Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
250/18.3T9STR.E1
Relator: ANA BACELAR CRUZ
Descritores: DESISTÊNCIA DA QUEIXA
RENÚNCIA
COMPARTICIPANTE
Data do Acordão: 02/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – O termo renúncia traduz um comportamento levado a cabo antes do procedimento criminal estar instaurado. Pendente que esteja o processo criminal, só pode configurar-se a desistência dele.

II - Este entendimento encontra expressão nos n.ºs 1 e 2 do artigo 116.º do Código Penal, onde se distingue a renúncia da desistência – aquela é impeditiva do exercício do direito de queixa e esta extingue-o. Dito de outra forma, após o exercício do direito de queixa já não é possível a ela renunciar, mas apenas dela desistir.

III – Em processo crime de natureza particular não compete ao Assistente, na ocasião em que formula a sua acusação, proceder à análise da prova produzida no processo, para a justificar. Porque, conforme decorre do disposto no artigo 285.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, essa avaliação deve ser feita pelo Ministério Público, limitando-se o Assistente a aderir ou não a ela.

IV - E não aderindo, apenas não pode deixar de acusar quem o Ministério Público entende que cometeu o crime denunciado. Ou seja, pode acusar quem o Ministério Público entende não ter cometido tal crime.

V - Naturalmente que admitimos situações limite, em que o Assistente discorde da avaliação do Ministério Público relativamente à suficiência de indícios. Em semelhante situação, deve justificar porque não acusa quem o Ministério Público entende ter cometido o crime denunciado. Porque constitui renúncia ao direito a acusar e equivale a desistência de queixa a não acusação particular, quando o Ministério Público entende que há indícios nos autos para que seja formulada.

VI - Nesta hipótese, e apenas perante a sua verificação, tem lugar a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 116.º do Código de Processo Penal – a desistência relativamente a um dos comparticipantes aproveita aos restantes.

Sumariado pela relatora
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora


I. RELATÓRIO
Nos autos de instrução que, com o n.º 250/18.3T9STR, correm pelo Tribunal da Instrução Criminal de Santarém da Comarca de Santarém, em 18 de setembro de 2019, foi proferida decisão judicial que considerou ocorrer renúncia tácita a queixa apresentada contra uma das pessoas neles denunciada pela prática, em comparticipação, de um crime de difamação, previsto e punível pelos artigos 180.º, n.º 1, 182.º e 183.º, n.º 2, todos do Código Penal.

E, em consequência, ordenou-se a notificação dos Arguidos nos termos e para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 51.º do Código de Processo Penal.

Inconformado com tal decisão, o Assistente HH dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«1ª – Em sede de inquérito, o Ministério Público entendeu não terem sido recolhidos indícios da prática de crime pelo arguido BB, expressamente indicando as disposições legais em que se baseou para tanto, os artigos 71.º, n.ºs 1 e 3 e 35.º n.º 1 da Lei da Televisão – “o diretor referido no artigo 35.º apenas responde criminalmente…”, “Cada serviço de programas televisivo deve ter um diretor responsável pela orientação e supervisão do conteúdo de emissões.”;

2ª – Nesse seguimento, o assistente não deduziu acusação particular contra o arguido BB, e no subsequente despacho de arquivamento quanto a tal arguido, o Ministério Público deixou consignado que “a sua abstenção de acusar BB não pode ter-se por injustificada, na medida em que, como demos a entender a fls. 203, a Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido não estende a responsabilização criminal pelos conteúdos de um programa televisivo como aquele em apreço nos autos ao Diretor Geral do canal de televisão, posição exercida precisamente pelo arguido BB”;

3ª – Resultou do inquérito que aquele arguido não teve qualquer comparticipação nos factos em apreço, isto é, não teve qualquer intervenção (participação) na prática do crime, posição expressamente assumida pelo Ministério Público em sede de inquérito e com o que veio o assistente a concordar nesse passo e quanto a tal arguido, deduzindo acusação particular apenas contra os restantes;

4ª – Não foi invocado, defendido ou decidido em sede de instrução que aquele arguido tenha efetivamente comparticipado nos factos em apreço ou que disso haja qualquer indício, pelo que não há qualquer desistência de queixa relativamente a um dos comparticipantes nem isso aproveita ou pode aproveitar aos demais arguidos;

5ª – De outra forma e vingando o entendimento perfilhado na decisão recorrida, antes acaba por traduzir um convite/imposição da prática de atos perfeitamente inúteis, preconizando-se deva o assistente acusar também o arguido que o inquérito revelou não ser comparticipante, e para que venha este a ser injustificadamente sujeito a julgamento ou instrução;

6ª – O assistente não se absteve de acusar quem nos factos tenha comparticipado;

7ª – O assistente foi notificado para, querendo, deduzir acusação particular, não para deduzir ou fundamentar qualquer arquivamento (que os próprios autos justificam), para o que nem sequer tem legitimidade, nem aquela invocação cabe ou pode caber numa acusação particular (artigos 285.º e 283.º 3, 7 e 8 do CPP);

8ª – Atendendo à investigação e às especificidades que os autos revelam, não há nem pode considerar-se qualquer desistência de queixa que aproveite os demais arguidos, devendo assim a decisão proferida, que violou o disposto nos artigos 115.º, 116.º e 117.º do CP, 285.º e 283.º do CPP, ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos relativamente a todos os restantes arguidos.

E assim será feita JUSTIÇA!»

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
« 1.ª
Em crimes de natureza particular, o Assistente pode deduzir acusação independentemente da do MP e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza (artigo 69.º n.º 2 alínea b) do Código de Processo Penal).

2.ª
Trata-se de uma exceção ao n.º 1 do mesmo preceito legal, segundo o qual os Assistentes têm a posição processual de colaboradores do MP, a cuja atividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as exceções da lei.

3.ª
Por outra forma, fez-se entender o STJ no AUJ n.º 5/2011 de 11 de março, publicado no DR n.º 50, série I, de 11-03-2011, quanto a parte dos poderes do Assistente sem dependência da subordinação ao MP quando fixou a seguinte jurisprudência:

4.ª
“Em processo crime público ou semipúblico, o assistente que não deduziu acusação autónoma nem aderiu à acusação pública pode recorrer da decisão de não pronúncia, em instrução requerida pelo arguido, e de sentença absolutória, mesmo não havendo recurso do Ministério Público.”

5.ª
Perante tal jurisprudência, dúvidas não há que, mesmo em casos de crimes públicos e semipúblicos em que, normalmente, poderá cair-se mais facilmente no erro da subordinação permanente à atividade do MP por parte do Assistente, tal subordinação é, muitas vezes, mitigada ou, mesmo, inexistente em certas fases do processo penal.

6.ª
Defende-se, por isso, nesta resposta, a tese segundo a qual o Assistente poderá, em caso de crime particular, deduzir acusação apenas quanto a alguns indivíduos por si denunciados anteriormente, sem que tal signifique renúncia ao direito de queixa contra todos os denunciados em caso de comparticipação.

7.ª
Bastando, para tal, que explique sinteticamente e no local próprio (no momento em que deduz acusação particular) a razão pela qual o não faz, sem que tal signifique falta de legitimidade do Assistente para o efeito, sendo certo que, também por este meio, o Assistente sempre logrará evitar a prática de qualquer ato inútil.

8.ª
Daqui se retira que o despacho sob recurso deverá ser mantido na íntegra, por ter feito correta interpretação e aplicação da Lei e do Direito.

Mas V. Excelências, Senhores Juízes Desembargadores farão, como sempre
JUSTIÇA!!!»

Responderam os Arguidos JP e JF, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:

«I – O procedimento criminal aqui em causa, de natureza particular, depende da verificação de diversos requisitos processuais, designadamente: apresentação de queixa, constituição de assistente e dedução de acusação particular – que devem ocorrer, cumulativamente, conta todos os comparticipantes denunciados.

II – A ratio dos artigos 114.º a 117.º do Código Penal encaminha o titular do direito de queixa para o cumprimento dos requisitos processuais e obsta a que o mesmo possa optar livremente entre os comparticipantes denunciados, através da consagração do princípio da indivisibilidade (artigo 114.º).

III – O artigo 117.º do CP assegura a unidade do procedimento criminal ao estatuir que as regras atrás mencionadas se aplicam, “aos casos em que o procedimento criminal depender de acusação particular”.

IV – Nesse seguimento, não surpreende que a falta de acusação particular contra um dos Arguidos, num processo-crime que a tal requisito processual obriga, consubstancie uma renúncia tácita ao direito de queixa (acusação), não só por uma questão de justiça formal como também de justiça material.

V – Na verdade, o facto de o MP entender que um dos Arguidos não comparticipou nos factos (ou que não existem indícios suficientes da sua comparticipação) não constitui qualquer impedimento à acusação do Assistente a esse mesmo Arguido.

VI – Por outro lado, a renúncia/desistência do direito à queixa (e posteriormente de acusação particular) contra algum dos participantes implica, nos termos conjugados dos artigos 116.º, n.º 3 e 117.º do CP, o aproveitamento dessa renúncia/desistência aos demais arguidos e, consequentemente, o arquivamento dos autos.

VII – Em suma, a falta de acusação particular num procedimento criminal de natureza particular corresponde a um ato no qual se deduz a renúncia do direito de queixa (artigo 116.º, n.º 1 e 117.º do CP), o que implica a extinção do processo, extensível a todos os comparticipantes (artigo 114.º e 117.º do CP).

VIII – A extinção do presente processo criminal relativamente a todos os comparticipantes revela-se a interpretação mais favorável aos arguidos e, por essa razão, aquela que deve ser tida em conta, em respeito pela Constituição da República Portuguesa (artigo 27.º, n.º 1 e 29.º, n.º 4).

Nestes termos e nos mais de direito, deve o recurso do assistente ser julgado parcialmente improcedente e em consequência concluir-se:

- Pela manutenção da decisão proferida, com todas as consequências legais.
Assim se fazendo inteira, sadia e almejada justiça!»

û
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto, aderindo à resposta do Ministério Público na 1.ª Instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito –, por obstativas da apreciação de mérito, como são os vícios da sentença previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal[[2]].

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A decisão recorrida tem o seguinte teor [transcrição]:
«Da renúncia à queixa pelo assistente HH:
HH, melhor identificado nos autos, participou criminalmente contra:
» JS;
» BB;
» JP;
» JF;
» MG.

Após investigação dos factos, o M.P. determinou a notificação do denunciante, já na qualidade de assistente, para, querendo, deduzir acusação particular, indicando a recolha de indícios suficientes da prática de um crime de difamação e indicando apenas como seus agentes os denunciados, entretanto constituídos arguidos, JS, MG e JF. Tudo nos termos do disposto no artigo 285.º/1 e 2, do CPP, atendendo à natureza particular do crime em causa.

HH deduziu acusação particular contra
» JS;
» JP;
» JF;
» MG.

Imputando-lhes a prática, em comparticipação, de um crime de difamação publicidade e calúnia, p. e p. pelos artigos 180.º/1, 182.º e 183.º/2, todos do Código Penal.

Mais deduziu pedido de indemnização civil contra os mesmos, pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 23 500,00, acrescidos de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.

O M.P. acompanhou a acusação particular deduzida, contudo, apenas com relação aos arguidos JS, MG e JF, conforme entendimento já manifestado quanto à identificação dos agentes do crime indiciado.

Os arguidos JP e JF, visados pela acusação particular deduzida pelo assistente, através de requerimento conjunto, requereram a abertura da instrução, pugnando pela sua não pronúncia, alegando, para o efeito, a inexistência de indícios bastantes da prática do crime imputado.

O arguido MG, também visado pela acusação particular deduzida pelo assistente, requereu a abertura da instrução, pugnando também pela sua não pronúncia diante da inexistência de indícios suficientes da prática do crime imputado, advogando ainda que o assistente ao não deduzir acusação particular contra todas as pessoas contra quem participou criminalmente, designadamente, BB, desistiu da queixa contra os demais arguidos nos termos do disposto nos artigos 116.º/3 e 117.º, ambos do CPP.

O M.P. notificado da questão última suscitada pelo arguido MG, partilhou tal entendimento, nos termos que melhor aduz na sua vista, promovendo o cumprimento do disposto no artigo 51.º/3 do CPP com relação a todos os arguidos.

Os arguidos JP e JF pronunciaram-se, corroborando o defendido pelo arguido MG e pelo M.P..

O assistente refutou a posição assumida pelos referidos arguidos e pelo M.P., alegando, em síntese, não ter desistido da queixa apresentada contra qualquer um dos arguidos, apenas aderindo à posição do M.P. no sentido da inexistência de indícios suficientes relativamente ao arguido BB.
*
Vejamos, diante da factualidade evidenciada dos autos e que agora releva para apreciação da questão prévia suscitada:

O princípio da oficialidade tem como limite os crimes semipúblicos e particulares. Nos crimes que assumem esta natureza, tal como sucede com o crime de difamação em causa, a promoção processual por parte do Ministério Público está dependente de uma questão prévia: da apresentação de queixa e de dedução de acusação particular.

A queixa é uma declaração de vontade, exteriorizando a vontade do titular desse direito em ver exercida a perseguição criminal sobre um facto criminoso. Na apresentação da queixa o essencial é que o ofendido expresse essa vontade de apuramento de quem foram os agentes do crime e de descoberta da verdade material, tornando-se por isso irrelevante se o ofendido desconhece a identidade concreta do agente ou agentes do crime. É ao Ministério Público que cabe em sede de investigação no inquérito proceder às diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles (cfr. art. 262.º/1 do CPP).

No caso dos crimes particulares é ao assistente que cabe a promoção do processo através da queixa e acusação particular, limitando-se o Ministério Público, como entidade responsável pelo inquérito, a investigar e analisar os indícios probatórios recolhidos, cingindo-se, contudo, à factualidade delimitada pela queixa.

Neste caso, não resta a menor dúvida que a queixa apresentada por HH exterioriza a sua vontade de ver exercida a ação criminal contra todos aqueles que concretamente identificou na sua participação criminal como sendo os agentes da atuação aí descrita e que, no seu entender, consubstancia a prática de um ilícito criminal.

Daqui se conclui que o Ministério Público não investigou para além da vontade do titular do direito de queixa ou ao arrepio da mesma, tendo realizado as diligências que entendeu necessárias no decurso do inquérito, considerando, a final, estar indiciada a prática de um crime de difamação, mas apenas quanto aos denunciados JS, MG e JP o PF, e não já quanto aos denunciados JP e BB, dando cumprimento ao disposto no n.º 2 do art. 285.º do CPP, bem assim determinando a sua notificação para, querendo, deduzir acusação particular.

Acontece que o assistente deduziu acusação particular, mas não a estendeu ao arguido BB, daqui advindo uma renúncia tácita à queixa que havia sido apresentada quanto ao mesmo, a qual, por força da comparticipação imputada, aproveita aos demais arguidos.

Destarte, resulta do artigo 115.º/3 do Código Penal, aplicável ao caso por força do disposto no artigo 117.º do mesmo Código, que: O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa. Sendo que, o artigo 116.º do Código Penal, sob a epígrafe “Renúncia e desistência de queixa”, dispõe que: 1 – O direito de queixa não pode ser exercido se o titular a ele expressamente tiver renunciado ou tiver praticado factos donde a renúncia necessariamente se deduza (…) 3 – A desistência da queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, salvo oposição destes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa (…).

Destarte, a indiciação feita pelo Ministério Público, quanto aos agentes do crime aventado, não tem qualquer efeito vinculativo para o assistente, pelo que, havendo vários arguidos e sendo a acusação particular dirigida apenas contra alguns deles, tal tem como consequência a extinção do procedimento criminal contra todos, por força do disposto nos artigos 115.º, n.º 3 e 117.º, ambos do Código Penal, a não ser que, no nosso entender, o assistente fundamentasse, no prazo concedido para deduzir acusação particular, a sua decisão de não acusar o referido arguido, concretizando a omissão de existência de indícios contra o mesmo.

E perscrutada a acusação particular deduzida, bem assim o exposto no requerimento de resposta à questão prévia suscitada pelo arguido MG, sendo que neste último sempre se revelaria extemporânea, o assistente não apresentou qualquer justificação para ter excluído aquele arguido da comparticipação do crime em causa, limitando-se a alegar, neste último requerimento, que aderiu à posição assumida pelo M.P. no sentido da inexistência de indícios quanto ao denunciado BB, partindo, assim, de um pressuposto errado: não é o assistente que tem de aderir à posição do M.P., mas o M.P. aderir ou não à acusação particular deduzida pelo assistente, atendendo à natureza particular do crime em causa.

O assistente só poderia deixar de estender a acusação ao comparticipante, invocando no prazo legal, a falta de indícios da participação daquele nos factos difamatórios, o que não fez, limitando-se, sem qualquer justificação, a não deduzir acusação contra aquele que havia sido indicado por si como comparticipante.

Pelo que, conforme preconizado pelo arguido MG, pelo M.P. e, posteriormente, pelos demais arguidos, entende-se existir uma renúncia tácita à queixa apresentada contra BB, a qual, por sua vez, atendendo à forma de autoria imputada – comparticipação – aproveita aos demais, nos termos das normas precedentemente transcritas. Tudo isto sob pena de violação do princípio da indivisibilidade da renúncia à queixa consagrado no art. 115.º/3 do CP.

Leia-se, neste sentido, diversa jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, da qual se destacam os seguintes acórdãos: Ac. TRE datado de 03/10/2006, Ac. TRP datado de 01/02/2012, Ac. TRP 11/12/2013, Ac. TRL datado de 18/02/2015, Ac. TRC datado de 04/11/2015, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
*
Diante do acabado de expor, notifique os arguidos nos termos e para os efeitos previstos no artigo 51.º/3 do CPP.»

û
Conhecendo.
HH, entretanto constituído assistente no processo, apresentou queixa contra JS, BB, JP, JF e MG. Imputou-lhes a prática de um crime de difamação, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1, 182.º e 183.º, n.º 2, todos do Código Penal.

Porque este crime tem natureza particular, a prossecução do procedimento criminal depende de queixa, da constituição de assistente e da dedução de acusação particular – artigo 50.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

E como bem se diz na decisão recorrida, «A queixa é uma declaração de vontade, exteriorizando a vontade do titular desse direito em ver exercida a perseguição criminal sobre um facto criminoso. Na apresentação da queixa o essencial é que o ofendido expresse essa vontade de apuramento de quem foram os agentes do crime e de descoberta da verdade material, tornando-se por isso irrelevante se o ofendido desconhece a identidade concreta do agente ou agentes do crime. É ao Ministério Público que cabe em sede de investigação no inquérito proceder às diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles (cfr. art. 262.º/1 do CPP).

No caso dos crimes particulares é ao assistente que cabe a promoção do processo através da queixa e acusação particular, limitando-se o Ministério Público, como entidade responsável pelo inquérito, a investigar e analisar os indícios probatórios recolhidos, cingindo-se, contudo, à factualidade delimitada pela queixa.»

Realizadas as diligências entendidas como adequadas no âmbito do inquérito que surge com a sobredita queixa do Assistente HH, o Ministério Público, por despacho lavrado a 7 de março de 2019 [fls. 203], declarou encerrado o inquérito e mandou cumprir o disposto no artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por entender «que foram recolhidos indícios suficientes da prática do crime de difamação apenas por JS, MG e JF – cfr. artigos 71.º, n.ºs 1 e 3 e 35.º, n.º 1 da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido.»

O Assistente HH formulou acusação contra JS, JP, JF, MG, a quem imputa a prática, em comparticipação, de um crime de difamação publicidade e calúnia, previsto e punível pelos artigos 180.º, n.º 1, 182.º e 183.º, n.º 2, todos do Código Penal.

Formulou, também, pedido de indemnização civil contra as pessoas que acusou, pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 23 500,00 (vinte e três mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.

E o Ministério Público, após ordenar o arquivamento dos autos quanto ao Arguido BB, acompanhou esta acusação, mas somente contra JS, MG e JF.

Neste contexto, perante a acusação particular que não inclui BB, a questão que se coloca é a da verificação uma renúncia tácita à queixa contra o mesmo apresentada pelo Assistente, a qual, por sua vez, aproveita aos demais Arguidos.

O artigo 116.º do Código de Processo Penal trata da renúncia e desistência da queixa nos seguintes termos:

«1 — O direito de queixa não pode ser exercido se o titular a ele expressamente tiver renunciado ou tiver praticado factos donde a renúncia necessariamente se deduza.

2 — O queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1ª instância. A desistência impede que a queixa seja renovada.

3 — A desistência da queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, salvo oposição destes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa.

4 — Depois de perfazer 16 anos, o ofendido pode requerer que seja posto termo ao processo, nas condições previstas nos n.ºs 2 e 3, quando tiver sido exercido o direito de queixa nos termos do n.º 4 do artigo 113.º, ou tiver sido dado início ao procedimento criminal nos termos da alínea a) do n.º 5 do artigo 113.º»

E no artigo 117.º do Código de Processo Penal consagra-se que «O disposto nos artigos deste título é correspondentemente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depender de acusação particular

O termo renúncia traduz um comportamento levado a cabo antes do procedimento criminal estar instaurado. Pendente que esteja o processo criminal, só pode configurar-se a desistência dele.

Este entendimento encontra expressão nos n.ºs 1 e 2 do artigo 116.º do Código Penal, onde se distingue a renúncia da desistência – aquela é impeditiva do exercício do direito de queixa e esta extingue-o.

Dito de outra forma, após o exercício do direito de queixa já não é possível a ela renunciar, mas apenas dela desistir.

A desistência de queixa deve ser formalizada mediante requerimento ou termo no processo, pelo respetivo titular do direito ou por mandatário munido de poderes para tanto.

Isto posto, tendo o processo que nos ocupa tido origem em queixa apresentada por HH contra JS, BB, JP, JF e MG, temos como inquestionável que não pode ocorrer renúncia ao exercício desse direito (de queixa), de forma expressa ou tácita.

E como certo temos, também, que o Assistente HH não desistiu da queixa que apresentou contra JS, BB, JP, JF e JS. Porque dos autos não consta qualquer requerimento ou termo neles lavrado que expresse a vontade do Assistente em não prosseguir criminalmente contra qualquer das pessoas que denunciou.

Importa deixar expresso que a jurisprudência invocada na decisão recorrida não trata situação idêntica à dos presentes autos.

A sua utilidade vislumbra-se, tão-só, no enquadramento teórico das questões neles tratadas.

Ainda assim se dirá, em tese geral, que em processo crime de natureza particular não compete ao Assistente, na ocasião em que formula a sua acusação, proceder à análise da prova produzida no processo, para a justificar.

Porque, conforme decorre do disposto no artigo 285.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, essa avaliação deve ser feita pelo Ministério Público, limitando-se o Assistente a aderir ou não a ela.

E não aderindo, apenas não pode deixar de acusar quem o Ministério Público entende que cometeu o crime denunciado. Ou seja, pode acusar quem o Ministério Público entende não ter cometido tal crime.

Naturalmente que admitimos situações limite, em que o Assistente discorde da avaliação do Ministério Público relativamente à suficiência de indícios. Em semelhante situação, deve justificar porque não acusa quem o Ministério Público entende ter cometido o crime denunciado.

Porque constitui renúncia ao direito a acusar e equivale a desistência de queixa a não acusação particular, quando o Ministério Público entende que há indícios nos autos para que seja formulada.

Nesta hipótese, e apenas perante a sua verificação, tem lugar a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 116.º do Código de Processo Penal – a desistência relativamente a um dos comparticipantes aproveita aos restantes.

Todavia, não é esta a situação que se verifica nos presentes autos.

Porque a acusação que o Assistente formulou no processo vai ao encontro da prova nele produzida no decurso do inquérito e que o Ministério Público sintetizou no seu despacho de 7 de março de 2019 – o Assistente não deixou de acusar quem o Ministério Público entendeu ter cometido o crime de difamação.

Ao que acresce que seria absurdo impor uma acusação contra quem não foram recolhidos indícios suficientes da prática do crime denunciado com o propósito estrito de garantir o prosseguimento do processo – in casu, o Arguido BB.

Resta deixar consignado o “desconforto” provocado pelas posições não convergentes do Ministério Público ao longo do processo e pelas expetativas legitimamente criadas ao Assistente com os despachos de convite à formulação da acusação e de acompanhamento parcial da que veio a ser pelo mesmo formulada.

Isto posto, concluímos que a decisão recorrida, porque não respeita o que a lei dispõe, não pode manter-se.

Por isso se revogando, assim procedendo o recurso.

III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, concedendo provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento da fase de instrução do processo.

Sem tributação.

û
Évora, 2020 fevereiro 18
(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
____________________________________
(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)

____________________________________
(Renato Amorim Damas Barroso
__________________________________________________
[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[2] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].