Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
214/15.9T8GDL.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO
FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 05/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não se fundamenta da mesma forma uma decisão de uma contra-ordenação estradal por excesso de velocidade, por exemplo, e uma decisão num procedimento por contra-ordenação ambiental ou por violação de um licenciamento. São realidades de natureza, complexidade e punição – e efeitos na vida dos arguidos – distintas, a exigir diferentes patamares de fundamentação de facto e de direito.
O artigo 374º do C.P.P. não é directamente aplicável às decisões contra-ordenacionais porque essa aplicação é desnecessária. Isto porquanto a norma que rege o formalismo da decisão contra-ordenacional é o artigo 58º do RGCO. E os artigos 374º e 379º do C.P.P. apenas se aplicarão se o caso concreto revelar lacuna de previsão.

Em se tratando de direito estradal, o mesmo tem regime próprio e, neste, norma que regula o conteúdo do auto de notícia, seu valor probatório, assim como o conteúdo da decisão: designadamente os artigos 171º, nº 1, al. b) e nº 3 (auto de notícia e força probatória) e 181º do Código da Estrada (decisão).

Ou seja, não é directamente aplicável o artigo 58º do RGCO, sim o artigo 181º do CE para regular a decisão no caso sub iudicio. Aqui o legislador, reconhecendo a característica de “massa” do ilicito estradal, simplificou ainda mais o teor da decisão contra-ordenacional, algo justificável.

A simples violação de norma estradal, ao assumir a forma negligente - e esta ser sempre sancionada nos ilícitos estradais nos termos do artigo 133º do C.E. – revela a culpa porquanto esta se basta com a violação de um dever objectivo de cuidado que se concretiza na violação da norma estradal, violação de um dever objectivo de cuidado a que estão sujeitos todos os condutores de veículos automóveis.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


A - Relatório:

Por decisão de 20-12-2013 a ANSR ao arguido foi aplicada pela prática de contra-ordenação, a sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motorizados pelo período de 30 dias, nos termos dos artigos 138.º, 140.º, 146.º, al. o), todos do Código da Estrada, e 60.º, n.º 1, e 65.º, al. a), ambos do Regulamento de Sinalização de Trânsito (traço contínuo).
O recorrente veio interpor recurso dessa decisão e o tribunal recorrido, julgando procedente questão prévia de conhecimento oficioso, determinou a nulidade da decisão contra-ordenacional.


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Inconformado com a decisão daquele tribunal, o Digno magistrado do Ministério Público interpôs o presente recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

1.º - Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público da Douta Sentença de fls. 37 a 39, que determinou a nulidade da decisão administrativa e devolução à ANSR para suprir as nulidades invocadas.
2.º - A decisão administrativa havia aplicado ao arguido a sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motorizados pelo período de 30 dias, nos termos dos artigos 138.º, 140.º, 146.º, al. o), todos do Código da Estrada, e 60.º, n.º 1, e 65.º, al. a), ambos do Regulamento de Sinalização de Trânsito, a título de negligência.
3.º - A Mmª Juiz, ao ter entendido que a decisão administrativa não descrevia o elemento subjectivo da contraordenação pela qual o arguido foi condenado, efectuou uma errada interpretação do artigo 15.º do C.P. e do artigo 58.º, n.º 1, do RGCO.
4.º Consta da decisão administrativa o elemento subjectivo da infracção quando se refere que na decisão administrativa a fls. 6, ponto 6, “com a conduta descrita revelou desatenção e irreflectida inobservância das normas de direito rodoviário, actuando com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e que no momento se impunham”, ainda que a localização sistemática se pode considerar como desadequada.
5.º- Acresce que a decisão administrativa contém todos os elementos obrigatórios e previstos no artigo 58.º, n.º 1, do RGCO, contendo a indicação dos arguidos, a descrição dos factos imputados (elementos objectivos e subjectivos constam da decisão conforme acima referido), a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão (existe referências aos meios de prova – auto de notícia - e aos aspectos que serviram para dosear a pena) e a sanção acessória (a coima já havia sido paga), pelo que a Douta Sentença ao ter exigido um nível de fundamentação próximo de uma Sentença Condenatória efectuou uma errada interpretação do disposto no artigo 58.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, do RGCO.
6.º - De facto, resulta da interpretação conjugadas dos referidos normativos previstos nos artigos 58.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, do RGCO um “regime menos “rigoroso” da decisão condenatória da entidade administrativa, quando comparado com as exigências que a lei prescreve para a sentença penal. Havendo impugnação judicial, essencial é que seja submetida à apreciação do julgador uma peça processual que satisfaça os requisitos mínimos duma acusação: identifique o arguido; narre os factos imputados (dessa forma delimitando o objeto do processo); e indique as disposições legais violadas, as sanções aplicáveis e as provas – cfr. art. 283 nº 3 do CPP.” - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de Guimarães de 06.11.2014, processo 720/13.0TBFLG.G1.
7.º - Pelo exposto, ao decidir como decidiu a Douta Sentença recorrida violou o disposto nos artigos 58.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, do RGCO, 138.º, 140.º, 146.º, al. o), todos do Código da Estrada, e 60.º, n.º 1, e 65.º, al. a), ambos do Regulamento de Sinalização de Trânsito, e 15.º, alíneas a) e b), do CP.
8.º - Nesta medida, deve ser revogada a Douta Sentença na parte em que julgou nula a decisão administrativa e, em consequência, ser substituída por despacho que pressuponha que a decisão condenatória da entidade administrativa não padece das nulidades que lhe foram detectadas naquela Sentença e que designe data para realização de Audiência de Julgamento para produção de prova quanto aos factos da acusação e da defesa apresentada pelo recorrente, visto que o arguido nega a autoria dos factos o que inviabiliza a decisão por mero despacho.

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Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido de que deve ser dado provimento ao recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., não tendo havido resposta.


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B - Fundamentação

B.1 – Os factos relevantes são os que constam do relatório, assim como o teor do despacho recorrido.

É o seguinte o teor do despacho recorrido:

«No presente recurso, veio AA impugnar judicialmente a decisão proferida pela ANSR que condenou o recorrente no pagamento de uma coima no valor de 49,88€ e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 30 dias, pela prática de uma contra-ordenação ao disposto no artigo 60°, n." 1, do Regulamento de Sinalização de Trânsito.
Inconformado com aquela decisão, o recorrente apresentou impugnação judicial, pugnando pela nulidade da decisão administrativa.
Questão prévia - da nulidade da decisão administrativa:
Nos termos do artigo 58°, n° 1 do RGCOC, a decisão que aplique a coima e as sanções acessórias deve conter:
a) - A indicação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias
Embora de forma menos intensa, o conteúdo da decisão sancionatória da autoridade administrativa no processo de contra-ordenação aproxima-se da matriz da decisão condenatória em processo penal, nomeadamente no que respeita à enunciação dos factos provados, com indicação das provas obtidas.
A função dos elementos da decisão no procedimento por contra-ordenação consiste, tal como na sentença penal, em permitir, tanto a apreensão externa dos fundamentos, como possibilitar, intraprocessualmente, o controlo da decisão por via de recurso.
A fundamentação da decisão constitui um pressuposto essencial para verificação, simultaneamente, da pertinência e adequação do processo argumentativo e racional que esteve na base da decisão, e uma garantia fundamental dos respectivos destinatários.
Por isso, a decisão que não contenha os elementos nos termos e pelo modo que a lei determina não é prestável para a função processual a que está vinculada - a definição do direito do caso, e consequentemente, é um acto que não suporta todos os elementos necessários à sua validade.
A consequência, no âmbito do processo penal, vem cominada no artigo 379°,. n° 1, alínea a) do Código de Processo Penal (CPP): a nulidade da sentença que não contenha a enumeração dos factos provados e não provados, e a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.
Dada a natureza (sancionatória) do processo por contra-ordenação, os fundamentos da decisão que aplica uma coima (ou outra sanção prevista na lei para uma contra-ordenação) aproximam-na de duma decisão condenatória, mais do que a uma decisão da Administração que contenha um acto administrativo. Por isso, a fundamentação deve participar das exigências da fundamentação de uma decisão penal - na especificação dos factos, na enunciação das provas que os suportam e na indicação precisa das normas violadas.
A fundamentação da decisão deve exercer, também aqui, uma função de legitimação _ interna, para permitir aos interessados conhecer, mais do que reconstituir, os motivos da decisão e o procedimento lógico que determinou a decisão em vista da formulação pelos interessados de um juízo sobre a oportunidade e a viabilidade e os motivos para uma eventual impugnação; e externa, para possibilitar o controlo, por quem nisso tiver interesse, sobre as razões da decisão.
Elementos essenciais da fundamentação de uma decisão sancionatória - a um tempo base e pressuposto de toda a fundamentação e da possibilidade de controlo da própria decisão _ são os factos que forem considerados provados e que constituem a base sine qua da aplicação das normas chamadas a intervir.
A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58°, n° 1 do RGCOC constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efectivo com o adequado conhecimento dos factos imputadas, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.
A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão - sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material - tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não directa quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41 ° do RGCOC sobre "direito subsidiário", que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.
Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contra-ordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374°, n° 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias.
Na verdade, analisada a decisão administrativa constante dos presentes autos, em momento algum é dado como facto provado ou facto não provado o elemento subjectivo da contra-ordenação imputada ao recorrente.
Limita-se assim a entidade administrativa, em sede de medida da coima, em concluir pela desatenção, irreflectida inobservância e manifesta falta de cuidado e de prudência do arguido.
E fá-lo por exclusão de uma actuação dolosa.
A responsabilidade estradal não pode resultar de uma exclusão de partes, nem da análise dos elementos objectivos. Na verdade não existe nenhum acto de inquérito, nenhum acto de instrução, que pudesse dele inferir-se que o recorrente agiu com dolo ou negligência. Os únicos factos provados são os constantes do auto de notícia, por fazer fé, os elementos subjectivos extraem-se daqueles e na decisão pondera-se um registo individual de condutor que não constitui matéria de facto provada, para dele dar uma aparência de observância do disposto no artigo 139°, do Código da Estrada.
No caso, a decisão administrativa recorrida é omissa quanto a factos absolutamente essenciais, concretamente aqueles que, alegadamente, estabelecem o elemento subjectivo (negligência), na medida em que remete exclusivamente para os factos indicados no auto de contra-ordenação e dele nada consta que esteja, directa ou indirectamente, relacionado com a eventual desatenção, irreflectida inobservância e manifesta falta de cuidado e de prudência do recorrente, na condução.
Dessa omissão decorre que a referência a uma alegada actuação negligente consubstancia uma mera conclusão, baseada em presunção que a lei não permite.
A ausência de tais factos impede assim a ponderação dos mesmos na medida da coima a aplicar, não se percebendo, por isso, porque motivo foi aplicada tal coima ou sanção acessória.
Não existe, assim, suporte de facto na decisão da entidade administrativa que permita aplicar aquela coima em concreto.
A sanção para o incumprimento da alínea b) e c) do n. 1 do referido art. 58.° do RGCO é a nulidade da decisão impugnada, nos termos dos arts. 283.°, n. 3, 374.°, n." 2 e 379.°, n. 1, alínea a) do CPP, aplicável subsidiariamente.
Decisão
Face ao exposto, julgo o recurso procedente e, em consequência, determino a nulidade da decisão proferida.
Remeta os autos à entidade administrativa, a fim de suprir as nulidades invocadas».

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B.2 - Cumpre apreciar e decidir.

Não é caso de verificação de qualquer questão que se imponha por oficiosidade.

São questões a abordar no presente recurso a suficiência da fundamentação da decisão contra-ordenacional e a suficiência da matéria de facto.


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B.3.1 – Quanto ao primeiro ponto – suficiência da fundamentação da decisão contra-ordenacional - percebe-se a ideia geral da argumentação do tribunal recorrido, mas discorda-se do resultado obtido e da respectiva justificação, claramente contra-legem porque um “pormenor legislativo” ficou esquecido e as preocupações manifestadas quanto à aptidão da fundamentação olvidam o necessário enquadramento sistemático e a suficiência das normas aplicáveis.

Não esquecemos que se defrontaram duas teses sobre a aplicabilidade dos arts. 374º e 379º do C.P.P. às contra-ordenações, mas apenas porque havia quem – não se apercebendo da natureza autónoma do direito contra-ordenacional e confundisse “fase” administrativa do processo contra-ordenacional com “processo administrativo” (?) contra-ordenacional - defendesse a natureza administrativa da fase em que se insere a decisão administrativa que aplica a coima.

A reacção a tal estranha tese passou pelo apelo propugnando pela imediata aplicação dos artigos 374º e 379º do Código de Processo Penal, por via da remissão do artigo 41º do Regime Geral das Contra-Ordenações.

Nenhuma dessas teses conseguiu um pleno de coerência lógica entre as características formais (fase administrativa do processo) e as substanciais (decisão condenatória em ramo do direito muito “afim” do processo penal, a que acrescem as previsões do nº 10 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) do processo contra-ordenacional.

Ambas laboraram em erro; a primeira por considerar o processo contra-ordenacional como “processo administrativo” na primeira fase do processo, a segunda por olvidar que o artigo 41º do RGCO supõe lacuna, aqui inexistente.

Também não esquecemos que, apesar das diferenças dogmáticas entre o direito penal e o direito contra-ordenacional, se esbatem os contornos de ambos os ramos do direito, designadamente do lado sancionatório, impondo-se, pois, um maior rigor em certos aspectos basilares, nestes avultando os direitos de defesa concretizáveis no teor da decisão condenatória.

Mas haverá que reconhecer que o direito contra-ordenacional não é uno, revelando pelo seu objecto concreto díspares necessidades de fundamentação.

Não se fundamenta da mesma forma uma decisão de uma contra-ordenação estradal por excesso de velocidade, por exemplo, e uma decisão num procedimento por contra-ordenação ambiental ou por violação de um licenciamento. São realidades de natureza, complexidade e punição – e efeitos na vida dos arguidos – distintas, a exigir diferentes patamares de fundamentação de facto e de direito.

Compelir a que todas as decisões contra-ordenacionais tenham o mesmo grau de exigência para diferentes graus de gravidade e exigência é negar a característica de “massa” da maior parte dos procedimentos contra-ordenacionais, estradais por exemplo, e desprezar a gravidade e efeitos graves dos ilicitos ou sanções impostas.

A exigência extrema inviabiliza a aplicabilidade de tal ramo de direito e descura ilícitos menos graves individualmente considerados mas com significado social importante pelo número (pela “massa”); a fundamentação insuficiente, por seu turno, abre as portas ao abuso administrativo sobre o cidadão nos casos de maior gravidade ou mais graves sanções.

A questão reside em saber se o ordenamento vigente acautela tais preocupações.


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B.3.2 – Desde logo impõe-se tornar claro que o artigo 374º do C.P.P. não é directamente aplicável às decisões contra-ordenacionais, porque essa aplicação é desnecessária.

A razão de ser do artigo 41º do RGCO, que prevê o direito subsidiário aplicável às contra-ordenações, é a possibilidade de ocorrer uma lacuna de previsão no regime contra-ordenacional, que no caso sub iudice não ocorre.

Isto porquanto a norma que rege o formalismo da decisão contra-ordenacional é o artigo 58º do RGCO. E aquelas normas do C.P.P apenas se aplicarão se o caso concreto revelar lacuna de previsão.

Como se afirmou já em anterior acórdão (de 26-04-2016, proc. 463/15.0T8STC.E1) “o aumento exponencial de intromissões do Estado-Administração na vida social e económica modificou o olhar sobre ilícitos de vária origem (os administrativos, por exemplo) e esse aumento de “massa” ilícita que deveria ser rapidamente decidida, chocando com as necessidades de acautelar minimamente os interesses dos administrados, levou à criação de um direito “novo” que se pretendia mais expedito e com decisão sedeada em entidades várias de carácter administrativo, mas com consagração de direitos – uns “minimum rights” - à imagem processual penal.

Mas essa “imagem” processual penal não é, não pode ser, sob pena de se negar a sua própria existência por inutilidade, uma cópia do processo penal. Se o processo contra-ordenacional deve ser “igual” ao processo penal por que razão existe aquele?

Assim, a previsão do artigo 58.º do RGCO é norma suficiente para reger a forma e a substância da decisão contra-ordenacional em geral quando prevê a necessidade de “fundamentação da decisão” na al. c) do seu nº 1, devendo essa fundamentação entender-se de facto e de direito.

Aliás, as alíneas b) e c) desse normativo contêm regulamentação bastante quanto aos dois pontos sobre que versa o recurso, “a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas” e “a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão”.

E bastaria esta previsão para se entenderem cumpridos os mínimos no assegurar de direitos do arguido, pois que não é necessária abundante fundamentação para aceitar como assente e fundamentado o ultrapassar de um traço contínuo. Entende-se, pois, que a previsão do artigo 58º do Regime Geral das Contra-Ordenações contém as balizas de segurança que permitem assegurar as preocupações do legislador constituinte, designadamente o assegurar dos direitos de defesa do recorrente.

Assim, a suficiência da fundamentação de uma decisão contra-ordenacional é matéria de casuística, dependente da natureza e complexidade do caso concreto e revelar-se-á pela leitura da decisão que estiver em causa. Não é seguramente uma exigência abstracta aplicável a todos os casos contra-ordenacionais em função das exigências do processo penal. Essas exigências aproximar-se-ão do modelo processual penal nos casos de extrema complexidade factual, gravidade punitiva e reflexos na vida do cidadão.

O que não é o caso dos autos.

Mas olvidou-se o tal “pormenor legislativo”. Que, em se tratando de direito estradal, o mesmo tem regime próprio e, neste, norma que regula o conteúdo do auto de notícia, seu valor probatório, assim como o conteúdo da decisão: designadamente os artigos 171º, nº 1, al. b) e nº 3 (auto de notícia e força probatória) e 181º do Código da Estrada (decisão).

Ou seja, não é directamente aplicável o artigo 58º do RGCO, sim o artigo 181º do CE para regular a decisão no caso sub iudicio. Aqui o legislador, reconhecendo a característica de “massa” do ilicito estradal, simplificou ainda mais o teor da decisão contra-ordenacional, algo perfeitamente justificável.

Isto é, o artigo 58º RGCO é norma subsidiária do artigo 181º do CE.

E na decisão a entidade administrativa aponta os elementos exigíveis, incluindo os factos provados e as razões que a tal conduziram. Ou seja, a decisão não sofre de ausência de fundamentação e o tribunal recorrido caiu em claro erro de direito.


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B.4 – Afirma a decisão recorrida que não se pode ter como suficientemente demonstrado o elemento subjectivo da infracção. A questão é, assim, exclusivamente, a de determinar se o elemento subjectivo, designadamente a negligência, está devidamente inserido nos factos provados.

Não se afirma que o elemento subjectivo do tipo contra-ordenacional não é elemento de peso, sob pena de se ter que afirmar que o regime contra-ordenacional prescinde da culpa, o que nos levaria a afiançar ter o legislador errado ao ter consagrado a culpa de forma tão ostensiva nos artigos 1º, 8º a 11º, 18º do Dec-Lei nº 433/82, entre outros, e de estar equivocada a dogmática.

Assim, torna-se necessário que a decisão da entidade administrativa não omita, em sede factual, o elemento integrante da culpa. Resta saber se, em concreto, o fez.

A resposta não pode deixar de positiva, desde logo pela simples circunstância de a culpa aqui em jogo assumir a forma negligente e esta ser sempre sancionada nos ilícitos estradais – artigo 133º do C.E. – depois porquanto esta se basta pela violação de um dever objectivo de cuidado que, no caso, se concretiza na violação da norma estradal.

É sabido que a culpa se traduz num juízo de censura ao agente por não ter adoptado um comportamento conforme a um dever que podia e devia ter tido. Culpa essa que deve ser aferida pelos cuidados exigíveis a um homem médio colocado na posição do agente e que pode ser mera consequência da violação de uma norma estradal, na medida em que consubstancia a violação de um dever objectivo de cuidado a que estão sujeitos todos os condutores de veículos automóveis.

Ora, essa factualidade está ínsita no facto provado que se indica, como bem observado pelo Digno magistrado recorrente:

com a conduta descrita revelou desatenção e irreflectida inobservância das normas de direito rodoviário, actuando com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e que no momento se impunham, agindo de forma livre e consciente.

E tanto basta que se conclua que o elemento subjectivo da infracção se entenda preenchido e inserido na matéria de facto com que o recorrente foi confrontado e cumpridas as exigências que decorrem da previsão do nº 10 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.

Por tudo, o recurso deve proceder.

Apenas se esclarece que, tendo o arguido impugnado judicialmente a decisão administrativa e indicado duas testemunhas para serem inquiridas em audiência de julgamento, acabou por aceitar que o tribunal recorrido decidisse por despacho, prescindindo, dessa forma, da inquirição das testemunhas.

Sendo este recurso procedente isso implica, naturalmente, a repristinação in totum da decisão da ANSR, pelo que a anuência do arguido em sede de impugnação judicial tem como efeito necessário, a exequibilidade daquela decisão.


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C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em declarar procedente o recurso interposto, repristinando-se a decisão da ANSR.

Sem tributação. Notifique.

Évora, 10 de Maio de 2016

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

António Condesso