Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1015/12.1GCFAR.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
TIPICIDADE
Data do Acordão: 01/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1. A realização do tipo de crime de violência doméstica previsto no art. 152º, nºs 1, al- a) e 2 do Código Penal não exige a imposição de maus-tratos físicos.

2. A reiteração da prolação de expressões injuriosas e a adopção de um comportamento psicologicamente agressivo e repetido ao longo de vários anos relativamente a cônjuge que se vai fragilizando e diminuindo enquanto “pessoa” consubstancia maus-tratos psíquicos no nível de intensidade contido no tipo.[1]
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo n.º 1015/12.1GCFAR do 1º juízo criminal do Tribunal Judicial de Faro foi proferida sentença em que se decidiu condenar o arguido A pela prática de um crime de violência doméstica do artigo 152.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na execução subordinada ao acompanhamento de regime de prova assente em plano de reinserção social a elaborar pela DGRS, o qual deverá orientar-se para (i) a consciencialização do seu problema com o consumo excessivo de álcool e suas consequências, tanto a nível de saúde como a nível familiar, e da necessidade de adopção de comportamentos que melhorem a sua integração familiar, designadamente o restabelecimento da relação conjugal; e (ii) promoção da sua ocupação e inserção laboral.

Inconformado com o assim decidido recorreu o arguido, concluindo que:

“1º.Os pontos 1 a 3 e 8 dos factos provados não preenchem qualquer tipo de crime, descrevendo muitas vezes condutas que, não obstante serem moralmente reprováveis, não se reconduzem de modo algum àquelas tipificadas pela Lei Penal.

2.º O ponto 4 prova que os factos aí descritos deixaram de ocorrer em Outubro de 2009 (o arguido afirmava não ser a filha de ambos sua mas, de “um do norte”, dizendo que sua esposa possuía um amante e mandando-a ir ter com ele). De todo o modo, tais factos reconduzir-se-iam ao crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal. Esta situação poderia ter relevância penal na medida em que a ofendida tivesse deduzido acusação particular relativamente ao crime de injúria (188.º C.P.), no entanto tal não sucedeu.

3.º Quanto ao ponto 5 dos factos provados, não se conforma o ora recorrente que o facto de referir que a ofendida só via “putedo” tenha servido para o condenar pois, tal facto não se enquadra no tipo de ilícito criminal previsto no artigo 181.º do C.P., não tendo o arguido injuriado a ofendida nem sendo este facto subsumível noutro tipo legal, pelo que, por si só, não pode servir para condenar o arguido.

4.º Quanto aos factos provados no ponto 6, importa dizer, que não ficou provada a frequência com que os mesmos ocorriam, de modo a que seja indubitável dizer que os mesmos revestem gravidade suficiente para que sejam considerados verdadeiros maus tratos psíquicos.

5.º O ponto 7 refere-se a factos que ocorreram há oito anos, que não tornaram a repetir-se, e que não revestem gravidade suficiente para uma condenação pelo crime de violência doméstica, quase se podendo afirmar que são comuns na vida de um casal com uma relação matrimonial degradada.

6.º O ponto 8 não tem qualquer relevância penal. Na maioria dos casos de violência doméstica, existe sim, uma dependência económica da vítima relativamente ao agressor e nunca o contrário, pelo que, estando o arguido na dependência da vítima, dificilmente poderia exercer sequer um poderoso ascendente sobre a mesma e ainda menos conseguiria praticar factos que preenchessem o tipo de ilícito pelo qual foi condenado.

7.º O ponto 9 da matéria provada também não relata factos imputáveis ao arguido que preencham o tipo criminal do crime de violência doméstica. É sabido que certos estados depressivos associados a relações conjugais degradadas podem levar à morte por suicídio de um dos cônjuges, todavia não se provou o respectivo nexo de causalidade, não podendo aceitar-se que estes casos constituam violência doméstica, pois tantos são os móbiles para tais situações, não havendo muitas vezes, qualquer crime associado. Condenar o ora recorrente pelo eventual desgosto dilacerante que cause à ofendida implica aceitar que toda e qualquer ofensa, que antes estaria limitada ao campo da violação de deveres conjugais, está agora a coberto da lei penal, dispondo assim, os cônjuges vítimas de humilhação, de uma tutela penal que antes não se verificava e que na verdade não encontra qualquer apoio na letra da lei penal.

8.º O ponto 10 da matéria de facto dada como provada não concretiza quaisquer factos que denunciem o comportamento agressivo do autor, não especificando os factos em que se traduzia esse “comportamento nervoso e agressivo” (os fatos provados devem ser “factos” e não considerações de psicologia ou matéria de direito, em observância dos termos do artigo 374.º/n.º2 do C.P.P.).

9.º Também o ponto 11 nada concretiza. Qual o motivo pelo qual a ofendida receou que o arguido utilizasse a arma, se nenhum facto reconduzível ao crime de ameaça, se refere aqui? Mais uma vez, os factos não são claros, nem são verdadeiros factos, que devam servir para condenar o arguido, pois rigorosamente nada se diz.

10.º Quanto aos restantes factos provados, entende o ora recorrente que os mesmos não poderiam servir para o condenar, nomeadamente os factos descritos nos pontos 16 e 17, pois a circunstância de o mesmo ter eventualmente um problema de alcoolismo não constitui, por si só, um crime.

11.º Assim, com a sua conduta o arguido não preencheu os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime pelo qual vem acusado;

12.º Os actos do arguido, quer tomados isoladamente, quer no seu conjunto, não preenchem o tipo legal de violência doméstica.

13.º Ora, se os factos, a serem autonomizáveis, não serviriam para preencher qualquer tipo legal, poderiam, no seu todo, tomar proporções tais que justificassem uma condenação pelo crime de violência doméstica?

14.º O recorrente entende que os factos de quem vem acusado, a serem considerados como um todo, e tempo em conta os períodos em que terão ocorrido de acordo com os factos provados, também não serão de enquadrar na previsão do crime de violência doméstica por não revestirem suficiente gravidade, sendo totalmente exagerada a consideração expendida pelo Tribunal a quo de que todos estes “factos” redundariam num “massacre psicológico“ perpetrado pelo ora recorrente com o intuito de atingir a ofendida (o tipo subjectivo de ilícito exige o dolo que também não se demonstrou).

15.º Na verdade, como a mesma frisou, na resposta dada à defensora do arguido quando perguntada sobre se já teria ou não considerado o divórcio como solução, respondeu a ofendida, com firmeza, que o que pretendia era, na realidade, que o arguido deixasse de consumir bebidas alcoólicas.

16.º Ora, é certo que, de acordo com os factos provados, o recorrente ingerirá, frequentemente, bebidas alcoólicas, o que não justifica uma condenação pelo crime de violência doméstica, pois tais factos não são punidos pela lei penal.

17.º Muito embora o consumo excessivo de bebidas alcoólicas possa potenciar o cometimento de vários tipos de crimes, não pode nunca aceitar-se que o mero consumo seja bastante para condenar um arguido por um crime (de violência doméstica) que muitas vezes lhe está associado, pois em bom rigor o arguido não praticou outros factos enquadráveis nas normas incriminadoras.

18.º A tese de que todas as pequenas acções do arguido desembocam num crime de violência doméstica, por maus tratos psíquicos, não deve prevalecer, pois desse somatório não resultam factos suficientemente graves para uma condenação pelo crime de violência doméstica de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, ainda que suspensa na execução.

19.º A parte final do corpo do n.º 1 do artigo 152º do Código Penal - «incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais» - revela que as condutas de maus tratos devem ter uma gravidade semelhante aos exemplos que aqui são dados.

20.º Também importa salientar que fora do âmbito delimitado pelo artigo 152º, n.º 1, do Código Penal, estes factos seriam qualificados como “injúrias”, crime com moldura penal inferior e com diferente regime não só quanto à sua natureza mas, também relativamente à possibilidade de dispensa de pena.

21.º Para o recorrente a matéria de facto provada não consubstancia a prática de um crime de violência doméstica, na vertente de violência psicológica, por maus tratos psíquicos infligidos à ofendida, pois para haver lugar à qualificação pelo crime de violência doméstica os factos devem encontrar-se descritos noutras normas incriminadoras, nomeadamente, descritos na previsão do crime de injúria, ou, se não tanto, deverão pelo menos, no caso de os maus tratos se limitarem a atemorização, humilhação e apoucamento, atingir um patamar de gravidade que no caso não se verificou.

22.º Os episódios descritos nos factos provados, a terem sido praticados pelo arguido contra a sua mulher terão sido bastantes para afectar o bem estar psicológico de uma pessoa psiquicamente saudável? Atendendo à medida do bónus pater famílias, poderá dizer-se que os factos causavam um sentimento de humilhação, moléstia e ameaça, ofendendo a dignidade de qualquer pessoa, sendo os mesmos degradantes ou desumanos e colocando em causa a pessoa humana, integrando assim o crime de violência doméstica?

23.º O recorrente não pode deixar de pugnar pelo entendimento de que os factos provados não são idóneos para tal fim.

24.º A lei não exige a reiteração, desde que a conduta maltratante seja especialmente grave, não se tendo provado, concretamente, a reiteração nem a gravidade.

25.º A descrição da conduta do ora recorrente, considerada provada, é totalmente genérica, indefinida e vaga relativamente aos factos integradores dos maus tratos, não se encontrando esclarecido o número de vezes em que tais factos ocorreram e quais as suas consequências, em termos de danos físicos e psicológicos, como refere o ponto 12 da matéria provada, também se desconhecendo, além do contexto de consumo de álcool, qual a motivação da conduta em causa, sendo certo que não se encontra assente qualquer facto integrador do elemento subjectivo constitutivo do tipo legal.

26.º O direito de defesa do arguido não está assegurado quando a matéria de facto provada é imprecisa e traduz uma mera imputação genérica, pois assim é posto em causa o exercício do direito ao contraditório.

27.º Desta feita, ao não atender ao princípio do contraditório o tribunal a quo violou o art. 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

28.º A escassa matéria de facto provada, não integra a prática pelo arguido do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1 e 2, do CP uma vez que, por um lado, da mesma não se pode aferir da intensidade e frequência das ofensas, o que impede que se considere violado o bem jurídico protegido pela norma em causa, e, por outro, não se provaram as consequências, directas ou indirectas, da conduta do arguido, não resultando demonstradas quaisquer lesões corporais ou danos psíquicos para a ofendida.

29.º A não ter assim considerado a douta sentença recorrida violou os artigos 152.º do Código Penal, pois devia ter absolvido o arguido, interpretando o artigo no sentido de não admitir a existência de crime no caso de as agressões não revestirem suficiente gravidade,

30.º Violou também o disposto no artigo 374.º,n.º2 do Código de Processo Penal, pois a sentença deve conter factos provados e não imputações vagas,

31.º E ainda o 32.º/n.º5 da C.R.P., que deveria ter sido interpretado no sentido de exigir a prova de uma factualidade concreta e precisa, não assentando como factos provados as meras imputações que já figuravam na acusação.

32.º Face a todos os fundamentos expostos neste recurso, deve a sentença ser revogada e o arguido ser absolvido do crime p. e p. pelo artigo 152.º do C.P.”.

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e pela confirmação da sentença.

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto acompanhou a posição do Ministério Público na 1ª instância.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:

“1.O arguido é casado com B. há cerca de trinta (30) anos, tendo dois filhos de maior idade em comum, H e R.

2.O casal reside juntamente com ambos os filhos numa habitação sita..., no Montenegro, área da comarca de Faro.

3.Desde data não concretamente apurada, pelo menos há dez anos a esta parte, o arguido veio ingerindo bebidas alcoólicas com regularidade quase diária.

4.Quando se encontrava sob o efeito do álcool, reiteradamente, em várias datas não concretamente apuradas do referido lapso de tempo, pelo menos até Outubro do ano de 2012, o arguido maltratou psicologicamente sua esposa, afirmando que a filha de ambos não é filha dele, mas de “um do norte”, dizendo que sua esposa possui um amante e mandando-a ir ter com ele.

5.Também, no mesmo lapso de tempo, quando a ofendida via programas televisivos que não interessavam ao arguido, o mesmo afirmava que ela só via “putedo”.

6.Por sua vez, quando o mesmo assistia a programas televisivos que lhe interessavam, colocava o som elevado, de molde a deliberadamente incomodar a ofendida e batia também com as portas da residência com força quando a mesma dormia, incomodando o seu descanso.

7.O arguido, há cerca de 8 anos atrás, chegou a discutir assiduamente com a ofendida acerca da roupa que a mesma usava, afirmando que ela se arranjava para os outros.

8.O arguido encontra-se desempregado, fazendo apenas alguns biscastes. Todavia, despende os valores que aufere em bebidas alcoólicas, não contribuindo para as despesas do agregado familiar.

9.Na sequência dos comportamentos do arguido, a ofendida tentou colocar termo à vida, estando internada cerca de um mês até Outubro de 2012, no Departamento de Saúde e Psiquiatria do Hospital de Faro, por apresentar estado depressivo associado a relação conjugal degradada.

10.Após a alta da mesma, no dia 4 de Outubro de 2010, o arguido encontrava-se na residência de ambos, a ingerir bebidas alcoólicas e denotando um comportamento nervoso e agressivo.

11.Perante mais esse comportamento agressivo e considerando que o arguido era possuidor de uma arma da classe G, acionada por ar comprimido, que detinha na residência, receando que o mesmo a utilizasse, foram as autoridades policiais chamadas à residência do casal, vindo a apreender a arma.

12.Ao atuar como referido e ao dirigir à ofendida as expressões supra descritas, o arguido bem sabia que a atingia na sua honra, dignidade e consideração pessoal, o que quis. Sabia também que os seus comportamentos eram aptos a causar danos físicos e psicológicos na ofendida, o que também quis.

13.O arguido agiu reiteradamente e sempre no interior da residência que partilhavam.

14.Atuando desse modo, o arguido maltratou psicologicamente a ofendida, o que fez, em função da relação conjugal que os ligava.

15.O arguido agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei penal.

16.O arguido consome diariamente bebidas alcoólicas, sendo que é devido a esse consumo que comete os factos supra descritos.

17.O arguido não quer sujeitar-se a tratamento médico do seu problema relacionado com o excesso de consumo de bebidas alcoólicas.

18.Por sentença de 06.12.2007, transitada em julgado em 08.01.2008, foi o arguido condenado pela prática em 23.08.2005 de um crime de condução em estado de embriaguez, em pena de 80 dias multa, à razão diária de €5,00; e proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses. A pena de multa foi cumprida através de trabalho a favor da comunidade e declarada extinta por despacho de 23.02.2009.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), a questão a apreciar é a de saber se os factos provados integram o crime da condenação.

O recorrente não recorre de facto e, na ausência de detecção de vício do art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal ou de nulidade da sentença, a matéria de facto é de considerar como definitivamente fixada. Contudo, considera o arguido que os factos provados não tipificam o crime de violência doméstica do artigo 152.º, n.º 1, al. a), e n.º 2. Aceita a censurabilidade do comportamento (descrito de uma forma que, no entanto, denomina de demasiado vaga), mas não à luz do direito penal e através de uma pena.

O Ministério Público pronunciou-se abertamente no sentido da incriminação, defendendo que a “inexistência de pancadas no corpo ou de violência física” não atenua a responsabilidade criminal, nem descaracteriza o tipo penal em causa, que as ofensas psicológicas “são factos mais danosos para a vítima, que humilham, diminuem a auto-estima e provocam danos psicológicos irreversíveis”, e que os factos provados não são indefinidos e genéricos pois estão situados no espaço e no tempo e “reflectem episódios concretos de vida”.

O art. 152º, nºs 1, al- a) e 2 do Código Penal pune quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.

Foi a reforma ao Código Penal de 2007 que autonomizou a violência doméstica “dos (outros) maus-tratos” (Teresa Beleza, Revista do CEJ, nº 8, p.288) e da violação de regras de segurança.

Aditou ainda os actos designados como castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, bem como dispensou expressamente a reiteração, já na sequência, aliás, de decisões jurisprudenciais anteriores.

Plácido Conde Fernandes recorda que o presidente da Unidade de Missão encarregue da reforma de 2007 ao Código Penal, em diversas conferências sobre essa revisão, esclareceu que “não se pretendia transformar qualquer ofensa e ameaça – crime de natureza semipública – em crime de maus tratos com moldura penal reforçada e natureza pública, apenas pelo facto de ocorrerem no âmbito de uma relação afectiva. Mantinha-se a situação em vigor, apenas com a clarificação de que a reiteração não é exigida desde que a conduta maltratante seja especialmente intensa” (Revista do CEJ, nº 8).

Assim, o tipo abrange as situações de violência familiar reveladoras de um abuso de poder nas relações afectivas, degradante da integridade pessoal da vítima.

Tutela-se a integridade da pessoa em determinada relação afectiva, no caso, a dignidade da pessoa no casal conjugal.
Esta necessidade de protecção perdura (e intensifica-se mesmo) nas situações de ruptura do casamento ou da relação.

A ratio do tipo não reside, porém, na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas na protecção da pessoa individual que a integra, na tutela da sua dignidade humana.

Protege-se o bem jurídico “saúde”, e não apenas a integridade física.

O bem jurídico (saúde) abrange a saúde física, psíquica e mental (assim, Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2012, p. 512).

De acordo com os factos provados, o arguido e a queixosa encontram-se em estado relacional previsto no tipo, que inclui as relações conjugal e para-conjugal, actual e passada (e ainda o namoro, por via das alterações introduzidas pela Lei 19/2013). O tipo protege mesmo o ex-cônjuge.

Está provado que ambos são casados, coabitando nessa qualidade há cerca de trinta anos. Mas não bastará a existência de uma relação conjugal para que uma ofensa (qualquer ofensa) caia na esfera de protecção da “violência doméstica” (e não antes, por exemplo, na “injúria”, na “ofensa à integridade física” ou outro).

Esta moldura penal reforçada, bem como a natureza pública do crime, não se alicerçam na mera circunstância dos factos delituosos ocorrerem entre duas pessoas numa situação de conjugalidade, ex-conjugalidade ou de namoro.

Esta situação é condição necessária, mas não suficiente para a realização do tipo.

Visando este a protecção da pessoa individual no seio da comunidade familiar ou conjugal, deve a vítima ocupar determinada posição nessa relação, ou seja, encontrar-se numa situação de especial dependência, de fragilidade ou desprotecção que justifique a tutela (da sua dignidade) por esta via.

Também em casos de não reiteração, a conduta isolada maltratante deve, em princípio, assumir especial intensidade.

No caso, a ofendida permanece casada, coabitante com o arguido e “dentro” da relação afectiva. Os actos praticados na sua pessoa não são ofensivos da integridade física (como “normalmente sucede nestes casos”, na expressão do Ministério Público). Isoladamente, cada um destes actos, de per si, pode até não revestir intensidade lesiva significativa.

Contudo, por um lado, a realização do tipo não exige a imposição de maus-tratos físicos (“…maus tratos físicos ou psíquicos…”). Pelo outro, a reiteração das expressões injuriosas, a adopção de um comportamento psicologicamente agressivo, repetido ao longo de vários anos, relativamente a cônjuge que se vai, assim, fragilizando e diminuindo enquanto “pessoa” (estando até provado que “na sequência dos comportamentos do arguido, a ofendida tentou colocar termo à vida, estando internada cerca de um mês até Outubro de 2012, no Departamento de Saúde e Psiquiatria do Hospital de Faro, por apresentar estado depressivo associado a relação conjugal degradada”), consubstancia maus tratos psíquicos no nível de intensidade contido no tipo.

Também a circunstância do arguido não trabalhar e não desenvolver há muito actividade remunerada – o que colocará a ofendida numa situação “atípica” de não dependência económica dele – não obsta à realização do tipo.

Na verdade, o episódio de vida em análise é demonstrativo de uma relação de dependência psicológica e afectiva (dependência que, repete-se, não terá de ser inevitavelmente económica) da qual resulta que a situação de conjugalidade, em concreto, deve relevar aqui penalmente.

Por tudo se conclui que os factos provados são suficientes para a realização do tipo de crime de violência doméstica do art. 152º, nºs 1-a) e 2 do Código Penal.

Eles atingem o patamar de punibilidade, embora se deva reconhecer então, e uma vez já situados dentro do tipo de crime, que o concreto grau da ilicitude e da culpa será de considerar como não elevado e assim relevar em sede de medida da pena. Pena esta de que o arguido não recorreu, mas que se encontra fixada próximo do limite mínimo e suspensa na execução com regime de prova. O que não deixa de ser revelador de uma correcta mensuração da ilicitude e da culpa.

Por último, consigna-se que os factos imputados se encontravam razoavelmente concretizados na acusação, estando-o também na sentença. Permitiram o exercício dos direitos de defesa e resultaram (provados) de uma ampla discussão no contraditório do julgamento.

Eles encontram-se situados no espaço e razoavelmente situados no tempo (nos últimos dez dos trinta anos de casamento). Estão especificados em alguns comportamentos, que se descrevem, narrando-se o contexto e as expressões proferidas pelo arguido. E tratando-se de factos que não deixaram marca individualizada visível, e que decorreram ao longo de um período temporal bastante extenso, aceita-se uma menor precisão temporal, não sendo concretamente de impor que se mostrem precisados em dias específicos.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal em:

Julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença.

Custas pelo recorrente que se fixam em 4UC.

Évora, 14.01.2014


Ana Maria Barata de Brito

Maria Leonor Vasconcelos Esteves

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[1] - Sumariado pela relatora