Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
925/18.7T8STB.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: DOCUMENTO
ALEGAÇÕES DE RECURSO
NRAU
ATUALIZAÇÃO DA RENDA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 12/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I – A transição para o NRAU e a atualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando, entre outros, o valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos (art. 30º, al. a), do NRAU).
II – Na resposta, o arrendatário que pretenda beneficiar da circunstância prevista na alínea b) do nº 4 do artigo 31º do NRAU – deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 % -, deve invocar essa exceção.
III – Ao afirmar na sua resposta que sofre de uma incapacidade e indicando a referida norma, não deixou o réu de invocar, pelo menos implicitamente, que pretende valer-se da exceção nela prevista.
IV - A interpretação daquela norma no sentido de exigir que o mesmo comprove documentalmente, na resposta à comunicação do senhorio, o grau de incapacidade - quando nessa resposta informou haver solicitado uma junta médica e enviou posteriormente ao senhorio documento que comprova ser portador de uma incapacidade de 82% - é, conforme decorre de tudo o exposto, desproporcionada e desnecessariamente onerosa e seria, como tal, inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
BB – Unipessoal, Lda. instaurou a presente ação de despejo, na forma de processo comum, contra CC e DD, pedindo que seja declarado resolvido o contrato de arrendamento que os réus celebraram com o anterior proprietário, e que estes sejam condenados à restituição imediata do locado e ao pagamento de uma indemnização correspondente ao valor mensal de renda por cada mês que ocuparem o locado após o momento em que o mesmo caducou e até à entrega efetiva.
Alegou a autora, em síntese, que adquiriu o imóvel descrito na Conservatória de Palmela sob o n.º …, onerado com o arrendamento em discussão, celebrado em 14.01.1977, cuja renda mensal era de € 30,70. Em 14.12.2012 foi remetida pelo anterior proprietário da fração ao réu marido uma carta transmitindo-lhe a intenção de transitar para o NRAU e a atualização da renda para o valor de € 173,00 mensais, tendo o réu respondido, por carta de 10.01.2013, opondo-se à transição para o NRAU, alegando nos termos e para os efeitos do artigo 31.º, n.º 4, al. b), e 5, 32.º, n.º 4, e 36.º, da Lei n.º 6/2006, que é portador de uma incapacidade e que tem a sua residência permanente no locado.
Alegou, por último, que em 08.02.2013, o anterior proprietário notificou o réu comunicando-lhe que o contrato havia transitado para o NRAU, passando a ter a duração de 5 anos, com fundamento em que o réu não alegou ter uma incapacidade superior a 60% nem comprovou qualquer incapacidade.
Os réus contestaram, contrapondo ser o réu detentor de uma incapacidade desde pelo menos o ano de 2003, razão pela qual recebe uma pensão de invalidez, sucedendo que à data dos factos, confrontado com o comprovativo do grau de invalidez, envidou todos os esforços para que a segurança social lhe facultasse o respetivo documento, o que não logrou obter, pelo que de imediato encetou diligências no sentido da obtenção de tal documento, tendo a médica de família requerido uma junta médica, cujo procedimento levou vários meses por motivos que não lhe são imputáveis.
Mais alegaram que o réu vive desde o ano de 2000 com incapacidade total e permanente, resultante de um AVC, e que não tinham conhecimento e alcance das novas regras de arrendamento, nomeadamente a relativa à comprovação do graus de invalidez, uma vez que sempre estiveram convencidos que o facto do réu marido receber uma pensão de invalidez e ser notório o seu estado físico, que isso se encontrava adquirido junto da segurança social.
Concluída a fase dos articulados, foi proferido despacho no qual se determinou a notificação das partes para dizerem se se opunham a que fosse proferido de imediato despacho saneador para conhecimento do mérito da causa, após se afirmar disporem os autos de todos os elementos para o efeito, e de se considerar desnecessária a designação de audiência prévia para discussão das questões de facto e de direito suscitadas pelas partes, por as mesmas se mostrarem suficientemente debatidas nos articulados, tendo as partes declarado nada ter a opor.
Foi então de seguida proferido despacho saneador/sentença, em cujo dispositivo se consignou:
«Em face do exposto, o Tribunal julga a presente ação procedente, por provada, e, em consequência, decide-se:
- declarar extinto o contrato de arrendamento em vigor entre as partes relativamente à fracção designada pela letra B, inscrita na matriz sob o artigo … e descrita na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob n.º …, e condenar os réus CC e DD a entregar a mesma à autora de imediato, livre de quaisquer pessoas e bens.
- condenar os réus no pagamento à autora indemnização em montante correspondente ao valor mensal estipulado para a renda desde a data do trânsito da presente decisão até integral e efectiva entrega. absolvendo-os do demais peticionado;
- condenar os réus no pagamento das custas do processo.»
Inconformados, os réus apelaram do assim decidido, tendo finalizado as alegações com trinta e nove prolixas e repetitivas conclusões, o que não satisfaz minimamente a enunciação sintética ou abreviada dos fundamentos do recurso, tal como exige o disposto no artigo 639º, nº 1, do CPC, e, por isso, não serão aqui transcritas.
Das mesmas conclusões resulta que as questões a decidir se prendem com a alegada nulidade da sentença, a invocação atempada da situação de invalidez do réu marido e o poder-dever do Tribunal a quo solicitar oficiosamente à Segurança Social comprovativo da incapacidade do réu.
A autora contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões essenciais a decidir, como acima se deixou antever, consubstanciam-se em saber:
- se o saneador/sentença enferma de nulidade;
- se a oposição do réus à comunicação do anterior proprietário do locado de fazer transitar o contrato de arrendamento em causa para o NRAU, com a consequente atualização da renda, pode considerar-se efetuada nos termos legalmente previstos;
- se o Tribunal a quo devia ter ordenado a realização de diligências no sentido de apurar o concreto grau de invalidez do réu marido.
Como questão prévia importará, em primeiro lugar, decidir sobre a admissibilidade dos documentos que os recorrentes juntaram com as respetivas alegações.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Embora na decisão recorrida não se tenha feito uma descrição em separado dos factos provados, resulta da respetiva fundamentação que foram tidos em consideração os seguintes factos:
1 - A autora é proprietária da fração designada pela letra B inscrita na matriz sob o artigo … da freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, descrita na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número …, correspondente ao rés-do-chão direito, para habitação, com acesso pelo n.º … da Rua … , em Pinhal Novo.
2 - Aquando da aquisição da fração, a mesma encontrava-se arrendada ao réu CC por contrato de arrendamento, celebrado em 14 de Janeiro de 1977, com o então proprietário Luiz Domingos Roque, sendo o valor da renda mensal de € 30,70 (trinta euros e setenta cêntimos).
3 - Por comunicação remetida em carta registada com aviso de receção em 14-12-2012, e recebida em 17-12-2012, o então proprietário da fração EE comunicou ao réu a sua intenção de proceder à transição do contrato de arrendamento em causa para o novo regime do arrendamento (NRAU), ao abrigo do disposto no artigo 30.º e seguintes da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei 31/2012 de 14 de Agosto, com a indicação do valor do locado e envio da caderneta predial, tendo proposto que o contrato passasse a ser com prazo certo e a duração de 5 anos e o valor da renda de 2.076,00€ anuais (173€ mensais), nos termos do documento n.º 4, junto com a p.i..
4 - O réu respondeu, por comunicação em carta registada com aviso de receção datada de 10 de Janeiro de 2013, tendo alegado quanto à transição do contrato para o NRAU:
“1 - Transição do contrato para o Regime do NRAU - Oponho-me que o contrato de arrendamento em vigor seja submetido ao NRAU, devendo manter-se inalterado o regime que até agora lhe tem sido aplicado, o que faço nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4, alínea b) e n.º 5 do art.º 31º, n.º 4 do art.º 32. e art.º 36.º, todos da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto; para tanto, invoco e comprovo (Cfr. copia da declaração de rendimentos onde consta a pensão de invalidez que segue em anexo) que tenho uma incapacidade e tenho no locado a minha residência permanente; Mais informo que solicitei junto do Delegado medio o comprovativo de invalidez.”
5 - O réu juntou com a missiva o documento constante de fls. 13 vº, emitido pelo ISS, I.P. - Centro Nacional de Pensões, datado de 12.01.2012, que identifica o réu como beneficiário de uma pensão de invalidez e velhice no valor anual de 3.449,04 EUR.
6 – Por carta registada datada de 08-02-2013, e recebida em 11-02-2013, o então proprietário e senhorio, comunicou ao réu, além do mais, que o contrato tinha transitado para o NRAU passando a ter a duração de 5 anos com inicio em 1 de Fevereiro de 2013 e termo em 31 de Janeiro de 2018 dado que o réu não alegou ter uma incapacidade superior a 60%, não comprovou ter uma incapacidade superior a 60% e não comprovou que pediu qualquer documento a atestar que tinha uma incapacidade e superior a 60% (cfr. fls. 15-16).
7 - O réu respondeu através de carta registada com aviso de receção, datada de 18.02.2013, do seguinte teor:
«(…).
No seguimento das missivas anteriormente enviadas e da V. comunicação de 8 de Fevereiro de 2013, venho remeter o comprovativo em como foi solicitado junto do agrupamento de centros de saúde de Setúbal-Palmela junta médica para Avaliação de incapacidade conforme referido em comunicação anterior.
Mais informa que se encontra reformado por invalidez pela segurança social desde 2006, desconhecendo o grau de incapacidade, e como nunca foi necessário aferir tal incapacidade, não fo a mesma solicitada junto da entidade competente, só o fazendo neste momento.»
8 – Com a referida carta juntou o réu uma declaração datada de 14.02.2013, comprovativa de que o mesmo havia solicitado no Agrupamento de Centros de Saúde de Setúbal e Palmela uma junta médica para obtenção do atestado médico de Incapacidade multiusos, e que o mesmo aguardava a respetiva marcação (cfr. fls. 18).
9 - Por meio de carta registada com aviso de receção enviada em 26 de Junho de 2017 e recebida em 28-06-2017, a autora comunicou aos réus que, nos termos e para os efeitos do vertido no artigo 1097.° do Código Civil, que se opunha à renovação do contrato de arrendamento vigente, pelo que o mesmo iria cessar em 31 de Janeiro de 2018, nos termos dos documentos constante de fls. 19 vº e ss.

O DIREITO
Questão prévia: da admissibilidade dos documentos juntos com as alegações de recurso
Com as alegações de recurso juntaram os recorrentes fotocópia de um “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso” (fls. 73 vº) que enviaram ao anterior senhorio, EE, por carta registada, com aviso de receção, datada de 14 de Novembro de 2013, cuja fotocópia foi também junta pelos recorrentes (fls. 73), a qual reza do seguinte modo:
«(…).
Assunto: Contrato de arrendamento do R/C do prédio urbano sito na Rua … n.º … R/C Dt.º, Pinhal Novo, (…).
No seguimento das missivas anteriores trocadas, somos apresentar conforme foi informado, o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso emitida pelo serviço de Junta Médica de Lisboa e Vale do Tejo que atesta uma incapacidade de 82% a CC.»
Juntaram também os recorrentes documento comprovativo do envio da carta e do respetivo aviso de receção (fls. 72 e 72 vº).
Nos termos do artigo 651º, nº 1, do CPC, «as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º[1] ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância».
Da conjugação destas normas resulta que a junção de documentos em sede de recurso (junção que é considerada apenas a título excecional) depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: i) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, valendo aqui a remissão do artigo 651º, nº 1 para o artigo 425º; ii) o ter o julgamento da primeira instância introduzido na ação um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí – até ao julgamento em primeira instância – se mostrava desfasada do objeto da ação ou inútil relativamente a este[2].
O primeiro elemento referido – a impossibilidade de apresentação anterior – legitima as partes a utilizar no recurso, juntando-os com a motivação deste, documentos cuja apresentação não tenha sido possível até esse momento, ou seja, até ao julgamento em primeira instância, o que pressupõe aquilo que se refere como superveniência objetiva ou subjetiva do documento pretendido juntar[3].
No tocante à superveniência subjetiva não basta, porém, invocar que só se teve conhecimento da existência do documento depois do encerramento da discussão em 1ª instância, impondo-se outrossim a demonstração da impossibilidade da sua junção até esse momento e, portanto, que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua.
No entanto, conforme se vem entendendo[4], só o desconhecimento tempestivo da existência do documento assente numa negligência grave deve obstar à sua alegação como documento subjetivamente superveniente, pelo que, sempre que a parte desconheça sem negligência grave um documento e, por esse motivo, não o tenha oferecido no momento próprio, a sua junção não fica irremediavelmente precludida e aquele documento pode ser invocado como documento subjetivamente superveniente. Em qualquer caso, a parte deve alegar e demonstrar que o desconhecimento do documento não ficou a dever-se a negligência sua, posto que só desse modo o documento pode ter-se por subjetivamente superveniente.
No caso em apreço, não podemos deixar de considerar a particular situação do réu marido, sendo particularmente significativo o facto da procuração que outorgou à sua mandatária ter sido assinada pela ré mulher, a rogo daquele, em virtude do réu “não poder assinar”[5], o que corrobora de certo maneira a alegação dos recorrentes de que o mesmo é “analfabeto”, não olvidando outrossim que os réus são pessoas já com alguma idade – o réu marido com 66 anos e as limitações referidas e a ré mulher com 63 anos e desempregada[6] –, pelo que se afigura compreensível que após a decisão que decretou o despejo dos réus do locado, estes tenham solicitado o apoio de uma pessoa amiga no sentido de encontrar, junto com outros papéis, alguma prova de correspondência trocada com o anterior senhorio que pudesse comprovar terem os réus dado a conhecer àquele o grau de incapacidade do réu, e que com a ajuda dessa pessoa amiga tenham encontrado os documentos cuja junção pretendem, os quais se encontravam juntos com outros papéis em sacos.
Ora, se os réus tivessem um real e efetivo conhecimento dos documentos quando foram citados para a ação e tivessem fácil acesso aos mesmos[7], não teriam deixado de os juntar com a contestação, dada a inegável importância que tais documentos revestem para a boa decisão da causa, até porque estando representados por uma senhora advogada nos autos, não deixariam de ser alertados da importância dessa junção[8].
Em suma, afigura-se plausível a justificação apresentada pelos recorrentes, não se vislumbrando negligência da sua parte para só com as alegações de recurso terem junto os aludidos documentos.
Termos em que se admite a sua junção aos autos.

Da nulidade do saneador/sentença
Dizem os recorrentes que o Tribunal recorrido fez “uma má apreciação da prova” quando na sua fundamentação refere que «a circunstância de o réu ser portador de uma efetiva incapacidade, que nesta sede veio alegar que é de 82%, continuando contudo, passados 5 anos, sem juntar prova do alegado (pois não juntou aos autos qualquer documento que ateste a sua incapacidade)», acrescentando ser «esta uma questão que o Tribunal a quo devia ter conhecimento», mas de que fez “tábua rasa, uma vez que não solicitou tal documento à segurança social conforme lhe competia e aliás conforme instado pelos réus (…) violando assim o princípio da oficiosidade e descoberta da verdade», o que no entender dos recorrentes consubstancia «a nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d) do CPC (…) havendo assim um vício real no raciocínio do julgador, nos termos do art. 615º, nº 1, al. c)».
De acordo com a alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC, temos que a sentença é nula “Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»; tal normativo está em consonância com o comando do nº 2 do artigo 608.º do CPC, no qual se prescreve que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Por outro lado, como é jurisprudência unânime, não há que confundir questões colocadas pelas partes à decisão, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido[9].
Questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do artigo 615º, nº 1, al. d), do CPC. Daí que, se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este se não pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.
Ora, o facto de a Sr.ª Juíza a quo não ter solicitado qualquer documento à segurança social no sentido de comprovar o grau de incapacidade do réu marido poderá consubstanciar, eventualmente, uma nulidade processual, por violação do princípio do inquisitório, nos termos do disposto no artigo 195º, nº 1, a arguir pelo interessado nos termos dos artigos 197º e 199º, todos do CPC, mas nunca uma nulidade da sentença.
O mesmo se diga, aliás, quanto ao alegado “vício real no raciocínio do julgador, nos termos do artigo 615º, nº 1, al. c)”.
Em primeiro lugar não identificam os recorrentes em que é que se traduz esse vício, que poderia eventualmente gerar a nulidade da sentença por os fundamentos estarem em oposição, ou tornar esta ininteligível por ser ambígua ou obscura.
E compreende-se que os recorrentes não o façam, pois não só o saneador/ sentença é perfeitamente claro, como inexiste qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão.
A nulidade de uma decisão judicial é um vício intrínseco da mesma e não se confunde com um hipotético erro de julgamento, de facto ou de direito, que é aquilo que está verdadeiramente em causa no recurso.
Em suma, a sentença não enferma das nulidades invocadas pelos recorrentes.

Da validade da oposição do réus à comunicação do anterior proprietário do locado de fazer transitar o contrato de arrendamento em causa para o NRAU.
Nestes autos está em causa um contrato de arrendamento para habitação que foi celebrado em 1977. Trata-se, pois, de contrato de arrendamento celebrado antes da vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15.10, e, por conseguinte, anterior à entrada em vigor do novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27.02 (a entrada em vigor ocorreu em 28.6.2006 – art.º 65.º do NRAU).
O NRAU aplica-se às relações contratuais subsistentes à data da sua entrada em vigor, sendo certo que no que se refere à resolução do contrato pelo motivo invocado pelos autores (falta de pagamento de rendas), não existem normas transitórias que prevejam especialidades em relação aos contratos já existentes (cfr. artigos 59.º n.º 1, 26.º, 27.º e 28.º do NRAU).
Na senda da política de atualização das chamadas “rendas antigas”, ou seja, rendas relativas a contratos de arrendamento habitacionais celebrados antes da vigência do DL n.º 321-B/90 (RAU) e contratos não habitacionais celebrados antes da vigência do DL n.º 257/95, de 30.9, o NRAU, com a redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14.8, instituiu o sistema de transição para o NRAU e de atualização de rendas previsto, quanto aos arrendamentos para habitação, nos artigos 30.º a 37.º, assente na interpelação do arrendatário por parte do senhorio e resposta daquele com determinados efeitos e cominações, em que o rendimento do agregado familiar do arrendatário, a sua idade e os eu grau de deficiência poderão ter efeito relevante.
De acordo com o disposto no artigo 31º do NRAU, o arrendatário, poderá responder à pretensão do senhorio, no prazo de 30 dias, tomando uma das seguintes posições:
a) aceitar o valor da renda proposto pelo senhorio;
b) opor-se ao valor da renda proposto pelo senhorio, propondo um novo valor;
c) pronunciar-se quanto ao tipo e/ou à duração do contrato propostos pelo Senhorio; ou
d) denunciar o contrato de arrendamento.
Quando o arrendatário tenha no locado a sua residência permanente, ou quando a falta de residência permanente for devida a caso de força maior ou doença, pode ainda o arrendatário invocar na sua resposta que:
i) O rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado familiar é inferior a 5 retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA);
ii) Tem idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
Deverá, o arrendatário, em qualquer uma destas circunstâncias, juntar os documentos comprovativos previstos no artigo 32º do NRAU.
Na falta de resposta do arrendatário dentro do prazo legal, a lei presume que ele aceita a renda pretendida pelo senhorio, bem como a alteração do regime de duração do contrato, ficando, assim, o contrato submetido ao NRAU e, no silêncio ou na falta de acordo das partes acerca do tipo ou da duração do contrato, este considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de 5 anos.
Caso o arrendatário invoque e prove documentalmente, na resposta à comunicação inicial do senhorio, destinada a alterar o contrato de arrendamento, que o rendimento anual bruto corrigido do seu agregado familiar é inferior a cinco retribuições mínimas nacionais, o contrato não poderá ser denunciado por iniciativa do senhorio e o regime temporal do contrato permanecerá inalterado durante cinco anos, findo o qual o senhorio poderá então promover a transição do contrato para o NRAU, podendo o senhorio voltar a exigir a renda máxima calculada com base no valor patrimonial do arrendado (artigo 35º).
Se o arrendatário idoso ou deficiente não invocar carência económica, não demonstrando que o rendimento do seu agregado familiar é inferior a 5 RMNA, a renda será fixada, na ausência de acordo, por aplicação da fórmula prevista no nº 2, alíneas a) e b) do artigo 35º, sendo a renda calculada com base no valor patrimonial do local arrendado, ou seja, com o limite máximo do valor anual correspondente a 1/15 do VPT do locado (artigo 36º).
Revertendo ao caso dos autos, está provado que por comunicação remetida através de carta registada com aviso de receção de 14.12.2012, e recebida em 17.12.2012, o então proprietário da fração, EE, comunicou ao réu a sua intenção de proceder à transição do contrato de arrendamento em causa para o novo regime do arrendamento (NRAU), ao abrigo do disposto no artigo 30º e seguintes da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei 31/2012 de 14 de Agosto, com a indicação do valor do locado e envio da caderneta predial, tendo proposto que o contrato passasse a ser com prazo certo e a duração de 5 anos e o valor da renda de € 2.076,00 anuais (€ 173 mensais).
O réu respondeu por carta registada com aviso de receção, datada de 10 de Janeiro de 2013, dizendo o seguinte:
«(…) Oponho-me que o contrato de arrendamento em vigor seja submetido ao NRAU, devendo manter-se inalterado o regime que até agora lhe tem sido aplicado, o que faço nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4, alínea b) e n.º 5 do art.º 31º, n.º 4 do art.º 32. e art.º 36.º, todos da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto; para tanto, invoco e comprovo (cfr. cópia da declaração de rendimentos onde consta a pensão de invalidez que segue em anexo) que tenho uma incapacidade e tenho no locado a minha residência permanente; Mais informo que solicitei junto do Delegado medio o comprovativo de invalidez.»
Com a referida missiva, o réu juntou o documento constante de fls. 13 vº, emitido pelo ISS, I.P. - Centro Nacional de Pensões, datado de 12.01.2012, que identifica o réu como beneficiário de uma pensão de invalidez e velhice no valor anual de 3.449,04 EUR.
Por carta registada com aviso de receção datada de 08.02.2013, e recebida em 11.02.2013, o então proprietário e senhorio comunicou ao réu, além do mais, que o contrato tinha transitado para o NRAU passando a ter a duração de 5 anos com inicio em 1 de Fevereiro de 2013 e termo em 31 de Janeiro de 2018, uma vez que o réu não alegou ter uma incapacidade superior a 60%, não comprovou ter esse grau de incapacidade, assim como não comprovou ter pedido qualquer documento a atestar que tinha uma incapacidade superior a 60%.
O réu respondeu a esta última missiva através de carta registada com aviso de receção, datada de 18.02.2013, juntando uma declaração do Agrupamento de Centros de Saúde de Setúbal-Palmela, comprovativa de que o mesmo tinha solicitado uma junta médica para obtenção do atestado médico de Incapacidade multiusos.
A questão essencial posta no recurso é, pois, a de saber se a oposição inicial deduzida pelo réu à proposta de renda mensal feita pelo então senhorio, cumpre os requisitos do art. 31º, nº 4, do NRAU.
Na sentença recorrida respondeu-se negativamente a esta questão, com a seguinte argumentação:
«(…), não só o réu não invocou cabalmente perante o senhorio os factos que poderiam produzir tal efeitos, tendo feito simples alusão ao facto de ter uma incapacidade, sem especificar o grau de incapacidade. Considerando que não é juridicamente relevante uma qualquer incapacidade, mas apenas uma incapacidade superior a 60%.
Além de que, ainda que se admitisse que implicitamente invocou uma incapacidade superior a 60% na medida em que fez referência directa ao artigo, com indicação do número e alínea em causa, a verdade é que o réu também não juntou com a resposta qualquer comprovativo da invocada incapacidade ou de ter solicitado junto das entidade competente para o efeito a emissão do certificado de incapacidade.
E nesta medida e atento o disposto no art. 32.º, n.º 4, concluiu-se que não pode o réu prevalecer-se das referidas circunstâncias, sendo de considerar ineficaz a oposição nessa parte.
Com efeito, o regime legal dos artigos 30º e ss. do NRAU, que prevê a troca de comunicações entre o senhorio e o arrendatário em vista à transição para o novo regime, prossegue o objectivo precípuo de uma rápida definição do estatuto do contrato.
E nesse sentido, compreende-se a imposição de diversos ónus ao arrendatário que seja confrontado com a intenção do senhorio de submeter o contrato ao NRAU e de actualizar a renda comunicada nos termos do artigo 30°, a saber, um ónus de resposta à intenção do senhorio de submeter o contrato ao NRAU, um ónus de alegação de circunstâncias que podem condicionar ou, no limite, impedir a transição do contrato para o NRAU sem o acordo do arrendatário (artigo 31°, nº 4) e um ónus de comprovação de tais circunstâncias (artigo 32°).
Sendo certo que, se o ónus de comprovação das circunstâncias alegadas, com as consequências preclusivas que a lei previu possa ser excessivamente gravoso, severo ou desproporcionado face aos interesses acautelados, os ónus de resposta de invocação das circunstâncias e de demostração de que o comprovativo foi requerido é perfeitamente proporcional e necessário aos interesses em causa- neste sentido vide acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.05.2017, proc. n.º 2764/16.0YLPRT.L 1-7, disponível em www.dgsi.pt
Cumpre referir que a circunstância de o réu ser portador de uma efetiva incapacidade, que nesta sede veio alegar que é de 82%, continuando contudo, passados 5 anos, sem juntar prova do alegado (pois não juntou aos autos qualquer documento que ateste a sua incapacidade), não pode constituir neste momento fundamento para considerar-se ineficaz a transmissão para o NRAU à luz do que é o quadro normativo pelo qual se rege tal matéria, sem prejuízo da resposta social a que o réu deva beneficiar.
Neste conspecto, e tendo a senhoria respondido ao réu em 08.02.213, informando que o contrato transitaria para o NRAU e que aguardaria que o réu apresentasse os comprovativos necessários quanto a s rendimentos, impõe-se considerar o contrato transitado para o NRAU nos termos do art. 33.º, n.º 5, al. b), da Lei n.º 6/2006.
Assim, o contrato passou a ter prazo certo e pelo período de cinco anos, contados a partir de 11.02.2013, data da comunicação de não aceitação dos termos da oposição do réu.»
Entendemos, salvo o devido respeito, que a posição adotada na decisão recorrida padece de um formalismo excessivo e faz uma interpretação restritiva da norma da alínea b) do nº 4 do artigo 31º do NRAU, que a mesma não impõe.
O que se exige na referida norma é que o arrendatário indique na sua resposta ser portador de uma deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %, sendo que no caso vertente o réu marido, embora não tenha referido concretamente o grau de incapacidade, não deixou de indicar expressamente o normativo em causa, devendo por isso entender-se que o réu, pelo menos implicitamente, alegou uma incapacidade superior a 60%, como aliás se reconhece na decisão recorrida, pois de outro modo não faria sentido a referência ao art. 31º, nº 4, al. b) da Lei nº 6/2006, na redação dada pela Lei nº 21/2012.
Esta circunstância, conjugada com o facto de o réu, na carta de 10.01.2013, na qual se opôs à transição do contrato de arrendamento para o NRAU e atualização da renda, ter referido expressamente ter uma incapacidade, permite concluir que o réu invocou a sua incapacidade e, pelo menos implicitamente, que a mesma é superior a 60%.
Resta, assim, apreciar o outro fundamento invocado na decisão recorrida para se considerar improcedente a oposição do réu: «(…) não juntou com a resposta qualquer comprovativo da invocada incapacidade ou de ter solicitado junto das entidade competente para o efeito a emissão do certificado de incapacidade».
Ora, esta afirmação é, desde logo, desmentida pela factualidade apurada.
Na verdade, como resulta do ponto 8 do elenco dos factos supra, com a carta de 18.02.2013 a que se alude no ponto 7, o réu juntou uma declaração datada de 14.02.2013, comprovativa de que o mesmo havia solicitado no Agrupamento de Centros de Saúde de Setúbal e Palmela uma junta médica para obtenção do atestado médico de Incapacidade multiusos, e que o mesmo aguardava a respetiva marcação.
E, como resulta do documento admitido nesta sede recursiva, o réu enviou ao anterior senhorio uma carta registada com aviso de receção datada de 14.11.2013, com a qual juntou o “Atestado Médico de Incapacidade Multiusos” de 05.11.2013, do qual resulta ser o réu portador de uma incapacidade de 82%.
Ora, este facto não podia ser desconhecido do anterior senhorio que, convenientemente, não o terá mencionado à autora, que apenas adquiriu o imóvel no qual se situa o locado em 02.06.2017, como se colhe da certidão permanente do registo predial online junta a fls. 7 vº e 8[10].
A este propósito importa ainda ter presente a Lei n.º 79/2014, de 19.12, que veio alterar o regime de prova dos rendimentos perante o senhorio, estabelecendo, no nº 5 do art. 35º[11], que o inquilino fará a referida prova «pela mesma forma e até ao dia 30 de setembro, quando essa prova seja exigida pelo senhorio até ao dia 1 de setembro do respetivo ano, (…)».
Essa alteração enquadra-se, aliás, no objetivo de proteger o inquilino face a frequentes e compreensíveis situações de desconhecimento ou imprevidência, de que se dá nota na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 250/XII (4.ª) que deu origem à Lei n.º 79/2014: «…a monitorização da reforma (…) revelou que existiam alguns aspetos do regime legal previsto que podiam e deviam ser melhorados, nomeadamente no que respeita à transição dos contratos mais antigos para o novo regime.
Assim, alguns dos procedimentos previstos nessa matéria carecem de ajustamento e foram refletidos, inclusivamente, nas sugestões da Comissão de Monitorização da Reforma do Arrendamento Urbano, nomeadamente quanto à informação exigível na comunicação realizada pelo senhorio para atualização de renda, no sentido de esclarecer o inquilino das consequências da falta ou da extemporaneidade da sua resposta ou quanto à comprovação anual dos rendimentos por parte dos arrendatários, cujo regime legal apontava para um momento temporal que não se revelava articulado com a liquidação anual dos impostos sobre o rendimento.»
Este novo regime procura corresponder a preocupações de proporção e justiça que vieram a ser expressamente apontadas pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 277/2016, de 04.5.2016, da 2.ª secção.[12]
Com efeito, nesse acórdão o Tribunal Constitucional, analisando o procedimento de transição para o NRAU e de atualização das rendas supra referido, aprovado pelo NRAU revisto, emitiu o seguinte juízo de inconstitucionalidade:
“Julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 30.º, 31.º e 32.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, segundo a qual «os inquilinos que não enviem os documentos comprovativos dos regimes de exceção que invoquem (seja quanto aos rendimentos, seja quanto à idade ou ao grau de deficiência) ficam automaticamente impedidos de beneficiar das referidas circunstâncias, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos documentos e das consequências da sua não junção», por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição”.
Nesse acórdão o Tribunal Constitucional lembrou e ponderou que:
-a proibição do excesso (ou a proporcionalidade em sentido amplo) constitui, tal como o princípio da proibição do arbítrio, uma componente elementar da ideia de justiça, razão por que aquele princípio pode reclamar uma validade geral;
-tal princípio constitui um princípio geral de limitação do poder público, que se ancora no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição;
-o princípio da proibição de excesso postula que entre o conteúdo da decisão do poder público e o fim por ela prosseguido haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma justa medida;
-existe violação do princípio da proporcionalidade se a medida em análise for considerada inadequada (convicção clara de que a medida é, em si mesma, inócua, indiferente ou até negativa, relativamente ao fim visado); ou desnecessária (convicção clara da existência de meios adequados alternativos mas menos onerosos para alcançar o fim visado); ou desproporcionada (convicção de que o ganho de interesse público inerente ao fim visado não justifica nem compensa a carga coativa imposta; relação desequilibrada entre os custos e os benefícios);
-in casu está em causa a aplicação do princípio da preclusão, de origem processual, à possibilidade de o arrendatário, não obstante as ter invocado oportunamente, se prevalecer de certas situações preexistentes, que têm natureza objetiva – porque verificáveis por terceiros e conhecidas das autoridades públicas – e duradoura, ocorrendo a preclusão em apreço não no quadro de um processo judicial, mas de um procedimento negocial desencadeado pelo senhorio e sem que este se encontre vinculado a advertir o arrendatário para as consequências da inobservância daquele ónus de comprovação;
-devem valer aqui, ainda com mais razão, as exigências que o Tribunal Constitucional tem vindo a formular a propósito do processo;
-o Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurisprudência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em questão a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vetores essenciais:
-a justificação da exigência processual em causa;
-a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado;
-e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus;
-o objetivo visado com a referida solução legal contida no NRAU é a célere definição do estatuto do contrato de arrendamento, uma vez comunicada a intenção do senhorio de o fazer transitar para o NRAU. Este fim interessa não apenas ao próprio senhorio, como, tendo em conta a apreciação feita pelo legislador relativamente à interdependência entre a reforma do regime do arrendamento concretizada no NRAU e a dinamização do mercado do arrendamento, a toda a comunidade. Trata-se, pois, de um fim legítimo;
-porém, o sistema preclusivo em análise é desnecessário para o efeito pretendido, pois nada impediria que, até ao momento em que tais circunstâncias pessoais do arrendatário fossem por este devidamente comprovadas, a transição prosseguisse sob condição. Agindo de boa fé, como é dever de todas as partes contratuais, o arrendatário também tem interesse numa rápida clarificação da situação. O mais tardar, no âmbito do procedimento especial de despejo referido nos artigos 15.º e seguintes do NRAU, a veracidade das alegações do arrendatário teria de ser comprovada, sem prejuízo do dever de compensação de eventuais danos causados pela demora na comprovação daquelas situações objetivas;
-A solução consubstanciada nas normas referidas revela-se, além disso, desproporcionadamente onerosa para o arrendatário, por comparação com os benefícios que a mesma traz para o senhorio e para o interesse comum. Aliás, estes não seriam excessivamente lesados caso tal norma não vigorasse. Com efeito, o senhorio não perde nem o seu direito a promover a transição para o NRAU nem o direito a eventuais compensações devidas pela demora na efetivação dessa mesma transição. Já o arrendatário que reúna as condições que alega – RABC inferior a cinco RMNA e idade igual ou superior a 65 anos ou com deficiência com grau de incapacidade superior a 60% – sem as comprovar no momento devido - e que até à comunicação da intenção do senhorio de fazer transitar o seu contrato de arrendamento para o NRAU gozava de um direito consolidado ao locado com uma certa renda, fica, por força de tal norma, numa situação muito precária, já que o seu direito à habitação no locado e a garantia de uma renda ajustada ao seu rendimento ficam dependentes da boa vontade do senhorio. Ou seja, numa fase já muito avançada da vida, e em que dificilmente encontrará soluções equivalentes à que tinha por consolidada, o arrendatário pode, contra a sua vontade, ver-se confrontado com um contrato de arrendamento com prazo certo e, portanto, sujeito a caducidade, e, ou, com uma renda de valor demasiado elevado para o seu nível de rendimentos.
Todo este circunstancialismo fundou o juízo de inconstitucionalidade acima referido, o qual, por idênticas razões poderia valer para a situação dos autos, no sentido de considerar inconstitucional uma interpretação do art. 31º, nº 4, do NRAU, como a que foi feita na sentença recorrida.
Ora, «[a] busca de uma juditium assente no apuramento da realidade das coisas e, tanto quanto possível, não no desenlace resultante de efeitos preclusivos emergentes, nomeadamente, de meras omissões, percorre atualmente a lei adjetiva, maxime através de mecanismos de advertência da parte relapsa (cfr., v.g., no processo civil, artigos 41.º, 48.,º n.º 2, 139.º n.ºs 6 e 7, 145.º n.º 3, 570.º n.º s 3 a 5, 642.º n.º 1, do CPC). Podendo indicar-se, na mesma senda e no campo da prova de manutenção de requisitos de benefícios atinentes a matéria da competência dos tribunais judiciais, v.g., o disposto nos n.ºs 4 e 5 do art.º 9.º do Dec.-Lei n.º 164/99, de 13.5, diploma que constituiu o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores e regula a garantia de alimentos devidos a menores prevista na Lei n.º 75/98, de 19.11:
“Artigo 9.º
Articulação entre as entidades competentes
1 - O montante fixado pelo tribunal mantém-se enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado.
(…)
4 - A pessoa que receber a prestação deve, no prazo de um ano a contar do pagamento da primeira prestação, renovar, perante o tribunal competente, a prova de que se mantêm os pressupostos subjacentes à sua atribuição.
5- Caso a renovação da prova não seja realizada, o tribunal notifica a pessoa que receber a prestação para a fazer no prazo de 10 dias, sob pena da cessação desta.
(…).»[13]
Assim, ainda que se entenda não ter o arrendatário marido comprovado documentalmente a exceção prevista no nº 4 do art. 31º do NRAU, a interpretação daquela norma no sentido de exigir que o mesmo comprove documentalmente, na resposta à comunicação do senhorio, o grau de incapacidade - quando nessa resposta informou haver solicitado uma junta médica e enviou posteriormente ao senhorio documento que comprova ser portador de uma incapacidade de 82% - é, conforme decorre de tudo o exposto, desproporcionada e desnecessariamente onerosa e seria, como tal, inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição[14].
O recurso merece, pois, provimento, ficando prejudicado o conhecimento da 3ª questão acima enunciada.
Vencida no recurso e na ação, a apelada suportará as custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário:
I – A transição para o NRAU e a atualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando, entre outros, o valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos (art. 30º, al. a), do NRAU).
II – Na resposta, o arrendatário que pretenda beneficiar da circunstância prevista na alínea b) do nº 4 do artigo 31º do NRAU – deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 % -, deve invocar essa exceção.
III – Ao afirmar na sua resposta que sofre de uma incapacidade e indicando a referida norma, não deixou o réu de invocar, pelo menos implicitamente, que pretende valer-se da exceção nela prevista.
IV - A interpretação daquela norma no sentido de exigir que o mesmo comprove documentalmente, na resposta à comunicação do senhorio, o grau de incapacidade - quando nessa resposta informou haver solicitado uma junta médica e enviou posteriormente ao senhorio documento que comprova ser portador de uma incapacidade de 82% - é, conforme decorre de tudo o exposto, desproporcionada e desnecessariamente onerosa e seria, como tal, inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida, absolvendo os réus do pedido.
Custas em ambas as instâncias a cargo da autora.
*
Évora, 20 de Dezembro de 2018
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião

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[1] Nos termos daquele preceito, «[d]epois do encerramento da discussão, só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento». Com efeito, como decorre do disposto no novo artigo 423º do CPC, «[o]s documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se alegam os factos correspondentes» (n.º 1) e, «[s]e não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pode oferecer com o articulado» (n. º2). É que, «[a]pós o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior» (n.º 3).
[2] Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 18.11.2014, proc. 628/13.9TBGRD.C1, in www.dgsi.pt.
[3] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, Almedina, p. 191.
[4] Cfr., por todos, o acórdão da Relação de Coimbra de 20.01.2015, proc. 2996/12.0TBFIG.C1, in www.dgsi.pt.
[5] Cfr. docs. de fls. 41 vº e 42.
[6] Cfr. requerimentos de proteção jurídica juntos a fls. 38 e seguintes.
[7] Importa notar que se trata de uma fotocópia de um documento enviado ao anterior senhorio.
[8] Sem embago, sempre se dirá que o caso concreto, com as suas particularidades, impunha à Sr.ª Juíza a quo, ao abrigo do princípio do inquisitório plasmado no art. 411º do CPC, que antes de proferir decisão sobre o mérito da causa, ordenasse a realização de diligências no sentido de apurar o efetivo grau de incapacidade do réu marido, como, aliás, foi requerido pelos réus no final da contestação.
[9] Cfr., inter alia, Ac. do STJ de 08.02.2011, proc. 842/04.8TBTMR.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[10] Por isso, contrariamente ao sustentado pelos recorrentes, não faz sentido falar-se em “má fé do autor, ao omitir o posse da prova documental da incapacidade do réu”.
[11] Aplicável às situações de arrendatário com idade igual ou superior a 65 anos ou com deficiência com grau de incapacidade igual ou superior a 60%, ex vi do art. 36º, nº 7, al. c) da mesma Lei.
[12] Consultável in www.tribunalconstitucional.pt.
[13] Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 20.10.2016, proc. 758/16.5 YLPRT.L1-2, in www.dgsi.pt., que aqui seguimos de perto.
[14] Assim se pronunciou esta Relação, com este Coletivo de Juízes, num caso em que estava em discussão o comprovativo do RBAC, no acórdão de 25.05.2017, proc. 294/14.4TBOLH.E1, in www.dgsi.pt.