respectiva fundamentação que o lesado que perdeu o antebraço esquerdo foi o filho e não o pai e que, como só ao lesado é que a lei manda indemnizar por danos morais, o pai do mesmo menor não tem direito a indemnização pelo desgosto sofrido com o aleijão do filho – escreveu: "(…) o dano não patrimonial pode ser causado a parentes do lesado imediato, não somente no caso de morte deste, mas também em casos diversos desse, e pode ser em tais casos tão justificado o direito de reparação do dano não patrimonial dos parentes como no de morte do lesado imediato. (…)
Seria, pois, incongruente a lei que, reconhecendo aos pais direito a satisfação pela dor sofrida por eles no caso de morte do filho, lhes recusasse esse direito pela dor por eles sofrida no caso de lesão corporal ou da saúde do filho.
Posição idêntica assume Ribeiro de Faria (Direito das Obrigações, Vol. I, 491, nota (2)) ao defender que "há que entender o princípio da ressarcibilidade dos danos morais, formulado pelo nosso legislador, num sentido amplo", acrescentando: "desde logo no sentido de que, nem pelo facto de não ter ocorrido a morte da vítima, os parentes do lesado se verão sem indemnização pelos danos morais que tenham sofrido. Por um lado, porque, se é certo que a disposição do artigo 496º, 2, é uma disposição excepcional, ela não é insusceptível de interpretação extensiva e, portanto, de ser alargada a casos que caibam no espírito da lei. Por outro lado, pode dar-se a hipótese de o parente ser lesado, ele próprio, num bem seu, juridicamente protegido nos termos dos artigos 483º e 496º, 1. Pense-se na hipótese do marido que sofre uma depressão nervosa por assistir ao atropelamento da mulher, ou vice-versa".
Américo Marcelino, referindo-se ao dano moral por ricochete, defende que a sua ressarcibilidade assenta no artigo 496º nº 1. "Um menor é atropelado – fica sem uma perna, cego, estropiado para toda a vida. Os pais, uns pais normais, sofrerão naturalmente, com isso, um profundo desgosto. Poderão, então, pedir uma indemnização pelo profundo pesar que neles, aquele evento perenemente provoca? Mas indo mais longe: e os avós, um irmão, ou mesmo um amigo, que eram os únicos amparos do menor, que dele cuidavam e amavam como se filho fosse?"
A estas perguntas responde que "não sofre dúvida que merece ser atendido o desgosto de um pai condenado a ver o filho que era a alegria dos seus dias, feito um frangalho ou perenemente agarrado a uma cadeira de rodas".
"O grande princípio consagrado no nº1 do 496º não põe outras reservas, outras condições que não seja o tratar-se de danos tais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. O que depois se diz nos nºs 2 e 3 do artigo 496º não afecta em nada este princípio. Trata-se de disposições para determinados circunstancialismos ou sobre o modo de encontrar o montante indemnizatório".
Abrantes Geraldes (Temas da Responsabilidade Civil, II Vol. – Indemnização do danos reflexos, 75, 88 e 89) estuda desenvolvidamente esta questão e conclui que o direito de indemnização deve assentar directa e prioritariamente na interpretação dos artigos 483º e 496º nº 1, podendo ser reconhecidas "as situações que configuram dano moral por lesão do relacionamento familiar, designadamente as lesões graves e incapacitantes que, causando a perda total ou grave redução da autonomia de uma pessoa, determinem a necessidade de intervenção supletiva de familiares do círculo mais próximo do lesado, ou as lesões graves de um filho que determinem para os pais um elevado grau de apreensão quanto ao seu restabelecimento ou quanto à possibilidade de desenvolvimento autónomo.
Em geral, a jurisprudência encontra-se muito dividida, propendendo predominantemente para não admitir a ressarcibilidade do dano reflexo sofrido por familiares do lesado decorrente de lesões graves de que este passou a estar afectado.
Podem citar-se a favor do direito de indemnização, fora das situações de disfunção sexual de um dos cônjuges, entre outros, os Acórdãos do STJ de 25.11.98 (BMJ 481-470), de 01.03.2007 (só o sumário em www.stj.pt.), da Rel. do Porto de 23.03.2006 (em www.dgsi.pt.) e, bem assim, a sentença do Tribunal Marítimo de Lisboa de 16.11.98 (subscrita por Abrantes Geraldes, publicada na Ob. Cit., 93 e segs.).
Contra essa admissibilidade, decidiram, entre outros, os Acórdãos do STJ de 21.03.2000 (CJ STJ, VIII, 1, 138), de 30.04.2003, de 26.02.2004 (estes em www.dgsi.pt.), de 31.10.2006 (só o sumário em www.stj.pt.) e de 17.09.2009 (disponível em ww.dgsi.pt) e da Rel. de Lisboa de 05.05.99 (CJ XXIV, 3, 88).
Pois bem: constatamos pela exposição efectuada a existência de uma abertura à indemnização por danos reflexos em casos de ofensas corporais. Tais situações, por avessas ao regime legal fixado, tem de assumir uma gravidade tal que o contrário se afigure contra a ética vigente.
No caso vertente porém, não resultam provados factos que justifiquem tal solução. É certo que a demandante, naturalmente, sofreu preocupações, andou angustiada e preocupada pelo estado de saúde do seu filho. O contrário seria de estranhar. No entanto, o menor é autónomo e pese embora padeça ainda de algum desconforto, com prurido constante nas lesões causadas e até derive destas alguma incapacidade (total, parcial ou genérica) que se encontra por fixar, traduzida num défice funcional do membro afectado, a gravidade que os factos espelham não justificam o carácter extraordinário da decisão, perfilhada até ao momento quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, perante factos que assumem outro nível de gravidade que no caso vertente não existe.
Em face do exposto e pelas razões expostas, improcede o pedido formulado pela demandante.
Ainda com maior acuidade, é de realçar, neste domínio, o exaustivo tratamento que a sentença deu à questão em análise, ponderando as duas soluções, doutrinaria e jurisprudencialmente aceites e defensáveis, tendo depois, justificadamente, optado por uma delas.
Só a este nível, da opção tomada, é que não se subscreve o que ali foi dito, na medida em que se pensa que os danos provados em relação à demandante e mãe do menor ofendido, são suficientemente graves para merecerem a tutela do direito.
Como ali se disse, em sede de indemnização dos danos não patrimoniais reflexos em casos de lesões graves da vítima imediata, apesar dos mesmos parecerem não estar previstos numa interpretação literal dos nsº2 e 3 do Artº 496 do C. Civil, a verdade é que têm vindo a ser admitidos – ainda que com as divisões supra apontadas na doutrina e na jurisprudência – em casos particularmente graves, em que os familiares das vítimas e ligados à mesma por fortes laços afectivos, sofrem, em consequência do acto danoso, uma particular intranquilidade, um estado de angústia ou de desespero, ou uma grave perturbação no seu modo de vida.
No caso dos autos, provou-se que a demandante, mãe do menor ofendido, acompanhou-o em todos os tratamentos que este teve, permanecendo com ele no Hospital onde se encontrava internado, que não conseguia dormir, sentindo uma constante angústia e desespero e que perdeu a vontade de trabalhar, falar ou de conviver com outras pessoas.
Trata de uma situação que, como bem refere a recorrente, nada tem de anormal ou inusitado, atenta a relação familiar que a une à vítima e que, como decorre do mero confronto de datas plasmada nos factos apurados, se prolonga no tempo, há quase dois anos, tendo em conta as sequelas de que aquela padece.
Os danos alegados da recorrente e que resultam provados são, nessa medida, em si próprios, danos directos e imediatos da conduta lesiva, ainda que sentidos por um terceiro em relação à mesma e configuram-se, com o devido respeito por opinião contrária, com aquela gravidade que deve merecer o acolhimento do direito, até por se relacionarem com a integridade psíquica da demandante.
Em sede de danos não patrimoniais, como é o caso, vale o nº1 do Artº 496 do C. Civil, cujo critério indemnizatório essencial assenta, apenas e tão só, na gravidade dos danos, prescindindo de outros pressupostos para essa ressarcibilidade, na medida em que o teor dos seus nsº2 e 3 somente regulam as circunstâncias sobre a determinação do respectivo montante indemnizatório.
Ora, a única divergência em relação ao decidido pela 1ª instância, radica, precisamente, neste ponto, na medida em que se acredita que os danos supra mencionados – ter visto um filho sofrer como sofreu, não conseguir dormir, sentindo uma constante angústia e desespero e ter perdido a vontade de trabalhar, falar ou de conviver com outras pessoas – sofridos pela demandante e que são, indiscutivelmente, causa directa e necessária do acto danoso, são dignos do acolhimento jurídico, pela importância que revestem na personalidade daquela e no seu equilíbrio emocional e psicológico.
Assim sendo, entende-se que o tribunal recorrido, na sua interpretação jurídica, violou o disposto nos Artsº 483 e 496 nº1, ambos do C. Civil, devendo ser reconhecido o direito próprio da ora recorrente a ser indemnizada pelos danos morais em causa.
Em sede de quantificação desses danos, tendo em conta a sua gravidade, a sua natureza, a ilicitude dos factos e a forte ligação da demandante ao seu filho menor, julga-se adequado, em termos de equidade, fixar o valor indemnizatório em 1/3 do que era peticionado, ou seja, em € 2.500,00 ( dois mil e quinhentos euros ), procedendo assim, nestes termos e nesta parte, o recurso.

B.3. Da condenação em indemnização ilíquida

Tendo a recorrente peticionado, em representação do seu filho menor, uma determinada quantia a título de danos não patrimoniais, foi a mesma relegada para execução de sentença, por se entender que inexistiam elementos para a sua liquidação integral, como se alcança do que consta da sentença recorrida ( transcrição ) :

No que tange ao pedido de indemnização formulado a favor do menor, no valor de € 75.000,00: provou-se que JF sofreu queimaduras nos membros inferiores. Tais ferimentos demandaram 303 dias de doença (atente-se quase um ano) sendo que destes, apenas 39 dias com afectação da do trabalho em geral (qe corresponde ao período de internamento). O menor foi submetido a cirurgia com excerto dermo-epidermico na coxa direita, com zona dadora lateral da mesma coxa, tendo as queimaduras que sofreu afectado parte substancial do tecido cutâneo. O menor sofreu inúmeras dores e prurido intenso que permanece até à actualidade. A perna direita apresenta enorme cicatriz e não permite a realização de todos os movimentos. O menor ficou com medo de tudo o que envolva fogo.
A factualidade provada e assim descrita remete-nos para um conjunto de danos, hoje pacificamente aceites como indemnizáveis. Desde o quantum doloris, ao dano estético e até o prejuízo de afirmação pessoal.
O quantum doloris é um parâmetro de dano relativo à incapacidade temporária, que valoriza a dor física resultante não só dos ferimentos como dos tratamentos (v. g., uma tracção prolongada), mas também a dor psicológica, referente à angústia e ansiedade criadas pelas circunstâncias inerentes ao acidente, como sejam as resultantes da hospitalização, a consciência do risco de vida, o afastamento do meio familiar (v. g., o caso de uma criança que sofre um traumatismo e que tem de permanecer internada durante um certo tempo, num ambiente onde não conhece ninguém), o afastamento das ocupações profissionais, etc. É também comum integrar nesta valorização a angústia e ansiedade face a intervenções cirúrgicas e particularmente à anestesia geral. O quantum doloris está dependente destas duas vertentes (dor física e também da dor psíquica). A avaliação do quantum doloris é muito complexa, pois trata-se de um parâmetro do dano muito subjectivo: de facto a avaliação da dor é muito subjectiva; cada pessoa sente o estimulo doloroso de maneira diferente, inclusivamente, cada um de nós é capaz de vivenciar a mesma dor e o mesmo estímulo doloroso de forma diferente, consoante a situação em que o vivencía. Mas mais, para além da subjectividade do próprio sinistrado, que não conhece senão as dores que ele próprio já experienciou, e à partida são para ele as piores que existem pois não conhece outras, há também a subjectividade do próprio perito médico que está avaliar, que também não conhece senão as dores que também ele próprio já experienciou.
Mas, se a avaliação do quantum doloris é duplamente subjectiva, a verdade é que a avaliação da dor tem também muito de objectivo (neste sentido, Idem, ibidem). Por exemplo, a natureza e a gravidade das lesões podem, objectivamente, ser consideradas de dolorosas (em qualquer mortal, uma queimadura de 3º grau, por muito resistente que a pessoa possa ser à dor, é uma situação que objectivamente se pode concluir como dolorosa). Também o timbre de tratamentos que foram administrados é um factor a considerar (por exemplo, permanecer dois ou três meses com um colete gessado na mesma posição, na sequência de uma fractura da coluna vertebral, é naturalmente uma situação dolorosa para qualquer mortal). O mesmo acontece com o número de incidentes verificados no decurso do processo evolutivo das lesões (as complicações infecciosas, o número de intervenções cirúrgicas, etc.) são parâmetros que podem objectivamente ser indicadores de uma situação dolorosa, independentemente da capacidade de resistência à dor que o indivíduo possa ter.
Para referenciar e qualificar o quantum doloris (no nosso país e noutros) é utilizada uma escala de 7 graus (que vai do muito ligeiro até ao muito importante).
O Dano Estético é qualquer prejuízo em termos do estatuto estético da vítima. Este deve ser valorado e indemnizado sempre que a situação envolva grandes e significativas sequelas, não isentas da componente estética.
Na avaliação do Dano Estético, o perito terá de fazer uma avaliação global e perspectivar todas as vertentes para poder, efectivamente, avaliar o dano correctamente. Para tradução da avaliação feita pelo perito-médico, é utilizada uma escala igual à do Quantum Doloris, isto é, uma escala de 7 graus (que vai do muito ligeiro até ao muito importante).
O prejuízo de afirmação pessoal é um parâmetro de dano que faz parte do método de avaliação do dano permanente. Trata-se de um reflexo ou rebate das sequelas que o indivíduo ficou portador (prejuízo funcional existente) nas capacidades de acção ligadas a actividades lúdicas e de lazer (em regra, actividades desportivas, mas também musicais e de âmbito social a diferentes títulos) pré-existentes ao traumatismo que determinou o dano em apreço, e para as quais ficou total ou parcialmente incapacitado. Estas actividades representavam então um importante espaço de realização pessoal que, uma vez comprometido, arrasta a vivência íntima de um grande desprazer, onde passa a existir uma grande quebra da alegria de viver.
Por outro lado e atendendo inclusive a que a situação do menor ainda não se encontra consolidada, coloca-se a questão da ressarcibilidade dos danos futuros e até de algum défice de mobilidade que pode consubstanciar uma incapacidade (permanente, temporária ou genérica).
No que respeita à fixação do valor indemnizatório, o Juiz encontra-se limitado apenas pelo pedido, sendo o montante fixado, no que tange aos danos não patrimoniais, com recurso a juízos de equidade.
Equidade, contudo, não é arbitrariedade, sendo certo que o menor J tem direito á reparação integral dos seus danos.
Contudo, se sem qualquer sobra de dúvida não hesitámos em fixar uma indemnização ao menor N no valor de € 3.000,00 (valor a que estávamos limitados em função do pedido) por o mesmo se afigurar adequado com recurso a meros critérios de equidade, entendemos não dispor de elementos necessários que permitam fixar o valor indemnizatório ao menor J.
É que fixar com equidade uma indemnização no valor de € 3.000,00 que à saciedade se afigura ser adequado, não é mesmo que fixar ou apreciar um pedido de € 75.000,00, valor que eventualmente até pode vir a ser devido.
O juízo subjacente à fixação de tal indemnização exige uma tecnicidade que o Tribunal por si só não detém, Exige perícia médica e avaliação por técnico adequado.
Dito de outra forma e sendo incontornável a prova da existência de danos (os já elencados), entende o tribunal não dispor de elementos necessários à sua quantificação.
Dispõe o artigo 82º do Código de Processo Penal que “se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o Tribunal condena no que se liquidar em execução se sentença”.
É a situação que se verifica, razão pela qual se condena os demandados HP e MN a pagar a indemnização que vier a liquidada em execução de sentença pelos danos não patrimoniais e patrimoniais futuros causados ao menor JF, até ao limite de € 75.000,00.

Concordando-se, uma vez mais, com todo o subsctracto doutrinário constante da sentença recorrida – ao qual nada há a acrescentar no que toca à gravidade, dimensão e relevância dos danos sofridos pelo filho da demandante – não se acolhe que a sua determinação tenha sido relegada para execução de sentença.
Na verdade e com o devido respeito por opinião contrária, a demandante limitou o seu pedido a danos de natureza não patrimonial, pelo que não se entende a referência que o tribunal a quo, nesta sede, faz a danos patrimoniais futuros.
O que está em causa é um pedido liquido – 75.000,00 € - e com exclusivo suporte nos danos de natureza moral, incluindo o dano biológico, sofridos pelo menor, os quais, indiscutivelmente, pela factualidade apurada, podem e devem ser já objecto de determinação, na medida em que, como bem refere a recorrente, « …a inclusão de pedido de indemnização por dano biológico já integra a parte da lesão física e a repercussão futura que se entende ser de considerar na vertida situação. »
É evidente que tratando-se de uma aferição em sede de natureza não patrimonial, nunca os danos sofridos pela vítima poderão ser alvo de uma integral compensação monetária, mas esta circunstância é comum a qualquer indemnização deste nível e em nada contende com a panóplia factual provada sobre a qual se deve desenhar o devido valor de ressarcimento, nos termos do artº 566 nº3 do C. Civil.
A condenação em liquidação em execução de sentença, nos termos do artº 82 nº1 do CPP, à semelhança do estatuído no Artº 609 nº1 do CPC, apenas deve ser utilizada em casos evidentes de ausência de elementos para uma liquidação nos próprios autos, sendo a regra a da atribuição imediata da indemnização, caso existam, naturalmente, indicadores suficientes para tanto.
Ora, tem razão a recorrente quando assinala, nas suas motivações de recurso, que « …a gravidade dos danos provocados ao menor permitem fazer desde já um juízo de antecipação – tendo por referência os factos provados e a prova documental constante dos autos – para concluir com grau de certeza que se verificou, por força dos factos danosos, uma violação da integridade física e psíquica do menor, a qual terá um caráter permanente (os traumas, as limitações de mobilidade, as cicatrizes, as dores sofridas…).
Mesmo que o tribunal considerasse que não estariam reunidos todos os elementos para determinar com o máximo rigor todos os danos cuja reparação é reclamada pela demandante, não é menos certo que tais danos existem e estão suficientemente demonstrados e balizados na matéria de facto considerada provada, e, mesmo que sejam inquantificáveis (em termos de valor concreto e rigoroso) deveriam ter sido objeto de ressarcimento com base no recurso a critérios de equidade, como aliás impõe o n.º 3, do artigo 566.º, do Código Civil. »
Assim se entendendo, violou o tribunal a quo a melhor interpretação do Artº 82 nº1 do CPP, por não haver fundamento bastante que justifique tal aplicação, bem como, o estatuído no nº3 do Artº 566 do C. Civil, porquanto existem elementos probatórios suficientes nos autos para a fixação do montante indemnizatório devido ao filho menor da demandante.
Nessa fixação, definida por critérios de equidade, razoabilidade e bom senso, pondera-se a particular e intensa gravidade dos danos, as suas dolorosas consequências e a ilicitude dos factos e o seu ressarcimento deve representar um valor efectivo e não meramente simbólico, afastando-se de miserabilismos indemnizatórios que, há alguns anos atrás, ainda se desenhavam na magistratura portuguesa e que hoje, felizmente, já dela estão afastados, como são exemplo as decisões do STJ a que o recorrente apela no seu recurso.
Razão pela qual se entende, como justo e adequado à concreta situação factual relativa ao filho da demandante, fixar a indemnização que lhe é devida a título de danos não patrimoniais, em 2/3 do peticionado, ou seja, cerca de 50.000,00 € (cinquenta mil euros ).
E assim, nestes termos, procederá o recurso.


3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se conceder parcial provimento ao recurso e em consequência, julga-se parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por CAPG, por si e em representação do filho menor JAGF, condenando-se os demandados HP, MN e o Município de G, no pagamento das seguintes quantias:
- € 774,22 (setecentos e setenta e quatro euros e vinte e dois cêntimos), a título de danos patrimoniais;
- € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), a títulos de danos não patrimoniais sofridos pela demandante;
- € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a títulos de danos não patrimoniais sofridos pelo filho da demandante;
Sobre todas estas quantias acrescem juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4% ao ano (ou outra que legalmente lhe sobrevier), desde a data da notificação para contestar até integral e efectivo pagamento.
Custas na proporção do decaimento.
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Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.
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Évora, 30 de Junho de 2015
(Renato Damas Barroso)
(António Manuel Clemente Lima)