Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
93/11.5GCBJA.E1
Relator: MARIA ISABEL DUARTE
Descritores: DIREITO DE QUEIXA
LEGITIMIDADE PARA A QUEIXA
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Quando o procedimento criminal depender de queixa, esta pode ser apresentada, além do mais, pelo ofendido ou, tendo este falecido decorrido cerca de um mês sobre a prática dos factos, pela companheira daquele no prazo de seis meses expresso no n.º 1 do artigo 115.º do CP, ou ainda por mandatário judicial;
II – A concretização da queixa-crime não está sujeita a formalidade especial, sendo apenas necessário e essencial que dos termos da mesma ou dos que se lhe seguirem se conclua que exista uma inequívoca vontade do titular do direito de queixa de que seja exercida a acção pela.
III – Em conformidade com as proposições anteriores, mostra-se validamente exercido o direito de queixa se a mandatária judicial da companheira do ofendido falecido, veio, no referido prazo de seis meses e em nome da referida companheira do ofendido e do filho menor de ambos (desta e do ofendido falecido), manifestar uma inequívoca vontade de perseguição criminal.
Decisão Texto Integral: Proc. N. 93/11.5GCBJA.E1

Acordam, em conferência, os juízes que compõem a 1.ª subsecção criminal do Tribunal da Relação de Évora

I - Relatório
1 - No processo comum, com intervenção do tribunal singular, n.º 93/11.5GCBJA, do Tribunal da Comarca de Beja - Instância Local - Secção Criminal - J1, foi julgado o arguido:

BB…

tendo sido proferida sentença, nos termos seguintes:

“a) Desqualificar o crime de Ofensa à Integridade Física Qualificado pelo qual o arguido BB vinha acusado na pessoa de CC e convola-se a acusação pela prática de um crime de Ofensa à Integridade Física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal;

b) Atendendo à natureza semi-pública dos crimes de ofensa à integridade física simples. e à inexistência de queixa apresentada quer pelo ofendido, quer pelos seus sucessores contra o arguido, declara-se a ilegitimidade do Ministério Público para promover a acção penal, contra este e, consequentemente, declara-se extinto o procedimento criminal contra o arguido - cfr. artigos 143.º, n.º 2, do Código Penal e 48.º e 49.º do Código de Processo Penal.

c) Julgar extintos, por impossibilidade superveniente da lide, os pedidos de indemnização cível deduzidos pela demandante DD, EPE e pela demandante EE;

(…)”.

2 - O Ministério Público, junto do tribunal “a quo”, inconformado, interpôs recurso dessa decisão, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos em referência, na parte em que declarou extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido BB, com fundamento na natureza semipública do crime que resultou provado do julgamento e na inexistência de queixa por parte do ofendido já falecido e dos seus sucessores.
2. A única questão colocada à cognição superior consiste em saber se de facto não foi exercido o direito de queixa que obsta à condenação do arguido BB, pela prática do crime de Ofensa à Integridade Física Simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1 do Cód. Penal, resultante da matéria de facto provada em julgamento.
3. Em relação ao arguido BB e, tendo em atenção a natureza pública do crime inicialmente equacionado e daquele pelo qual veio o mesmo veio a ser acusado, nunca foi ordenada qualquer notificação que expressamente visasse o exercício do direito de queixa, fosse pelo ofendido (que entretanto faleceu um mês após a ocorrência dos factos, sem nunca sequer ter sido inquirido sobre os mesmos), fosse pelos seus sucessores.
4. Essa omissão poderia de facto comprometer o êxito do processo não fosse a posição assumida por EE, companheira do ofendido falecido, quando juntou aos autos, em 22 de novembro de 2011, portanto, já depois da morte dele, o requerimento de fls. 198, assinado pela advogada por si constituída, onde expressamente refere que, ao abrigo do disposto no art. 113º n.º 1, do Cód. Penal pretende, em seu nome e, em representação do filho menor de ambos, o prosseguimento do procedimento criminal.
5. Não obstante o ofendido ter falecido sem exercer o direito de queixa ou a ele ter renunciado, o certo é que a sua companheira, ainda dentro dos seis meses que o art. 115º, n.º 1 do Cód. Penal prevê para o exercício do direito de queixa, veio, por si e, em representação do filho menor de ambos, manifestar, de forma expressa e inequívoca, que pretendia que o procedimento criminal prosseguisse.
6. EE, como companheira de facto que foi do ofendido até ao momento da sua morte, veio, por si própria e também em representação do filho menor de ambos, portanto, ambos titulares do direito de queixa, manifestar uma inequívoca vontade de perseguição criminal. É o que basta para se considerar que o direito de queixa, enquanto condição de procedibilidade do procedimento criminal nos crimes de natureza semipública, foi válida e tempestivamente exercido por quem tem legitimidade para o efeito.
7. Analisando o requerimento de fls. 198 e os documentos que o instruíram conjugadamente com o disposto nos arts. 113º, n.º 2, al, a) do Cód, Penal e 49º, n.ºs 1 e 3 do Cód. Proc. Penal, não temos dúvida de que o direito de queixa foi validamente exercido.
8. Pelo exposto, ao determinar a extinção do procedimento criminal quanto ao crime de Ofensa à Integridade Física Simples, por falta de queixa, o Mmo. Juiz violou o disposto nos arts. 113º, n.º 2, al. a) e 143º, n.º 2 do Cód. Penal, bem com o disposto no art. 49º, n.ºs 1 e 3 do Cód. Proc. Penal, pelo que os pontos b) a d) da sentença recorrida devem ser revogados e os autos reenviados para determinação da medida da pena e fixação do pedido de indemnização cível.
Assim decidindo, farão V. Exas. a costumada Justiça!”

3 - Após cumprido o art. 411º n.º 6, do C.P.P., não tendo sido apresentada resposta.

4 - Neste Tribunal a Exma. Sr.ª Procuradora Geral-Adjunta emitiu parecer, concluindo:
“Emitindo parecer como nos cumpre e compulsados os autos, verifica-se que:
a) Os factos ocorreram em 31 de Julho de 2011;
b) O arguido BB esfaqueou o ofendido CC;
c) O ofendido veio a falecer cerca de um mês após os factos descritos em a);
d) Os factos participados constituíram o objecto da acusação e na qual o Ministério Público imputou ao arguido BB a prática dum crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 145° n° 1 a) e n.º 2, 143º n° 1 e 132° n.º 2 h) e i), todos do C. Penal, crime que tem natureza pública;
e) Após a realização da audiência de julgamento, foi decidido declarar extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido BB, com fundamento em que, da prova produzida em audiência, resultou provado que o mesmo praticou um crime de ofensa à integridade física simples, o qual tem natureza semi-publica e logo não tendo sido exercido o direito de queixa, nem pelo ofendido, nem pelos seus sucessores, o Ministério Público carece de legitimidade para exercer a acção penal;
f) EE, companheira do ofendido, a fls. 198, juntou um requerimento no qual expressamente requer em seu nome, e em representação do filho menor de ambos (seu e do ofendido falecido) o prosseguimento do procedimento criminal;
g) Este requerimento foi junto aos autos em 22 de Novembro de 2011, ou seja, dentro dos 6 meses consentido pelo art. 115º n.º 1, do C. Penal para o exercício do direito de queixa.
Tendo o ofendido falecido sem que tenha exercido o direito de queixa, nos termos do art.º113° n.º 2 a) do C. Penal, tem legitimidade poro apresentar queixa a pessoa que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges.
A efectivação da queixa não está sujeita a qualquer formalidade especial legalmente imposta, conforme melhor resulta do disposto no artigo 246°, n.º 1, do CPP.
A denúncia não pode deixar de significar queixe e a participação pode ser feita por todo e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal contra o agente pelos factos que descreve ou menciona.
Assim sendo, afigura-se-nos que o Ministério Público dispunha de legitimidade para a prossecução do processo,
Por consequência, e a ser sufragado este nosso entendimento, será de conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.”.

5 - Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º n.º 2, do C.P.P.

6 - Foram colhidos os vistos legais.

7 - Cumpre decidir

II - Fundamentação
2.1 - O teor da sentença, na parte que importa, é o seguinte:
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 31 de Julho de 2011, cerca das 6.40 horas, no recinto das Festas, sito … em S. Matias, Beja, por motivos não concretamente apurados mas relacionados com a utilização de um chapéu de palha por parte de FF, que o retirara da cabeça de um popular e colocara na sua, gerou-se uma discussão entre este e outros populares da localidade de São Matias.
2. No decurso de tal discussão, os arguidos FF e BB vieram a ser agredidos com socos e pontapés por vários indivíduos, estando em inferioridade numérica perante estes.
3. A determinado momento e quando se encontrava a abandonar o recinto das festas, em fuga dos descritos populares, o arguido FF desferiu um pontapé no rosto de GG.
4. Então, CC seguiu no encalço do arguido FF e dos indivíduos que o acompanhavam, entre os quais o arguido BB.
5. A cerca de 50 metros do referido recinto de festas, perto de um terreno localizado e junto ao exterior da localidade de S. Matias, encontrava-se estacionada a viatura que transportara os arguidos da localidade de Cuba até S. Matias.
6. No local indicado em 5. CC e FF envolveram-se em discussão e agressões físicas mútuas, após o primeiro ter alcançado o segundo.
7. Nesse exacto momento um outro grupo de populares de S. Matias aproximava-se do local onde os arguidos e seus amigos se encontravam, com o intuito de os agredir, em clara superioridade numérica.
8. Com o intuito de libertar o arguido FF da contenda física que este tinha com CC e de ambos abandonarem rapidamente o local, na referida viatura automóvel, BB aproximou-se daqueles, abriu um canivete, cujas dimensões da lâmina não foram apuradas, e com o dito objecto desferiu três golpes nas costas de CC.
9. Acto contínuo, o arguido FF desenvencilhou-se de CC, entrando num automóvel onde, a par de BB, se encontravam dois outros indivíduos.
10. De imediato tal automóvel se colocou em marcha, abandonando a localidade de São Matias, não sem antes ter sido atingido por pedras arremessadas por indivíduos cuja identidade não foi possível apurar.
11. Em consequência directa e necessária do descrito em 7., CC sofreu ferida penetrante da região superior da omoplata direita, com cerca de 2 cm, oblíqua em contacto ósseo; e ferida da transição dorso lombar, na linha média ao nível do 3º a 4º espaço vertebral, com cerca de 2 cm, oblíqua para a direita.
12. Tais lesões determinaram ao ofendido CC 30 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho profissional.
13. Tais lesões determinaram, ainda, ao ofendido CC cicatriz, de cor escura, com vestígios de pontos de sutura, oblíqua infero-lateralmente, medindo 2 cm de comprimento, localizada na região dorsal, junto ao ângulo superior da omoplata esquerda; cicatriz, de cor escura, com vestígios de pontos de sutura, linear e transversal medindo 2 cm de comprimento, localizada na região lombar média, a nível estimado do 3º a 4º espaço vertebral, cuja profundidade provocou lesão neurológica, resultando em monoparesia crural e peroneal esquerda (grau 4+) proximal e distal com parestesias espontâneas por lesão durai no espaço interespinhoso L2-L3, condicionando compressão.
14. Em consequência, o ofendido poderia ficar com as seguintes sequelas permanentes: dor neuropática e dificuldade na marcha.
15. CC viria a falecer, no dia 30 de Agosto de 2011, em consequência de cardiomiopatia arritmogénica.
16. O arguido BB agiu com intenção de causar lesões no corpo do ofendido CC para que, desse modo, FF pudesse libertar-se de CC e abandonarem o local.
17. O arguido BB actuou de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo o carácter reprovável da sua conduta.
18. Realizado relatório social pela DGRSP, do mesmo consta:
(…)
19. O arguido não tem antecedentes criminais.
20. Mostrou profundo e sincero arrependimento pela sua conduta, tendo adoptado uma postura colaborante para a descoberta da verdade.
21. As lesões causadas pelo arguido BB determinaram que CC tivesse sofrido dores intensas desde a sua ocorrência até à data do seu decesso.
22. À data, o ofendido, tinha 35 anos de idade e gozava de boa saúde.
23. Era visto como pessoa trabalhadora e dinâmica.
24. Exercia a profissão de fiel de armazém empresa …, em Beja, onde auferia em média a quantia aproximada de €700,00 mensais;
25. A companheira de CC, EE, encontrava-se em França a trabalhar nas campanhas de apanha de pêssego, na qual auferia cerca de € 1000 mensais.
26. Esta teve de regressar a Portugal para prestar assistência ao marido, em virtude deste ter ficado incapacitado de realizar qualquer tarefa.
27. Deixando a demandante de auferir qualquer remuneração.
28. O lesado sentiu-se ansioso, perturbado, preocupado e receoso perante a sua situação clinica futura.
29. A demandante, esposa de CC, perdeu o ânimo face á perspectiva deste ficar incapacitado, tendo vivido momentos de profunda incerteza e angústia.
30. No dia 31 de Julho de 2011, deu entrada no Hospital…, unidade de saúde integrada na Instituição ora demandante, o utente CC (…).
31. Da assistência hospitalar prestada aos utentes GG e CC, no DD resultou um débito, devidamente liquidado mas ainda não pago, no valor de €2.462.47 (dois mil quatrocentos e sessenta e dois euros e quarenta e sete cêntimos).
*
II. 2. Factos não provados
(…)
*
II. 3. Motivação da decisão de facto
(…)

2.3 - Feita esta introdução de âmbito geral e analisadas as conclusões de recurso, o recorrente alega, no caso em análise, como fundamento do recurso, uma única questão - saber se, de facto, não foi exercido o direito de queixa que obsta à condenação do arguido BB, pela prática do crime de Ofensa à Integridade Física Simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1 do Cód, Penal, resultante da matéria de facto provada em julgamento -.

2.4 - Da questão do recurso
2.4.1 - Para a análise dessa questão é necessário atender à factualidade, a seguir discriminada, e à previsão dos art.ºs 113º, do CP e 49º n.º 3, do CPP.
Convém, para tal finalidade, referir o seguinte:
O Tribunal “a quo”, após a realização da audiência de discussão e julgamento, considerou que a factualidade provada integra, tão só, a prática pelo arguido de um crime de ofensa à integridade física simples do art. 143º, n.º 1 do Cód. Penal. Com isso operou a desqualificação jurídica dos factos descritos na acusação. Essa convolação não foi questionada;
Mas sim, como já referido, o segmento, da sentença, que determinou a extinção do procedimento criminal contra o arguido BB, com fundamento na ilegitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal, relativamente ao referido crime de Ofensa à Integridade Física Simples, que tem natureza semipública, por não ter sido exercido o direito de queixa, nem pelo ofendido, nem pelos seus sucessores;
Os autos iniciaram-se com o auto de notícia lavrado pela Guarda Nacional Republicana - Posto Territorial de Beja -, narrando factos ocorridos, no dia 31 de Julho de 2011, no recinto das festas, em São Matias - Beja, respeitantes a briga entre vários indivíduos que se envolveram em confrontos físicos, nomeadamente, GG, CC e FF;
No decurso dessa contenda, CC esfaqueado nas costas por um indivíduo que só depois veio a ser identificado como sendo o arguido CC. Nessa sequência foi conduzido ao Hospital de Beja, onde lhe foram detectadas duas perfurações, que foram suturadas, após o que foi transferido para o Hospital de São José, em Lisboa, onde ficou internado durante algum tempo;
Em 30 de agosto de 2011, o referido órgão de polícia criminal elabora uma informação de serviço (que está junta a fls. 15 dos autos), dando conta que recebera uma chamada telefónica da Polícia de Segurança Pública do Laranjeiro, a informar que CC falecera;
Nessa sequência, a Polícia de Segurança Pública - Esquadra do Laranjeira elaborou uma participação (junta a fls. 16 dos autos) a confirmar o óbito do ofendido e onde foram relatadas as circunstâncias em que o mesmo fora esfaqueado na festa de São Matias, factos que foram transmitidos à autoridade policial pelo próprio autor do crime - BB - que, ao se assumir como tal, foi logo constituído como arguido;
Após o decurso da fase de inquérito, o Ministério Público deduziu acusação, considerando existirem indícios suficientes da prática, em autoria material, pelo arguido FF, de 1 (um) crime de Ofensa à Integridade Física Simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1 do Cód, Penal, e pelo arguido BB, de 1 (um) crime de Ofensa à Integridade Física Qualificada, p. e p. pelos arts, 145º, n.ºs 1, al. a) e 2, 143º, n.º 1 e 132º, n.º 2, als. h) e i), todos do Cód. Penal;
No que concerne ao crime imputado, inicialmente, ao arguido BB, tendo em atenção a sua natureza pública, nunca foi ordenada qualquer notificação que expressamente visasse o exercício do direito de queixa, fosse pelo ofendido (que entretanto faleceu um mês após a ocorrência dos factos, sem nunca sequer ter sido inquirido sobre os mesmos), fosse pelos seus sucessores.
Todavia, em 22 de Novembro de 2011, EE, companheira do ofendido falecido, já depois da sua morte, juntou aos autos, o requerimento de fls. 198, assinado, em sua representação pela sua mandatária judicial, com mandato junto a fls. 206, onde expressamente refere que, ao abrigo do disposto no art. 113º, do Cód. Penal, pretende, em seu nome e, em representação do filho menor de ambos, o prosseguimento do procedimento criminal;
Contudo, o tribunal “a quo” entendeu que " ... efectuada uma cuidada análise do processo, da mesma veio a resultar que não foi apresentada contra o arguido BB qualquer queixa, quer por CC, quer pela esposa (na qualidade de sua sucessora legal, após o decesso daquele)”;
Consequentemente, considerou inexistirem condições para que o procedimento criminal contra o arguido pudesse prosseguir pelo crime de ofensa à integridade física simples, na medida em que o Ministério Público carece de legitimidade para prosseguir com a acção penal, razão pela qual determinou a extinção do procedimento criminal.
Sem razão todavia!
O art. 113º, n.º 2 do Cód. Penal, sob a epígrafe "Titulares do direito de queixa", estabelece que: "Se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela, o direito de queixa pertence às pessoas a seguir indicadas, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime;
a) Ao cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou à pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, aos descendentes e aos adotados e aos ascendentes e aos adoptantes; e, na sua falta (...) “
É, também, determinante, como supra mencionado, a previsão do art. 49º, do CPP, na redacção que foi introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25/08, o qual sobre a epígrafe “Legitimidade em procedimento dependente de queixa”, preceitua:
1 - Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
2 - Para o efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.
3 - A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais.
4 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depender da participação de qualquer autoridade.
Revertendo para o presente caso, tal como já referido, apesar do ofendido ter falecido sem exercer o direito de queixa ou a ele ter renunciado, a sua companheira, antes do decurso do prazo de seis meses, expresso no art, 115º, n.º 1 do Cód. Penal, para o exercício do direito de queixa, veio, por si e, em representação do filho menor de ambos, manifestar, de forma expressa e inequívoca, que pretendia que o procedimento criminal prosseguisse.
A concretização da queixa-crime não está sujeita a formalidade especial legalmente imposta, nos termos preceituados no artigo 246°, n.º 1, do CPP.
Como bem afirma o recorrente, “Isto é, o que é necessário e essencial é que dos termos da queixa ou dos que se lhe seguirem se conclua que exista uma inequívoca vontade do titular do direito de queixa de que seja exercida acção penal.
E foi justamente o que sucedeu - EE, como companheira de facto que foi do ofendido até ao momento da sua morte, veio, por si própria e também em representação do filho menor de ambos, portanto, ambos titulares do direito de queixa, manifestar uma inequívoca vontade de perseguição criminal.
Portanto, analisando o requerimento de fls. 198 e os documentos que o instruíram (certidão do atestado emitido pela Junta de Freguesia de São Matias, a confirmar que EE vivia em união de facto com o ofendido - fls. 200; certidão do assento de nascimento do filho menor de ambos - fls. 202 e 203; cópia certificada do certificado de óbito do ofendido - fls. 205, e procuração forense - fls. 206), conjugadamente com o disposto nos arts. 113º, n.º 2, al. a) do Cód. Penal e 49º, n.ºs 1 e 3 do Cód. Proc. Penal, não temos dúvida de que o direito de queixa foi validamente exercido.”
É, também, inquestionável que o mandatário judicial munido de uma simples procuração pode apresentar queixa crime, no prazo legal.
A queixa crime, apresentada, em nome da demandante civil, EE, pela sua mandatária judicial, munida da procuração de fls. 206, é válida, tempestiva e confere ao MºPº, legitimidade para exercer a acção penal em causa.
A conclusão a retirar é a de que o recorrente tem razão, porquanto, não deveria ter-se “…determinado a extinção do procedimento criminal quanto ao crime de Ofensa à Integridade Física Simples, por falta de queixa, na medida em que esta foi de facto tempestivamente apresentada por parte de quem tinha legitimidade para o efeito, após o decesso do ofendido. Nem a declaração de extinção, por inutilidade superveniente, dos pedidos de indemnização civil, mas sim, a sua apreciação e análise, face aos elementos probatório e as normas legais aplicáveis.
A jurisprudência fixada pelo Acórdão n.º 4/2016, DR-36 SÉRIE I de 2016-02-22: “Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.”, não tem aplicação no caso “sub judice”, desde logo, por respeitar a situações processuais distintas e por este tribunal de recurso, não possuir os elementos necessários, para tal finalidade, por carência dos mesmos, quer quanto à matéria criminal, quer quanto à matéria dos pedidos de indemnização civil.

III - Decisão
Em face do exposto, acordam, em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença, apenas na parte que determinou, quer a extinção do procedimento criminal, relativo ao crime de Ofensa à Integridade Física Simples, imputado ao arguido BB, quer a extinção, por inutilidade superveniente, dos pedidos de indemnização civil.
Esses segmentos da sentença devem ser substituídos, após análise e decisão, quer sobre as consequências punitivas ou penalizadoras, sequenciais ao “Ponto III – Enquadramento fáctico-jurídico”, da mesma, não abrangido, pela revogação, quer sobre os pedidos de indemnização civil, expurgando-se, assim, a sentença das partes ora revogadas.
Sem custas.

(Processado por computador e integralmente revisto pela relatora que rubrica as restantes folhas).

Évora, 15/12/2016
Maria Isabel Duarte
José Maria Martins Simão