Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
251/20.1T8ORM.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: INTERDIÇÃO
INCAPACIDADE POR ANOMALIA PSÍQUICA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
A declaração na sentença de interdição da data do começo da incapacidade assume um valor meramente indiciário, de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da prova da existência da incapacidade no momento da prática do acto – ónus que impende sobre quem pede a anulação.
Decisão Texto Integral: Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. A… instaurou a presente acção declarativa, com processo comum, contra B…, pedindo a anulação do testamento outorgado pela falecida mãe das partes, C..., no dia 22/10/2010, no Cartório Notarial de (…), sito em Fátima, mediante o qual a R. foi instituída herdeira da quota disponível da testadora, sua mãe.

2. Para tanto, alegou, em síntese, que, no processo n.º 257/15.2T8ORM foi decreta a interdição de sua mãe, C..., devido a anomalia psíquica, tendo sido fixado o começo da incapacidade da interdita no mês de Maio de 2010, e nomeada tutora a requerente; que C…, no dia 22/19/2010, fez um testamento em que instituiu a R., sua filha, como herdeira da quota disponível da sua herança; e que, quando outorgou este testamento, a referida C... se encontrava incapacitada para entender e querer, na medida em que tinha uma doença mental incapacitante.
Deste modo, concluiu a A., que a referida C... não tomou conhecimento dos termos do testamento, nem ele foi elaborado de acordo com a sua vontade, e que terá sido a R. a determinar à referida C... para ela fazer o testamento a seu favor, aproveitando-se da doença mental incapacitante de que ela padecia.

3. A R. apresentou contestação, alegando, em síntese, que apesar da doença mental de que padecia, a referida C... tinha plena capacidade de entender e querer os termos do testamento em causa, na altura em que o mesmo foi outorgado, concluindo pela improcedência da acção.

4. Foi dispensada a realização da audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio e identificados os temas da prova.

5. Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença, na qual se concluiu:
«… decide-se declarar totalmente improcedente por provada a presente acção.
Consequentemente, indeferem-se os pedidos formulados pela A., designadamente da declaração de anulabilidade do testamento que se encontra aqui em causa, outorgado em 22 de Outubro de 2010, pela referida C….
Deste modo, decide-se absolver a R. dos pedidos formulados pela A. nos presentes autos.»

6. Inconformada, veio a A. interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos seguintes [segue transcrição das conclusões do recurso]:
1.ª Pediu a A. nesta acção que, atento o disposto no artº 2199º do C. Civil, fosse anulado o testamento outorgado pela mãe, C..., a 22/10/2010, no Cartório Notarial de (…), em Fátima;
2.ª Com o fundamento de que encontrando-se a C..., à data da celebração do testamento, afectada duma demência crónica e irreversível do tipo Alzheimer Severa, num estado clínico demencial de uma doença evolutiva e degenerativa das capacidades afectiva e intelectiva, ser evidente encontrar-se ela incapacitada de entender o sentido da sua declaração ou de formar livremente a sua vontade.
3.ª Na verdade, o MMº Juiz reconheceu a fls. 30, último parágrafo da sentença, que a C… se encontrava na situação descrita na conclusão anterior, mas acrescentou que tal não bastava para declarar a invalidade do testamento, pois, para isso, era necessário ter feito prova de que a C... se encontrava incapacitada de entender e querer na altura em que foi outorgado o testamento.
E conclui a fls. 35 da douta sentença:
4.ª “Consequentemente, ter-se-á que concluir que, nos termos do art.º. 342º do C.C. cabia à Autora o ónus de provar que a referida C... estaria numa situação de incapacidade de entender e de querer quando outorgou o testamento em causa nos autos. Ónus esse que não logrou concretizar no caso concreto.
Deste modo, irá dar-se como assente em termos definitivos que se concluiu que não ficou demonstrado nos autos que a referida C... não tinha capacidade para entender e para querer quando outorgou o testamento lavrado em 22/10/2010”
5.ª Ora, o MMº Juiz, com o devido respeito, aplicou erradamente as regras do ónus de prova às partes nesta acção, uma vez que a A. apenas tinha que provar, como provou, que a testadora, aquando da outorga do testamento, apresentava uma situação de incapacidade decorrente de um estado clínico demencial ou de doença evolutiva e degenerativa das capacidades intelectivas.
6.ª E era à Ré, como beneficiária do testamento, que cabia o ónus de provar que, apesar daquele estado, a testadora outorgou num período lúcido e consciente.
ASSIM
7.ª O MMº Juiz, ao fundamentar a sua decisão de indeferir o pedido da A., de anulação do testamento, no facto desta não ter cumprido o ónus que lhe pertencia de provar que a C... se encontrava num estado de incapacidade ao outorgar o testamento, cometeu a nulidade prevista na al. c) do nº 1 do art.º. 615º do C.P.C.
Mas mesmo que a nulidade não existisse sempre, a sentença teria que ser revogada.
Com efeito, e como se alegou “supra”
8.ª Os factos dados como provados nos arts. 9º a 12º da relação dos Factos Provados da sentença não poderão manter-se. Com efeito:
As únicas testemunhas que depuseram por estarem presentes na altura da outorga do testamento foram a própria notária, Drª (…), e a testemunha dada para o testamento, (…). Ora, a Srª Notária o que disse é que não conhecia a testadora, não se lembrava de nada em concreto do que se passou nesse acto da outorga do testamento, apenas tendo relatado as regras que costumava usar na altura dos testamentos.
Quanto à testemunha (…), apenas se lembrava de ter ouvido ler e ter assinado o testamento, pelo que, e como já se requereu, devem os referidos 4 artigos ser reduzidos aos dois seguintes:
1- A Srª Notária que elaborou o testamento leu-o em voz alta.
2- A referida C… assinou o testamento perante a testemunha (…) e a Srª Notária Drª (…), que o elaborou.”
E, por outro lado, deve alterar-se o facto levado à al. A) dos Factos não Provados da Sentença, substituindo-se a expressão “…encontrava-se incapaz de entender…” pela expressão “… encontrava-se capaz de entender…”
9.ª E atento o que consta dos Factos Provados nos arts. 6º a 8º da sentença, e a conclusão tirada no último parágrafo de fls. 30 da sentença, deve levar-se o seguinte facto à Relação dos Factos Provados da sentença:
“A demência da C..., resultante da doença de Alzheimer iniciou-se no mês de Maio de 2.010.”
10.ª Na resposta aos documentos juntos pela Ré no Proc. 6/18.3 T8ORM a A. juntou os documentos 25 e 26 que acompanhavam a sua Réplica e que mais não são do que a sentença francesa que tutelou a C... e a sua tradução, e cujo teor deverá ser aditado aos Factos Provados nos termos seguintes:
“A C... foi colocada sob tutela por decisão de 10.04.2012 desse tribunal francês, por estar provada a alteração das suas faculdades e nomeado um tutor para o exercício dos seus interesses patrimoniais e pessoais. Que, além disso, o seu estado exclui qualquer lucidez, sob o ponto de vista eleitoral, pelo que lhe foi suprimido o seu direito de voto.
Que para a decisão foi considerado o certificado Médico passado aos 30/11/2011 pela Drª (…), médica especialista inscrita na lista estabelecida pelo Procurador da República.”
11.ª Devem, ainda, como “supra” se fundamentou, ser aditados à relação dos Factos Provados, os dois seguintes:
“1 – A C... encontrava-se a viver em França, em casa da filha mais nova B..., Ré neste processo, para onde esta a levou à revelia e contra a vontade da outra filha, Autora nestes autos.
e
2 - A C... encontrava-se incapaz de entender o sentido das declarações que constam do testamento.”
12.ª Assim, e mesmo que não se considere a nulidade da sentença, sempre esta deve ser revogada, uma vez que a A. provou, como lhe competia, que a C... se encontrava, desde 10/05/2010, já antes do testamento, num estado de demência resultante da doença de Alzheimer que a impedia de querer e compreender, comprovado medicamente, enquanto a Ré não cumpriu o ónus que a lei lhe impunha de provar que a C... se encontrava, no acto da outorga do testamento, com capacidade para entender o testamento e querer de livre vontade o que dele constava.
13.ª O MMº Juiz além de proferir uma sentença nula nos termos do art.º 615º nº 1 al. c) do C.P.C., violou, ainda, o disposto no artigo 2199º, ao absolver a Ré dos pedidos formulados pela Autora nos presentes autos.
Nestes termos, e invocando ainda o douto suprimento de V. Excias, deve ser dado provimento ao presente recurso, em conformidade com as antecedentes conclusões e respectivos fundamentos, como é de direito e de JUSTIÇA!

7. Não se mostram juntas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpra apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
(i) Da nulidade da sentença;
(ii) Da alteração da matéria de facto; e
(iii) Da reapreciação jurídica da causa, no sentido de apurar se ocorre fundamento para a pretendida anulação do testamento por incapacidade da testadora.
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
A.1. Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos [constam assinalados a negrito os factos alterados ou aditados no recurso]:
1. A A. e a R. são filhas de C....
2. No processo de interdição nº 257/15.2T8ORM, que correu termos neste Juízo Local Civil do Tribunal de Ourém, foi proferida sentença em 11-5-2016, transitada em julgado em 15-6-2016, onde foi declarada a interdição da referida C..., onde foi declarado que a data do inicio da incapacidade da interdita seria no mês de Maio de 2010, onde a A. foi nomeada tutora da interdita, e a R. foi nomeada protutora.
3. No processo de acompanhamento de maior referido em 2) ficaram provados os seguintes factos: “A) O requerido não soube dizer o seu nome. B) Não conseguiu indicar a sua idade. C) Desconhece o valor do dinheiro. D) Não sabe referenciar o dia, mês e ano em que nos encontramos. Não sabe igualmente a estação do ano em que se encontra. E) Não soube a designação ou identificação do local onde se encontrava. F) O requerido é portador de um quadro clínico de demência tipo Alzheimer, em fase avançada. Encontra-se com esse quadro clínico desde o mês de Maio de 2010, altura em que a sua doença começou a apresentar sinais evidentes. G) A requerida desloca-se numa cadeira de rodas empurrada por outra pessoa. Evidencia uma atenção não captável, permanecendo indiferente ao meio envolvente às pessoas presentes. Não estabelece qualquer diálogo. H) O requerido necessita de ajuda de terceiros para cuidar da sua alimentação, higiene pessoal, e cuidados de saúde. I) Actualmente quem cuida do requerido, nomeadamente da sua higiene pessoal e alimentação, e lhe presta os cuidados de saúde que carece são os funcionários da casa de acolhimento, onde o mesmo se encontra internado. J) A doença de que padece o requerido tem carácter definitivo, não havendo tratamento eficaz a propor, e não tem qualquer hipótese de evolução para a cura, é irreversível e afecta todas as áreas da sua vida corrente, social, afectiva e económica, verificando-se estar incapaz para a realização de tais actos, necessitando de supervisão constante”.
4. Consta do relatório do exame médico-psiquiátrico realizado à referida C... em 8-3-2016, no processo referido em 2), designadamente que: “Ao exame foi possível apurar tratar-se de uma senhora, à data com 78 anos, deslocada em cadeira de rodas. Questionada sobre o seu nome, nada responde. Evidencia uma atenção não captável, permanecendo indiferente ao meio envolvente e às pessoas presentes. Não estabelece qualquer diálogo. Necessita de ajuda para a realização de todas as suas actividades da vida diária (alimentação, higiene, vestuário, medicação), da consulta dos poucos elementos clínicos existentes no seu processo clínico foi possível verificar que foi consultada por um clínico francês em Maio de 2010, apresentando já nessa altura um valor muito baixo na avaliação cognitiva efectuada (10 pontos em 30 possíveis). De acordo com a avaliação clínico-psiquiátrica efectuada…podemos afirmar que a examinanda é portadora de quadro clínico de Demência tipo Alzheimer, em fase avançada…Apesar de não se poder datar com exactidão o início da patologia, pode admitir-se que pelo menos desde Maio de 2010 a examinanda se encontra incapaz de reger a sua pessoa e bens. Tal condição nosológica é irreversível e afecta todas as áreas da vida corrente, social, afectiva e económica, verificando-se a examinanda total e definitivamente incapaz para a realização de tais actos, necessitando de supervisão e ajuda permanentes”.
5. No dia 22 de Outubro de 2010, no Cartório Notarial sito em (…), Fátima, Ourém, a fls. 72, do livro de testamentos nº 1-T, a referida C... outorgou um testamento em que revogou qualquer outro que tivesse feito e onde instituiu a R. como herdeira da sua quota disponível.
6. O Dr. S. (…), neurologista enviou ao Dr. (…), uma carta datada de 30-8-2010, onde fez constar que, designadamente: “Consultei a sua paciente, a senhora C..., 73 anos, que apresenta desde há menos de um ano perturbações de memória e do comportamento agravados tornando rapidamente impossível mantê-la no seu domicílio sozinha…Nos exames das funções cognitivas em Maio de 2010, notava-se um défice de grau evoluído com pontuação MMS inferior a 10/30. Este défice comporta uma DTS completa, perturbações da linguagem significativas (falta de palavras, confusão na escolha de palavras) perturbando qualquer tentativa de comunicação. Nota-se ainda uma apraxia construtiva e uma franca apraxia ideomotora…Trata-se de uma demência relacionada com uma provável doença de Alzheimer…No dia de hoje a melhoria está relacionada com o desaparecimento dos estados de agitação e dos estados delirantes tal como uma melhoria na consulta realizada hoje”.
7. Consta do relatório de avaliação cognitiva da referida C... elaborado em 8 de Dezembro de 2011 pelo Hospital Emile Roux, sito em França, os seguintes elementos com relevância: “HISTORIAL DA DOENÇA: As perturbações começaram há 3 ou 4 anos por perturbações de comportamento de tipo agressivo. Em paralelo, ela já não comia, tinha emagrecido muito, já não fazia a limpeza da casa, negligenciava a sua aparência, lavava-se com protector solar, tomava os comprimidos do cão, assinava cheques e fazia transferências para a sua filha mais velha e não se lembrava…A senhora Mendes foi inicialmente tratada com SEROPLEX sem grande eficácia. Depois ela veio viver com a sua segunda filha em França. Desde essa data, ela é seguida por um neurologista da cidade, que lhe diagnosticou uma demência tipo Alzheimer severa em Maio de 2010…Ela depende da sua filha para todos os actos da vida quotidiana. Ela lava-a, veste-a, dá-lhe os medicamentos, fá-la comer…A avaliação é difícil porque a senhora (…) não fala e não compreende o francês. O MMS (Mini-Mental State) traduzido pela filha é de 4/30”.
8. O Dr. S. (…), neurologista, enviou a outro médico, uma carta datada de 29-4-2014, onde fez constar que, designadamente: “Vai encarregar-se do caso da paciente C..., 76 anos, que eu sigo desde 2010, que eu sigo devido à doença de Alzheimer adiantada, em fase terminal (ver em anexo o relatório da primeira consulta em 2010 na qual notámos logo uma demência de grau severo). Actualmente o seu estado apresenta perturbações cognitivas graves com perturbações assinaláveis da comunicação verbal, com mudez quase total, e não verbal, perturbações práxicas e incoerências do comportamento”.
9. Na altura da outorga do testamento referido em 5), a Sr.ª notária que elaborou o mesmo, a testemunha (…), explicou o conteúdo do testamento, após ter lido o mesmo em voz alta. [facto com a redacção alterada no recurso]
10. A referida (…) não detectou qualquer falta de percepção por parte da referida C... quanto ao teor do testamento e quanto ao objectivo do mesmo.
11. Se a testemunha (…) tivesse verificado que a referida C... não tinha a percepção do teor do testamento que iria assinar e quais os efeitos do mesmo, não teria admitido a outorga e a assinatura do testamento pela referida C....
12. A referida C... assinou o testamento referido em 5) perante as testemunhas presentes e a Sr.ª. notária que elaborou o mesmo, ou seja a testemunha (…).
13. C... padecia de uma demência do tipo Alzheimer, diagnosticada em Maio de 2010. [Facto aditado]
14. Por sentença do tribunal de Instância de Boissy Saint Leger, de 10 de Abril de 2012, foi C... colocada “sob tutela”, fixando-se à medida a duração de 60 meses, por apresentar uma “alteração das suas faculdades mentais”, e precisar de ser representada “tanto no que respeita ao exercício dos seus interesses patrimoniais, como à protecção da sua pessoa”, e nomeado tutor, tendo-lhe ainda sido suprimido o direito de voto, “por o seu estado excluir qualquer lucidez do ponto de vista eleitoral”. [Facto aditado]
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A.2. E consideraram-se como não provados os seguintes factos com relevância para o objecto em causa nos presentes autos:
A) Na data da outorga do testamento referido em 5), a referida C... encontrava-se incapaz de entender o sentido das suas declarações que constam desse testamento e ainda em condições de exprimir a sua vontade própria e real, designadamente de emitir a declaração que consta do testamento referida em 5) de instituir a R. como herdeira da sua quota disponível. [Facto eliminado]
B) Em Fevereiro de 2010, a referida C... e o marido contrataram os serviços de Apoio ao domicílio do Centro Paroquial de Rio de Couros, e nunca as funcionárias e equipas de limpeza de tal instituição notaram qualquer alteração no comportamento da referida C... que indicasse que padecia de doença de Alzheimer.
C) Na altura da realização do exame de avaliação cognitiva referido em 7), a referida C... apresentava sinais de depressão devido ao facto de o seu marido se encontrar em Portugal num lar contra a sua vontade.
D) Em 2010 todas as pessoas que conviviam com a referida C... nunca notaram que ela tinha atitudes características da doença de Alzheimer.
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B) – O Direito
1. A recorrente discorda da sentença, começando por arguir a nulidade da mesma prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, onde se comina com a nulidade a sentença quando: os fundamentos estejam em oposição com a decisão, ou ocorra ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
A nulidade prevista na 1.ª parte da alínea c) do referido preceito legal remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Não está em causa o erro de julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável, mas antes a estrutura lógica da sentença, ou seja, quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontava os fundamentos.
Ora, no caso, se bem percebemos, a recorrente funda a contradição, como se vê das conclusões 3ª a 7ª, no facto de se ter referido que a testadora, C..., sofria de doença incapacitante, mas que tal não bastava para se declarar a invalidade do testamento, pois era necessário ser feita prova de que a referida C... se encontrava incapacitada de entender e querer na altura em que foi outorgado o testamento, e que tal prova cabia à A., nos termos do artigo 342º do Código Civil, mas, diz a recorrente, aplicaram-se erradamente as regras relativas ao ónus da prova, porque esta prova incumbe à R., como beneficiária do testamento.
Como está bom de ver, tal alegação não encerra, em si, qualquer contradição nos fundamentos, invalidante da sentença, conducente à sua nulidade.
O que poderá existir é eventual erro de julgamento, seja quanto à interpretação dos requisitos previstos na norma do artigo 2199º do Código Civil, invocada como fundamento para a anulação do testamento, seja quanto à aplicação das regras relativas ao ónus da prova, que não estão a coberto do manto das nulidades da sentença.
Consequentemente, improcede a aludida nulidade.

2. Quanto à pretendida alteração da matéria de facto, importa sublinhar que, não obstante se garantir no sistema processual civil um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, não podemos ignorar que continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme decorre do artigo 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, ao estatuir que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…)”.
Para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova (Remédio Marques, Acção Declarativa, à Luz do Código Revisto, 3.ª Edição, pág. 638-641).
Assim, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da apreciação das provas previsto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo, a qual não se funda meramente na prova oral produzida, sendo a mesma conjugada com todos os demais meios de prova que a podem confirmar ou infirmar, e apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas.
Como ensina Miguel Teixeira de Sousa, “[a]lgumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência” (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 347).
E, como nos dá conta o Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 25/01/2016 (processo n.º 05P3460), disponível, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt: “(…) VII - O exame crítico das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
VIII - O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte. (…)”
Deste modo, a Relação aprecia livremente as provas, de acordo com o princípio constante do n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, ou seja, a tudo o que possa concorrer para a formação da sua livre convicção acerca de cada facto controvertido.
Por outro lado, não invalida a convicção do tribunal o facto de não existir uma prova directa e imediata da generalidade dos factos em discussão, sendo legítimo que se extraiam conclusões em função de elementos de prova, segundo juízos de normalidade e de razoabilidade, ou que se retirem ilações a partir de factos conhecidos.
Não se pode, porém, esquecer que nesta sua tarefa a Relação padece de constrangimentos decorrentes da circunstância de os depoimentos não se desenvolverem presencialmente, pelo que na reapreciação dos depoimentos gravados, a Relação tem apenas uma imediação mitigada, pois a gravação não transmite todos os pormenores que são captáveis pelo julgador e que vão contribuir para a formação da sua convicção.
Assim, a alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, em casos excepcionais e pontuais, e só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.
Vejamos o caso concreto.

3. Começa a recorrente por pedir a alteração dos pontos 9 a 12 dos factos provados, onde se deu como assente que:
«9. Na altura da outorga do testamento referido em 5), a srª. notária que elaborou o mesmo, ou seja a testemunha (…), questionou a referida C... sobre a sua percepção do que vinha fazer ao Cartório Notarial, o que pretendia com a outorga do referido testamento, e ainda se estava de acordo com o seu conteúdo após ter lido o mesmo em voz alta.
10. A referida (…) não detectou qualquer falta de percepção por parte da referida C... quanto ao teor do testamento e quanto ao objectivo do mesmo.
11. Se a testemunha (…) tivesse verificado que a referida C... não tinha a percepção do teor do testamento que iria assinar e quais os efeitos do mesmo, não teria admitido a outorga e a assinatura do testamento pela referida C....
12. A referida C... assinou o testamento referido em 5) perante as testemunhas presentes e a srª. notária que elaborou o mesmo, ou seja a testemunha (…)».
Pretende a recorrente que se considere apenas provado que:
1- A Srª Notária que elaborou o testamento leu-o em voz alta.
2- A referida C... assinou o testamento perante a testemunha (…) e a Srª Notária Drª (…), que o elaborou.”
Para tanto, invoca a recorrente que “as únicas testemunhas que depuseram por estarem presentes na altura da outorga do testamento foram a própria notária, Drª (…), e a testemunha dada para o testamento, (…). Ora, a Srª Notária o que disse é que não conhecia a testadora, não se lembrava de nada em concreto do que se passou nesse acto da outorga do testamento, apenas tendo relatado as regras que costumava usar na altura dos testamentos. Quanto à testemunha (…), apenas se lembrava de ter ouvido ler e ter assinado o testamento”
Vejamos:

4. A respeito desta factualidade, que se teve como provada, o Tribunal a quo fundamentou-se no seguinte:
«… para a prova dos factos referidos nos pontos 9), 10), 11) e 12), o Tribunal levou em consideração o depoimento da testemunha (…), que foi a notária titular do Cartório Notarial onde foi outorgado o testamento referido em 5), e que redigiu e leu o mesmo na data da sua outorga. Na verdade, esta testemunha mostrou ter conhecimento directo de tais factos e realizou um depoimento lógico e coerente, que resultou assim convincente para o Tribunal. Na verdade, esta testemunha informou que antes da leitura e outorga dos testamentos tem uma conversa em privado com os autores do testamento para verificar o seu estado mental e se eles têm capacidade de entender e de querer. Designadamente faz perguntas sobre a identidade, e o enquadramento temporal e espacial do autor do testamento e questiona-o sobre o objectivo pelo qual pretende outorgar esse documento e qual a sua vontade quanto ao mesmo. Apenas quando tem a garantia que o autor do testamento tem capacidade de entender e querer quanto ao mesmo é que admite proceder à sua celebração. Caso conclua que o autor do testamento não tem condições de entender e querer o teor do testamento, não proceder à sua celebração, rejeitando a mesma. No caso concreto apenas terá aceite celebrar o testamento após ter verificado que a referida C... tinha capacidade de entender e querer o mesmo. Além disso, terá lido o testamento na presença da referida C.... No final terá perguntado à referida C... se aceitava os termos do testamento e se ele estava feito segundo a sua vontade. Apenas nessa altura deu por outorgado o testamento.
Para a prova destes factos levou-se em consideração o depoimento da testemunha (…) que foi testemunha no testamento em causa, referido em 5), estando assim presente quando o mesmo foi outorgado. Na verdade, esta testemunha informou que a sr. notária leu o testamento na presença da referida C..., tendo assim esta tomado conhecimento do mesmo. Além disso, a referida C... apenas assinou o testamento após a sua leitura. Logo presumiu-se que concordou com o teor de tal testamento.»

5. Auditados os depoimentos em causa, verifica-se que a Sr.ª Notária, a testemunha (…), não se recorda do testamento em causa, e não disse que questionou a C... sobre a percepção do que vinha fazer ao Cartório Notarial, o que pretendia fazer com a outorga do referido testamento e se estava de acordo com o seu conteúdo. O que disse foi o que habitualmente faz aquando da feitura dos testamentos, ou seja, que: “Os testamentos são sempre precedidos por uma pequena reunião com o testador, em que eu tento perceber qual é que é a real vontade do testador. Faço normalmente algumas perguntas (…) como é que se chama, onde é que nasceu, nome do pai, da mãe, qual é que é a data de nascimento, donde é natural, o que é que pretende fazer. As pessoas dizem o que é que pretendem (…)”. Disse também que explica o conteúdo e pergunta se estão de acordo.
Em suma, a testemunha não relata o que fez no caso concreto, mas o que normalmente faz.
Por outro lado, a testemunha (…), disse que foi testemunha no acto porque lhe foi pedido pela Dr.ª (…), que “estava a tratar do testamento”, que não conhecia a D. C..., que o testamento foi lido, mas não se recorda do que foi perguntado à D. C..., se ela tinha percebido.
Ora, estes depoimentos não permitem fundamentar a totalidade da factualidade dada como assente sob o ponto 9 dos factos provados, mas tão só que na altura da outorga do testamento a Sr.ª Notária, a testemunha (…), explicou o conteúdo do testamento, após ter lido o mesmo, em voz alta, facto este que, aliás, resulta provado em face do teor do texto do testamento, que consta de fls. 18 e 19 (cf. artigo 371º, n.º 1, do Código Civil).
Deste modo impõe-se a alteração do ponto 9 da matéria de facto prova, passando a constar que:
«9. Na altura da outorga do testamento referido em 5), a sr.ª notária que elaborou o mesmo, a testemunha (…), explicou o conteúdo do testamento, após ter lido o mesmo em voz alta.»

6. Tal não implica, porém, a alteração da matéria de facto constante dos pontos 10 e 11 dos factos provados, porquanto, não é credível que a Sr.ª Notária, se se tivesse apercebido do estado de incapacidade da testadora, ainda assim tivesse admitido a outorga do testamento, sendo convincente o depoimento que prestou neste sentido. A Sr.ª Notária até pode muito bem ter perguntado à testadora se concordava com o que foi lido, o que é normal fazer-se, e esta ter respondido que sim, mas tal não implica que a resposta dada levantasse dúvidas quanto à capacidade da testadora entender o que lhe estava a ser perguntado.
Quanto ao ponto 12, resulta do próprio documento que o mesmo foi assinado perante a notária e as testemunhas ali indicadas.

7. Pretende a recorrente, na conclusão 9ª, que, em face dos factos provados em 6 a 8, e da conclusão tirada no último parágrafo de fls. 30 da sentença, que se adite à matéria de facto que “a demência da C..., resultante da doença de Alzheimer iniciou-se no mês de Maio de 2010”.
De facto, como diz a recorrente, conclui-se na fundamentação da sentença com base nos elementos de prova carreados para os autos que “… que a doença mental incapacitante de que a referida C... padece, que levou a que a mesma fosse declarada interdita por anomalia psíquica, ou seja a demência resultante da doença de Alzheimer, iniciou-se nesse mês de Maio de 2010.”
E esses elementos de prova mais não são do que aqueles que constam indicados, entre outros, sob os pontos 6 a 8 dos factos provados, onde consta discriminado o teor dos relatórios médicos ali indicados.
Ora, o que se apura na sequência desta factualidade e, bem assim, da indicada sob os pontos 3 e 4, é que a C... foi diagnosticada demência, tipo Alzheimer, em Maio de 2010, não havendo elementos seguros para se dizer que a doença se iniciou apenas nessa data. Esta foi a data em que foi feito o diagnóstico da doença e resultou apurado no processo de interdição que esta foi também a data em que a doença começou a apresentar sinais evidentes. Além disso, existem elementos nos autos (cf. ponto 7 dos factos provados), que apontam para a existência de perturbações relacionadas com a doença em data anterior.
Assim, deve aditar-se à matéria de facto provada que:
13. C... padecia de uma demência do tipo Alzheimer, diagnosticada em Maio de 2010.

8. Sob a conclusão 10ª, pede a recorrente que, com fundamento nos documentos n.ºs 25 e 26, que acompanhavam a sua “réplica”, que constam de fls. 67 a 69, que mais não são do que a sentença francesa que tutelou C... e a sua tradução, que se consigne, além do que mais invoca, que C... foi colocada sob tutela por decisão de 10/04/2012, tendo para a decisão sido considerado o certificado Médico passado aos 30/11/2011.
De facto, resulta da dita sentença que C... foi colocada sob tutela, e fixada à medida a duração de 60 meses, por se concluir estar provada alteração das suas faculdades, tendo-lhe sido também suprimido o seu direito de voto, e que para a decisão foi considerado o certificado médico passado em 30/11/2011.
Este facto, está efectivamente provado pelo referido documento, cuja autenticidade não se questiona, que se encontra traduzido.
No que se reporta à menção que na sentença se faz ao relatório médico de 30/11/2011, não se conhecendo o seu teor, nem ali sendo indicado, não se fará referência ao mesmo.
Assim, como resulta do dito documento, deve igualmente aditar-se à matéria de facto a seguinte factualidade:
«14. Por sentença do tribunal de Instância de Boissy Saint Leger, de 10 de Abril de 2012, foi C... colocada “sob tutela”, fixando-se à medida a duração de 60 meses, por apresentar uma “alteração das suas faculdades mentais”, e precisar de ser representada “tanto no que respeita ao exercício dos seus interesses patrimoniais, como à protecção da sua pessoa”, e nomeado tutor, tendo-lhe ainda sido suprimido o direito de voto, “por o seu estado excluir qualquer lucidez do ponto de vista eleitoral”.»

9. Sob a conclusão 11ª, pretende a recorrente que se adite à matéria de facto que “a C... encontrava-se a viver em França, em casa da filha mais nova B..., Ré neste processo, para onde esta a levou à revelia e contra a vontade da outra filha, Autora nestes autos”.
Porém, com todo o respeito, tal facto assim considerado e desligado de quaisquer outros que o relacionem com o estado de saúde de C... com relevância para a prática do acto em causa, é inócuo para a decisão dos autos, e só retrata o estado de animosidade existente entre as partes, que aquando da outorga do testamento, no dizer da A., já estavam de relações cortadas.

10. Pretende ainda a recorrente que se adite à matéria de facto que “C... encontra-se incapaz de entender o sentido das declarações que constam do testamento.”
Ora, esta matéria não é propriamente um facto, mas sim a conclusão que se pretende alcançar em função de concretos factos alegados e provados no processo.
Melhor dizendo, trata-se, antes, de asserção de cariz jurídico-conclusivo.
Como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24/05/2011 (proc. n.º 4936/04.1TCLRS.L1.S1): “Saber se o testador se encontrava ou não incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou de formar livremente a sua vontade é uma conclusão jurídica a extrair dos factos apurados” (cf. neste sentido, ainda o acórdão da Relação de Évora, de 17/12/2020, proc. n.º109/17.1T8BJA.E1, em que foi relatora a aqui 2ª Adjunta).
Deste modo, constituindo tal matéria questão a apurar em sede de apreciação jurídica dos factos, não pode a mesma figurar no elenco dos factos provados.

11. E, pelas mesmas razões, determina-se a eliminação da alínea A) dos factos não provados, onde se deu como não provado que a testadora se encontrava incapaz de entender o sentido das declarações que constam do testamento, que a recorrente impugnou, propondo diferente redacção, em função da leitura que faz das regras do ónus da prova, que é questão igualmente a ser apreciada em sede de subsunção jurídica dos factos.

12. Vejamos agora a integração jurídica dos factos, atendendo às questões levantadas pela recorrente.
Como resulta dos autos, a A. pretende que se declare a anulabilidade e se determine a revogação de um testamento que foi outorgado pela sua mãe, C..., pelo qual instituiu a R. como herdeira da sua quota disponível.
Como fundamento deste pedido de anulação do testamento outorgado a favor da R., vem a A. alegar que a referida C... se encontrava na altura numa situação de incapacidade mental, o que a impedia de entender e de querer realizar aquele acto.
A noção do acto jurídico denominado de testamento encontra-se estabelecida no artigo 2.179º, n.º 1, do Código Civil: “Diz-se testamento o acto unilateral e revogável pelo qual uma parte dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles.”.
Tratando-se de um acto de disposição patrimonial gratuito, importa que a vontade e o livre arbítrio do testador não sejam afectados por qualquer circunstância temporária ou permanente que tolha as suas faculdades intelectuais, volitivas, pois, de outro modo, não pode falar-se em acto de vontade livre e esclarecido.
Como se realça no acórdão desta Relação de 17/12/2020, supra identificado:
«“Tratando-se de um acto jurídico a sua validade fica dependente dos requisitos que a lei faz depender a validade de qualquer acto querido e assumido por um sujeito jurídico que se destine a regular e a dispor sobre as relações jurídicas estabelecidas entre pessoas. A pessoa que se disponha a efectuar uma declaração que encerre uma disposição de vontade, querida e assumida, deve, no momento em que a materializa e profere estar investido de plena consciência do acto que pretende realizar. Ou seja, o sujeito que se dispõe a concretar um acto jurídico deve, no momento em que o materializa, estar na plenitude da sua capacidade de perceber, entender e ditar sobre as consequências, efeitos e alcance do acto que vai realizar.
Torna-se, inafastável e indispensável, “que o testador tenha a consciência do seu acto e dos efeitos deste; que tenha uma ideia justa da extensão do bem de que dispõe; que esteja em estado de compreender e de apreciar os direitos que vão nascer da sua disposição de ultima vontade, e, especialmente, com relação a este último objecto, que nenhuma perturbação de espírito envenene as suas afeições, ou perverta o seu sentimento do justo, ou ponha obstáculo ao exercício das suas faculdades naturais; que nenhum delírio influencie a sua vontade, quando dispõe da sua fortuna, ou o arraste a fazer um uso dela que não faria, se estivesse em plena integridade do seu espírito (…)” [AUJ de 26.05.1964]
Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, ensinavam que “[se] devem considerar como não estando em seu perfeito juízo aqueles que, em virtude de qualquer perturbação ou desarranjo mental, quer de natureza permanente, quer passageira, careçam de vontade própria ou da percepção necessária para compreenderem o alcance e o sentido do negocio da ultima vontade”.
“Não se exige, para se poder afirmar que o testador não está em seu perfeito juízo, que ele seja demente ou mentecapto; basta que ele tenha juízo não perfeito ou seja fraco de espírito”. [P.de Lima e A. Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, 5.ª ed., II, pp. 384].
Será o caso de alguém que seja portador de uma doença que afecte os centros de percepção, intelecção compreensão e interacção/interpretação dos actos de vontade e do querer empreender e executar uma acção de que advenham consequências para a sua esfera jurídica e/ou patrimonial.” [Ac. do STJ de 11.04.2013, proc. n.º 1565/10.4TJVNF.P1.S1]
Ora, podem testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer (art.º 2188.º do Cod. Civil), sendo incapazes de testar os menores não emancipados e os interditos por anomalia psíquica (art.º 2189.º do Cod. Civil), sendo, nestes casos, o testamento nulo (art.º 2190.º do Cod. Civil).
Trata-se, nestes casos, de uma incapacidade absoluta de testar, sendo que no caso de “interdição por anomalia psíquica cria assim uma verdadeira incapacidade absoluta de testar, que torna desnecessária a prova de que, no momento da elaboração do testamento, o testador se não encontrava em seu perfeito juízo, e que, inclusivamente, não admite a prova de que o testador, apesar de interditado, redigiu o testamento em seu perfeito juízo” [Pires de Lima e Antunes Varela, Cod. Civil anot., VI, Coimbra Ed., 1998, pp. 309].»

13. Não subsistem dúvidas nos autos de que, tendo a testadora sido interditada por anomalia psíquica em 15/06/2016, em processo instaurado em 2015, e tendo o testamento sido outorgado em 22/10/2010, ainda que dentro do período de incapacidade fixado na sentença de interdição, não havia lugar à instauração da acção de anulação a que se reporta o n.º 2 do artigo 903º do Código de Processo Civil, tendo, assim, o pedido de anulação do testamento, com fundamento na incapacidade da testadora, que ser formulado, como sucedeu, ao abrigo do disposto no artigo 2199º do Código Civil, que, sob a epígrafe “Incapacidade Acidental”, prevê que: “É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.”.
A incapacidade acidental, a que se refere o art.º 2199.º do Código Civil, afectando ou obnubilando a vontade do testador, constitui vício volitivo que determina a anulabilidade do acto; o normativo quer proteger o testador, o seu acto de vontade unilateral, ao passo que o artigo 257.º do Código Civil, que também versa sobre a incapacidade acidental mas em actos contratuais e tem o seu campo de aplicação nos negócios jurídicos bilaterais, visa proteger, sobretudo, o declaratário desde logo exigindo como requisito de anulabilidade da declaração que o facto determinante da incapacitação acidental de entender o sentido da declaração de vontade seja notório, ou conhecido do declaratário.
Da leitura do artigo 2199.º do Código Civil verifica-se que nele se prescinde dos requisitos notoriedade ou cognoscibilidade do vício que afecta a vontade do declarante, desde logo, por se tratar de um acto unilateral, um negócio jurídico não recipiendo, que não carece de aceitação para produzir os seus efeitos.

14. Na sentença são feitas extensas e judiciosas considerações quanto à noção de testamento e causas de anulabilidade do mesmo, que, por exaustivamente explicitadas aqui temos por reproduzidas, sendo que, quanto à questão de saber se estavam provados os requisitos previsto na norma do artigo 2199º do Código Civil, conducente à pedida anulação do testamento se entendeu o seguinte [transcreve-se o essencial da decisão]:
«(…), a questão que se levanta nos presentes autos é a de saber se a referida C... estava ou não na posse das suas faculdades mentais e com capacidade de entender e querer quando outorgou o testamento a favor da R.
Na verdade, é requisito essencial da validade do testamento que o autor desse acto jurídico esteja numa situação de capacidade testamentária, designadamente que tenha capacidade para entender o acto que está a praticar e para querer efectivamente dispor dos seus bens nos termos que se encontram descritos no testamento.
(…)
Em conformidade, nos termos da referida norma do artigo 2.199º, do Código Civil, caso se verifique que o testador se encontrava numa situação de incapacidade de entender e de querer na altura da outorga do testamento, o mesmo poderá ser declarado inválido, designadamente anulado.
Consequentemente, haverá que verificar se ficaram demonstrados nos autos factos suficientes para levar a concluir que a referida C... se encontrava numa situação de incapacidade de entender e querer, designadamente por padecer de uma anomalia psíquica, mais especificamente, uma doença mental, na altura em que outorgou o testamento em causa nos autos, em que instituiu a R. como herdeira testamentária a quem atribuiu a quota disponível da sua herança.
(…)
Em conformidade, nos termos da referida norma do artigo 2.199º, do Código Civil, caso se verifique que o testador se encontrava numa situação de incapacidade de entender e de querer na altura da outorga do testamento, o mesmo poderá ser declarado inválido, designadamente anulado.
Consequentemente, haverá que verificar se ficaram demonstrados nos autos factos suficientes para levar a concluir que a referida C... se encontrava numa situação de incapacidade de entender e querer, designadamente por padecer de uma anomalia psíquica, mais especificamente, uma doença mental, na altura em que outorgou o testamento em causa nos autos, em que instituiu a R. como herdeira testamentária a quem atribuiu a quota disponível da sua herança.
Quanto a esta questão, conforme deixamos exposto supra, ficou demonstrado nos autos que a referida C... foi declarada interdita através de sentença, entretanto transitada em julgado, devido ao facto de se ter concluído que ela se encontra numa situação de anomalia psíquica, por sofre de uma doença mental, designadamente demência provocada pela doença de Alzheimer. Além disso, consta dessa sentença que a referida C... se encontrava numa situação de incapacidade de entender e de querer e de gerir a sua pessoa e os seus bens.
Contudo, esses meios de prova, designadamente o interrogatório do Tribunal e o exame médico-psiquiátrico à referida C..., que concluíram que ela se encontrava numa situação de impossibilidade de gerir a sua pessoa e os seus bens devido à doença mental de que padecia, estando assim incapacitada de entender e querer, foram realizados no âmbito do referido processo de interdição no ano de 2016.
Para além disso, ficou igualmente demonstrado nos autos que a referida C... foi sujeita a interrogatório pelo Juiz titular do processo de interdição e a exame médico pelo sr. perito médico. Desse interrogatório e desse exame resultou que a referida C... padecia de uma doença mental, designadamente de demência, e que a mesma não estava na posse das suas capacidades mentais.
Acresce que resulta do relatório médico elaborado pelo sr. perito médico que a doença mental de que a referida C... padecia lhe provocava uma situação de incapacidade de entender e de querer permanente e irreversível. Devido a esse estado da referida C..., a mesma não foi capaz de esclarecer os elementos quanto à sua identificação, encontrava-se numa situação de desorientação no espaço e no tempo, estava incapacitada de realizar cálculos com o dinheiro, e tinha comportamentos destituídos de lógica e de equilíbrio mental. Concluiu o sr. perito que devido a essa doença mental que padecia e ainda à sua incapacidade daí resultante, a referida C... se encontrava incapaz de gerir a sua pessoa e os seus bens, e que necessitava de cuidados de terceiros para realizar todas as funções básicas e de sobrevivência, não sendo igualmente capaz de planear e tomar decisões relativas às actividades da vida diária, nem de gerir o seu dinheiro.
(…)
Consequentemente, esses exames à referida C... foram efectuados em data posterior à feitura e outorga do testamento em causa nos autos, na medida em que a mesma ocorreu em 22-10-2010. Deste modo, as conclusões a que se chegou em resultado da produção daqueles meios de prova no processo de interdição, de que a referida C... se encontrava numa situação de incapacidade de gerir a sua pessoa e bens, e ainda de incapacidade de entender e querer, apenas serão válidas para a altura em que foram produzidos aqueles meios de prova. Tais conclusões quanto ao estado de incapacidade da referida C... não poderão ser aplicados ao período temporal anterior à produção daqueles meios de prova. Deste modo, as conclusões tiradas naqueles meios de prova não poderão levar a concluir que a referida C... se encontrava numa situação de incapacidade de entender e querer na data em que foi outorgado o testamento, ou seja em 22-10-2010.
Na verdade, conforme deixamos exposto supra, nos termos do artigo 2.191º, do Código Civil, apenas se o testador se encontrar numa situação de incapacidade na altura da elaboração do testamento é que haverá fundamento para ser declarada a invalidade desse testamento. Se o testador ficar numa situação de incapacidade de entender e querer após a feitura do testamento, tal não constituirá fundamento para ser declarada a invalidade do testamento.
Consequentemente, o facto de se ter concluído que na altura da pendência do processo de interdição a referida C... se encontrava numa situação de incapacidade de entender e querer e ainda de gerir a sua pessoa e os seus bens, não constituirá fundamento para ser declarada a invalidade do testamento em causa nos autos. Na verdade, essa conclusão de que a referida C... se encontrava numa situação de incapacidade de entender e querer ocorreu em data posterior à outorga do testamento. Logo não poderá levar a concluir que a referida C... se encontrava numa situação de incapacidade de entender e querer, e ainda de gerir a sua pessoa e os seus bens na data em que foi elaborado o testamento. Poderia perfeitamente ter ocorrido uma situação de agravamento da doença mental que a referida C... padece, designadamente, demência devido à doença de Alzheimer, após a outorga do testamento.
(…), resulta de todo o exposto que a prova de que na altura da pendência do processo de interdição a referida C... se encontrava numa situação de incapacidade de entender e querer e de gerir a sua pessoa e os seus bens não permite concluir que se encontrava numa situação de impossibilidade de entender e querer e que não compreendeu os termos do testamento. (…)»
E, após se analisarem os demais relatórios médicos indicados nos pontos 6 a 8 dos factos provados, conclui-se que:
«(…) a doença mental incapacitante de que a referida C... padece, que levou a que a mesma fosse declarada interdita por anomalia psíquica, ou seja a demência resultante da doença de Alzheimer, iniciou-se nesse mês de Maio de 2010. Consequentemente, o início dessa doença mental que incapacitou a referida C... teve lugar em data anterior à outorga do testamento em causa nos autos, ou seja em 22-10-2010. Consequentemente, essa conclusão quanto ao início da doença mental da referida C... poderá ter relevância quanto à conclusão sobre se ela se encontrava numa situação de incapacidade na altura da outorga do testamento.
Contudo, para se concluir que existe fundamento para declarar a invalidade do testamento em causa nos autos, conforme veio requerer a A., não basta vir fazer prova de que a referida C... padecia de uma doença mental incapacitante, designadamente demência, resultante da doença de Alzheimer, na altura em que outorgou o testamento. De facto, para se determinar a invalidade do testamento, é necessário fazer prova de que a referida C... se encontrava incapacitada de entender e querer na altura em que foi outorgado o testamento.
Para além disso, o facto de se ter concluído que a referida C... já padecia de uma doença mental, designadamente de demência resultante da doença de Alzheimer, na data em que foi outorgado o testamento, não pode levar a concluir de forma automática que ela se encontrava numa situação de incapacidade de entender e querer na altura em que ocorreu essa outorga.
Na verdade, conforme refere a R. na sua contestação, é do conhecimento comum (e do julgador em particular, porque infelizmente tem um familiar nessas condições), que a doença de Alzheimer é uma enfermidade progressiva, que vai evoluindo, não se manifestando, nem deixando o doente no último estádio de grande severidade passado pouco tempo depois de serem manifestados os primeiros sintomas. Na verdade, tal doença vai evoluindo ao longo do tempo, passando por mais de uma fase, e os sintomas e as limitações vão-se agravando paulatinamente. Além disso, o doente vai tendo vários episódios de lucidez e de capacidade para entender e querer, entremeados por outras situações de grande limitação mental de comportamento. Refira-se ainda que o testamento em causa foi efectuado em Outubro de 2010, ou seja poucos meses após se terem manifestado os primeiros sintomas da doença de Alzheimer que a referida C... padecia, na medida em que tal ocorreu em Maio de 2010. Logo quando foi outorgado o testamento a doença mental da referida C... ainda estava no seu início. Logo o estado de incapacidade da referida C... ainda deveria ser reduzido na altura da outorga do testamento. Desta forma, haveria uma possibilidade muito forte de a referida C... ainda ter discernimento suficiente para manter a capacidade de entender e querer quando outorgou o testamento.
Logo o facto de ela já padecer da doença de Alzheimer na altura da sua outorga, não poderá levar a concluir que a referida C... não entendeu o teor do testamento e que os termos do mesmo não foram elaborados de acordo com a sua vontade. Consequentemente, para se concluir que estão reunidos os requisitos para declarar a invalidade do testamento em causa nos autos, o interessado, ou seja a A., terá que fazer prova de que a referida C... se encontrava efectivamente numa situação de incapacidade de entender e querer, devido à doença mental de que padecia, na data da outorga do testamento.
Ora, compulsados os autos constata-se que a A. não logrou fazer prova dos factos por si alegados, que levariam a concluir que a referida C... se encontrava numa situação de impossibilidade de entender e querer os termos do testamento em causa nos autos, na data em que o mesmo foi outorgado. Do mesmo modo, a A. não logrou fazer a prova de que a referida C... não entendeu o teor do testamento e que os termos do mesmo não foram elaborados de acordo com a sua vontade.
Na verdade, ao contrário do que foi alegado pela A., não ficou demonstrado nos autos que na data da outorga do testamento referido em 5), a referida C... encontrava-se incapaz de entender o sentido das suas declarações que constam desse testamento e ainda em condições de exprimir a sua vontade própria e real, designadamente de emitir a declaração que consta do testamento referida em 5) de instituir a R. como herdeira da sua quota disponível.
Pelo contrário, ficaram demonstrados nos autos factos que levam a concluir que na altura em que foi outorgado o testamento em causa nos autos, não obstante a doença mental que já padecia nessa altura, a referida C... encontrava-se numa situação de entender e querer os termos do testamento em causa nos autos. E ainda que a referida C... entendeu o teor do testamento após o mesmo lhe ter sido lido, e que os termos do testamento foram elaborados de acordo com a sua vontade.
Na realidade, ficou igualmente demonstrado nos autos que na altura da outorga do testamento referido em 5), a srª. notária que elaborou o mesmo, ou seja a testemunha (…), questionou a referida C... sobre a sua percepção do que vinha fazer ao Cartório Notarial, o que pretendia com a outorga do referido testamento, e ainda se estava de acordo com o seu conteúdo após ter lido o mesmo em voz alta. Que a referida (…) não detectou qualquer falta de percepção por parte da referida C... quanto ao teor do testamento e quanto ao objectivo do mesmo. E ainda que se a testemunha (…) tivesse verificado que a referida C... não tinha a percepção do teor do testamento que iria assinar e quais os efeitos do mesmo, não teria admitido a outorga e a assinatura do testamento pela referida C....
(…)
Consequentemente, ter-se-á que concluir que, nos termos do artigo 342º, do Código Civil, cabia à A. o ónus de provar que a referida C... estaria numa situação de incapacidade de entender e de querer quando outorgou o testamento em causa nos autos. Ónus esse que a A. não logrou concretizar no caso concreto.
Deste modo, irá dar-se como assente em termos definitivos que se concluiu que não ficou demonstrado nos autos que a referida C... não tinha capacidade para entender e para querer quando outorgou o testamento lavrado em 22 de Outubro de 2010, que se encontra em causa nos autos, em que instituiu a R. como herdeira da quota disponível da sua herança. (…)»
Em consequência julgou-se improcedente a acção.

15. A recorrente discorda desta decisão, no essencial, porque entende que “a A. apenas tinha que provar, como provou, que a testadora, aquando da outorga do testamento, apresentava uma situação de incapacidade decorrente de um estado clínico demencial ou de doença evolutiva e degenerativa das capacidades intelectivas”, e que “era à Ré, como beneficiária do testamento, que cabia o ónus de provar que, apesar daquele estado, a testadora outorgou num período lúcido e consciente” (cf. conclusões 5ª e 6ª).
Lembremos que, no caso, a interdição da A. foi decretada por sentença de 15/06/2021, tendo-se fixado que a data de início da incapacidade seria no mês de Maio de 2010, e que o testamento foi outorgado em 22/10/2010, portanto, ainda dentro do período de incapacidade abrangido pela sentença.
Como se sabe, de acordo com o n.º 1 do artigo 342º do Código Civil, “[à]quele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, acrescentando-se, no n.º 2, que “[a] prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”, sendo que, em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito (n.º 3).
A ter-se como certa a posição defendida pela A., não tendo a R. logrado fazer prova de factos alegados tendentes a demonstrar que o testamento foi outorgado num “intervalo de lucidez” da testadora, como factos impeditivos do direito invocado pela A., tanto bastaria para a acção de anulação ter que ser julgada procedente.
Porém, não se segue este entendimento.
Efectivamente, como se consignou no acórdão da Relação de Lisboa, de 20/04/2010 (proc. n.º 9/2000.L1-7, relatado por Pires Robalo), estudando-se ampla e profundamente este problema, concluiu-se que A sentença de interdição [no caso, datada de 11-05-1995], que fixou o início da incapacidade em 1.09.1991, apenas constituiu um princípio de prova favorável à incapacidade da autora do testamento na data em que o praticou, (30/7/1992), não dispensando o A. de fazer a completa prova dessa incapacidade em tal data, já que sobre ele impende o respectivo ónus probatório. A declaração judicial sobre a data do começo da incapacidade constitui apenas uma mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência (praesumptio facti ou hominis), da incapacidade da interdita na data da celebração da escritura de compra e venda, mas não mais do que isso.” (sublinhado nosso)
Na mesma linha seguiu o Acórdão da Relação de Coimbra, de 11/11/2014 (proc. n.º 63/2000.C1, relatado por Maria João Areias): «A declaração na sentença da data do começo da incapacidade assume um valor meramente indiciário, não de uma presunção judicial (iuris et iure ou iuris tantum), mas o valor de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da prova da existência da incapacidade no momento da prática do acto – ónus que impende sobre quem pede a anulação (sublinhado nosso)
Assim, como se conclui também no acórdão da Relação de 29/06/2017 (proc. n.º 13/15.8T8VCT.G1 – relator José Amaral), que aqui seguimos de perto: «Uma vez, portanto, que a sentença de interdição não é meramente declaratória nem, por isso, produz efeitos ex tunc (retroactivos) mas constitutiva, gerando efeitos ex nunc, ela só se projecta para o futuro. A fixação nela da data do começo da incapacidade não implica que alcance retroactivamente actos praticados entre as respectivas datas (do começo da incapacidade e da sentença).».
Por sua vez, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/01/2009 (proc. n.º 08B3333 – relator Santos Bernardino), também referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/02/1018 (proc. n.º8319/09.9TBMAI.P1.S1- Relator Helder Almeida), e no acórdão da Relação de Évora, de 03/12/2020 (proc. n.º 1193/16.0T8STR.E1 – relator Tomé Galo de Carvalho), consignou-se:
«1. No que concerne ao regime legal dos actos praticados pelo interdito, há diferenças de tratamento conforme esteja em causa negócio jurídico praticado pelo interdito (i) após o registo da sentença de interdição definitiva (art. 148º CC), ou (ii) na pendência do processo de interdição, depois de publicados os anúncios a que alude o art. 945º do CPC (art. 149º), ou (iii) anteriormente à publicidade da acção de interdição (art. 150º).
2. Tendo o contrato aqui impugnado sido celebrado antes da publicação do anúncio da acção de interdição, está, por força do disposto no indicado art. 150º, sujeito ao regime, previsto no art. 257º do CC, dos actos praticados por quem, devido a qualquer causa, se achava acidentalmente incapacitado de entender o sentido da declaração negocial ou não tinha o livre exercício da sua vontade.
3. Esses actos só são anuláveis desde que, no momento da sua prática, isto é, no momento em que é emitida, pelo interdito, a sua declaração de vontade, haja neste uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade, e que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário (nos contratos, a contraparte), entendendo-se notória a incapacidade quando uma pessoa de normal diligência a teria podido notar.
4. A declaração judicial, na sentença que decreta a interdição, sobre a data do começo da incapacidade, constitui mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência, da incapacidade, à qual pode ser oposta contraprova, nos termos do art. 346º do CC.
5. Dada a anterioridade do negócio referido em 2., que o aqui autor, tutor da interdita, pretendia, em representação desta, anular, sobre ele recaía o ónus da prova de que, na data em que a sua tutelada celebrou a escritura pública de alienação do imóvel em causa, ela se encontrava em condições psíquicas que lhe não permitiam entender o sentido da declaração negocial que emitiu ou lhe tolhiam o livre exercício da vontade, e de que tal facto era notório ou conhecido do outro outorgante.» (sublinhado nosso)
Por fim, como se diz no acórdão desta Relação de 03/12/2020, citando Gabriela Páris Fernandes (Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 332., «…, na vigência do Código Civil de 1966, a doutrina e a jurisprudência têm atribuído a tal declaração judicial um valor meramente indiciário: não de uma presunção legal (iuris et iure ou iuris tantum), mas o valor de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da prova da existência da incapacidade no momento da prática do acto – ónus que impende sobre quem pede a anulação».

16. Por conseguinte, concordando-se com o entendimento de que a declaração na sentença de interdição da data do começo da incapacidade assume um valor meramente indiciário, de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da prova da existência da incapacidade no momento da prática do acto – ónus que impende sobre quem pede a anulação –, cabia à A. a alegação e prova dos factos reveladores de que a testadora aquando da outorga do testamento não se encontrava capaz de entender o sentido da sua declaração ou que não tinha o livre exercício da sua vontade.
Aqui chegados, importa verificar se efectivamente estão apurados nos autos factos que, conjuntamente com a prova indiciária resultante da data de início da incapacidade fixada na sentença de interdição, permitam concluir que à data em que outorgou o testamento a testadora não se encontrava em condições de exprimir a sua vontade e de entender o sentido e alcance das suas declarações, como pretende a A..
Vejamos:
Está provado que a testadora, C..., foi diagnosticada com demência do tipo Alzheimer, em Maio de 2010, e que na sentença que decidiu pela sua interdição se fixou a data de início da incapacidade em Maio de 2010.
Porém, consta dos factos dados como provados no processo de interdição que essa foi a altura em que a doença começou a apresentar sinais evidentes (cf. ponto 3 dos factos provados), daí que não se possa afirmar que a doença se iniciou nesta data.
Na verdade, analisando o relatório médico da perícia efectuada nos autos de interdição, que foi junto aos presentes autos (cf. ponto 4), nele se refere que C... “… foi consultada por clínico francês em Maio de 2010, apresentando já nessa altura um valor muito baixo na avaliação cognitiva efectuada (10 pontos em 30 possíveis)”, e conclui-se que “apesar de não se poder datar com exactidão o início da patologia, pode admitir-se que pelo menos desde Maio de 2010 a examinada se encontra incapaz de reger a sua pessoa e bens”.
Note-se que esta conclusão foi alcançada tendo em conta o tipo de demência de que a examinanda padecia, que é irreversível, e o exame médico de Maio de 2010, o qual já revelava um valor muito baixo na avaliação cognitiva.
Na carta mencionada no ponto 6 dos factos provados, elaborada pelo neurologista Dr. S. Medjbeur, em 30/08/2010, que consultou C..., refere-se que esta “apresenta desde há menos de um ano perturbações de memória e do comportamento agravados tornando rapidamente impossível mantê-la no seu domicílio sozinha…Nos exames das funções cognitivas em Maio de 2010, notava-se um défice de grau evoluído com pontuação MMS inferior a 10/30. Este défice comporta uma DTS completa, perturbações da linguagem significativas (falta de palavras, confusão na escolha de palavras) perturbando qualquer tentativa de comunicação. Nota-se ainda uma apraxia construtiva e uma franca apraxia ideomotora…Trata-se de uma demência relacionada com uma provável doença de Alzheimer…”
O mesmo médico neurologista, na carta enviada a outro médico, em 29/04/2014 (cf. ponto 8 dos factos provados), em que refere que segue a paciente desde 2010, “devido à doença de Alzheimer adiantada, em fase terminal”, remete para o relatório, anexo, “da primeira consulta em 2010 na qual notámos logo uma demência de grau severo”.
Destes factos, extrai-se a conclusão de que já antes de Maio de 2010 a paciente evidenciava sinais da doença de Alzheimer, como, em face da avaliação cognitiva efectuada a essa data, tal demência apresentava um grau severo.
Isto mesmo resulta do relatório de avaliação cognitiva, elaborado em 08/12/2011 [ou seja, cerca de um ano após a outorga do testamento em causa nos autos], referindo-se que: “As perturbações começaram há 3 ou 4 anos por perturbações de comportamento de tipo agressivo. Em paralelo, ela já não comia, tinha emagrecido muito, já não fazia a limpeza da casa, negligenciava a sua aparência, lavava-se com protector solar, tomava os comprimidos do cão, assinava cheques e fazia transferências para a sua filha mais velha e não se lembrava…A senhora Mendes foi inicialmente tratada com SEROPLEX sem grande eficácia. Depois ela veio viver com a sua segunda filha em França. Desde essa data, ela é seguida por um neurologista da cidade, que lhe diagnosticou uma demência tipo Alzheimer severa em Maio de 2010 …”
Em síntese, de acordo com os factos apurados nos autos, já em data anterior a Maio de 2010, C... evidenciava sinais da demência de que padecia, a qual, à data dos exames médicos efectuados àquela data, já foi considerada como demência de grau severo, apresentando já um valor muito baixo na avaliação cognitiva efectuada (10 pontos em 30 possíveis), situação que levou o perito médico a concluir que, pelo menos desde Maio de 2010, a examinada se encontra incapaz de reger a sua pessoa e bens.
Aliás, as perturbações que se reportam a período anterior à data da fixação do início da incapacidade na sentença de interdição, revelam-se de gravidade, que bem evidenciam o grau de severidade da doença já quando diagnosticada em Maio de 2010.
É certo, como se diz na sentença, que a doença de demência tipo Alzheimer é uma enfermidade progressiva, que vai evoluindo, ao longo do tempo, passando por mais de uma fase, e os sintomas e as limitações vão-se agravando. E também se sabe que o doente vai tendo episódios de lucidez e de capacidade para entender e querer, entremeados por outras situações de grande limitação mental de comportamento.
Porém, no caso em apreço, atento o baixo valor da avaliação cognitiva verificado em Maio de 2010, a gravidade das perturbações anteriores à data do diagnóstico da doença, e que àquela data C... já padecia de demência em fase avançada, impõe-se a conclusão de que a mesma não tinha capacidade para entender o significado e o alcance das suas declarações constantes do testamento, outorgado em Outubro de 2010, e de se determinar de acordo com esse entendimento.
Note-se que não está em causa uma qualquer capacidade de avaliação e determinação, mas uma capacidade especifica para a realização do acto jurídico em causa, que, além do mais, implicava a percepção pela testadora de que, com o acto praticado, estava a revogar anteriores disposições testamentárias e a beneficiar patrimonialmente uma das filhas, que instituiu como herdeira da sua quota disponível, em detrimento da outra.

17. Deste modo, conclui-se estarem verificados os requisitos de que depende a anulabilidade do testamento, nos termos do artigo 2199º do Código Civil.
Assim, procede a apelação, com a consequente a revogação da sentença recorrida, e a procedência da acção.
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(…)
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência:
a) Revogar a sentença recorrida;
b) Julgar procedente a acção, anulando-se o testamento outorgado por C..., em 22 de Outubro de 2010, no Cartório Notarial, sito na Rua (…), Freguesia de Fátima, Concelho de Ourém.
Custas da acção e do recurso a cargo da R./Apelada.
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Évora, 13 de Janeiro de 2022
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
Florbela Moreira Lança