Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2158/19.6T8STR.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: ENERGIA ELÉCTRICA
FACTO ILÍCITO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 02/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Resulta do disposto no artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26-07, que este prazo de prescrição apenas se aplica para situações em que esteja em vigor um contrato de prestação de serviços e relativamente à falta de pagamento do preço cobrado pelo serviço prestado.
II – Estando em causa uma situação de inexistência de contrato de fornecimento de energia elétrica a favor da instalação da Ré, o consumo de energia elétrica ocorrida não gera, por isso, qualquer obrigação de pagamento de um preço contratado, antes sim, uma obrigação de indemnização pela prática de um comportamento ilícito gerador de prejuízo.
III – Tendo resultado provado que a Ré se apropriou, consumindo-a, de energia elétrica pertencente à Autora, sem o seu consentimento e contra a sua vontade, agindo com o conhecimento e a vontade de atuar desse modo, o facto ilícito imputado à Ré subsume-se à previsão legal do crime de furto.
IV – Nos termos conjugados dos artigos 498.º, n.º 3, do Código Civil, 203.º, n.º 1 e 118.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal, o prazo de prescrição é, por isso, de cinco anos.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2158/19.6T8STR.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
“EDP Distribuição – Energia, S.A.” (Autora) intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra … (Ré), solicitando, a final, que a ação seja julgada procedente, por provada, devendo, em consequência, ser a Ré condenada no pagamento à Autora da quantia de € 10.017,97, a título de danos patrimoniais, acrescida da quantia relativa aos juros de mora vincendos até integral e efetivo pagamento.
Para o efeito, alegou, em síntese, que a Ré manteve um contrato de fornecimento de energia elétrica, no período compreendido entre 02-08-2013 e 16-07-2014, celebrado com o comercializador a operar em mercado liberalizado “EDP Comercial – Comercialização de Energia S.A.”, tendo, em 27-05-2014, esse comercializador submetido à Autora o pedido de interrupção do fornecimento de energia elétrica à Ré, pelo que, em 03-06-2014, foi levado a cabo o corte de fornecimento de energia elétrica à instalação da Ré.
Mais alegou que, em 14-06-2014, o referido comercializador solicitou o pedido de denúncia de contrato, o qual determinou que a energia fosse definitivamente desligada naquela instalação, em virtude da cessação do contrato de fornecimento de energia elétrica, tendo, posteriormente, sido celebrado um novo contrato de fornecimento de energia elétrica entre o mesmo comercializador e a Ré, com início em 07-01-2016, pelo que inexistiu, para aquela instalação, contrato de fornecimento de energia elétrica entre 17-07-2014 e 06-01-2016.
Alegou igualmente que, no âmbito de cinco ordens de serviço, emitidas entre 31-07-2015 e 06-01-2016, equipas técnicas da Autora deslocaram-se ao local de consumo da Ré, tendo, em todas essas deslocações, verificado que a instalação se encontrava ligada à rede de distribuição de energia elétrica, sem a existência de um contrato de fornecimento para o efeito, pelo que tal energia elétrica estava a ser consumida ilicitamente, não sendo faturada por qualquer comercializador, consubstanciando, por isso, uma apropriação indevida de eletricidade para o utilizador da instalação, que a consumia sem pagar o respetivo preço.
Alegou também que a Ré, entre 17-07-2014 e 06-01-2016, agiu e pretendeu com a sua conduta a obtenção de um benefício económico ilícito, que se traduziu na apropriação de energia elétrica da rede de distribuição, no valor de € 9.480,07, sem que tivesse procedido ao respetivo pagamento, ao qual acresce o valor da potência indevidamente tomada no valor de € 467,20, a que acresce a quantia de € 70,70 respeitante a encargos administrativos.
Por fim, alegou que, tendo a Ré agido com dolo, os factos referidos integram a prática de um crime de furto, p. e p. pelos artigos 203.º, 204.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, devendo a Autora ser indemnizada nos termos do art. 483.º e seguintes do Código Civil.
A Ré (…) apresentou contestação, solicitando, a final, a sua absolvição por se verificar a exceção perentória de prescrição ou, caso assim se não entenda, por se julgar improcedente, por não provada, a presente ação.
Para o efeito, alegou, em síntese, que, aplicando-se à presente situação o prazo de 3 anos previsto no artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil, tendo a Autora conhecimento destes factos desde 31-07-2015, mediaram, entre os mesmos e a citação da Ré, mais de 4 anos, pelo que deve ser declarada a exceção perentória da prescrição e a Ré ser absolvida do pedido.
Mais alegou que, dada a atividade da Autora, as quantias reclamadas só o poderiam ser a título de consumos de energia, pelo que o direito a reclamar consumos de serviços públicos prescreve ao fim de seis meses após o respetivo consumo, nos termos do artigo 10.º, nºs. 1 e 4, da Lei n.º 23/96, de 26-06, ou seja, já se mostra prescrito.
Alegou, por fim, que nunca houve interrupção de fornecimento de energia na sua instalação, nunca tendo a Ré pretendido obter um benefício económico ilícito que se traduzisse na apropriação de energia elétrica da rede de distribuição sem efetuar qualquer pagamento, nem nunca deixou de pagar todas as faturas que lhe foram apresentadas pela EDP durante o período em causa, pelo que não é verdade que a Ré tenha praticado qualquer ilícito, não se mostrando, assim, preenchidos os requisitos para a responsabilidade por factos ilícitos.
A Autora “EDP Distribuição – Energia, S.A.”, em resposta às exceções da prescrição, veio pugnar pela sua improcedência.
Em síntese, alegou que o prazo de prescrição a aplicar é o constante do artigo 498.º, n.º 3, do Código Civil, uma vez que está em causa uma ligação ilícita à rede de distribuição de energia elétrica, sem a existência de um contrato de fornecimento para o efeito, o que causou à Autora prejuízos no montante de € 10.017,97, factualidade essa que preenche os elementos do tipo de crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 204.º, n.º 1, alínea a) e 202.º, ambos do Código Penal, pelo que o prazo de prescrição é de 10 anos.
Concluiu ainda que não é de aplicar o prazo de prescrição previsto no artigo 10.º, nºs. 1 e 4, da Lei n.º 23/96, de 26-07, visto que tal disposição se aplica aos consumidores lícitos, ou seja, que tenham um contrato válido de fornecimento de energia elétrica.
Realizada a audiência prévia, não foi possível a conciliação das partes, tendo sido proferido despacho saneador, no qual foi fixado o valor da ação em € 10.017,97 e identificados o objeto do litígio e os temas da prova.
Realizado o julgamento de acordo com as formalidades legais, foi proferida sentença em 05-07-2021, com o seguinte teor:
Em face dos fundamentos expostos, julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência, decido:
a) Condenar a Ré (…) a pagar à Autora EDP Distribuição Energia, S.A., com a atual designação de E-Redes – Distribuição de Eletricidade, SA, a quantia de € 9.947,27 (nove mil, novecentos e quarenta e sete euros e vinte e sete cêntimos), a que acrescem juros de mora à taxa de 4%, desde a citação, até efetivo e integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado;
b) Custas pela Ré (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
*
Fixo o valor da ação em € 10.017,97 (dez mil e dezassete euros e noventa e sete cêntimos), nos termos dos artigos 296.º, n.º 1, 297.º, nºs 1 e 2, 299.º, n.º 1 e 306.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.
Inconformada com a sentença, a Ré (…) interpôs recurso, apresentado as seguintes conclusões:
Andou mal o Tribunal a quo na sentença ora em crise, que julgou parcialmente procedente a acção interposta pela Recorrida EDP Distribuição de Energia, SA, com a atual designação de E-REDES – Distribuição de Electricidade, S.A. e, que condenou a ora Recorrente no pagamento da quantia de € 9.947,27 e custas da ação, erradamente com fundamento em responsabilidade civil e errada aplicação do artigo 498.º, n.º 3, do Código Civil Português, números 1 e 4 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho e Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro.
A Recorrente entende que se verifica a excepção perentória de prescrição, porquanto se aplica o vertido no artigo 498.º do Código Civil Português que dispõe que “o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete” e que in casu mediaram mais de 4 anos entre a data do conhecimento da alegada infracção e a citação para a acção, cuja decisão ora se questiona.
E está convicta de que a reclamação de danos patrimoniais a título de responsabilidade civil, alegadamente extracontratual consubstanciam uma forma dissimulada de reclamar o pagamento de consumos de energia, cujo direito de reclamar prescreve ao fim de seis meses após o respectivo consumo, conforme decorre do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho que cria no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais e que nos presentes autos foi integralmente desconsiderada, tendo também esse prazo sido naturalmente ultrapassado.
A verdade é que a Recorrida, por motivo que se desconhece, não foi diligente na cobrança dos alegados consumos e acções de verificação, incumprindo todos os procedimentos a que estava obrigada.
Na sentença ora em crise, o Tribunal a quo entende que a excepção perentória improcede, em virtude de se aplicar o prazo de prescrição mais longo, visto, em seu entender o alegado facto voluntário danoso assumido pela Recorrente consubstanciar um crime de furto, cujo prazo de prescrição é de 5 anos, sem existir qualquer prova da ocorrência do mencionado facto voluntário danoso, o qual, com o devido respeito, consubstancia um elemento essencial e sem atender ao disposto no Decreto-lei n.º 328/90, de 22 de Outubro, que concretiza a violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica.
E, entende a Recorrente que a norma contemplada no n.º 3 do artigo 498.º do CC assume natureza excepcional, pelo que a Recorrida, para beneficiar do mais longo prazo de prescrição, teria de alegar e demonstrar, em concreto, que o facto, além de constituir ilícito civil poderia subsumir-se a um ilícito criminal. Neste sentido, cfr. AC. Da Relação do Porto de 15.04.1996, in BMJ, 456.º- 494: "Ao propor uma acção cível de indemnização para além do prazo regra de prescrição constante do n.º 1 do art.º 498.º do Código Civil, o autor, para poder beneficiar do prazo alargado da prescrição do procedimento criminal, deve alegar e provar factos integrantes do ilícito criminal que fundamenta o pedido de indemnização, não sendo legalmente exigível a prova de que está ou foi instaurado processo crime, nem de qual foi a posição que assumiu como sujeito nesse processo.
Com efeito, o que pode conduzir a que o autor beneficie do prazo prescricional mais alargado previsto no n.º 3 do art. 498º do CC, estando a factualidade por ele alegada devidamente impugnada, é a prova dessa mesma factualidade, e não a simples alegação, o que no caso em apreço não sucedeu.
E o Douto Tribunal pode verificar se a Recorrida na sua petição inicial alegou e provou, como lhe competia, matéria de facto integradora de algum tipo de crime, de modo que se possa concluir da verificação ou não da excepção invocada.
Em nosso entender, tal não aconteceu! Porquanto a Recorrida não alegou nem logrou demonstrar que a Recorrente violou o contrato de fornecimento de energia elétrica através qualquer procedimento fraudulento suscetível de falsear a medição da energia elétrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação; por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra dos selos ou por violação dos fechos, ou fechaduras, nos termos do ignorado Decreto-lei n.º 328/90, de 22 de outubro.
Não ficou provado que a Recorrente usou de quaisquer meios, manuseou ou interferiu no aparelho de medição de energia eléctrica, que – sempre se diga se encontra fora da propriedade e na via pública, conforme resultou provado nos autos, nem era impossível facturar ou contabilizar qualquer consumo, visto as testemunhas serem unânimes quanto à integridade do aparelho de medição.
Conclui-se, assim, que o Tribunal a quo, ao decidir pela improcedência da exceção peremtória de prescrição, não só fez a errada aplicação do Direito aplicável, nomeadamente do artigo 498.º, n.º 3, do CC, como também ignorou o disposto no artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, apesar da lei considerar o fornecimento de energia elétrica um bem essencial, sujeitando-o a regras especiais, destinada a proteger justamente os seus consumidores.
E, sendo este um ato ilícito, a sua deteção e punição está prevista no Decreto Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, que estabelece diversas medidas tendentes a evitar o consumo fraudulento de energia elétrica, entre as quais, sempre que haja indícios ou suspeita da prática de qualquer procedimento fraudulento, o distribuidor poderá proceder à inspeção da respetiva instalação elétrica, através de um técnico, entre as 10 e as 18 horas, o qual poderá, quando o julgar conveniente, solicitar a presença das autoridades competentes. E, no limite, proceder ao corte de fornecimento de energia elétrica, caso o consumidor não permita a referida inspeção. No entanto, constata-se que também tudo isto foi ignorado pelo Tribunal a quo e sempre se deverá dizer que não aconteceu!
A verdade é que o Tribunal a quo desconsiderou, ainda e por completo, o disposto no mencionado diploma legal no que respeita aos procedimentos em caso de indícios ou se suspeite da prática de qualquer procedimento fraudulento, que manifestamente não foi promovido, como resulta da simples leitura da matéria dada como provada e dos documentos que referem claramente que o cliente esteve sempre ausente nas visitas e como foi confirmado por todas as testemunhas!
Do mencionado diploma, resulta ainda que o distribuidor poderá a) Interromper o fornecimento de energia elétrica, selando a respectiva entrada; e b) Ser ressarcido do valor do consumo irregularmente feito e das despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude e dos juros que estiverem estabelecidos para as dívidas activas do distribuidor, caso da inspeção se concluir pela existência de violação do contrato de fornecimento de energia elétrica por fraude imputável ao consumidor, o que não aconteceu no caso em apreço.
Em suma, o Tribunal a quo ignorou quase por completo todo o regime legal aplicável, in casu – o Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, que estabelece diversas medidas tendentes a evitar o consumo fraudulento de energia eléctrica.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, consequentemente, a sentença proferida pela 1.ª instância ser revogada por verificação da excepção peremptória de prescrição.
A Autora “EDP Distribuição – Energia, S.A.” contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. Vem a Recorrente apresentar alegações de recurso, formulando umas conclusões manifestamente extensas, prolixas, e maioritariamente cópia, ipsis verbis, do corpo das alegações, face ao ónus de formular conclusões que vem prescrito no artigo 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
2. Ainda, a Recorrente, em sede de Alegações de Recurso, impugna abstractamente a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo, sem especificar os concretos pontos de facto e os meios probatórios que considerou incorrectamente julgados, como exige o disposto no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), o que implica a rejeição imediata das mesmas, o que se impõe e requer.
Sem prescindir,
3. A douta sentença a quo não padece de qualquer vício, devendo manter-se inalterada.
4. O Tribunal a quo norteou-se pelo princípio da livre apreciação da prova e pelas regras da experiência comum, associadas ao Direito aplicável ao caso, procedendo à avaliação global da prova produzida, numa perspetiva crítica, que registou de uma forma escorreita e proficiente, segundo critérios de razoabilidade, não merecendo, consequentemente, qualquer censura.
5. Porquanto a mesma procede a uma correta delimitação da factualidade subjacente aos presentes autos.
6. Bem como à correta subsunção jurídica das sub judice.
7. Tal factualidade dada como provada, invocada pela A. em sede de Petição Inicial e em resposta às excepções no exercício do contraditório, permite concluir que não só estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, como tais factos consubstanciam e preenchem o tipo legal do crime de furto, previsto e punido pelo 203.º, n.º 1, do Código Penal.
8. Aplicando-se, assim, o alongamento do prazo de prescrição previsto no artigo 498.º, n.º 3, do Código Civil.
9. No que respeita à Lei n.º 23/96, no seu artigo 10.º, n.º 1, decorre a sua inaplicabilidade porquanto não está em causa o pagamento do preço por um serviço prestado, nem uma rectificação de valores de consumo, mas sim uma quantia reclamada a título de indemnização pelos danos causados pela Ré à Autora.
10. Quanto à invocação pela Ré do regime do DL n.º 328/90, concretamente os artigos 2.º e 3.º, em sede de alegações de recurso, cumpre referir que o mesmo não foi invocado em sede de contestação, pelo que precludiu a possibilidade de o deduzir agora em sede de recurso.
11. Segundo o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13-05-2021, Processo 2422/19.4T8AGD.P1 “O recurso não é, pois, nem o local nem a altura consentida para ampliar ou modificar o objecto da lide ou da defesa, o objecto daquilo que pode ser decidido pelo tribunal, seja em 1.ª instância, seja em sede de recurso.”
12. Devendo, assim, o recurso interposto pela Ré ser considerado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente o teor da douta sentença a quo.
Nestes termos, e nos melhores de direito que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, deverá o recurso interposto pela recorrente ser julgado totalmente improcedente, por não provado, mantendo-se a douta sentença proferida pelo tribunal a quo inalterada.
O tribunal a quo admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, e, após ter sido recebido neste tribunal nos seus exatos termos, foram dispensados os vistos legais por acordo.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim, no caso em apreço, a questão que importa decidir é:
a) Existência da prescrição.
III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
1. A Autora exerce, em regime de concessão de serviço público, a atividade de distribuição de energia elétrica em alta, média e baixa tensão, sendo ainda concessionária da rede de distribuição de energia elétrica em baixa tensão no concelho de Almeirim.
2. No âmbito da sua atividade, a Autora gere toda a rede de distribuição de energia elétrica, coordenando, entre outros aspetos, a ligação à rede elétrica, assistência técnica à rede de clientes e leitura de equipamentos de contagem.
3. Na qualidade de concessionária pode, ainda, realizar vistorias e inspeções aos locais de consumo, bem como às suas infra-estruturas, com o propósito de aferir a conformidade das ligações existentes e a integridade dos aparelhos de contagem de eletricidade, bem como detetar irregularidades e condutas ilícitas praticadas por aqueles, uma vez que as ligações à rede são da sua responsabilidade.
4. As ligações à rede de energia elétrica, são da responsabilidade da Autora constituindo propriedade da mesma as instalações elétricas que servem essa rede.
5. A Autora procede também à fiscalização das instalações de consumo, tendo em vista despistar a existência de eventuais ligações abusivas (ou manipuladas) à rede elétrica.
6. O local de consumo com o n.º (…) corresponde à instalação sita na Herdade (…), Convento (…), 2080-708 (…), Almeirim e é, à data de hoje, abastecido de energia elétrica pela Autora, ao abrigo de um contrato de fornecimento de energia elétrica titulado pela Ré.
7. Anteriormente, no período compreendido entre 2.08.2013 e 16.07.2014, a Ré manteve um contrato de fornecimento de energia elétrica celebrado com o Comercializador a operar em mercado liberalizado, EDP Comercial – Comercialização de Energia S.A..
8. No dia 27.05.2014, o comercializador EDP Comercial – Comercialização de Energia, S.A. submeteu, via portal de gestão switching, o pedido de interrupção do fornecimento de energia elétrica.
9. Nesse seguimento, no dia 03.06.2014, no âmbito da ordem de serviço n.º 100024052519 foi levado a cabo o corte do fornecimento de energia elétrica àquela instalação.
10. No dia 14.06.2014, por via do mesmo portal, o comercializador solicitou o pedido de denúncia de contrato e nesse âmbito a Autora gerou, no dia 16.07.2014, a ordem de serviço n.º 100024333926, para que fosse desligada, definitivamente, a energia, em virtude da cessação do contrato de fornecimento de energia elétrica.
11. Posteriormente, foi celebrado o contrato de fornecimento de energia elétrica para a instalação titulado pela Ré e celebrado com o mesmo comercializador, o qual iniciou os seus efeitos a 07.01.2016, mantendo-se atualmente em vigor (cfr. facto 6).
12. Para a instalação aqui em apreço, não existiu contrato de fornecimento de energia elétrica, no período compreendido entre 17.07.2014 e 06.01.2016. 13. No dia 31.07.2015 foi emitida, no âmbito da atividade de fiscalização da Autora, uma ordem de serviço de Revisão de Equipamento, com o n.º 100026668360.
14. No cumprimento dessa ordem de serviço, o técnico ao serviço da Autora dirigiu-se ao local, verificando que a instalação se encontrava ligada à rede de distribuição de energia elétrica, sem a existência de um contrato de fornecimento para o efeito.
15. No dia 18.08.2015, no âmbito da ordem de serviço n.º 100026767491, uma equipa técnica ao serviço da Autora dirigiu-se, novamente, ao local de consumo aqui em apreço, constatando que a mesma permanecia ligada indevidamente, não existindo contrato de fornecimento de energia elétrica, ficando a essa data a instalação desligada.
16. Posteriormente, no dia 15.09.2015, no âmbito da ordem de serviço n.º 100026952298, ocorreu nova deslocação à instalação, onde se verificou, uma vez mais, que a mesma se encontrava ligada, ilicitamente, sem a celebração de qualquer contrato de fornecimento de energia elétrica.
17. Foi então gerada a ordem de serviço n.º 100027341314 de Revisão de Equipamento, no âmbito da qual, no dia 30.11.2015, a equipa técnica ao serviço da ofendida voltou a deslocar-se ao local, verificando que a instalação continuava ligada, sem ter sido, até essa data, celebrado contrato de fornecimento de energia elétrica,
18. Tendo a energia sido então desligada.
19. No dia 06.01.2016 foi gerada a ordem de serviço n.º 100027544725 de Revisão de Equipamento, no âmbito da qual um técnico da ofendida voltou a deslocar-se ao local, constatando, uma vez mais, que a instalação se encontrava ligada, sem contrato celebrado para o efeito, voltando a desligá-la.
20. No período compreendido entre 17.07.2014, data imediatamente posterior ao termo do contrato de fornecimento de energia elétrica, e 06.01.2016, data da última vistoria realizada à instalação, a Ré consumiu energia elétrica fornecida pela Autora, cujo pagamento não realizou.
21. Tal consumo assumiu um custo e, consequentemente, um prejuízo para a Autora no montante de € 9.480,07 (nove mil, quatrocentos e oitenta euros e sete cêntimos) ao qual acresce o valor da potência indevidamente tomada no montante de € 467,20 (quatrocentos e sessenta e sete euros e vinte cêntimos).
22. A Autora efetuou o cálculo dos consumos realizados neste período pela Ré, com base no histórico de leituras e dos seus consumos reais, anteriormente ao período em litígio.
23. A Ré agiu e pretendeu com a sua conduta obter um benefício económico que se traduz na apropriação de energia elétrica da rede de distribuição sem efetuar qualquer pagamento.
24. A Autora intentou a presente ação no dia 9 de Agosto de 2019.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) o tribunal a quo erro ao considerar que não se verificava a prescrição.
1 – Existência da prescrição
No entender da Ré, o tribunal a quo deveria ter declarado a prescrição dos créditos reclamados pela Autora, uma vez que se aplica à situação o disposto no n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil, e não o seu n.º 3, visto não ter sido efetuada qualquer prova da prática pela Ré de um facto voluntário danoso, e concretamente, da prática pela Ré de um crime de furto, por não ter sido alegado, nem provado, que a Ré violou o contrato de fornecimento de energia elétrica através de qualquer procedimento fraudulento, suscetível de falsear a medição da energia elétrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra dos selos ou por violação dos fechos, ou fechaduras, nos termos do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, Decreto esse que estabelece diversas medidas tendentes a evitar o consumo fraudulento de energia elétrica e que, no caso, foi totalmente ignorado.
Por fim, alegou que o que está em causa é uma situação de responsabilidade contratual, para a qual o prazo de prescrição é de seis meses após o respetivo consumo, nos termos do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26-07.
Decidamos.
Quanto à possibilidade de aplicação à presente situação do disposto no artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26-07, atentemos a tal artigo.
Estipula o artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26-07, que:
1 - O direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
2 - Se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento. 3 - A exigência de pagamento por serviços prestados é comunicada ao utente, por escrito, com uma antecedência mínima de 10 dias úteis relativamente à data-limite fixada para efectuar o pagamento.
4 - O prazo para a propositura da acção ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos.
5 - O disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão.

Conforme resulta do n.º 1 do referido artigo, é necessária a existência de um contrato de prestação de serviços, do qual decorre que uma das partes presta um serviço e a outra procede ao respetivo pagamento[2].
Ora, em face da matéria dada como assente, para a instalação de energia elétrica pertencente à Ré não existiu contrato de fornecimento desse tipo de energia entre 17-07-2014 e 06-01-2016 (facto provado 12), pelo que, durante esse período, inexistiu qualquer contrato de prestação de serviços entre a Ré e qualquer comercializador de energia elétrica. E, a ser assim, a ter existido, como existiu[3], consumo de energia durante esse período, nenhum serviço foi, em termos contratuais, prestado à Ré e nem esta, com base em algum contrato celebrado, se comprometeu ao pagamento de qualquer preço.
Aliás, o montante pedido pela Autora na presente ação não se reporta ao habitual pagamento do preço pelo serviço prestado, a que faz menção a previsão do artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26-07, antes sim, ao pagamento de uma indemnização pela prática de um comportamento ilícito pela Ré que gerou à Autora um prejuízo.
Pelo exposto, efetivamente o artigo 10.º, nºs. 1 e 4, da Lei n.º 23/96, de 26-07, não pode aplicar-se à presente situação.
Cita-se, entre outros[4], o acórdão do TRC, proferido em 03-11-2020[5]:
II – O prazo de 6 meses de caducidade e de prescrição previsto no artigo 10.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 23/96, de 26/07, não se aplica aos direitos e ações derivados de apropriação indevida de eletricidade nos termos do DL n.º 328/90, de 22.10.

Apreciemos, então, a aplicação, ao caso concreto, do artigo 498.º do Código Civil, seja o n.º 1 ou o n.º 3.
Dispõe o artigo 498.º do Código Civil que:
1. O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.
2. Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis.
3. Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.
4. A prescrição do direito de indemnização não importa prescrição da acção de reivindicação nem da acção de restituição por enriquecimento sem causa, se houver lugar a uma ou a outra.

Considera a Ré que da matéria dada como provada não resulta factualidade que lhe permita imputar a prática de qualquer crime, designadamente do crime de furto.
Vejamos.
Ora, dos factos dados como provados resultou que no dia 16-07-2014 a energia que fornecia a instalação de energia elétrica da Ré foi definitivamente desligada, em virtude da cessação do contrato de fornecimento de energia elétrica (facto provado 10) e, apesar disso, em inspeções efetuadas à instalação da Ré, constatou-se que, em 31-07-2015, 18-08-2015, 15-09-2015, 30-11-2015 e 06-01-2016, a instalação continuava ligada à rede de distribuição de energia elétrica, sem ter sido, até essas datas, celebrado contrato de fornecimento de energia elétrica (factos provados 13 a 19). Mais se provou que, pelo menos, nos dias 18-08-2015, 30-11-2015 e 06-01-2016 tal ligação foi, de imediato, cortada, tendo, porém, nas vezes seguintes, se detetado que a ligação voltara a ser estabelecida (factos provados 15, 18 e 19). Provou-se igualmente que, no período compreendido entre 17-07-2014, data imediatamente posterior ao termo do contrato de fornecimento de energia elétrica, e 06-01-2016, data da última vistoria realizada à instalação, a Ré consumiu energia elétrica fornecida pela Autora, cujo pagamento não realizou (facto provado 20), tendo tal consumo assumido um custo e, consequentemente, um prejuízo para a Autora no montante de € 9.480,07, ao qual acresceu o valor da potência indevidamente tomada no montante de € 467,20 (facto provado 21).
Provou-se, por último, que a Ré agiu e pretendeu com a sua conduta obter um benefício económico que se traduziu na apropriação de energia elétrica da rede de distribuição sem efetuar qualquer pagamento (facto provado 23).
Por sua vez, dispõe o artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, que:
1 - Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

Ora, conforme já se referiu supra, atentos os factos que foram dados como provados, a Ré apropriou-se, consumindo-a, energia elétrica pertencente à Autora, sem o seu consentimento e contra a sua vontade, pelo que se mostram verificados os elementos objetivos do tipo de crime de furto.
Por sua vez, resultou provado que a Ré agiu com o conhecimento e a vontade de se apropriar de tal energia elétrica pertencente à Autora, sem proceder a qualquer pagamento por tal apropriação, pelo que também se mostra preenchido o elemento subjetivo do tipo do crime de furto (dolo direto).
Assim, é por demais evidente, que o facto ilícito que se mostra imputado à Ré nos presentes autos subsume-se à previsão legal do crime de furto, o que se revela suficiente para a aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil, uma vez que tal dispositivo legal não impõe uma prévia condenação, transitada em julgado, pela prática de um crime.
Cita-se, uma vez mais, o acórdão do TRC, proferido em 03-11-2020, no âmbito do processo n.º 3834/18.6T8VIS.C1:
III - A aplicação do prazo do n.º 3 do artigo 498.º do CC não exige uma condenação com prova dos elementos – objetivo e subjetivo – do crime, bastando que os factos provados relativos ao agente possam subsumir-se na previsão de um tipo legal criminal.

Acresce ainda dizer que os factos provados são suficientes para permitir esta imputação criminal, sendo totalmente desnecessário recorrer ao disposto no Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, o qual, aliás, prevê situações de procedimento fraudulento suscetível de falsear a medição da energia elétrica consumida ou da potência tomada, no âmbito de um contrato de fornecimento de energia, o que, na situação concreta, não se verificava.
Nos termos do artigo 118.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, o prazo de prescrição para o crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do mesmo Diploma Legal, é de cinco anos, pelo que, sendo este o prazo de prescrição a aplicar aos factos ilícitos geradores da obrigação de indemnizar, em face do disposto no n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil, aquando da interposição da presente ação em 09-08-2019[6], ainda não se verificava qualquer prescrição, designadamente quanto aos factos apurados em 31-07-2015.
Pelo exposto, improcede a pretensão da Apelante.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante (artigo 527.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 10 de fevereiro de 2022
Emília Ramos Costa (relatora)
Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura


__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.ª Adjunta: Conceição Ferreira; 2.º Adjunto: Rui Machado e Moura.
[2] Artigo 1154.º do Código Civil.
[3] Conforme resulta da matéria dada como provada.
[4] Vejam-se os acórdãos do TRP, proferido em 27-03-2017, no âmbito do processo n.º 1011/13.1T2OBR.P1; e do TRG, proferido em 19-11-2020, no âmbito do processo n.º 4842/19.5T8BRG.G1; consultáveis em www.dgsi.pt.
[5] No âmbito do processo n.º 3834/18.6T8VIS.C1, consultável em www.dgsi.pt.
[6] Bem como da citação da Ré, que ocorreu em 04-09-2019.