Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
28/07.0GTSTR-A.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
Data do Acordão: 10/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Se um despacho acolhe promoção do MP e ordenou a certificação do trânsito em julgado da sentença condenatória relativamente a um arguido, reconhecendo, implicitamente, esse mesmo trânsito em julgado, está precludida a hipótese de proferir nos mesmos autos despacho posterior, onde se afirma que a sentença ainda não transitou em julgado quanto ao mesmo arguido, por existência de caso julgado formal.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo Local Criminal (J1) de Santarém do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, corre termos o processo comum n.º 28/07.0GTSRR, tendo aí sido, em 19.11.2020, proferido despacho judicial em foi indeferido um requerimento do MP no sentido da declaração de prescrição de uma pena.

Inconformado, o MP interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1.ª - Nos presentes autos, foi o arguido LSM condenado pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, na pena de 7 meses de prisão, em co-autoria com o arguido CGL este condenado na pena de 4 meses de prisão.

2.ª - A sentença foi notificada ao arguido LM, por carta rogatória em 25/05/2016 e não foi notificada, até ao momento, ao arguido CL.

3.ª - Por despacho proferido em 28/09/2016, o tribunal ordenou a certificação do trânsito em julgado da sentença em relação ao arguido LM, com data de 24/06/2016.

4.ª - O Ministério Público promoveu em 08/11/2020 que se declarasse extinta a pena do arguido LM, por prescrição. E, nessa sequência, por despacho de 19/11/2020, o tribunal decidiu, ao arrepio do já decidido em 28/09/2016, despacho este já transitado, entender não considerar ocorrido o trânsito da sentença proferida em relação ao arguido LM, por não ter ainda sido a mesma notificada ao co-autor CL e, em consequência, não declarar a prescrição da pena do primeiro arguido (LM).

5.ª - Ao contrário do que o tribunal agora decidiu, entendemos, na esteira do que vem sendo decidido pela jurisprudência que “Em casos que comparticipação, a decisão condenatória transita em julgado, em relação a cada co-arguido, logo que, em relação ao mesmo, a sentença não seja susceptível de recurso ou reclamação” (Ac. TRC de 01/02/2012).

6.ª - Vem sendo jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal que em casos de comparticipação, e tendo em conta entre o mais o disposto na alínea d) do nº 2 do artigo 403º citado, forma-se caso julgado parcial em relação aos arguidos não recorrentes. Estes passam a cumprir pena, sem prejuízo de o recurso interposto por qualquer dos comparticipantes lhes poder aproveitar (v.g. Pº de Habeas Corpus nº 2546/05, 5ª secção, de 7/7/05, nº 888/06, 3ª secção de 8/3/06, nº 2184/06, 3ª secção de 7/6/06, ou 463/07, 3ª secção de 7/2/07). Daí se falar em relação a eles de caso julgado sob condição resolutiva, a partir exactamente da disciplina do artº 403º focado (Cfr. Cunha Rodrigues, in "Jornadas de Direito Processual Penal. O Novo Código de Processo Penal", pag. 388, Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal", III, pag. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in "Recursos em Processo Penal", pag. 73) — vide AC. STJ de 27/09/2007.)

7.ª - A hipótese levantada pelo tribunal quanto à possibilidade de um arguido cumprir pena de prisão e após vários anos a ser absolvido por procedência do recurso de coarguido, não nos choca, porquanto ao arguido foi dada a possibilidade de recurso, sendo desta forma asseguradas todas as suas garantias de defesa, tendo o arguido prescindido do seu direito ao recurso e se conformado com a sentença condenatória.

8.ª - Ademais, o Interesse na realização da justiça pelo Estado ganha relevo perante uma sentença notificada e da qual o arguido não recorreu, não havendo motivo para adiar, ad eternum, a pretensão punitiva do Estado. Seria chocante, ao invés, que o arguido notificado da sentença, com a mesma se conformou e não cumpra a pena aplicada com fundamento num potencial recurso de co-arguido, que pode nunca vir a ocorrer. A própria finalidade das penas e as necessidades de prevenção geral e especial ficariam comprometidas, para além da situação do arguido notificado, poder ficar indefinidamente incerta. Seria igualmente chocante, até do ponto de vista do arguido e da estabilidade das decisões judiciais e da própria situação pessoal e processual do arguido que, após ser condenado, conhecendo a decisão e com ela se conformando, ficar indefinidamente à espera de cumprir pena ou não, em situação incerta, podendo cumprir pena, 20 anos após a sua condenação, a título de exemplo.

9.ª - Entendemos, pois, que a questão se encontra já sedimentada na jurisprudência, sendo certo que, o tribunal, em 2016, ao proferir despacho no sentido de ordenar a certificação do trânsito em julgado da sentença em relação ao arguido LM, tomou a posição que o Ministério Público aqui defende, tendo só agora, em 2020, invertido a sua posição e determinado que o trânsito da sentença quanto a esta arguido não havia ocorrido.

10.ª - Aderimos, pois, ao teor da fundamentação do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/10/2020, proferido no Processo n.º 16712/17.7T9PRT, por ser bem expressiva da jurisprudência dominante nesta matéria “Na prática judiciária, vem sendo jurisprudência dominante do S.T.J. que, em casos de comparticipação, se um co-arguido não recorrer da sentença, esta adquire a força de caso julgado parcial (em relação a ele), sem prejuízo de vir a verificar uma condição resolutiva "pro reo" por procedência de recurso interposto por comparticipante. Como ilustrativas desta jurisprudência que vem sedimentando o conceito de um caso julgado sob condição resolutiva, parcial, condicional, rebus sic stantibus, podem ver-se, entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 27/1/2005, proferido no Processo n.ºs 2546/05-5.ª [publicado na Col.Jur./S.T.J., tomo I/2005, páginas 183-185], de 07/07/2005, no processo n.º 03509/07, de 08/03/2006, no processo n.º 886/06 - 3.ª, de 07/06/2006, no processo n.º 2184/06 - 3.ª, de 4/10/2006, no processo 06P3667, de 07/02/2007, no processo n.º 463/07-3.ª, de 27-09-2007, no processo n.º 03509/07 e de 13-02-2014, processo n.º 319/11.5JDLSB-D.S (acrescentamos nós) [todos acessíveis em www.dgsi.pt.] (...) estando esse caso julgado sujeito a uma condição resolutiva, que se traduz em estender aos não recomentes a reforma in melior (chamemos-lhe assim) do decidido, em consequência do recurso interposto por algum dos outros ou por todos os outros arguidos. E só nesta medida é que a decisão pode ser alterada em relação aos não recorrentes, podendo ver-se também afloramento desse princípio no n.º 3 do art. 403.º: “A limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida.” Consequências que, naturalmente, por força do princípio da proibição da reformatio in pejus, nunca poderão prejudicar os não recomentes, mesmo em caso de anulação da decisão ou de reenvio do processo para novo julgamento”.

11.ª - Desta forma, e tendo em conta a posição supra expendida, à qual aderimos, entendemos que a sentença transitou em julgado quanto ao arguido LM e, desta forma, atento o disposto no artigo 122º, n.º al. d) e n.º 2 do Código de Processo Penal e a data do trânsito em julgado ocorrido quanto a este, a pena aplicada ao arguido se encontra prescrita.

12.ª

Termos em que, deve o despacho proferido em 19/11 /2020 ser revogado e ser substituído por outro que considere a sentença transitada em relação ao arguido LM em 24/06/2016 e, nos termos do disposto no artigo 122º, n.º 1 al. d) e n.º 2 do CPP, declare prescrita a pena a este aplicada.”

O recurso foi admitido.

Não houve resposta.

O Exm.º Sr. Juiz a quo proferiu despacho sustentando o decidido.

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado procedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP (1).

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa (transcrição):

“Nos presentes autos foi o arguido LSM condenado na pena de 7 meses de prisão pela pratica em coautoria com o Arguido CGL de um crime de resistencia e coacção a funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, do Código penal Arguido este que também foi condenado na pena de 4 meses de prisão.

A sentença foi notificada ao arguido LSM por carta rogatória em 25/5/2016 e não foi ainda notificada ao Arguido CGL.

Nessa medida, como é sabido o eventual recurso interposto pelo arguido CGL, não fundado em motivos estritamente pessoais, poderá aproveitar ao arguido LSM que, dentro do mesmo quadro factual, foram ambos condenados em coautoria pela pratica de um crime de resistência e coacção a funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, do Código penal, (cfr. artigo 402.º, n.º 2, al. a), do C.P.P.).

Nestas condições, entendemos, sem prejuízo de melhor opinião, que a sentença proferida não transitou em julgado em relação a todos os arguidos que foram condenados e designadamente em relação ao Arguido LSM.

Não desconhecemos a jurisprudência maioritária dos tribunais, designadamente dos tribunais superiores, no sentido da formação, em casos como o dos autos, de caso julgado sob condição resolutiva da procedência do recurso do ou dos arguidos recorrentes que aproveita ao Arguido não recorrente em relação a este.

Porém tal resultado pode conduzir a situações chocantes e dificilmente compreensíveis como seja a de um Arguido cumprir integralmente uma pena de prisão no limite de vários anos e depois pela procedência do recurso de um outro Arguido que lhe aproveita, vir a ser absolvido.

Tal resultado e interpretação das normas do caso julgado penal que a ele conduzem não se nos afiguram conformes com um processo de natureza sancionatória como o processo penal, em que prevalece a presunção de inocência, e em conformidade com o disposto no numero 2 do artigo 32.º da Constituição da Republica Portuguesa.

No sentido de não transitar em julgado a condenação de um Arguido condenado pela pratica de crime em coautoria que não interpôs recurso no caso em que um ou mais arguidos recorrem e tal recurso ou recursos pode aproveitar ao Arguido não recorrente se pronunciou o douto acórdão do STJ de 28-02-2002, disponível em texto integral in www.dgsi.pt

No processo foi por nos seguido o entendimento supra referido de não transitar em julgado a condenação de um Arguido condenado pela pratica de crime em coautoria que não interpôs recurso no caso em que um ou mais arguidos recorrem ou podem vir a recorrer e que tal recurso ou recursos podem aproveitar ao Arguido não recorrente, entendimento que pelas razões aduzidas mantemos.

Pelo exposto, sem a ocorrência do trânsito em julgado da sentença proferida em relação ao Arguido LSMs, não ocorreu a prescrição da pena desse Arguido, o que se decide.”

Foi aberta ao MP “vista” nos autos em 20.09.2016 (ref. 72956829 – fls. 584), tendo a Digna Magistrada do MP exarado na mesma o seguinte: “Fls. 570 a 593: Uma vez que o arguido LM foi notificado da sentença proferida, promovo que se certifique o trânsito da mesma relativamente ao mesmo e se remetam boletins ao registo criminal.

(…). d.s.”

Após tal “vista”, foi aberta “conclusão” em 28.09.2016 (ref. 73070018 – fls. 585), aí tendo o Mm.º Juiz exarado despacho com o seguinte teor: “Proceda-se como vem doutamente promovido. Processei e revi. Santarém, D. S.. (…).”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

1.ª questão (prévia) – Existe ou não caso julgado formal relativamente à questão do trânsito em julgado da decisão condenatória quanto ao arguido LSM;

2.ª questão – Nas situações de comparticipação, o efeito de aproveitamento positivo do recurso de um quanto aos demais pode ou não impedir o trânsito em julgado da decisão condenatória relativamente a estes.

B. Decidindo.

1.ª questão (prévia) – Existe ou não caso julgado formal relativamente à questão do trânsito em julgado da decisão condenatória quanto ao arguido LSM.

Antes da apreciação da questão expressamente suscitada pela decisão recorrida (ou seja, a aqui 2.ª questão), importa analisar a evidente contradição entre esta decisão (de 19.11.2020) e o despacho judicial proferido nos autos em 28.09.2016, também acima reproduzido.

Com efeito, o despacho de 28.09.2016, acolhendo promoção do MP, ordenou a certificação do trânsito em julgado da sentença condenatória relativamente ao arguido LM, reconhecendo, implicitamente, esse mesmo trânsito em julgado. Nos termos dos artigos 677.º a 699.º do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal, a sentença transita em julgado quando não for susceptível de recurso ou reclamação. Assim, terá sido reconhecido naquele despacho que, tendo sido o arguido LM notificado da sentença condenatória e não tendo interposto quanto à mesma o atinente recurso, a mesma transitou em julgado. Nos termos dos artigos 677.º a 699.º do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do disposto no art.º 4.º, a sentença transita em julgado quando não for susceptível de recurso ou reclamação. Segundo o Acórdão do STJ de 20.10.2010 proferido no processo 3554/02.3TDLSB.S2 (Relator Santos Cabral) (2) : “No caso julgado formal (art.º 672.° do Cód. Proc. Civil), a decisão recai unicamente (3) sobre a relação jurídica processual, sendo, por isso, a ideia de inalterabilidade relativa, devendo falar-se antes em estabilidade, coincidente com o fenómeno de simples preclusão.” Por seu turno, “[o]s conceitos de «efeito de vinculação intraprocessual» e de «preclusão» - referidos ao âmbito intrínseco da actividade jurisdicional - querem significar que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontestável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação» (portanto uma proibição de «regressão»), como um efeito positivo, de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada (sob pena de, também aqui, «regredir» no procedimento). Este raciocínio vale, não só em primeira instância, como em segunda ou terceira instância (…). E este mecanismo vale - ao menos num esquema geral – para qualquer tipo de decisão, independentemente do seu conteúdo, isto é, quer se trate de uma decisão de mérito, quer de uma decisão «processual».” (4) Entendemos que a decisão sobre a questão do trânsito em julgado da decisão condenatória quanto ao arguido LM que consta do despacho de 28.09.2016 constitui caso julgado formal nos mencionados termos, impedindo qualquer nova apreciação (5). Mostra-se, assim, precludida qualquer nova apreciação sobre tal questão, que se impõe agora como definitiva.

Consequentemente, o despacho recorrido, decidindo questão que estava anteriormente decidida no mesmo processo e sobre a qual se formou, consequentemente, caso julgado formal, merece censura, devendo declarar-se a sua preclusão.

2.ª questão – Nas situações de comparticipação, o efeito de aproveitamento positivo do recurso de um quanto aos demais pode ou não impedir o trânsito em julgado da decisão condenatória relativamente a estes.

O conhecimento desta questão era possível aquando da prolação do despacho de 28.09.2016. Hoje, esse conhecimento está, como vimos, precludido.

Deste modo, o despacho sob censura será revogado, devendo ser substituído por outro que aprecie o requerido quanto à prescrição da pena sem que a questão em causa a tal possa obstar.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso (muito embora por fundamento diverso) e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que aprecie o requerido quanto à prescrição da pena.

Sem custas.

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 12 de Outubro de 2021

Edgar Gouveia Valente

Laura Maria Peixoto Goulart Maurício

Sumário

Se um despacho acolhe promoção do MP e ordenou a certificação do trânsito em julgado da sentença condenatória relativamente a um arguido, reconhecendo, implicitamente, esse mesmo trânsito em julgado, está precludida a hipótese de proferir nos mesmos autos despacho posterior, onde se afirma que a sentença ainda não transitou em julgado quanto ao mesmo arguido, por existência de caso julgado formal.

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1 Diploma a que pertencerão todas as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa.

2 Disponível em www.dgsi.pt.

3 Ao invés do caso julgado material.

4 José Manuel Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num processo de Estrutura Acusatória, Publicações Universidade Católica, Porto, 2002, páginas 143/4.

5 Aliás, é de sublinhar que o arguido em causa poderia até já ter cumprido integralmente a pena em que foi condenado, caso a decisão 28.09.2016 tivesse sido devidamente executada.