Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
193/21.3GDPTM.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
RECUSA DE IDENTIFICAÇÃO
TESTEMUNHA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: I. É ilegítima a ordem da autoridade policial, dirigida a um cidadão, para que se identifique, por se encontrar no local onde ocorreram factos que poderão constituir crime de violência doméstica, por ele presenciados, com vista à posterior inquirição na qualidade de testemunha.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:



I. RELATÓRIO


A –
Nos presentes autos de Processo Comum Singular, que com o nº 193/21.3GDPTM, correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Local Criminal de Portimão – Juiz ..., o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido:
- AA, casado, reformado, filho de BB e de CC, natural da freguesia ..., concelho ..., nascido em .../.../1957 e residente na Rua ..., ..., ..., em ....

Imputando-lhe a prática, a prática em autoria material e na forma consumada:
- De um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal.

O arguido não apresentou contestação nem arrolou testemunhas.

Realizado o julgamento, foi proferida a pertinente sentença, na qual se decidiu:
- Absolver o arguido AA, da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal.
(…)

Inconformado com esta sentença absolutória, relativamente ao arguido AA, o Ministério Público da mesma interpôs recurso, extraindo das respectivas motivações as seguintes (transcritas) conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida e depositada no dia 12 de Maio de 2022, no âmbito do Processo Comum Singular com o nº 193/21...., que absolveu o arguido da prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, nº 1, do C. Penal, pelos seguintes fundamentos:
A. Falta de fundamentação da sentença
B. Contradição insanável e erro notório na apreciação da prova
C. Incorreta qualificação jurídica
– Da nulidade da sentença, por violação falta de fundamentação da sentença:
2. Por se nos afigurar pertinente para a apreciação da decisão, cumpre, antes de mais, relembrar os factos dados como provados e como não provados:
(…)
3. Conforme resulta da factualidade dada como provada e como não provada pelo Tribunal a quo, e da motivação da decisão relativa a essa factualidade, que se acabaram de transcrever, verifica-se desde logo, que:
- por um lado, o Tribunal não dá como provados ou não provados alguns factos constantes do despacho de acusação proferido nos autos e absolutamente essenciais para a decisão a proferir, não se pronunciando quanto aos mesmos; e
- por outro lado, não faz qualquer menção, no segmento da motivação da matéria de facto, aos motivos ou fundamentos pelos quais dá como não provados os factos atinentes ao elemento subjectivo do crime pelo qual o arguido vinha acusado, só sendo possível perceber, pela leitura integral da sentença recorrida, que o Tribunal, num momento posterior - a saber, já em sede de apreciação jurídica dos factos -, entendeu que a ordem proferida pelos Militares da GNR que abordaram o arguido no dia dos factos não era legítima.
4. Como é sabido, a sentença divide-se em três partes: o relatório, a fundamentação e o dispositivo (artigo 374º).
5. A fundamentação é composta pela enumeração dos factos provados e não provados bem como pela exposição completa, mas concisa das razões, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374º, nº 2).
6. Os factos provados e não provados que devem constar da fundamentação da sentença são todos os factos constantes da acusação e da contestação, os factos não substanciais que tenham resultado da discussão da causa e os factos substanciais resultantes da discussão da causa e aceites nos termos do artigo 359º.
7. A fundamentação da sentença penal decorre da exigência de total transparência da decisão, desta forma possibilitando aos seus destinatários e à própria comunidade a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador e o controlo da actividade decisória pelo tribunal de recurso.
8. E por isso a lei fulmina com nulidade a sentença que não contenha as menções referidas no nº 2 do artigo 374º, isto é, quando não contenha a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, das razões de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
9. Através da fundamentação da matéria de facto da sentença há-de ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal.
10. O que é essencial é que através da leitura da sentença se perceba por que razão o tribunal decidiu num sentido e não noutro, garantindo-se que a decisão sobre a matéria de facto não foi fruto de capricho arbitrário do julgador ou de mero “palpite”.
11. Assim, sob pena de nulidade, a sentença, para além da indicação dos factos provados e não provados e dos meios de prova, há-de conter também “os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, ao cabo e ao resto, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal colectivo num determinado sentido”.
12. Como tal, em nosso entender, uma vez que a sentença recorrida não fez constar como provados ou não provados factos constantes da acusação, absolutamente pertinentes e relevantes para a decisão da causa, alterando ainda, sem qualquer fundamento, a descrição de outros, que deu como não provados sem esclarecer ou sequer indicar as razões por que o fez, é a mesma nula, por violação do preceituado nos artigos 374º, nº 2, e 379º, nº 1, al. a), do CPP, a qual deverá ser conhecida oficiosamente por esse Venerando Tribunal, uma vez que se trata de decisão que põe termo à causa (cfr. artigos 379º, nº 2, e 414º, nº 4, a contrario, ambos do CPP).
B - Da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova
13. Por outro lado, salvo o devido respeito por opinião contrária, consideramos que a sentença recorrida padece também dos vícios de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, a que alude o artigo 410º, nº 2 al. b), do C. P. Penal, e erro notório na apreciação da prova, a que alude alínea c) do mesmo preceito legal.
14. Na verdade, existe vício de contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico baseado no texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica uma decisão oposta ou não justifica a decisão ou torna a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre os factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova que fundamentaram a convicção do tribunal - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-10-99, in Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça,1999, III-184.
15. Por seu turno, o erro notório na apreciação da prova (a que alude o artigo 410º, nº 2, al. c), do C. P. Penal) existe sempre que o juízo formulado revele uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários, de todo insustentáveis. A incongruência há-de ser de tal modo evidente que não passe despercebida ao comum dos observadores, ao homem médio (cfr., por ex., Acs. STJ, de 27/5/98, in BMJ 477, pág.338, de 9/2/2000, BMJ 494, pág.207, e de 14/10/2001, C.J. ano IX, tomo II, pág.182).
16. Analisando assim a douta sentença recorrida, vejamos.
Na douta sentença ora recorrida a Mmª. Juiz a quo deu como não provado o elemento subjectivo do tipo legal do crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, nº 1, do Código Penal, pelo qual, o arguido AA vinha acusado, nomeadamente:
“Pontos 18, 19 e 20”
Por outro lado, na douta sentença a Mm.ª Juiz a quo, deu como provados, entre outros, os seguintes factos, que para aqui relevam:
(…)
17. Ora, tal como se entendeu no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25/09/2018, disponível em www.colectaneadejurisprudencia.com, que seguimos de perto (e ao qual, aliás, já havíamos feito referência em sede de alegações finais proferidas na audiência de julgamento dos presentes autos, se o Tribunal "a quo" deu como provado que:
«8. Nesse momento, foi-lhe solicitada a sua identificação, com vista à posterior inquirição na qualidade de testemunha relativamente aos factos noticiados, tendo AA recusado facultar os seus elementos de identificação.
9. Os identificados militares advertiram-no que se persistisse em tal recusa incorreria na prática de um crime de desobediência.
10. O arguido compreendeu perfeitamente a ordem que lhe foi dada pelos identificados militares, persistindo na recusa», não pode depois dar como não provado que:
19. Ao actuar da forma descrita, queria o arguido, como conseguiu, desrespeitar a ordem que lhe havia sido legitimamente transmitida pelos militares DD e EE, que se encontravam devidamente uniformizados e no exercício das suas funções.
20. Agiu de forma livre, consciente e deliberada, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei, tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com tal avaliação.»
18. Na verdade, tendo em conta a factualidade dada como provada e a fundamentação da decisão relativa à matéria de facto, é evidente que, ao actuar da forma descrita, queria o arguido, como conseguiu, desrespeitar a ordem que lhe havia sido transmitida pelos militares DD e EE, que se encontravam devidamente uniformizados e no exercício das suas funções, e que agiu de forma livre, consciente e deliberada, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei, tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com tal avaliação.
19. Por outro lado, também não podia o Tribunal dar como não provado que «a ordem emanada pelos Militares da GNR não foi legítima», porque, tal como entendeu o Douto Aresto do Tribunal da Relação de Évora, já citado supra, tal resultaria de um erro notório na apreciação da prova, mencionado na al. c) do nº 2 do citado art. 410º do CPP, pois é do senso comum dos cidadãos ser legítima a ordem de uma autoridade policial para que quem presenciou um crime se tenha de identificar a fim de eventualmente vir a depor como testemunha, quer na investigação, quer no julgamento desse crime…
20. Na verdade, a propósito das regras da experiência, Paulo de Sousa Mendes, in A prova Penal e as regras da experiência, estudos em homenagem ao prof. Figueiredo Dias, III, pág. 1003 e 1011, tece importantes considerações.
Refere:
“As regras da experiência têm aqui uma função instrumental no quadro de uma investigação orientada para os factos individuais”
“O juiz historiador tem que reconstituir um facto individual que ele mesmo não percepcionou. Na melhor das hipóteses, o juiz historiador conseguirá ainda assim ter acesso a fragmentos da matéria de facto” (Sousa Mendes exemplifica com o “artigo de jornal” no crime de difamação através da comunicação social).
“Na maior parte das vezes o juiz historiador terá de lançar mão de um procedimento indiciário, recorrendo à percepção de meros factos probatórios através dos quais procurará provar o facto principal.
Como se sabe, a prova indiciária é aquela que permite a passagem do facto conhecido ao facto desconhecido.
É neste campo que as regras da experiência se tornam necessárias, na medida em que ajudam à realização dessa passagem. Seja como for, a apreensão do facto principal terá, no final, de ser feita de um modo totalizante, pois o juiz historiador nunca pode perder de vista que lhe cabe fazer um juízo objectivo, concreto e atípico acerca do caso decidendo.”
O juiz terá sempre que “averiguar em que medida os factos concretos e individualizados do caso, confirmam ou infirmam aquelas inferências gerais, típicas e abstractas…
(…) “as regras da experiência servem para produzir prova de primeira aparência, na medida em que desencadeiam presunções judiciais simples, naturais, de homem, de facto ou de experiência, que são aquelas que não são estabelecidas pela lei, mas se baseiam apenas na experiência de vida”. “Então, elas ficam sujeitas à livre apreciação do juiz.”
21. Ao assim decidir, a sentença recorrida atenta, quanto a nós, contra as mais elementares regras da experiência, incorrendo, consequentemente, no vício do erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, nº 2, al. c), do CPP.
22. Assim sendo, não restando qualquer dúvida de que a ordem emanada pelos militares que tiveram intervenção no caso vertente tenha sido perfeitamente legítima, deverá passar a constar dos factos provados que «ao actuar da forma descrita, queria o arguido, como conseguiu, desrespeitar a ordem que lhe havia sido legitimamente transmitida pelos militares DD e EE, que se encontravam devidamente uniformizados e no exercício
das suas funções», tal como constava da acusação, e, em consequência, ser o arguido condenado pelo crime de desobediência por que vinha acusado, o que se prende também com a qualificação jurídica a dar aos factos em causa nos presentes autos, que passaremos a analisar de seguida.
Da matéria de direito
23. Entendeu o Tribunal a quo que, perante a matéria de facto dada como assente e não assente, que «ao arguido não poderia ser legitimamente exigida qualquer identificação. E estamos em crer que tal proibição é bastante clara e resulta, inequivocamente, do texto da lei.
Não poderemos deixar de concluir que existiriam inúmeras outras formas de chegar à sua identidade, conhecido que era o seu local de residência.
a. (…)
A nosso ver, a sua inobservância não integra, por conseguinte, a prática do ilícito que é imputado ao arguido AA (vide, neste sentido, o teor do Ac. da Relação de Lisboa de 21-05-2020 acima enunciado).
O que, invariavelmente, conduz à sua absolvição, o que se decide»
24. Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, não poderemos deixar de discordar totalmente das conclusões formuladas pelo Tribunal a quo.
25. Ora, em primeiro lugar, cumpre referir, desde logo, que apesar de a Mma. Juiz a quo ter lido o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25-09-2018, já citado supra e por nós invocado em sede de alegações finais na audiência de julgamento, apenas atendeu e/ou concordou com as considerações proferidas no âmbito desse processo, na decisão de 1ª instância - que também havia absolvido a ali arguida do crime de desobediência pelo qual estava acusada -, as quais foram depois rebatidas e contrariadas pelos Venerandos Desembargadores, que revogaram tal decisão e condenaram a arguida pelo crime de desobediência pelo qual estava acusada.
26. Contudo, uma vez que, em nosso entender, a solução correcta é a adopada pelo Douto Acórdão da Tribunal da Relação de Évora, que perfilhamos na íntegra, também nós consideramos que, no caso vertente, o arguido deverá ser condenado pelo crime de desobediência de que vinha acusado, por ter desrespeitado uma ordem perfeitamente válida e legítima dos militares da GNR, que actuaram enquanto órgãos de polícia criminal e, nessa qualidade, estão investidos dos poderes necessários para repor a ordem e a segurança públicas, bem como para proteger a vida e a integridade física de qualquer cidadão, e também para recolher meios de prova e praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova …
27. Ora, no caso dos autos e de acordo com a informação que haviam recebido telefonicamente e que lhes foi confirmada no local por outros moradores, que presenciaram os factos, o suposto agressor havia apertado o pescoço duma mulher, na presença duma criança - o que poderia consubstanciar a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, violência doméstica ou mesmo homicídio - e, apesar de haver testemunhas que tinham presenciado os factos, a única pessoa que conhecia o agressor, por ser seu amigo, era o arguido, tendo inclusivamente os factos ocorrido dentro da sua residência.
28. Como tal, em nosso entender, muito bem andaram os militares da GNR quando solicitaram a identificação do arguido, por ter sido testemunha da prática de um crime e de poder dar informações essenciais à responsabilização penal do autor dos mesmos, pois que o arguido era o único que sabia a identificação do agressor e só assim poderiam encontrá-lo, bem como à vítima, de modo a melhor apurar o que se havia passado entre estes e, eventualmente, deter o agressor.
29. Não se compreende, pois, como pode a Mma. Juiz referir que, «na situação que nos ocupa, não estávamos, de todo, perante um caso que exigisse qualquer tipo de medida cautelar de policia, de natureza urgente para assegurar meios de prova, nos termos previstos no art. 249º do C.P. Penal. Nem era legitimo aos militares colherem, à partida, informações sobre o aqui arguido AA».
30. De igual forma, não podemos concordar com a conclusão a que chegou a Mma. Juiz - de que existiriam inúmeras outras formas de chegar à identidade do aqui arguido, conhecido que era o seu local de residência -, sobretudo para fundamentar a ilegitimidade da ordem de identificação por parte dos militares.
31. Independentemente de poderem vir a ser realizadas, num momento posterior, como foram, diligências com vista ao apuramento do autor dos factos e desta testemunha, o certo é que se impunha, naquele momento, não só para acautelar a integridade física e/ou vida da vítima e recolher meios de prova que se poderiam perder no tempo (tais como marcas de agressões, vestígios de objectos destruídos, mensagens escritas para o telemóvel da vítima), mas também para deter, caso se mostrasse necessário, o agressor e impedir que os factos assumissem outras proporções e/ou gravidade, o que se revela cada vez mais premente, tendo em conta o fenómeno crescente de crimes de violência doméstica e o aumento exponencial de mulheres vítimas de homicídio, neste contexto.
32. Por outro lado, segundo o entendimento da Mma. Juiz, esta testemunha nunca seria obrigada a identificar-se e a depor como testemunha, quer nesse momento, quer numa fase posterior da investigação, razão pela qual, no caso vertente, não tivesse o agressor, por mero acaso, abandonado o local num veículo automóvel - que permitiu, pela matrícula, que se chegasse à sua identificação -, nunca se saberia quem eram a vítima e o agressor naquela situação.
33. Ora, tal como se refere no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora a que se vem fazendo referência, «dramatizando um pouco o assunto, para melhor apreensão dos contornos da situação:
Se a arguida, em vez de ter testemunhado uma zaragata de murros e pontapés, tivesse sido a única testemunha presencial de um homicídio ou de um acto terrorista em larga escala, o crime ficaria sem ser julgado porque... a única pessoa capaz de identificar sem qualquer sombra de dúvida o autor dos factos se recusava legitimamente a ser identificada para eventualmente vir a depor como testemunha e desaparecia de seguida do rasto das autoridades. É que, ao contrário da rígida compartimentação a tal propósito efectuada pelo tribunal "a quo", se a recusa da arguida for considerada legítima, então a subsequente detenção da mesma pelos OPC para ser identificada é ilegítima, tendo a autoridade policial cometido, entre outros, um crime de sequestro pelo qual devia estar a ser julgada ou vir a ser julgada (devendo o tribunal "a quo" ter ordenado então a extracção de certidão para esse efeito...) - e não a arguida.
Ora, com o devido respeito pelo tribunal recorrido e como é fácil de constatar, esta solução não é admissível para a manutenção de um Estado como de Direito, o que seguramente quer dizer que não foi essa a intenção do legislador ao produzir as leis acima citadas, as quais, sendo de natureza processual, deverão ser razoavelmente interpretadas de forma analógica ou extensível por forma a que, num quadro em que se sopesem valores individuais e valores colectivos, ambos com tutela constitucional - e ainda que se tenha de restringir, embora que de forma tolerável, os primeiros em função dos segundos -, permita um resultado consentâneo com os desideratos gerais da ordem jurídica do Estado e a sua sobrevivência como Estado de Direito.
Ora o pedido, a ordem dada a um cidadão que presenciou um crime de que forneça a sua identidade por forma a mais tarde poder eventualmente vir a ser inquirido como testemunha no respectivo inquérito criminal e no julgamento, insere-se no âmbito do pedido de fornecimento de informações tendentes à descoberta e à conservação de meios de prova, no caso, a testemunhal, que poderiam perder-se antes da intervenção da autoridade judiciária, designadamente pelo natural desaparecimento e regresso ao anonimato das testemunhas do crime cuja identidade não fosse de imediato colhida.
A ordem de identificação para esses fins dada pelo OPC à arguida foi, pois, legítima, enquadrando-se a recusa do seu cumprimento na previsão do art. 348º, nº 2, do Código Penal. (...)».
34. Tanto mais que os crimes de violência doméstica exigem uma rápida intervenção das autoridades policiais e judiciais e cada vez mais se clama por uma colaboração por parte de toda a sociedade, de forma não só a prevenir que os mesmos terminem em feminicídios, como tantas vezes sucede, mas também de forma a mudar mentalidades e a consciencializar as pessoas para a reprovabilidade das condutas anteriormente aceites como normais, o que não se compadece, de modo algum, com o entendimento de que alguém se pode recusar a fornecer a sua identificação, para não vir a depor no processo como testemunha de um crime desta natureza, que presenciou!!!!
35. Assim sendo, tal como se entendeu no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, deveria ter-se entendido também neste caso que a ordem dada pelos militares da GNR, DD e EE, era perfeitamente legítima e que o arguido, ao desrespeitá-la, livre, deliberada e conscientemente, cometeu um crime de desobediência pelo qual deve ser condenado.
36. Face a todo o supra exposto, concluímos, pois, que o arguido deve ser condenado pela autoria do crime doloso de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, nº 1, do Código Penal, que lhe vinha imputado.
Termos em deverá ser dado provimento ao recurso e a sentença recorrida ser revogada em conformidade com o exposto.
Contudo V. Ex.as decidirão conforme for de Justiça.

Notificado nos termos do disposto no artigo 411º, nº 6, do Código de Processo Penal, para os efeitos do disposto no artigo 413º, do mesmo diploma legal, o arguido AA não se pronunciou.

Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto, conforme melhor resulta dos autos.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo o arguido apresentado qualquer resposta.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -

Na sentença recorrida consta o seguinte (transcrição):

Realizada a audiência de julgamento, dela resultaram provados os seguintes factos:
Da discussão da matéria de facto, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 02-04-2021 cerca das 21:20h, AA encontrava-se no interior da sua residência sita na Rua ..., ..., ..., em ....
2. Na sequência de uma comunicação via rádio e de relatos de uma alegada situação de violência doméstica ou ofensas à integridade física entre um casal que se encontraria naquela morada, os militares da GNR que se encontravam de patrulha, DD e EE, deslocaram-se ao local.
3. Aí chegados, os identificados militares apuraram, junto de vizinhos, que o referido casal já teria abandonado a dita residência, mas que no seu interior se encontraria, ainda, o aqui arguido.
4. Nessa sequência, com vista à identificação dos intervenientes na relatada situação de violência doméstica ou ofensas à integridade física, e tudo indicando que o ora arguido teria presenciado os factos noticiados, os militares EE e DD, tocaram à campainha, sendo-lhes aberta a porta do prédio pelo arguido.
5. Pelo facto de, à data, Portugal se encontrar em Estado de Emergência e por ter sido decretado o confinamento obrigatório, os militares permaneceram junto à porta do prédio, distando entre o local onde se encontravam e a porta da residência do arguido, no ..., escassos metros.
6. Solicitaram-lhe, então, que os informasse se, efectivamente, os factos noticiados teriam ocorrido na sua residência.
7. O arguido confirmou que uns amigos tinham ali estado, mas que já se teriam ausentado, não querendo fornecer mais informações quanto aos alegados factos que envolveram o referido casal ou a identificação destes.
8. Nesse momento, foi-lhe solicitada a sua identificação, com vista à posterior inquirição na qualidade de testemunha relativamente aos factos noticiados, tendo AA recusado facultar os seus elementos de identificação.
9. Os identificados militares advertiram-no que se persistisse em tal recusa incorreria na prática de um crime de desobediência.
10. O arguido compreendeu perfeitamente a ordem que lhe foi dada pelos identificados militares, persistindo na recusa.
Provaram-se, ainda, os seguintes factos relativos à situação pessoal do arguido, com relevo para a determinação da sanção:
11. É reformado e aufere uma reforma mensal no valor de € 331,00.
12. Vai à pesca, como forma de se sustentar em termos de alimento.
13. Reside sozinho, em casa cedida pela C.M. ..., pela qual paga uma renda mensal no valor de € 23,00.
14. Declarou suportar uma prestação mensal no valor de € 65,00 referente à aquisição de um aparelho auditivo.
15. Encontra-se desempregado e não aufere qualquer subsidio ou rendimento.
16. Estudou até à 4ª classe.
17. Não regista antecedentes criminais.

Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos, sendo certo que aqui não importa considerar as alegações meramente probatórias, conclusivas e de direito, que deverão ser valoradas em sede própria.
Designadamente não se provou, de todo, a versão carreada para os autos pelo arguido, em declarações prestadas na audiência de julgamento, bem como não se provou que:
18. O arguido se recusou a sair do interior da sua habitação com vista à sua identificação no posto da GNR, bem sabendo que esta seria a única forma de os referidos elementos da GNR lograrem obter a sua identificação porquanto estando o mesmo no interior da sua habitação os Guardas da GNR não o poderiam conduzir ao posto para identificação pois estava-lhe vedado o acesso ao interior da residência.
19. Ao actuar da forma descrita, queria o arguido, como conseguiu, desrespeitar a ordem que lhe havia sido legitimamente transmitida pelos militares DD e EE, que se encontravam devidamente uniformizados e no exercício das suas funções.
20. Agiu de forma livre, consciente e deliberada, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei, tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com tal avaliação.

Motivação:
O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados com base na análise critica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, apreciada à luz das regras de experiência comum e segundo juízos de normalidade, dispensando-se a descrição pormenorizada dos depoimentos prestados uma vez que a prova se encontra devidamente registada em suporte magnético.
O Tribunal valorou, desde logo, as declarações prestadas pelo arguido que, após a leitura da acusação, escudando-se no facto de ter problemas auditivos, alegando “ser surdo” – o que, contudo, no decurso do julgamento, não ficou demonstrado na ordem de grandeza que o arguido quis fazer crer – começou por salientar que “não ouviu pedirem-lhe a identificação” e “se lhe pediram, não ouviu”, argumentando que os militares, devidamente fardados, tocaram à campainha, mas permaneceram junto à porta do prédio, ficando um pouco longe de si, “não sabendo o que foram lá fazer” e aí se mantendo apenas por escassos segundos.
Questionado garantiu “não ter assistido a nada”, desabafando que “outra pessoa armou confusão e ele é que está a pagar”. Disse que às vezes ia à pesca com o FF, companheiro da GG e que aquele esteve, efectivamente, na sua casa na data dos factos, quando esta apareceu. Decorre das suas declarações que o casal terá iniciado uma discussão, pelo que, não querendo confusão na sua casa, lhes pediu para abandonarem o local, daí que, “se se passou alguma coisa, foi na rua”.
Admitiu a data e a hora mencionados na acusação, assegurando, todavia, não ter tido qualquer conversa com os militares, pessoas que não conhecia, não os tendo advertido que não conseguia ouvir e nunca se tendo recusado identificar-se.
Adiantou que algum tempo depois, elementos da GNR deslocaram-se novamente à sua residência a fim de o notificar para ir ao posto prestar depoimento relativamente aos factos alegadamente ocorridos na sua residência, o que fez.
Mais se atendeu ao teor dos depoimentos prestados, de forma consonante, objectiva e desinteressada, pelos militares da GNR DD e EE que, tendo participado na abordagem ao arguido, revelaram conhecimento directo e pessoal dos factos.
Confirmando o circunstancialismo espácio temporal dos factos, referiram terem recebido uma comunicação via rádio dando conta de problemas que envolveriam um casal e uma criança de cerca de 6 anos de idade. À sua chegada, foi-lhes transmitido por populares que os elementos do casal envolvido em agressões – que não souberam identificar –, teriam abandonado o local e que os mesmos teriam jantado na residência de AA. O suspeito, à saída, teria, ainda, provocado um acidente de viação, ocorrência que, igualmente, tomaram conta, recebendo os testemunhos das testemunhas ali presentes.
Por acharem que o aqui arguido seria a única pessoa com conhecimento da identidade dos envolvidos, deslocaram-se à sua residência e questionaram-no sobre o que se tinha ali passado, respondendo este que não queria ter nada a ver com isso e que o problema era do dito casal e não seu.
Mencionaram, ambos, que apesar de lhe terem solicitado a sua identificação, o arguido recusou fornecê-la, sendo então advertido, várias vezes, que a sua recusa o faria incorrer na prática de um crime de desobediência, do que ficou ciente, replicando que “não tinha nada a ver com isso e que fizessem como quisessem”.
Ambos asseguraram que o arguido percebia perfeitamente o que lhe era transmitido, que ouvia e respondia ao que lhe era perguntado. DD adiantou, quando instado, que ficaram a cerca de 2 metros da porta da residência do arguido, que este nunca os advertiu que ouvia mal e que essa questão nunca sequer foi suscitada, já que tiveram uma conversa normal e coerente, durante cerca de 10 minutos, nunca se tendo apercebido de qualquer falta de audição.
Ora,
As declarações prestadas pelo arguido, para além de contrariadas pelos depoimentos isentos dos militares inquiridos, não nos mereceram, qualquer credibilidade já que, em audiência, apesar de inicialmente arguir ser surdo, foi respondendo a tudo o que lhe era perguntado pela signatária, pela digna Procuradora da República e pela sua ilustre defensora oficiosa, sem necessidade de assumirmos um tom de voz muito elevado, estando todas a mais de 3 metros do local onde aquele se encontrava.
Cai, assim, naturalmente, por terra, o argumento de que não ouviu o que os militares terão dito, nomeadamente, que lhe pediram a identificação e cominaram a sua recusa com o crime de desobediência.
*
O Tribunal considerou, bem assim, o teor dos documentos que se mostram juntos aos autos e ao certificado do registo criminal do arguido de fls. 524.
*
Os factos relativos à situação pessoal do arguido resultam das declarações pelo mesmo prestadas em audiência.


Subsunção jurídica:
Vem o arguido acusado da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 348º/1 b) do C. Penal.
Estipula o citado dispositivo legal, nas suas alíneas a) e b) do C. Penal que comete um crime de desobediência “quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente (…) se, uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples” ou “na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”.
Inserido no capítulo dos crimes contra a autoridade pública, a citada incriminação visa tutelar a autonomia intencional do Estado, no sentido de não serem colocados entraves à actividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos.
São, assim, elementos constitutivos do tipo:
 a existência de uma ordem ou mandado (entendendo-se, como tal, o comando que, dirigido a um cidadão individualmente considerado, lhe impõe uma determinada conduta, de índole positiva ou negativa)
 a legalidade formal e substancial de tal ordem ou mandado (o que equivale a dizer que tem de se fundar numa disposição legal que autorize a sua emissão e obedecer às formalidades que a lei estipula para a sua emissão e comunicação, pois só é devida obediência a ordem ou mandado legítimos)
 a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão (devendo, assim, caber dentro das atribuições funcionais ou delegadas da autoridade ou agente que a profere);
 a regularidade da sua transmissão ao destinatário (de modo a garantir o seu efectivo conhecimento pelo respectivo destinatário);
 o desrespeito pela ordem ou mandado;
 e a intenção do destinatário em desobedecer (pressupondo o conhecimento da anti-jurisdicidade da desobediência por parte do agente e, bem assim, o incumprimento voluntário e consciente da ordem ou mandado legitimamente emanado).
Por outro lado,
Preceitua o art. 250º do C.P. Penal que “os órgãos de polícia criminal podem proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção”.
Já o art. 249º do mesmo código estabelece, sob a epígrafe de “providências cautelares quanto aos meios de prova”, que “compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, nomeadamente, “proceder a exames dos vestígios do crime, em especial às diligências previstas no nº 2 do artigo 171º, e no artigo 173º, assegurando a integridade dos animais e a manutenção do estado das coisas, dos objetos e dos lugares” e, bem assim, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição”.
*
No caso dos autos resultou provado que:
 foi denunciada à GNR de ... a alegada prática de um crime de ofensa à integridade física ou de violência doméstica entre um casal, ocorrida no interior ou nas imediações da residência do aqui arguido AA.
 à chegada dos militares ao local os elementos do casal já se haviam ausentado.
 quando o arguido se encontrava no interior da sua residência foi interpelado pelos militares no sentido de apurar o seu conhecimento relativamente aos factos eventualmente cometidos entre o dito casal. Ao arguido foi, ainda, exigida a respectiva identificação, que recusou.
 foi, então, advertido que a recusa em fornecer a sua identificação o faria incorrer na prática de um crime de desobediência, do que terá ficado ciente, persistindo na mesma.
Impõem-se, aqui chegados, umas breves considerações a respeito dos factos que estão subjacentes à incriminação do arguido nos presentes autos.
Cumpre, assim, antes de mais, avaliar da regularidade do mandato ou ordem dada pelos militares, a que AA desobedeceu frontalmente.
Parafraseando a Ilustre Sra. Prof. Anabela Miranda Rodrigues, in Jornadas do Direito Processual Penal, Edição CEJ, Almedina, 1997, pág. 70 a 73, “uma das implicações advindas da posição de dominus do inquérito que cabe ao Ministério Público reside na nova compreensão das relações, funcionais, entre aquele e os órgãos de polícia criminal, que agora são, na terminologia do futuro Código, «todas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer actos determinados por este Código ou ordenados por uma autoridade judiciária» (art. 1º, al. c)). Embora se acentue, por esta forma, que, continuando as diversas polícias a ter competência no domínio da investigação criminal - com excepção dos actos que são da competência exclusiva do juiz de instrução ou do Ministério Público (vejam-se, por exemplo, os artigos 268º e 270º, nº 2) -, se trata de uma tarefa de que são encarregadas pelo Ministério Público, isso não quer dizer nem faz esquecer que à iniciativa própria da polícia compete a prática de certos actos: transmitir a notícia do crime (art. 248°), tomar providências quanto aos meios de obtenção da prova (art. 249°, 251º e 252°), proceder à identificação (art. 250°) e à detenção de pessoas (art. 254° e seg.).
Deter-me-ei sobre a prática destes actos de iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal, tentando analisá-los de acordo com um esquema no essencial coincidente com o do novo Código.
a) Assim, quanto às medidas cautelares e de polícia cumpre desde logo salientar que se trata de uma categoria conceitual nova no nosso direito processual penal. A sua consagração visa, através da tomada imediata de providências pelos órgãos de polícia criminal sem prévia autorização da autoridade judiciária competente, acautelar a obtenção de meios de prova que, de outra forma, poderiam irremediavelmente perder-se, provocando danos irreparáveis na obtenção das finalidades do processo. E isto, quer devido à natureza perecível de certos meios de prova, quer ainda dado o carácter urgente dos actos a praticar. O que se observa é, pois, que através da sua consagração, se prefere a eficácia da acção conseguida ao rigor dos princípios. Esta opção representa, entretanto, por parte do legislador, a consciência clara de que a realização de uma investigação criminal necessita, para ser eficaz, de ter ao seu dispor certos meios que são afinal, na prática, os meios «normais» de actuação naquelas fases em que a prova se estrutura. Assim, respeita-se, por um lado, a nova filosofia do futuro Código assente na legalização dos meios de actuação que até aqui se encontravam numa zona de semiclandestinidade; por outro lado, a consciência muito nítida de que a sua consagração representa um risco, assumido pelo Código, de utilização abusiva dessas medidas, levou a apertar os critérios que legitimam a intervenção das polícias nesses casos - restringe-se a tomada de medidas a «actos urgentes» (artigo 251º, nº 1 e 252º, nº 2) - e a introduzir o limite da intervenção homologadora da autoridade judiciária (art. 251º, nº 2 e 252º, nº 3). (…)
b) Como sub-espécie das medidas cautelares e de polícia, encontramos consagrada no novo Código, numa nítida concessão à regulação neste diploma de uma actividade administrativa dos órgãos de polícia criminal, a possibilidade de estes «procederem à identificação de pessoas» (art. 250º, nº 1). (…)” (cfr. Ac. TRP de 9 de Janeiro de 2013, Proc. Nº 22/09.6GAPNF.P1, in dgsi.pt).
No que aos arts. 249º e 250º do C.P.Penal concerne, concordamos, bem assim, com algumas das considerações expendidas no Ac. da Relação de Évora de 25-09-2018 (Proc. 364/17.7GBABF.E1, disponível na Colectânea de Jurisprudência JusNet), ao referir-se que “o artigo 249º nº 2 al. b) do Código de Processo Penal permite "b) Colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição;", onde, cremos, se poderia enquadrar a atitude dos senhores militares para com a ora arguida que na altura poderia certamente vir a ser testemunha. Contudo, pegamos no ensinamento de Paulo Pinto de Albuquerque em anotação a este preceito quando refere que "recolher informações, isto é, inquirir pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime: estas pessoas não são testemunhas e não têm qualquer dever de depor, podendo recusar fazê-lo, sem qualquer fundamento (...) e nessa medida, não valem em relação a estas pessoas os constrangimentos normativos destinados a garantir a autenticidade do testemunho" (cfr. in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, pg. 651).
Maia da Costa reforça este entendimento, também em anotação ao mesmo artigo 249º ao concluir que "a colheita de informações de pessoas, referida na al. b) do nº 2 é de natureza informal, não vinculando as pessoas contactadas à condição de testemunhas" (cfr. in Código de Processo Penal Comentado, Almedina Editora, pg. 953).
Se esta asserção permite chegar à conclusão de que existe uma maior liberdade destas pessoas, inexistindo, desde logo a obrigatoriedade de testemunhar ou de serem sequer qualificadas como tal, parece estar afastada também a aplicação dos deveres das testemunhas previstos no artigo 132º do Código de Processo Penal. Acresce que a "colheita informal" de prova pende no sentido da ausência de vinculação a qualquer dever de identificação e certamente muito menos uma obrigatoriedade de identificação sob pena de prática de um crime.
Cremos que a resposta à nossa questão estará no artigo 250º nº 1 do Código de Processo Penal que especifica quem está obrigado a identificar-se: qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção. Como é bom de ver, de acordo com a matéria provada a ora arguida não assumia nenhuma destas qualidades, nem tão pouco pairava qualquer suspeita de que pudesse vir a enquadrar-se numa. Cremos que o legislador foi claro nesta matéria e cuidou de elencar claramente os visados com a identificação tendo estado ao seu critério, querendo, adicionar outros sujeitos; não o tendo feito não poderemos presumir que nesse elenco se incluem pessoas que aí não foram discriminadas, devendo nós, de acordo com os preceitos gerais do direito, concluir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9º nº 3 do Código Civil).
Não podemos também olvidar que a própria Constituição da República Portuguesa parece aludir a entendimento semelhante no artigo 27º nº 2 e 3 al. g) ao referir que "ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança. Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes: g) Detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários”.
Reforçamos, pois, a ideia de que apenas se encontra legitimada a identificação das pessoas nos casos elencados no art. 250º/1 do C.P. Penal. Neste sentido vide, a título de exemplo, os Ac. da Relação de Lisboa de 29-10-1996 (Proc. 0004255) e de 21-05-2020 (Proc. 348/16.2GGSNT.L1-9), bem como os Pareceres do Conselho Consultivo da PGR nº 813 de 31-07-1997 e nº1/2008, disponíveis in www.dgsi.pt.
Fora destas condições restritas ninguém pode ser obrigado a identificar-se.
Ora,
Na situação que nos ocupa, não estávamos, de todo, perante um caso que exigisse qualquer tipo de medida cautelar de policia, de natureza urgente para assegurar meios de prova, nos termos previstos no art. 249º do C.P. Penal. Nem era legitimo aos militares colherem, à partida, informações sobre o aqui arguido AA.
Por outro lado, nunca recaiu sobre o aqui arguido AA qualquer juízo de suspeita da prática de qualquer crime.
O único indicio recolhido nos autos à data da abordagem pelos elementos da GNR é que, eventualmente, teria o mesmo conhecimento, quer de factos que poderiam consubstanciar um eventual crime de ofensas à integridade física ou de violência doméstica como, ao que tudo indicava, da identidade das pessoas envolvidas: vítima e agressor.
Acresce, ainda, que o aqui arguido se encontrava, quando interpelado, no interior da sua residência, num local que constitui a reserva da sua vida privada, e não em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial.
Posto isto, é nosso entendimento que ao arguido não poderia ser legitimamente exigida qualquer identificação. E estamos em crer que tal proibição é bastante clara e resulta, inequivocamente, do texto da lei.
Não poderemos deixar de concluir que existiriam inúmeras outras formas de chegar à sua identidade, conhecido que era o seu local de residência.
E, uma vez apurada a sua identidade, com recurso a outros expedientes de fácil acesso – nomeadamente junto de vizinhos, da EMARP, da EDP ou na sequência de uma pequena vigilância, pela matricula do veículo que eventualmente conduzisse – poderia ser notificado para comparecer nos serviços do Ministério Público ou da GNR a fim de ser inquirido como testemunha e, na eventual falta de comparência, poderiam ser, dentro de toda a legalidade, emitidos mandados de comparência.
E, se analisarmos os autos, vemos que:
 no dia 04-04-2021, é apurada a identidade da proprietária do veículo envolvido no acidente de viação (fls. 56) que, quando ouvida em 16-04-2021, identifica a pessoa a quem vendeu o veículo, juntando cópia da declaração de venda e do cartão do cidadão deste, em nome de quem se encontrava segurado o veículo (fls. 175);
 em 20-04-2021 é confirmada a identidade do suspeito (fls. 181 a 182) e da ofendida (fls. 183 a 184), que não deseja procedimento criminal;
 e no dia 26-04-2021 é pedida a colaboração da GNR de ... no sentido de apurar a identidade do aqui arguido (fls. 212), que é imediatamente conseguida, sendo este ouvido como testemunha em 30.04.2021 (fls. 214).
Ora, precisamente em homenagem ao princípio da proporcionalidade, a conduta do arguido teria de assumir uma gravidade compatível com a criminalização através da cominação dos militares da GNR.
Na verdade, não é a mera ausência de uma outra previsão incriminadora que legitima a criminalização da conduta através da cominação de autoridade ou funcionário competente.
Exige-se, antes de mais, que a conduta que está na sua base a justifique materialmente, por imposição do mesmo princípio de intervenção mínima do direito penal, ou da necessidade da pena, e, por conseguinte, da proporcionalidade entre a danosidade social da conduta e a reação (veja-se, neste sentido, o Ac. da Relação de Évora de 29-01-2013, Proc. 393/09.4TALGS.E1).
Aqui chegamos cumpre fazer outra pequena reflexão: após a cominação da recusa com a prática de um crime de desobediência, e quando já se poderia considerar suspeito da prática desse ilícito, não volta a ser solicitada pelos militares a identificação de AA.
Em jeito de resumo, entende o Tribunal que não se mostra preenchido um dos requisitos objectivos essenciais do ilícito imputado ao arguido, ou seja, a existência de uma ordem ou mandado formal e substancialmente legítimos.
Se não há dúvidas que os militares eram funcionários ou autoridades competentes para a sua emissão, já a ordem concretamente dada com a cominação da prática do crime de desobediência carecia de validade substancial, à luz do principio da intervenção mínima do direito penal, consagrado no art. 18º/2 da constituição da República Portuguesa.
A nosso ver, a sua inobservância não integra, por conseguinte, a prática do ilícito que é imputado ao arguido AA (vide, neste sentido, o teor do Ac. da Relação de Lisboa de 21-05-2020 acima enunciado).
O que, invariavelmente, conduz à sua absolvição, o que se decide.


II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, as cominadas como nulidade da sentença, artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código e, as nulidades que não devam considerar-se sanadas, artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-1998, B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03-02-1999, B.M.J. nº 484, pág. 271 e, bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

No caso em apreço, atendendo às conclusões, a questão que se suscita é a seguinte:
- Nulidade da sentença por insuficiência de fundamentação, nos termos do disposto nos artigos 379º, nº 1, alínea a) e, 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
- Impugnação da sentença proferida relativamente à matéria de facto, por contradição insanável na fundamentação e erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal.
– Impugnação da sentença proferida relativamente à matéria de direito, por incorreta subsunção jrídica dos factos no tipo legal de crime de desobediência, previsto no artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal.

- Da nulidade da sentença por insuficiência de fundamentação, nos termos do disposto nos artigos 379º, nº 1, alínea a) e, 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Sob a epígrafe “nulidade da sentença”, dispõe o artigo 379º, do Código de Processo Penal:
“1- É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b), do nº 3, do artigo 374º (…).
Por sua vez, o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, sobre os requisitos da “sentença”, estabelece:
“2 – Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Analisada a decisão recorrida verifica-se que da mesma constam os factos provados e não provados, segue-se a exposição detalhada da motivação da decisão de facto e de direito, com o competente exame crítico das provas que fundamentaram tal convicção.
Tendo como ponto de partida a acusação deduzida verifica-se que nem todo o texto integrante daquela peça processual, consta como provado ou não provado, na decisão recorrida, porque da audiência resultaram provados factos, que afastam a redacção constante da acusação, ou a mesma integra conceitos jurídicos e/ou conclusivos, que não são susceptíveis de integrar a matéria de facto como como provados ou não provados, como sendo a ligitimidade da ordem emanada pelos militares da GNR, integrando um facto jurídico e conclusivo, que não deve integrar a matéria de facto provada ou não provada.
Contudo, consegue-se alcançar, do exame crítico das provas, nomeadamente dos depoimentos das testemunhas inquiridas e, dos documentos juntos aos autos, a concreta fundamentação da convicção formada pelo Tribunal “a quo”, sobre ter considerado tais factos como provados ou não provados.
O que parece resultar das conclusões de recurso apresentadas pelo recorrente, é o mesmo não concordar na sua integralidade com os factos tidos como não provados pelo Tribunal “a quo”, mas tal circunstância de forma alguma, consubstancia alguma omissão da sentença proferida, que constitua nulidade da mesma, por omissão de requisitos essenciais, nomeadamente falta de fundamentação ou de exame crítico da prova.
Como bem salienta Marques Ferreira (“Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal”, Livraria Almedina, 1988, pág. 228) este regime legal, quanto à fundamentação da decisão de facto, consagra “um sistema que obriga a uma correcta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objecto do processo, de modo a permitir-se um efectivo controlo da sua motivação”.
“Toda a construção dogmática, normativa e jurisprudencial vem densificando uma dupla dimensão finalística referente à fundamentação das decisões assente nas dimensões endo e extraprocessual.
A dimensão endoprocessual desenvolve-se no interior da estrutura e funcionamento do processo tendo como finalidade principal o controlo da decisão por parte dos intervenientes no processo concreto, tanto para o seu próprio controlo como, para uma, ulterior, verificação através dos órgãos superiores de controlo institucional, do mérito da decisão. Tendo em conta os destinatários directos da decisão estão em causa funções de garantia de impugnação e de defesa. Tendo em conta a dimensão de quem profere a decisão nomeadamente, o modo e método de decidir, evidencia-se uma função de autocontrolo.
A dimensão extraprocessual da fundamentação resulta da projecção democrática do princípio da fundamentação das decisões, revelada em muitos países pela constitucionalização daquele dever, como manifestação do princípio da participação popular na administração da justiça, assim se permitindo um controlo difuso sobre o exercício da jurisdição, não só pelos destinatários directos da decisão como também pelo auditório geral constituído pela opinião pública, pelo povo como entidade ou razão fundamental e legitimadora do exercício da função judicial.” (Mouraz Lopes – A fundamentação da sentença no sistema penal português – Almedina, pág. 190 e 191).
Volvendo ao decidido pelo Tribunal “a quo”, afigura-se-nos de liminar clarividência que toda a peça decisória contém uma fundamentação adequada e mais que suficiente para compreender a convicção formada pelo Tribunal sobre a matéria de facto provada e não provada, bem como os meios de prova em que assentou tal convicção, conseguindo-se atingir qual o exame crítico realizado sobre tais meios de prova, ou seja, conseguindo-se entender e sindicar qual o processo lógico-dedutivo que determinou a formação de tal convicção, no julgador.
Por tudo o exposto, não se verifica qualquer omissão na sentença proferida, relativa à fundamentação e ao exame crítico da prova e, consequentemente, não se concretizando a invocada nulidade da mesma sentença, nos termos do disposto nos artigos 374º, nº 2 e, 379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal e, improcedendo então, o recurso interposto nesta parte.

- Da impugnação da sentença proferida relativamente à matéria de facto, por contradição insanável na fundamentação e erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal.
A alteração da factualidade assente na 1ª instância poderá ocorrer pela verificação de algum destes vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma –, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe oficiosamente, realçando, no entanto, que foi expressamente invocado pelo recorrente o vício constantes da alínea c), do nº 2.
Em comum aos três vícios, terá o vício que inquina a sentença ou o acórdão em crise que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, local supra, mencionado.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.
Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorrecta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.”, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local mencionados.
O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada.
Um tal vício de erro notório na apreciação da prova não se verifica quando a discordância resulta da forma como o tribunal apreciou a prova produzida.
Vejamos então se a sentença recorrida padece de contradição insanável na fundamentação, resultou como não provado o elemento subjectivo do tipo legal do crime imputado, sendo certo que da fundamentação e da decisão constam dúvidas sobre a legitimidade da ordem transmitida ao arguido pelos militares da GNR e, o raciocínio lógico efectuado na fundamentação leva a perceber que a decisão a proferir virá a ser no sentido referido, não permitindo considerar provados os factos relativos ao elemento subjectivo do tipo legal de crime.
Quanto ao mencionado erro notório na apreciação da prova.
Este existe quando do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, resulte que se deu como provado algo que não podia ter acontecido ou que se deu como não provado algo que não podia deixar de ter acontecido ou, ainda, quando se retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Existe este vício quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Como se salienta no Ac. do STJ de 09/04/2008, no processo nº1188/06 e constitui jurisprudência pacífica no mais alto tribunal “o erro notório na apreciação da prova, como os demais vícios elencados no nº2, do artigo 410º, do C.P.P., deve resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência, e tem de ser de tal modo evidente que uma pessoa de mediana compreensão o possa descortinar. E existe quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos.
Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
Os vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, nomeadamente o erro notório na apreciação da prova, não podem, por outro lado, ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127º, do Código de Processo Penal.
Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.”
O julgador tem de apreciar e valorar a prova na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou “hominis”, que são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção.
Resulta do disposto no artigo 127º, do Código de Processo Penal, que: “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
É sabido que a livre convicção não se confunde com convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, no ensinamento do Professor Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Vol. I, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 201 a 206, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.
A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.
Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das “leges artis”, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência (o que conforme supra referido não tem validade neste caso concreto), ou, ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e violadora do favor rei.
Sabido é que, no artigo 127º, do Código de Processo Penal consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante (o julgamento surge, na estrutura do processo penal, como o momento de comprovação judicial de uma acusação – é o momento do processo onde confluem todos os elementos probatórios relevantes, onde todas as provas têm de se produzir e examinar e onde todos os argumentos devem ser apresentados, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa), pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, artigos 84º (caso julgado), 163º (valor da prova pericial), 169º (valor probatório dos documentos autênticos e autenticados) e 344º (confissão) do Código de Processo Penal e está sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova, artigo 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa, e artigos 125º e 126º, do Código de Processo Penal e, o do “in dubio pro reo” artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
O princípio “in dubio pro reo”, sendo o correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido, constitui um princípio relativo à prova, decorrendo do mesmo que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do Tribunal.
Dito de outra forma, o princípio “in dubio pro reo” constitui uma imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios prova, de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Volvendo ao processo, bastará a simples leitura da decisão recorrida, designadamente da motivação da decisão de facto assumida na instância, para se alcançar o processo lógico-formal, o raciocínio efectuado pelo Tribunal “a quo” na ponderação das provas produzidas e privilegiadas na formação da convicção expressa no relato dos factos dados como provados, nomeadamente, dando prevalência às questões jurídicas relativas à legitimidade e legalidade da ordem imanada dos militares da GNR e da forma como a mesma foi transmitida ao arguido, se o momento era o adequado para tal, face à conjuntura decorrente e à proximidade dos factos, nem tão pouco se compreende a urgência de tal notificação quando a morada do arguido era conhecida e seria para eventualmente prestar declarações em momento poterior, não se vislumbrando a emergência da identificação do arguido naquele momento e sem qualquer explicação para a mesma identificação, conforme decorre das regras da experiência comum.
Posto isto, surge como evidente que a não-aceitação, que o recorrente Ministério Público, manifesta relativamente ao modo como o Tribunal “a quo” decidiu a matéria de facto, radica tão só na sua análise pessoal da prova e da sua vontade de a sobrepor à análise levada a cabo por quem tem o poder/dever de a fazer.
Ora, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, a mesma apreciou os factos aportados na acusação nos termos em que os mesmos o permitiam e bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento.
Então do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê, por isso, que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, não se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, como não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e de igual modo não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras de experiência, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.
Por outro lado, conceda-se, a decisão recorrida, como já se afirmou, não deixa de expor, de forma clara e lógica, os motivos que fundamentaram a decisão sobre a matéria de facto, com exame criterioso, das provas que abonaram a decisão, tudo com respeito do disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
A decisão recorrida está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.
O Tribunal “a quo” decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a de forma objectiva e motivada e, portanto, capaz de se impor aos outros.
Em consequência, mantém-se e, sedimentada se mostra, a factualidade assente pelo Tribunal “a quo”, não se vislumbrando na decisão recorrida vício ou nulidade cujo conhecimento oficiosamente ou a requerimento se imponha a este Tribunal “ad quem”.
Por tal improcedem os invocados vícios de contradição insanável da fundamentação ou de erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, bem como não se mostra verificada qualquer nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do Código de Processo Penal ou nos termos dos artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, que não devam considerar-se sanadas.
Improcedendo também nesta parte o Acórdão recorrido.

– Da impugnação da sentença proferida relativamente à matéria de direito, por incorreta subsunção jrídica dos factos no tipo legal de crime de desobediência, previsto no artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal.
Dispõe o artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal, que:
“1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
(…)
b) na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
(…)”
Assim, são elementos objectivos do tipo a ordem ou mandado, a legalidade substancial e formal da ordem ou mandado, a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão e a regularidade da sua transmissão ao destinatário.
A ordem ou mandado têm que se revestir de legalidade substancial, ou seja, têm que se basear numa disposição legal que autorize a sua emissão ou decorrer dos poderes discricionários do funcionário ou autoridade emitente.
Por outro lado, exige-se a legalidade formal que se traduz na exigência de as ordens ou mandados serem emitidos de acordo com as formalidades que a lei estipula para a sua emissão.
Requer-se, ainda, que a autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado tenham competência para o fazer, isto é, que aquilo que pretendam impor caiba na esfera das suas atribuições.
Por fim, os destinatários têm que ter conhecimento da ordem a que ficam sujeitos, o que exige um processo regular e capaz para a sua transmissão, por forma a que aqueles tenham conhecimento do que lhes é imposto ou exigido.
Na ausência de disposição legal que comine, no caso, a punição da desobediência, o preenchimento do tipo só pode verificar-se se houver uma «cominação funcional».
A alínea b) do nº 1 do artigo 348º existe tão-só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza, prevê um comportamento desobediente.
São, afinal, desobediências não tipificadas, a ficarem dependentes, para a sua relevância penal, de uma simples cominação funcional.
Faltar à obediência devida não constitui, por si só, facto criminalmente ilícito.
A dignidade penal da conduta exige que o dever de obediência que se incumpriu, se não tiver a sua fonte numa disposição legal que comine, no caso, a sua punição, como desobediência, radique na cominação da punição da desobediência, feita por autoridade ou funcionário competentes para ditar a ordem.
Resulta de forma explicíta na sentença, e porque clara e muito bem fundamentado, o passamos a transcrever:
no artigo 250º nº 1 do Código de Processo Penal que especifica quem está obrigado a identificar-se: qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção. Como é bom de ver, de acordo com a matéria provada a ora arguida não assumia nenhuma destas qualidades, nem tão pouco pairava qualquer suspeita de que pudesse vir a enquadrar-se numa. Cremos que o legislador foi claro nesta matéria e cuidou de elencar claramente os visados com a identificação tendo estado ao seu critério, querendo, adicionar outros sujeitos; não o tendo feito não poderemos presumir que nesse elenco se incluem pessoas que aí não foram discriminadas, devendo nós, de acordo com os preceitos gerais do direito, concluir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9º nº 3 do Código Civil).
Não podemos também olvidar que a própria Constituição da República Portuguesa parece aludir a entendimento semelhante no artigo 27º nº 2 e 3 al. g) ao referir que "ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança. Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes: g) Detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários”.
Reforçamos, pois, a ideia de que apenas se encontra legitimada a identificação das pessoas nos casos elencados no art. 250º/1 do C.P. Penal. Neste sentido vide, a título de exemplo, os Ac. da Relação de Lisboa de 29-10-1996 (Proc. 0004255) e de 21-05-2020 (Proc. 348/16.2GGSNT.L1-9), bem como os Pareceres do Conselho Consultivo da PGR nº 813 de 31-07-1997 e nº1/2008, disponíveis in www.dgsi.pt.
Fora destas condições restritas ninguém pode ser obrigado a identificar-se.
Ora,
Na situação que nos ocupa, não estávamos, de todo, perante um caso que exigisse qualquer tipo de medida cautelar de policia, de natureza urgente para assegurar meios de prova, nos termos previstos no art. 249º do C.P. Penal. Nem era legitimo aos militares colherem, à partida, informações sobre o aqui arguido AA.
Por outro lado, nunca recaiu sobre o aqui arguido AA qualquer juízo de suspeita da prática de qualquer crime.
O único indicio recolhido nos autos à data da abordagem pelos elementos da GNR é que, eventualmente, teria o mesmo conhecimento, quer de factos que poderiam consubstanciar um eventual crime de ofensas à integridade física ou de violência doméstica como, ao que tudo indicava, da identidade das pessoas envolvidas: vítima e agressor.
Acresce, ainda, que o aqui arguido se encontrava, quando interpelado, no interior da sua residência, num local que constitui a reserva da sua vida privada, e não em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial.
Posto isto, é nosso entendimento que ao arguido não poderia ser legitimamente exigida qualquer identificação. E estamos em crer que tal proibição é bastante clara e resulta, inequivocamente, do texto da lei.
Não poderemos deixar de concluir que existiriam inúmeras outras formas de chegar à sua identidade, conhecido que era o seu local de residência.
E, uma vez apurada a sua identidade, com recurso a outros expedientes de fácil acesso – nomeadamente junto de vizinhos, da EMARP, da EDP ou na sequência de uma pequena vigilância, pela matricula do veículo que eventualmente conduzisse – poderia ser notificado para comparecer nos serviços do Ministério Público ou da GNR a fim de ser inquirido como testemunha e, na eventual falta de comparência, poderiam ser, dentro de toda a legalidade, emitidos mandados de comparência.
(…)
Ora, precisamente em homenagem ao princípio da proporcionalidade, a conduta do arguido teria de assumir uma gravidade compatível com a criminalização através da cominação dos militares da GNR.
Na verdade, não é a mera ausência de uma outra previsão incriminadora que legitima a criminalização da conduta através da cominação de autoridade ou funcionário competente.
Exige-se, antes de mais, que a conduta que está na sua base a justifique materialmente, por imposição do mesmo princípio de intervenção mínima do direito penal, ou da necessidade da pena, e, por conseguinte, da proporcionalidade entre a danosidade social da conduta e a reação (veja-se, neste sentido, o Ac. da Relação de Évora de 29-01-2013, Proc. 393/09.4TALGS.E1).
Aqui chegamos cumpre fazer outra pequena reflexão: após a cominação da recusa com a prática de um crime de desobediência, e quando já se poderia considerar suspeito da prática desse ilícito, não volta a ser solicitada pelos militares a identificação de AA.
Em jeito de resumo, entende o Tribunal que não se mostra preenchido um dos requisitos objectivos essenciais do ilícito imputado ao arguido, ou seja, a existência de uma ordem ou mandado formal e substancialmente legítimos.
Se não há dúvidas que os militares eram funcionários ou autoridades competentes para a sua emissão, já a ordem concretamente dada com a cominação da prática do crime de desobediência carecia de validade substancial, à luz do principio da intervenção mínima do direito penal, consagrado no art. 18º/2 da constituição da República Portuguesa”.
Assim, sem necessidade de outros considerandos por desnecessários, também nesta parte improcede o recurso interposto.

Em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal “ad quem” não pode deixar de julgar improcedente recurso interposto pelo Ministério Público.

Sem custas, por delas estar isento, artigo 522º, nº 1, do Código de Processo Penal.


III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar improcedente, o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se a sentença recorrida.

Sem custas, por delas estar isento, artigo 522º, nº 1, do Código de Processo Penal.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 10-01-2023
Fernando Paiva Gomes M. Pina (Relator) João F. R. Carrola (Adjunto)


Voto de vencido com os seguintes fundamentos:
A questão colocada consiste em saber se a ordem dada pelos militares da GNR, para o arguido se identificar, é “materialmente legítima” (artigo 348º, nº 1, do Código Penal).
O entendimento perfilhado pelo Tribunal de 1.ª Instância e pelo Sr. Desembargador Relator do Acórdão foi no sentido de a ordem de identificação dada pelos militares da GNR não possuir “legitimidade material”, pois:
- O arguido não estava em lugar público (estava à porta da sua casa);
- E não era suspeito da prática de qualquer crime ou contraordenação (cf. artigo 250º, nº 1, do C. P. Penal, e 49º do RGCO).
Na situação em apreciação, ocorrida em 3.4.2021, estava em causa a prática, em momento imediatamente anterior à recusa de identificação, de um eventual crime de violência doméstica (tal foi assim reportado à GNR) perpetrado por um homem sobre uma mulher (puxões de cabelo e apertão de pescoço) ao qual assistiu uma criança com idade aproximada de 6 a 8 anos, sendo ouvidos os gritos da criança e da mulher.
Desses factos foram testemunhas pelo menos duas pessoas (YY e ZZ), vizinhos do arguido AA. O aqui arguido AA assistiu ele próprio aos factos cuja execução - ou o seu começo - decorreu no interior da sua habitação, momentos antes.
Chegada a GNR ao local não foi possível identificar o agressor e a vítima que se haviam ausentado do local, pois os vizinhos não os conheciam, só vindo a ser confirmada a sua identidade no dia 20.4.2021, pois AA interpelado pela GNR não forneceu a identificação do agressor e das vitimas (mulher e criança).
AA, apesar de estar em causa um crime de violência doméstica que afetou não só uma mulher, mas ainda uma criança, que gritavam de forma muito intensa, para além de não ter identificado o agressor, que bem conhecia e sabia tratar-se de XX, recusou-se a fornecer a sua própria identificação aos militares da GNR, com vista a ser inquirido como testemunha, para fornecer às competentes autoridades (policiais e judiciárias) todos os elementos fácticos de que fosse conhecedor.
Tendo em consideração que as normas previstas no artigo 249.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) e 250.º, n.º 8 do CPP têm natureza processual, podem e devem ser interpretadas de forma analógica ou extensível ao regime previsto no artigo 250.º, n.º 1 do CPP tendo em consideração a ordem jurídica considerada no seu conjunto designadamente os artigos 272.º, n.ºs 1 e 2 da CRP, artigos 1.º, n.º 1, 5.º, n.º 1 e 25.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 32.º, n.ºs 1 e 2 da Lei 53/2008 de 29.8, artigo 10.º, n.º 3 e 14.º n.º 2 da Lei 63/2007, artigo 13.º, n.º 1 e 14.º, n.º 2 do DL 297/2009, de 14.10 e artigo 3.º, n.º 1, alínea b) da Lei 49/2008, de 27.8.
Daí “a ordem dada a um cidadão que presenciou um crime” para “que forneça a sua identidade por forma a mais tarde poder eventualmente ser
inquirido como testemunha no respetivo inquérito criminal e no julgamento, insere-se no âmbito do pedido de fornecimento de informações tendentes à descoberta e à conservação de meios de prova, no caso, a testemunhal, que poderiam perder-se” (cf. Acórdão da RE de 25.9.2018, proferido no P. n.º 364/17.7GBABF.E1, relatado por Martinho Cardoso e cujo Adjunta foi Ana Barata Brito)
Tal, aliás como aconteceu no caso, nomeadamente pelo decurso do tempo e da impossibilidade de recolha de evidencias físicas perpetradas sobre a vítima que dezassete dias depois, quando finalmente foi ouvida, desvalorizou a situação ocorrida. Deixando-se naturalmente desprotegida a criança vítima também desta violência exercida sobre a mãe.
Entende-se, pois, em consonância com o referido e na linha do defendido pelo Acórdão desta RE de 25.9.2018, com cuja argumentação se concorda integralmente, que a ordem de identificação dada pela GNR ao arguido foi, legítima (quer formal, quer materialmente), e, por isso, a matéria de facto deveria ter sido alterada ao abrigo do artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP e em consequência o arguido condenado pela prática do crime de desobediência de que vinha acusado (artigo 348º, n.º 1, alínea b) do CP).
Junta-se em anexo ao presente voto de vencido o Acórdão desta RE proferido em 25.9.2018 no processo n.º 364/17.7GBABF.E1, porquanto o mesmo não se mostra disponível para consulta na página da DGSI, e pela sua profundidade se revela relevante, para a compreensão da temática.
Évora, 10-01-2023
Beatriz Marques Borges (Adjunta)