Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
959/18.1T9ABF.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: OFENSA À MEMÓRIA DE PESSOA FALECIDA
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A ofensa à memória de pessoa falecida tem que ser grave em termos não estritamente subjetivos, e tal gravidade entra apenas no domínio penal se o contexto não lhe der razão explicativa bastante e razoável.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO

Nos autos de processo comum (tribunal singular) nº 959/18.1T9ABF, do Juízo Local Criminal de … (Juiz …), e mediante pertinente sentença, a Exmª Juíza decidiu nos seguintes termos (em transcrição):

“DECISAO CRIMINAL

Face ao exposto, decide o Tribunal:

A. ABSOLVER o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à memoria de pessoa falecida, p. e p. pelo art. 185.º do Código Penal.

B. ABSOLVER o arguido BB pela prática de um crime de ofensa à memoria de pessoa falecida, p. e p. pelo art. 185.º, do Código Penal.

C. Sem custas.

DECISÃO CIVIL

Face ao exposto, o tribunal julga o pedido de indemnização cível improcedente e, em conformidade:

1. Absolver o demandado AA a pagar à demandante a quantia de €75.000,00.

2. Absolver o demandado BB a pagar à demandante a quantia de €75.000,00.

3. Custas do pedido cível a cargo da demandante (cfr. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do C. P. Civil)”.

*

A assistente CC, inconformada com a decisão, dela vem interpor recurso, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:

“A. É entendimento da Recorrente, com o devido respeito, que o douto Tribunal a quo não esgotou o objeto do processo, nem terá efetuado uma correta ponderação, ao decidir pela absolvição dos dois arguidos com a matéria de facto produzida em sede de audiência e julgamento, tendo assim resultado uma incorreta convicção do Tribunal da análise que fez dos diversos meios probatórios.

B. A distinção feita na douta Sentença, entre a valoração dos factos provados com relevância para a decisão criminal, cfr. 1.1.1, e os factos provados com relevância para a decisão cível cfr. 1.3.1., não configuram duas distintas realidades factuais, nem impendem que os factos provados na decisão cível possam e devam ser valorados, para o apuramento da responsabilidade penal dos arguidos.

C. Estando perante responsabilidade civil por perdas e danos emergentes de crime, cfr. artigo 129.º do CP, ou seja, estando em causa a responsabilidade civil conexa com a criminal, ambas necessariamente assentam nos mesmos pressupostos, designadamente os factos ilícitos praticados.

D. Pelo que, com o devido respeito, não se aceita, que uma mesma a factualidade - provada - seja relevante para fins de responsabilização civil, não possa ser, igualmente, relevante para fins de responsabilização penal, estando em causa a prática dos mesmos atos.

E. A mesma realidade fática, provada que está dirigindo-se, como foi, a uma pessoa falecida em concreto, é apta a gravemente ofender e atentar contra a memória do de cujus, e o seu património espiritual na sua parte nuclear, e como tal, necessariamente, constituir a prática de um ilícito criminal cometido por ambos os arguidos, e de configurar, em todos os seus elementos, a prática do crime de ofensa à memória de pessoa falecida, previsto e punido pelo artigo 185.º do Código Penal.

F. A douta Sentença entendeu não estar preenchido o elemento típico “ofender”, essencialmente por considerar que havia de prevalecer a liberdade de expressão e de crítica dos dois Arguidos, em detrimento da proteção jurídico-penal da memória da pessoa falecida, considerando ainda terem existido causas para afastar a responsabilidade penal dos dois arguidos, nomeadamente a tenção que se gerou no decorrer da assembleia, e por uso de tais expressões não exceder uma mera crítica pública, ainda que rude e grosseira.

G. Importa ter presente, para a análise deste segmento da douta Sentença que o de cujus terminou a sua intervenção na administração do condomínio cerca de 6 anos antes da realização da assembleia de condóminos em causa, em .../.../2018, sendo que tal cargo passou a ser ocupado pelo arguido AA nos 3 mandatos seguintes, desempenhando essas funções à data dos factos, cfr. factos provados, alíneas f) a h), sendo candidato a reeleição por novo período de dois anos.

H. O ato de “criticar”, como é consabido, consiste em fazer uma análise; em examinar e apreciar; observar o que existe de bom e de mau num trabalho; emitir um julgamento favorável ou desfavorável, dizer mal ou apontar defeitos, de trabalhos ou comportamentos.

I. O que não se pode confundir com o imputar, repetidamente, a alguém a prática de um roubo, ou de ser um ladrão, expressões que, e como decorre da normal experiência de vida, no modo e local como foram proferidas, têm de ultrapassar o limite de uma crítica, ainda que rude e grosseira.

J. Pois, antes, formulam um juízo sobre o visado, sobre o seu valor pessoal e interior, sendo assim aptas a ofender a dignidade de qualquer pessoa, a própria reputação, ou no caso, o histórico de vida do de cujus, e a forma como é recordado e norteou a sua vida.

K. Não se contesta que existem expressões, comunitariamente possam ser tidas como rudes, grosseiras e inapropriadas, em determinados contextos, e desde que proferidas sem um conteúdo ofensivo, ou intimidatório, nem repetidamente em forma de ataque pessoal.

L. Mas, para assim serem classificadas é necessário, para além da demonstração do circunstancialismo em que foram proferidas, ainda que se demonstre que quem as emprega usualmente, aceita receber a carga de ofensividade que é inerente às mesmas, sobre o que a douta Sentença nada diz.

M. No caso as ofensas foram dirigidas a pessoa falecida, a qual nem possibilidade tinha de se defender, as contraditar, ou chamemos-lhe, “devolver” a crítica.

N. Ora, segundo a normalidade da vida e as regras da experiência, as imputações feitas pelos dois arguidos à pessoa do pai da assistente - “Negociatas do DD”, “o seu pai foi um ladrão”, “o seu pai roubou-me uma garagem” -, no concreto circunstancialismo em que ocorrerem, uma reunião de condóminos, e no contexto verificado pelos depoimentos transcritos, não podem deixar de ser tidas como suscetíveis de ofender gravemente, e atentar contra a memória do de cujus, e como tal constituir a prática de um ilícito criminal, não podendo assim resultar na absolvição dos dois Arguidos.

O. Recorde-se como consta dos Relatórios Sociais dos dois arguidos, são pessoas instruídas, “com processos de socialização que viabilizaram a aquisição de normas e valores socialmente ajustados, tendo ainda providenciado a aquisição de competências pessoais e sociais pró-sociais”, cfr. factos provados p) a r), e no caso do arguido AA, ser possuidor ainda de uma formação superior, pelo que são pessoas que conhecem bem o significado das palavras nas expressões que entendem proferir em determinados momentos, bem como a carga ofensiva que nelas está contida e que querem transmitir ao destinatário, principalmente as transmitirem no lugar e pela forma como o fizeram, como resulta de factos provados. Apesar de ambos terem mostrado o seu carácter e índole pessoal ao Tribunal, com o pedido de apoio judiciário que ambos fizeram, e apresentaram na contestação do pedido cível.

P. Resulta dos trechos dos depoimentos transcritos, quer da Assistente, quer das referidas testemunhas, estando todos presente na dita assembleia, confirmaram o teor das expressões publicamente proferidas pelos dois arguidos, as quais foram audíveis para todos os presentes, e que o teor insultuoso das expressões proferidas, somente ocorreram na data da assembleia de … de 2018, e não em outras assembleias que decorreram anteriormente, o que não poderia deixar de ser valorado pelo douto Tribunal a quo, para formar a sua convicção.

Q. De igual teor e substância resulta dos mesmos depoimentos, quanto ao tema da reunião de condóminos, que era a eleição de uma nova administração, e que, quando os dois arguidos proferiram as expressões constantes de factos provados, o fizeram, “do nada”, sem que para tal tivessem sido “provocados”, e fora de qualquer contexto, ou do tema que estava a ser debatido.

R. O qual não era, até pela lógica e normal experiência de vida, a apreciação do exercício da administração do de cujus, que se recorda, cessou em 2012, há seis anos, tendo já ocorrido desde então três mandatos exercidos pelo arguido AA.

S. Nem outra conclusão resulta ou se pode inferir dos depoimentos transcritos prestados pelas três testemunhas acima, e da Assistente, que quando questionados sobre as razões de terem sido proferidas tais expressões pelos dois arguidos, não as souberam precisar, o que seguramente implicaria uma resposta diferente, caso o fosse proferida num contexto de análise ou sindicância ao exercício da gestão do condomínio, ocorrido seis anos antes, pelo de cujus, pois essa relação direta seguramente estaria presente nas suas memórias.

T. Por outro lado, como é natural, não se podia tratar de uma discussão sobre a participação do de cujus em uma lista, ou uma por ele patrocinada, pelo que também não seriam esses os motivos pelos quais os arguidos, já no encerrar da reunião, vociferaram, repetidamente, as ofensivas expressões contra a memória do de cujus.

U. Acrescentando-se ainda que as expressões referidas pelo arguido AA, “negociatas do DD”, “o seu pai foi um ladrão”, para além de não terem que ver com uma contestação à lista concorrente à sua, a indicada pela empresa ..., SA, as ditas “negociatas” não estavam a ser debatidas na assembleia em causa, sendo que nada foi dito por este arguido que identificasse ou concretizasse em que consistiam as “negociatas”, ou que “roubos” terá cometido o de cujus, para ser, chamado publicamente, e de viva voz, repetidamente, de ladrão, até por saber que tal não correspondia à verdade.

V. Resulta ainda dos depoimentos transcritos, sendo o de cujus por elas considerado como uma pessoa honesta e de bem, não tendo conhecimento de um qualquer comportamento que “justificasse” as expressões proferidas pelos dois arguidos contra o falecido.

W. Resulta evidente que os arguidos tinham um único propósito, com os comportamentos descritos - provados -, isto é, tão só desestabilizar a reunião de condóminos, e por “osmose” associar à lista concorrente a sua, no que tinham interesse, as imputações que atribuíram pessoalmente ao de cujus, um ladrão, ou seja, estender um juízo de desonestidade às pessoas que a compunham a lista concorrente, devido às ligações existentes com o falecido.

X. É cristalino que a Assistente não se encontrava no uso da palavra, quando tais expressões foram proferidas pelos Arguidos, nem a produzir qualquer elogio à administração efetuada pelo defunto, seu pai, antes a sua intervenção só se deu após terem estas expressões terem sido proferidas, e em defesa da memória de seu pai, o de cujus, contrariamente ao que se lê na Fundamentação da Decisão Sobre a Matéria de Facto.

Y. De igual forma não resulta demonstrado, ou provada, a segunda parte da alínea k) onde se lê: “assim como o modo como foi efetuada a administração do edifício pelo pai da assistente durante o período em que foi presidente por diversos dos condóminos presentes na assembleia, entre os quais, os arguidos AA e BB”.

Z. O depoimento das testemunhas transcrito confirma o anteriormente declarado pela Assistente, ou seja, que os arguidos dirigiram ao seu pai as expressões descritas no elenco de factos provados, fora de um qualquer contexto que estivesse em discussão entre a Assistentes e os próprios, ou resultante de um qualquer ponto da ordem de trabalhos em apreciação nesse momento pela assembleia, o qual se resumia à eleição de uma nova administração, e as pessoas que compunham as duas listas concorrentes.

AA. Mais, resulta que tais expressões foram proferidas, repetidamente, dirigidas com agressividade e hostilidade, e em tom ameaçador à Assistente, supostamente relativas a eventos ocorridos há mais de duas décadas, que já não estavam, nem podiam estar em causa na referida assembleia, atento o tendo o período de tempo decorrido e o conhecimento que os arguidos tinham dos alegados factos, teriam sido trazidos à colação em assembleias anteriores, e mesmo conhecidos de outros condóminos.

BB. As expressões proferidas pelos dois arguidos são totalmente desprovidas de sentido crítico, pois chamar a alguém “ladrão”, imputar-lhe factos como roubo, ou “negociatas”, é uma qualificação, e uma afirmação de comportamentos pessoais, não uma “mera” crítica ou opinião, como defende o douto Tribunal a quo, é a formulação de um juízo desonroso sobre o falecido pai da Assistente, já que tais expressões são indissociáveis de atividades criminosas ou, pelo menos, de atividades eticamente muito reprováveis.

CC. Como resulta da normal experiência de vida, e dos depoimentos supratranscritos, a intenção dos arguidos era a de perturbarem/desestabilizarem a assembleia de condóminos, com o fim de atingir e ofender a memória do de cujus, bem como o carácter da Assistente, e ainda o bom nome comercial da sociedade ..., SA, tão só pelo facto de serem próximos e relacionados com os candidatos da lista concorrente à promovida pelos arguidos, e assim tentarem influenciar a votação.

DD. Não estava assim em causa uma qualquer e normal divergência à gestão exercida pelo falecido, nem o podia, pois, a pessoa ora em questão (pai da assistente), tal como ficou provado, já havia falecido, sendo completamente impossível, alguém manter divergências quanto à gestão praticada por alguém que a deixou de exercer há seis anos, e que já não existe para contrapor ou deduzir oposição ao que lhe estava a ser imputado.

EE. Antes era clara e firme intenção dos arguidos, ao assim expressarem, e com “raiva”, nas palavras da testemunha EE, de lançarem a suspeição sobre a idoneidade moral e seriedade das pessoas que constituíam a lista concorrente.

FF. Relembrando-se que o primeiro arguido integrava tal lista concorrente como presidente, e o segundo apoiava a lista do primeiro.

GG. Assim, entende-se, com o devido respeito por melhor e mais esclarecido entendimento, que os factos com relevância criminal, k), l) e m), se encontram, face à prova testemunhal produzida em sede de julgamento incorretamente julgados, carecendo de ser alterados, passando a apresentar a seguinte redação, o que se requer:

k) No decurso dessa assembleia, foi contestada a lista indicada pela empresa ..., SA., pelos s arguidos AA e BB.

l) Com efeito, no decurso da referida assembleia, o arguido, AA, que à data era o Presidente da Administração de condóminos, e nela desempenhou o papel de Presidente da Mesa, em momento indeterminado, mas que se situará perto do encerramento dos trabalhos, dirigiu-se à assistente, na presença de todos os condóminos, e de modo audível, proferiu, repetiu por diversas vezes, as expressões seguintes: “Negociatas do DD”, “o seu pai foi um ladrão”, expressões que pronunciou em tom agressivo e intimidatório, com a intenção de ofender a memória do falecido pai da Assistente, e consequentemente a própria.

m) Nessa mesma assembleia o arguido BB, que, à data, era um condómino presente, interveio de viva-voz, dirigindo-se diretamente à assistente, na presença de todos os condóminos, e de modo audível, proferiu as seguintes expressões: “o seu pai foi um ladrão” e “o seu pai roubou-me uma garagem”, expressões que pronunciou, por diversas vezes, de forma agressiva e intimidatória, com a intenção de ofender a memória do falecido pai da Assistente, e a própria.

HH. Quanto à gravidade da ofensa, é inquestionável que as expressões proferidas pelos arguidos, configuram um ataque à memória do falecido, uma agressão que afeta o bem jurídico protegido numa dimensão que não se pode considerar negligenciável, mas antes mostra-se particularmente grave, pois atinge uma parte nuclear do património espiritual passado do de cujus que se repercute inexoravelmente no presente, elemento socialmente muito relevante da vida que se viveu.

II. Tais expressões são uma manifestação gravemente pejorativa que afeta gravemente a memória do falecido, pois destrói o núcleo essencial do património espiritual que ainda se repercute no presente, de um homem considerado probo, honesto honrado, e um grande empresário, cfr. pontos b) e c) de factos provados.

JJ. Dos depoimentos transcritos resulta que tais expressões foram proferidas em tom ameaçador e intimidatório, mesmo expressando raiva, pelo que não estamos perante um contexto de uma mera critica, num ambiente e conversa descontraída e informal.

KK. Mais, tais expressões não permitem qualquer dúvida sobre o que se pretende com as mesmas, ou seja, significam atribuir à pessoa falecida a qualidade de alguém que praticou pelo menos um crime, um delito contra o património.

LL. E é a própria ordem jurídico-penal que oferece diretrizes que permitem avaliar objetivamente o desvalor destes factos, desde logo a partir das respetivas sanções, as quais poderão variar entre a pena de multa e a pena de prisão até 8 anos, e tal sem considerar a hipótese de agravamento.

MM. Sendo que com tais expressões, os arguidos atingiram o núcleo central que norteou a vida do falecido, e pelo qual era reconhecido, como um homem honesto e um bom empresário, como de resto foi declarado pelas testemunhas cujos depoimentos supra transcrevemos.

NN. Pelo que indubitavelmente se encontra preenchida cláusula de gravidade previsto na norma Penal em causa.

OO. Assim, e tendo existido ofensa grave contra a memória do pai da Assistente, à luz dos factos dados como provados, o comportamento dos Arguidos também poderá ser subsumido ao tipo qualificado do artigo 183.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, sendo certo que este preceito é aplicável ao crime de ofensa à memória de pessoa falecida, por força da remissão expressa contida no artigo 185.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, resultando da leitura conjugada dos dois preceitos supracitados a possibilidade de punição agravada, com aumento de um terço nos limites mínimo e máximo da pena, da ofensa à memória pessoa falecida que tenha sido “praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação”.

PP. Como resulta de factos provados, tratava-se de uma reunião de condóminos de edifício com … frações autónomas, tendo estado presentes, segundo o depoimento das testemunhas supratranscritas, pelo menos algumas dezenas de pessoas, para além dos membros que compunham a respetiva Mesa, a Assistente, os dois Arguidos, presunção que é corroborada pelo número de testemunhas que foram ouvidas durante o processo, 12 no total.

QQ. E como resulta da normal experiência de vida, tudo o que fosse dito na assembleia, ganharia, uma ressonância que ultrapassaria, manifestamente e sem dúvida alguma, o conjunto das pessoas que circunstancialmente se reuniram, sendo evidente que qualquer insulto ali proferido provocaria, um eco no condomínio, o que era sabido de antemão pelos dois Arguidos como consequência necessária daquela reunião, e assim um potenciador da sua divulgação.

RR. Atente-se que é a própria douta Sentença, em 1.3.1, que dá como provado o elemento típico agravador da alínea a), do n.º 1, do artigo 183.º, do C.P., na parte em que reconhece o constrangimento e a dor que a Assistente sofreu em virtude da ofensa à memória do seu falecido pai, “em particular atendendo ao espaço público aonde os factos ocorreram e à divulgação que os mesmos tiveram”.

SS. Sendo que e recorrendo novamente aos depoimentos das testemunhas supratranscritos, é inegável que o conhecimento das expressões proferidas pelos arguidos na assembleia de .../.../2018, chegou, e expandiu-se a um número bem maior, e diversificado, do que as pessoas que estiveram presentes na assembleia de condóminos, no mesmo sentido, pontos 103.º a 124.º, estando assim preenchida a norma do n.º 1 do artigo 183.º do CP, o que impõe o agravamento de um terço nos limites mínimo e máximo da moldura penal definida pelo n.º 1 do artigo 185.º, reconhecimento de divulgação pública que se requer.

TT. Quanto ao ponto iii de Factos não provados:

“iii. Os arguidos proferiram tais expressões, deliberada e conscientemente, com o propósito de atingir a assistente e família na sua consideração e ainda ofender gravemente a memória de seu falecido pai, o que lograram, agindo livre e conscientemente, bem sabendo que aquela conduta era proibida por lei”.

UU. Ora, tal entendimento à luz da factualidade que foi judicialmente reconhecida no tocante ao lado objetivo do crime, só pode ser visto como um erro na valoração da prova.

VV. Pois todo o circunstancialismo descrito, corroborado nos depoimentos supratranscritos das testemunhas, que presidiu às expressões produzidas pelos dois Arguidos revelam que as palavras gravemente ofensivas da memória do de cujus foram proferidas precisamente com a finalidade de atacar o património espiritual por ele deixado, havendo conhecimento vontade também em relação às circunstâncias que facilitavam a divulgação, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 183.º do Código Penal.

WW. Valendo as mesmas considerações a propósito dos demais elementos do crime, uma vez que, não se verifica, à luz da factualidade dada como provada, nenhuma circunstância que seja capaz de configurar qualquer uma das causas gerais de justificação de desculpa do agente, elencadas pelos artigos 31.º a 39.º do C.P., nem tão pouco qualquer fundamento de justificação ou desculpa no âmbito específico do artigo 185.º do Código Penal.

XX. Devendo assim este facto não provado passar a integrar os factos provados, com a mesma redação, e no lugar que lhe competir, o que se requer.

YY. Finalmente, damos aqui como integralmente reproduzido o douto Parecer do insigne Professor Doutor José de Faria Costa, que contraria a subsunção dos factos ao Direito prolatado na douta Sentença ora posta em crise, bem como da interpretação feita pelo douto Tribunal a quo do escrito do insigne Professor quando o cita a sua obra “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, na fundamentação da sentença, conforme consta no Parecer ora junto.

Normas violadas: Art. 129.º, art. 185.º e art. 183.º, nº 1, alínea a), todos do Código Penal.

Termos em que, sempre com o douto suprimento de V. Exas. Venerandos Desembargadores, deve o presente recurso proceder por provado, sendo a douta Sentença absolutória substituída por outra que condene os dois arguidos prática de um crime de ofensa à memoria de pessoa falecida, p. e p. pelo art. 185.º do Código Penal, agravada nos termos do n.º 1 do artigo 183.º do CP, sendo ainda os arguidos condenados solidariamente no pedido cível nos montantes peticionados”.

*

A Exmª Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância respondeu ao recurso da assistente (mas sem formulação de “conclusões”), entendendo que o mesmo merece provimento, devendo os arguidos ser condenados pela prática do crime de que estavam acusados.

Os arguidos responderam também ao recurso da assistente (resposta igualmente sem formulação de “conclusões”), considerando que o recurso é totalmente de improceder.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, entendendo que o recurso da assistente não merece provimento, devendo até ser rejeitado (por manifesta improcedência).

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, a assistente respondeu, mantendo, no essencial, o já alegado na motivação do recurso.

Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso.

No caso destes autos, face às conclusões retiradas pela recorrente da motivação do recurso, são duas, em breve síntese, as questões suscitadas:

1ª - Saber se, perante os factos dados como provados na sentença revidenda, os arguidos incorreram (ou não) na prática de um crime de ofensa à memória de pessoa falecida (a assistente e a Exmª Magistrada do Ministério Público que respondeu ao recurso da assistente entendem que sim; a Exmª Juíza que prolatou a sentença revidenda, os arguidos - na resposta ao recurso - e o Exmº Procurador-Geral Adjunto - no seu “parecer” -, entendem que não).

2ª - Determinar se devem alterar-se alguns pontos da matéria de facto (provada e não provada), relevantes para o efeito da eventual condenação dos arguidos, ou seja, por forma a ser de concluir que os arguidos incorreram na prática de um crime de ofensa à memória de pessoa falecida (a assistente invoca a existência de erro na valoração da prova, devendo o ponto iii dos factos não provados ser dado por provado - além de outras pequenas correções e de alguns outros acrescentos -).

2. A sentença recorrida.

A sentença objeto do recurso é do seguinte teor (quanto aos factos - provados e não provados - e quanto à motivação da decisão fáctica):

“Factos Provados

Com relevância para a decisão criminal, provaram-se os seguintes factos:

a) A Assistente é sócio-gerente das sociedades comerciais denominadas ..., Lda., NIF ..., e ..., LDA., NIF ..., e ainda CABEÇA DE CASAL da Herança Indivisa de seu pai DD, falecido em .../.../2017.

b) As empresas supra referidas, de que seu pai foi o fundador e o Presidente do Conselho de Administração até ao dia seu falecimento, eram detentoras de Alvarás de Construção Civil e Obras Públicas “classe 10”, ou seja, de reconhecida idoneidade e competência técnico-profissional para a realização de grandes obras publicas e particulares, que efetivamente edificou por todo o país desde a sua fundação há 30 anos.

c) Destacando-se dessas grandes obras púbicas, a construção da maioria dos lances da Autoestrada ..., da Autoestrada ..., da Estrada ..., do Hospital ..., da Barragem ..., do empreendimento ... em .../..., e diversos empreendimentos habitacionais em diversas cidades do norte, centro e sul do país, onde o seu bom nome sempre foi por todos honrado e dignificado (trabalhadores, fornecedores, clientes pessoais, e instituições publicas e privadas).

d) Entre os seus projetos, procedeu à edificação do empreendimento imobiliário denominado “...”, com … frações autónomas, contruído na ..., ... ..., através da sua empresa ..., SA., onde à data é proprietária e titular de …. frações.

e) O referido edifício é gerido por uma Administração de condóminos, denominada “... - Administração de Condomínios”, com a sua sede social em ... ... ....

f) Desde o início da construção até ao ano de 2012, o pai da assistente foi Presidente da Administração da ‘... - Administração de Condomínios.

g) No dia …2018, foi realizada uma assembleia geral de condóminos do edifício “...”, na respetiva sede, com vista, entre outros pontos, designar nova administração, a qual, contudo foi interrompida e designada para a sua continuação o dia …2018, no mesmo local, por não se ter logrado nomear nova administração.

h) O 1.º arguido, AA, era à data dos factos, o Presidente da Administração da ... - Administração de Condomínios", e desempenhou o papel de Presidente da Mesa da assembleia geral de condóminos realizada no dia …2018.

i) O 2.º arguido/BB, era à data dos factos, um condómino presente e interveniente na assembleia geral de condóminos “...”.

j) Nesse dia …2108, realizou-se uma assembleia geral dos condóminos do condomínio “...”.

k) No decurso dessa assembleia, foi contestada a lista indicada pela empresa ..., SA., assim como o modo como foi efetuada a administração do edifício pelo pai da assistente durante o período em que foi presidente por diversos dos condóminos presentes na assembleia, entre os quais, os arguidos AA e BB.

l) Com efeito, no decurso da referida assembleia, o arguido, AA, que à data era o Presidente da Administração de condóminos, e nela desempenhou o papel de Presidente da Mesa, em momento indeterminado, dirigiu-se à assistente, na presença de todos os condóminos, e de modo audível, proferiu as expressões seguintes: “Negociatas do DD”, “o seu pai foi um ladrão”.

m) Nessa mesma assembleia o arguido BB, que, à data, era um condómino presente, interveio de viva voz, dirigindo-se diretamente à assistente, na presença de todos os condóminos, e de modo audível, proferiu as seguintes expressões: “o seu pai foi um ladrão” e “o seu pai roubou-me uma garagem”.

Mais se apurou que:

n) O arguido AA encontra-se atualmente aposentado, recebendo uma reforma no montante de €3.000,00.

o) Vive com a esposa, igualmente reformada, em habitação própria.

p) Tem Licenciatura em ….

q) Do seu relatório social:

AA beneficiou de um processo de socialização que viabilizou a aquisição de normas e valores socialmente ajustados, tendo ainda providenciado a aquisição de competências pessoais e sociais pró-sociais. AA teve percurso escolar bem-sucedido, tendo concluído a sua licenciatura aos 32 anos, enquanto trabalhador-estudante. Desde que iniciou vida laboral que se manteve laboralmente ativo, tendo iniciado atividade profissional por conta própria após conclusão da licenciatura, sendo sócio de uma empresa que se dedicava à …. Manteve, ao longo da vida, percurso pró-social, apresentando estabilidade em todas as esferas da sua vida. Não foram identificados fatores de risco, nem vulnerabilidades.

r) O arguido BB é …, auferindo a título de renumeração uma quantia mensal media de €4.000,00.

s) Vive com a esposa e filha, maior de idade, as quais ambas laboram, em habitação própria para cuja aquisição procede ao pagamento da quantia mensal de €900,00 a título de prestação bancaria, para alem do valor de €400,00 relativo ao crédito pela aquisição da segunda habitação.

t) Concluiu o 10.º ano de escolaridade.

u) Do seu relatório social:

BB registou um percurso pessoal marcado pela normatividade e assertividade conseguindo cimentar uma situação social e familiar estável e confortável. Na sua realidade não foi possível detetar fatores de risco de reincidência criminal assinaláveis, antes diversos fatores de proteção, tais como solido suporte familiar e da rede social de apoio de que usufrui, bem como estabilidade profissional.

v) Dos certificados de registo criminal dos arguidos nada consta.

Factos Não Provados

i. No decurso da assembleia de …2018, o arguido AA proferiu as seguintes expressões: “eu conheci muito bem o DD e as suas negociatas”, “conheci muito bem o seu pai”.

ii. Na assembleia de condómino de …2018, o arguido BB proferiu as seguintes expressões: “o seu pai roubou-me”.

iii. Os arguidos proferiram tais expressões, deliberada e conscientemente, com o propósito de atingir a assistente e família na sua consideração e ainda ofender gravemente a memória de seu falecido pai, o que lograram, agindo livre e conscientemente, bem sabendo que aquela conduta era proibida por lei.

Com relevância para a decisão cível:

Factos provados:

- As palavras, expressões e epítetos utilizados pelos demandados em plena assembleia para caracterizar o falecido, são, em si mesmas, objetivamente ofensivas da honra e consideração de qualquer cidadão.

- A assistente sentiu-se magoada, triste e envergonhada com as palavras que lhe foram dirigidas pelos arguidos na assembleia de condóminos, sentimentos que ainda sente hodiernamente, em particular atendendo ao espaço publico aonde os factos ocorreram e à divulgação que os acontecimentos tiveram.

- Em resultado da conduta dos arguidos, a assistente e a sua família evitaram se movimentar e expor-se em publico no edifício ....

Factos não provados:

- Os demandados proferiram imputações à pessoa da assistente.

- Em resultado da conduta dos arguidos, a assistente sofreu repercussões a nível profissional e ate diminuição da sua capacidade profissional.

Fundamentação da Decisão Sobre a Matéria de Facto

A convicção do Tribunal em relação aos factos provados e não provados acima descritos fundou-se no conjunto da prova, apreciada criticamente à luz das regras da experiência comum e da nossa livre convicção (cf. art. 127.º do Código de Processo Penal), junta aos autos e a produzida em sede da audiência de julgamento.

Quanto a este princípio, “o que está na base do conceito é o princípio da libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, entretanto, se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra prova, porque o sistema da prova livre não exclui, e antes pressupõe, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica” (cf. A. dos Reis in CPC anotado, Coimbra Editora, 1950, vol. III, p. 245).

Assim, “(…) O princípio não pode de modo algum querer apontar para uma motivação imotivável e incontrolável, e portanto arbitrária, da prova produzida; se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados; a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever, o dever de perseguir a chamada verdade material, de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos, e portanto, em geral suscetível de motivação e controlo…” (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, p. 202/203).

O princípio da livre apreciação da prova “não é, portanto, livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objetivos e, dessa forma, determina uma convicção racional, logo, também ela objetivável e motivável” (cfr. Ac. do STJ de 4-11-98, CJ, tomo III, p. 209).

É dentro deste contexto aqui assinalado que o Tribunal se estribou, alicerçado no princípio da livre apreciação da prova, perspetivado como um dever, o de alcançar a verdade material, para julgar provada e não provada a matéria supra transcrita.

Conforme salienta o Prof. Germano Marques da Silva (in Curso II, 1982 [, pág.111]) ”O juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis.

Num primeiro nível trata-se da credibilidade que merecem ao Tribunal os meios de prova, e depende substancialmente da imediação e aqui intervém elementos não raciona[lmente] explicáveis.

Num segundo nível inerente à valoração da prova intervém as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão de basear-se na correção do raciocínio que há de fundamentar-se nas regras da lógica, principio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”.

Atendeu o Tribunal, prima facie, às declarações dos arguidos, os quais, tendo prestado declarações a final, negaram, em sumula, a factualidade que lhes é imputada, mais concretamente o terem proferido as expressões descritas na acusação particular quer na presença da assistente, quer na de terceiros.

Assim, alegou o arguido AA que, à data dos factos era o presidente da administração de condomínio e que a assembleia designada para …de 2018, visava, entre outros pontos, a nomeação de nova administração. Contudo, nessa data apenas foi indicada uma lista pela ... e quer por oposição dos condóminos presentes, quer por razoes de juízo pessoalíssimo não considerar ser uma lista que iria favorecer o condomínio devido à proximidade de alguns dos seus membros à ..., SA, foi determinada a interrupção da assembleia e designada nova data para a sua continuação.

Contudo, em … de 2018, continuava a existir a mesma lista única e oposição à sua nomeação por uma significativa parte dos condóminos presentes, inclusive do próprio arguido, o qual manifestou a sua opinião contra a nomeação dessa lista. Mais declarou que, no decurso da referida assembleia, a assistente terá efetuado um elogio à administração efetuada pelo defunto, seu pai, momento em que o arguido terá, então, contraposto com os motivos pelos quais divergia dessa opinião favorável à administração efetuada pelo “de cujus”, exemplificando com eventuais decisões e despesas sob as quais recaiam suspeitas de irregularidades.

De imediato, a assistente declarou que o seu progenitor “nunca teria prejudicado ninguém”, sendo que, nesse momento, criou-se uma confusão, com diversas vozes exaltadas por parte dos condóminos, em especial a gritar com a assistente. Declarou o arguido que, perante o clima de confusão e hostilidade criado, decidiu encerrar a assembleia, negando ter proferido as expressões imputadas na acusação particular (embora tivesse hesitado quanto à expressão “negociatas”).

Similar foi a versão relatada pelo arguido BB, o qual declarou que era um mero condomínio presente na assembleia, e perante as criticas e as declarações de AA e o seu prévio conflito com a ..., SA e o falecido devido a um contrato-promessa de compra de uma garagem, a qual não se realizou por denuncia do falecido, tendo este perdido do sinal, que, perante a alegação da assistente de que o seu pai nunca teria negado ninguém, de imediato contrapôs que a ele, o defunto DD o teria enganado com uma garagem. Negou, contudo, ter proferido a expressão “roubou-me uma garagem” ou “ladrão”, indicando que a sua intervenção apenas visava contrapor a eventual eleição da lista indicada por se encontrar conexionada com a ..., SA, bem como devido as anteriores divergências quanto à administração pelo defunto e a suspeita de favorecimento durante esse período dessa empresa.

Divergentes foram as declarações da assistente, a qual indicou ter à data das supra referidas assembleias proposto uma mudança da administração do condomínio, por considerar que se verificava uma degradação, sendo que a lista proposta não foi aceite. Mais declarou que os arguidos, em tom altivo, arrogante e crispado, durante a assembleia de …, terão, de modo inopinado e inesperado, ambos afirmado que o seu pai tinha sido um ladrão, sendo que o arguido BB, alegou ainda que este lhe teria “roubado uma garagem” e o arguido AA, que “conhecia muito bem as negociatas” do seu progenitor, sendo que o arguido BB proferiu as expressões durante a assembleia, enquanto que o ultimo apenas aquando do encerramento.

Declarou ainda que foi surpreendida com os eventos, porquanto a discussão que estava a ocorrer na assembleia não estava relacionada com o seu progenitor e inclusive descontextualizadas atendendo que o mesmo teria sido afastado da administração em 2012.

Afirmou que o teor da assembleia sofreu divulgação pública para pessoas conhecidas que não se encontravam na referida assembleia, o que lhe provocou, bem como à sua família, vergonha e humilhação, tendo inclusive decidido afastar se do edifício aonde teria frações e proceder à venda das mesmas. Mais indicou que os eventos tiveram impacto na sua vida profissional e atividade da empresa. Contudo, questionada de que modo se refletiu tais impactos, não logrou concretizar, salvo que teve algumas dificuldades em vender os imoveis que tinha no edifício (o que, per si, é incipiente no entender do Tribunal para provar o alegado impacto negativo).

Perante a divergência da versão relatada pelos arguidos e pela assistente, socorreu-se o Tribunal à prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, a qual, aparentemente, apresentou duas correntes de relatos distintos dos eventos ocorridos no decurso da assembleia de condóminos em … de 2018. Contudo e concertante aos depoimentos prestados por FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP e QQ, todos condóminos do supra referido edifício (sendo LL e QQ, igualmente esposas respetivamente do 1.º e 2.º arguido), embora todos hajam negado terem ouvido os arguidos proferirem as expressões descritas na acusação particular, são os próprios que admitem não terem logrado se aperceber de todo o teor das expressões trocadas dado caos que se instalou no decurso da assembleia. Alias, a testemunha GG depôs que o arguido AA comentou sobre a ocorrência de umas “negociatas”, mas sem indicar o seu autor (o que, contudo, no entender do Tribunal, seria percetível pelo contexto da discussão) e que o arguido BB declarou que lhe teriam “roubado uma garagem”. Por sua vez, a testemunha HH percebeu que este ultimo arguido teria antes dito que “lhe tiraram um parqueamento”, contudo, considerando o depoimento anterior, bem como da prova testemunhal arrolada pela acusação particular, mas igualmente a linguagem comum ser utilizada de acordo com as regras da experiencia comum, afigura-se ao Tribunal como mais plausível a expressão ouvida pela testemunha RR.

Com efeito, a versão relatada pela assistente da prolação por parte dos arguidos das expressões constantes na alínea l) e m) da factualidade considerada como provada é sustentada pelos depoimentos de EE, SS, TT, UU e VV, o que afasta a eventual discussão da isenção das referidas ultimas testemunhas dados os laços de amizade e laborais com a assistente, porquanto é parcialmente corroborada pelos depoimentos de BB e HH, os quais nenhum interesse têm na resolução da lide.

Todas as supra referidas testemunhas foram, contudo. consentâneas quanto ao clima de tensão que se sentia quanto à ..., SA e a lista única apresentada para a nova administração por este e que tal animosidade não se circunscrevia aos arguidos aqui em causa. Alias, é a própria assistente que afirma que, em determinado momento, outras vozes se ergueram contra o seu progenitor, não logrando, no entanto, especificar quem. E embora as testemunhas arroladas pela acusação particular não terem logrado especificar os motivos da rejeição da referida lista e animosidade contra a ..., SA que extravasou para o falecido DD, já as testemunhas FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP e QQ concretizaram os diversos motivos de queixa contra a administração do “de cujus” e as suspeitas de irregularidades, as quais foram abertamente discutidas em sede da assembleia de maio e que culminou nas expressões aqui discutidas.

A contextualização dada pelas testemunhas e ainda a patente virulência e suspeição quanto à administração efetuada pelo falecido DD, resultou evidente não só do teor dos supra referidos depoimentos, mas sobretudo da postura e os trejeitos efetuados pelas testemunhas durante o seu depoimento e que o Tribunal logrou se aperceber.

Ponderou ainda o Tribunal os testemunhos de WW e XX, amigas dos arguidos e cuja ciência dos factos é circunscrita ao que lhes foi transmitido pelos arguidos, tendo deposto quanto à personalidade dos mesmos, bem como a primeira, quanto à insatisfação do arguido BB pela não celebração do contrato-promessa.

Valorou o Tribunal ademais a prova documental junta aos autos, em particular, certidão permanente das sociedades da assistente a fls. 12 a 23, Assento de óbito, a fls. 25, Habilitação de herdeiros a fls. 27 a 28, Ata de …2018 a fls. 62 a 65, Ata de …2018 a fls. 72 a 74, o contrato-promessa de compra e venda a fls. 793 a 794.

Prestaram os arguidos, por fim, declarações sobre o seu modo de vida, profissão e agregado familiar, conjugado com os respetivos Relatórios Sociais, bem como os Certificados de Registo Criminal, no que se refere à inexistência de antecedentes criminais”.

3. Apreciação do mérito do recurso.

Alega a assistente, em resumo, que a conduta dos arguidos integra os elementos, objetivos e subjetivos, do crime que lhes foi imputado na acusação (um crime de ofensa à memoria de pessoa falecida, p. e p. pelo artigo 185º do Código Penal), uma vez que os arguidos, agindo com dolo, proferiram expressões, numa assembleia de condóminos, que ofenderam gravemente a memória do pai da assistente (já falecido).

Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o artigo 185º do Código Penal:

“1 - Quem, por qualquer forma, ofender gravemente a memória de pessoa falecida é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2 - É correspondentemente aplicável o disposto:

a) Nos nºs 2, 3, 4 e 5 do artigo 180º; e

b) No artigo 183º.

3 - A ofensa não é punível quando tiverem decorrido mais de 50 anos sobre o falecimento”.

O que está em causa no tipo de crime de ofensa à memória de pessoa falecida é o respeito comunitário devido aos mortos.

O objeto do crime não abrange todas as ofensas feitas à memória da pessoa falecida, mas apenas aquelas que possam ser qualificadas de graves.

Ora, nesta matéria (ponderação da gravidade das ofensas), tem de atender-se a toda a situação que rodeia a prática dos factos, designadamente aos motivos da conduta dos arguidos, ao grau de instrução dos intervenientes, aos hábitos de linguagem dos mesmos, ao contexto em que as palavras são produzidas, e, bem assim, ao modo como o são.

Assim postos os termos da questão a decidir, subscrevemos o que, a este propósito, se deixou escrito na sentença revidenda: “o contexto situacional em que as ditas afirmações foram proferidas, as anteriores divergências por parte dos condóminos quanto à administração efetuada por DD na qualidade de presidente da ...-Administração de condóminos, em especial quanto às despesas efetuadas e critérios das decisões tomadas, a suspeita de eventuais irregularidades praticadas no decurso da presidência do falecido suscitadas durante a assembleia de condomínios ocorrida a .../.../2018, o litigio prévio existente entre BB e o falecido, enquanto sócio-gerente da ..., SA pela frustração da aquisição de um espaço de parqueamento no edifício por denúncia do contrato-promessa pela sociedade gerida pelo “de cujus” e a nítida oposição por uma significativa parte dos condóminos na nomeação da lista única, na anterior assembleia ocorrida em … e continuada em …, indicada pela ..., SA pelas razões anteriores. Com efeito, é na decorrência deste contexto de divergência existente e nítida animosidade pela nomeação da lista indicada pela sociedade ..., SA, criada e gerida pelo falecido DD ate à sua morte e atualmente gerida pela assistente, que os arguidos proferiram as referidas expressões, insurgindo-se com a homenagem efetuada pela assistente ao seu progenitor e sua administração e a nomeação de uma lista indicada pela anterior administração, da qual o falecido foi o seu presidente, e sob a qual existiam suspeitas de irregularidades na gestão do condomínio. Se é inegável que as expressões proferidas pelos arguidos, com especial acuidade a palavra “ladrão”, é objetivamente ofensiva da honra e memória do falecido DD, contudo é importante atentarmos ao contexto em que foram proferidas e às motivações subjacentes, e não analisar as referidas expressões desconectadas dos seus contornos funcionais ou ligação a competências sociais específicas. Com efeito, e considerando tudo o supra exposto, afigura-se-nos que as referidas expressões não têm outro conteúdo senão um rude, grosseiro e inapropriado exercício de um direito de crítica pública, sobre o exercício de um cargo por parte do falecido como Presidente da administração de condomínios, e não um conteúdo ofensivo, em forma de ataque pessoal, da memória do indivíduo em si mesmo, inserido na aludida comunidade. Assim, as expressões proferidas visaram a anterior gestão por parte do falecido, na qualidade de presidente da administração de condomínio e manifestar a oposição da nomeação de nova administração conectada com a empresa fundada e gerida pelo falecido e atualmente gerida pela assistente, filha do “de cujus”, sobretudo face à existência de suspeitas de eventuais anteriores irregularidades/favorecimento da referida empresa durante a atuação da administração pelo falecido. Pelo exposto, não resulta como estando preenchidos as especificidades necessárias dos elementos objetivos do ilícito penal em apreço ou de qualquer outro, pelo que, e sem necessidade de avaliação do preenchimento do elemento subjetivo do mesmo, deverão os arguidos serem absolvidos da prática do crime de que se encontram acusados”.

Também em nosso entender, as expressões utilizadas pelos arguidos visando a pessoa do falecido, muito embora sejam inapropriadas (grosseiras, descorteses e boçais), e muito embora sejam até questionáveis do ponto de vista ético (ou moral), não preenchem os elementos objetivos do tipo legal de crime em análise.

Dito de outro modo: a conduta dos arguidos, utilizando as expressões em causa, é atípica, consubstanciando, isso sim, de modo rude, grosseiro e mal-educado, o exercício de um direito de crítica que visou a prática de atos de gestão, definidos em concreto, por banda do falecido.

Não se vislumbra, com o devido respeito por diferente opinião, como podem tais expressões constituir uma ofensa grave à memória da “pessoa” falecida, isto é, um ataque pessoalizado, descontextualizado e gratuito a tal memória.

Como bem escreve o Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, “a pessoa falecida visada pelas expressões dos arguidos foi presidente de uma empresa de administração de condomínios e, na assembleia geral de condóminos a que os autos se reportam, foi contestada e criticada a administração do condomínio “...”, por ambos os arguidos, um presidente da administração atual (à data dos factos) e outro na qualidade de condómino. Nesse contexto, foram pronunciadas as expressões imputadas nos autos e que visaram a pessoa falecida, pai da assistente. Ora, nem todas as expressões que comportam uma apreciação negativa do exercício de funções, enquanto responsável pela administração de um condomínio, ou que comportem uma apreciação negativa de outrem, em geral, têm necessariamente carga ofensiva tal que justifiquem a mobilização do direito penal, que é sempre uma mobilização a fazer como ultima ratio, tributária da sua natureza subsidiária ou fragmentária, e quando a lesão a bens jurídicos se revela digna de pena; limites que encontram sustentação constitucional no artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa”.

É certo, repete-se, que os arguidos usaram expressões deselegantes, desnecessárias e agressivas, incomodando, manifestamente, a assistente (enquanto filha do falecido).

Contudo, olhando ao exato contexto em que as expressões em questão foram proferidas (numa assembleia de condóminos), ponderando os motivos que estiveram na base do seu proferimento (divergências antigas na gestão do condomínio), atendendo ao meio (social e cultural) a que pertencem arguidos e assistente (e o falecido pai da mesma), e sopesando todos esses elementos de modo conjugado e complexivo, entendemos, como bem se considerou na sentença revidenda, que a conduta dos arguidos não preenche os elementos típicos do crime de ofensa à memória de pessoa falecida.

Com o devido respeito pela opinião contrária, face às expressões proferidas pelos arguidos, e avaliando o modo, os motivos e o contexto em que foram proferidas, bem andou a Exmª Juíza, na sentença sub judice, ao decidir absolver os arguidos, nos termos e pelos fundamentos em que o fez.

Na verdade, e como refere ainda o Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, “a ofensa à memória de pessoa falecida tem que ser grave em termos não estritamente subjetivos, e tal gravidade entra apenas no domínio penal se o contexto não lhe der razão explicativa bastante e razoável. Conforme resulta da sentença recorrida, esse contexto era de conflito, hostilidade, exaltação e suspeição em relação à administração da responsabilidade da pessoa falecida. Nesse contexto, as expressões usadas e imputadas aos arguidos são naturalmente pouco corteses, não polidas, mas de uso comum, que, numa conjunção de exaltação e desnorte, exemplificavam, de forma rude, porventura grosseira e deseducada, as suspeições existentes sobre a administração da responsabilidade da pessoa falecida, pai da assistente. O cargo exercido pela pessoa visada nas expressões dos arguidos era do interesse geral dos condóminos, com a decorrente afetação dos particulares e gerais interesses do condomínio e dos condóminos, e não podia estar isento de crítica, ainda que contundente, mordaz, depreciativa ou até caricatural”.

Dito de outro modo: no ambiente de uma assembleia de condóminos, e no estrito âmbito da discussão dos assuntos que interessavam a todos os que ali estavam presentes, o uso, em tom exaltado e emotivo, de expressões de suspeição e de crítica (in casu: “o seu pai foi um ladrão”; “o seu pai roubou-me uma garagem”; “negociatas do DD”), ainda que com grosseria e virulência (como é patente nas referidas expressões), não integra o cometimento do crime de ofensa à memória de pessoa falecida.

Os arguidos têm, pois, de ser absolvidos, como o foram na sentença recorrida.

Em razão da inexistência de responsabilidade criminal dos arguidos, perante o contexto em que atuaram, é também de improceder o pedido de indemnização civil contra eles formulado.

Do mesmo modo, inexistindo responsabilidade criminal dos arguidos, dada a manifesta atipicidade das respetivas condutas, e por razões de preclusão, a apreciação da restante matéria objeto do recurso fica prejudicada (nomeadamente a pretendida alteração da decisão fáctica proferida em primeira instância).

Em conclusão: o recurso da assistente não merece provimento.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso da assistente, mantendo-se, consequentemente, o decidido na sentença revidenda.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

*

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 13 de setembro de 2022

João Manuel Monteiro Amaro

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia

Edgar Gouveia Valente