Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO GOMES DE SOUSA | ||
Descritores: | CONTRA-ORDENAÇÃO DECISÃO FUNDAMENTAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 05/10/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | Não se fundamenta da mesma forma uma decisão de uma contra-ordenação estradal por excesso de velocidade, por exemplo, e uma decisão num procedimento por contra-ordenação ambiental ou por violação de um licenciamento. São realidades de natureza, complexidade e punição – e efeitos na vida dos arguidos – distintas, a exigir diferentes patamares de fundamentação de facto e de direito. O artigo 374º do C.P.P. não é directamente aplicável às decisões contra-ordenacionais porque essa aplicação é desnecessária. Isto porquanto a norma que rege o formalismo da decisão contra-ordenacional é o artigo 58º do RGCO. E os artigos 374º e 379º do C.P.P. apenas se aplicarão se o caso concreto revelar lacuna de previsão. Em se tratando de direito estradal, o mesmo tem regime próprio e, neste, norma que regula o conteúdo do auto de notícia, seu valor probatório, assim como o conteúdo da decisão: designadamente os artigos 171º, nº 1, al. b) e nº 3 (auto de notícia e força probatória) e 181º do Código da Estrada (decisão). Ou seja, não é directamente aplicável o artigo 58º do RGCO, sim o artigo 181º do CE para regular a decisão no caso sub iudicio. Aqui o legislador, reconhecendo a característica de “massa” do ilicito estradal, simplificou ainda mais o teor da decisão contra-ordenacional, algo justificável. A simples violação de norma estradal, ao assumir a forma negligente - e esta ser sempre sancionada nos ilícitos estradais nos termos do artigo 133º do C.E. – revela a culpa porquanto esta se basta com a violação de um dever objectivo de cuidado que se concretiza na violação da norma estradal, violação de um dever objectivo de cuidado a que estão sujeitos todos os condutores de veículos automóveis. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório: Por decisão de 20-12-2013 a ANSR ao arguido foi aplicada pela prática de contra-ordenação, a sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motorizados pelo período de 30 dias, nos termos dos artigos 138.º, 140.º, 146.º, al. o), todos do Código da Estrada, e 60.º, n.º 1, e 65.º, al. a), ambos do Regulamento de Sinalização de Trânsito (traço contínuo). *** Inconformado com a decisão daquele tribunal, o Digno magistrado do Ministério Público interpôs o presente recurso, tendo formulado as seguintes conclusões: 1.º - Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público da Douta Sentença de fls. 37 a 39, que determinou a nulidade da decisão administrativa e devolução à ANSR para suprir as nulidades invocadas. * Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido de que deve ser dado provimento ao recurso. Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., não tendo havido resposta. * B - Fundamentação B.1 – Os factos relevantes são os que constam do relatório, assim como o teor do despacho recorrido. É o seguinte o teor do despacho recorrido: «No presente recurso, veio AA impugnar judicialmente a decisão proferida pela ANSR que condenou o recorrente no pagamento de uma coima no valor de 49,88€ e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 30 dias, pela prática de uma contra-ordenação ao disposto no artigo 60°, n." 1, do Regulamento de Sinalização de Trânsito. * B.2 - Cumpre apreciar e decidir. Não é caso de verificação de qualquer questão que se imponha por oficiosidade. São questões a abordar no presente recurso a suficiência da fundamentação da decisão contra-ordenacional e a suficiência da matéria de facto. * B.3.1 – Quanto ao primeiro ponto – suficiência da fundamentação da decisão contra-ordenacional - percebe-se a ideia geral da argumentação do tribunal recorrido, mas discorda-se do resultado obtido e da respectiva justificação, claramente contra-legem porque um “pormenor legislativo” ficou esquecido e as preocupações manifestadas quanto à aptidão da fundamentação olvidam o necessário enquadramento sistemático e a suficiência das normas aplicáveis. Não esquecemos que se defrontaram duas teses sobre a aplicabilidade dos arts. 374º e 379º do C.P.P. às contra-ordenações, mas apenas porque havia quem – não se apercebendo da natureza autónoma do direito contra-ordenacional e confundisse “fase” administrativa do processo contra-ordenacional com “processo administrativo” (?) contra-ordenacional - defendesse a natureza administrativa da fase em que se insere a decisão administrativa que aplica a coima. A reacção a tal estranha tese passou pelo apelo propugnando pela imediata aplicação dos artigos 374º e 379º do Código de Processo Penal, por via da remissão do artigo 41º do Regime Geral das Contra-Ordenações. Nenhuma dessas teses conseguiu um pleno de coerência lógica entre as características formais (fase administrativa do processo) e as substanciais (decisão condenatória em ramo do direito muito “afim” do processo penal, a que acrescem as previsões do nº 10 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) do processo contra-ordenacional. Ambas laboraram em erro; a primeira por considerar o processo contra-ordenacional como “processo administrativo” na primeira fase do processo, a segunda por olvidar que o artigo 41º do RGCO supõe lacuna, aqui inexistente. Também não esquecemos que, apesar das diferenças dogmáticas entre o direito penal e o direito contra-ordenacional, se esbatem os contornos de ambos os ramos do direito, designadamente do lado sancionatório, impondo-se, pois, um maior rigor em certos aspectos basilares, nestes avultando os direitos de defesa concretizáveis no teor da decisão condenatória. Mas haverá que reconhecer que o direito contra-ordenacional não é uno, revelando pelo seu objecto concreto díspares necessidades de fundamentação. Não se fundamenta da mesma forma uma decisão de uma contra-ordenação estradal por excesso de velocidade, por exemplo, e uma decisão num procedimento por contra-ordenação ambiental ou por violação de um licenciamento. São realidades de natureza, complexidade e punição – e efeitos na vida dos arguidos – distintas, a exigir diferentes patamares de fundamentação de facto e de direito. Compelir a que todas as decisões contra-ordenacionais tenham o mesmo grau de exigência para diferentes graus de gravidade e exigência é negar a característica de “massa” da maior parte dos procedimentos contra-ordenacionais, estradais por exemplo, e desprezar a gravidade e efeitos graves dos ilicitos ou sanções impostas. A exigência extrema inviabiliza a aplicabilidade de tal ramo de direito e descura ilícitos menos graves individualmente considerados mas com significado social importante pelo número (pela “massa”); a fundamentação insuficiente, por seu turno, abre as portas ao abuso administrativo sobre o cidadão nos casos de maior gravidade ou mais graves sanções. A questão reside em saber se o ordenamento vigente acautela tais preocupações. * B.3.2 – Desde logo impõe-se tornar claro que o artigo 374º do C.P.P. não é directamente aplicável às decisões contra-ordenacionais, porque essa aplicação é desnecessária. A razão de ser do artigo 41º do RGCO, que prevê o direito subsidiário aplicável às contra-ordenações, é a possibilidade de ocorrer uma lacuna de previsão no regime contra-ordenacional, que no caso sub iudice não ocorre. Isto porquanto a norma que rege o formalismo da decisão contra-ordenacional é o artigo 58º do RGCO. E aquelas normas do C.P.P apenas se aplicarão se o caso concreto revelar lacuna de previsão. Como se afirmou já em anterior acórdão (de 26-04-2016, proc. 463/15.0T8STC.E1) “o aumento exponencial de intromissões do Estado-Administração na vida social e económica modificou o olhar sobre ilícitos de vária origem (os administrativos, por exemplo) e esse aumento de “massa” ilícita que deveria ser rapidamente decidida, chocando com as necessidades de acautelar minimamente os interesses dos administrados, levou à criação de um direito “novo” que se pretendia mais expedito e com decisão sedeada em entidades várias de carácter administrativo, mas com consagração de direitos – uns “minimum rights” - à imagem processual penal. Mas essa “imagem” processual penal não é, não pode ser, sob pena de se negar a sua própria existência por inutilidade, uma cópia do processo penal. Se o processo contra-ordenacional deve ser “igual” ao processo penal por que razão existe aquele?” Assim, a previsão do artigo 58.º do RGCO é norma suficiente para reger a forma e a substância da decisão contra-ordenacional em geral quando prevê a necessidade de “fundamentação da decisão” na al. c) do seu nº 1, devendo essa fundamentação entender-se de facto e de direito. Aliás, as alíneas b) e c) desse normativo contêm regulamentação bastante quanto aos dois pontos sobre que versa o recurso, “a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas” e “a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão”. E bastaria esta previsão para se entenderem cumpridos os mínimos no assegurar de direitos do arguido, pois que não é necessária abundante fundamentação para aceitar como assente e fundamentado o ultrapassar de um traço contínuo. Entende-se, pois, que a previsão do artigo 58º do Regime Geral das Contra-Ordenações contém as balizas de segurança que permitem assegurar as preocupações do legislador constituinte, designadamente o assegurar dos direitos de defesa do recorrente. Assim, a suficiência da fundamentação de uma decisão contra-ordenacional é matéria de casuística, dependente da natureza e complexidade do caso concreto e revelar-se-á pela leitura da decisão que estiver em causa. Não é seguramente uma exigência abstracta aplicável a todos os casos contra-ordenacionais em função das exigências do processo penal. Essas exigências aproximar-se-ão do modelo processual penal nos casos de extrema complexidade factual, gravidade punitiva e reflexos na vida do cidadão. O que não é o caso dos autos. Mas olvidou-se o tal “pormenor legislativo”. Que, em se tratando de direito estradal, o mesmo tem regime próprio e, neste, norma que regula o conteúdo do auto de notícia, seu valor probatório, assim como o conteúdo da decisão: designadamente os artigos 171º, nº 1, al. b) e nº 3 (auto de notícia e força probatória) e 181º do Código da Estrada (decisão). Ou seja, não é directamente aplicável o artigo 58º do RGCO, sim o artigo 181º do CE para regular a decisão no caso sub iudicio. Aqui o legislador, reconhecendo a característica de “massa” do ilicito estradal, simplificou ainda mais o teor da decisão contra-ordenacional, algo perfeitamente justificável. Isto é, o artigo 58º RGCO é norma subsidiária do artigo 181º do CE. E na decisão a entidade administrativa aponta os elementos exigíveis, incluindo os factos provados e as razões que a tal conduziram. Ou seja, a decisão não sofre de ausência de fundamentação e o tribunal recorrido caiu em claro erro de direito. * B.4 – Afirma a decisão recorrida que não se pode ter como suficientemente demonstrado o elemento subjectivo da infracção. A questão é, assim, exclusivamente, a de determinar se o elemento subjectivo, designadamente a negligência, está devidamente inserido nos factos provados. Não se afirma que o elemento subjectivo do tipo contra-ordenacional não é elemento de peso, sob pena de se ter que afirmar que o regime contra-ordenacional prescinde da culpa, o que nos levaria a afiançar ter o legislador errado ao ter consagrado a culpa de forma tão ostensiva nos artigos 1º, 8º a 11º, 18º do Dec-Lei nº 433/82, entre outros, e de estar equivocada a dogmática. Assim, torna-se necessário que a decisão da entidade administrativa não omita, em sede factual, o elemento integrante da culpa. Resta saber se, em concreto, o fez. A resposta não pode deixar de positiva, desde logo pela simples circunstância de a culpa aqui em jogo assumir a forma negligente e esta ser sempre sancionada nos ilícitos estradais – artigo 133º do C.E. – depois porquanto esta se basta pela violação de um dever objectivo de cuidado que, no caso, se concretiza na violação da norma estradal. É sabido que a culpa se traduz num juízo de censura ao agente por não ter adoptado um comportamento conforme a um dever que podia e devia ter tido. Culpa essa que deve ser aferida pelos cuidados exigíveis a um homem médio colocado na posição do agente e que pode ser mera consequência da violação de uma norma estradal, na medida em que consubstancia a violação de um dever objectivo de cuidado a que estão sujeitos todos os condutores de veículos automóveis. Ora, essa factualidade está ínsita no facto provado que se indica, como bem observado pelo Digno magistrado recorrente: “com a conduta descrita revelou desatenção e irreflectida inobservância das normas de direito rodoviário, actuando com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e que no momento se impunham, agindo de forma livre e consciente.” E tanto basta que se conclua que o elemento subjectivo da infracção se entenda preenchido e inserido na matéria de facto com que o recorrente foi confrontado e cumpridas as exigências que decorrem da previsão do nº 10 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa. Por tudo, o recurso deve proceder. Apenas se esclarece que, tendo o arguido impugnado judicialmente a decisão administrativa e indicado duas testemunhas para serem inquiridas em audiência de julgamento, acabou por aceitar que o tribunal recorrido decidisse por despacho, prescindindo, dessa forma, da inquirição das testemunhas. Sendo este recurso procedente isso implica, naturalmente, a repristinação in totum da decisão da ANSR, pelo que a anuência do arguido em sede de impugnação judicial tem como efeito necessário, a exequibilidade daquela decisão. * C - Dispositivo: Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em declarar procedente o recurso interposto, repristinando-se a decisão da ANSR. Sem tributação. Notifique. Évora, 10 de Maio de 2016 (Processado e revisto pelo relator)
João Gomes de Sousa
António Condesso |