Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3490/22.7T8STR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: INVENTÁRIO
LEGITIMIDADE ACTIVA
HERDEIRO
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 04/19/2023
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Os credores, os donatários e os legatários apenas têm legitimidade para intervir, mas não podem requerer o processo de inventário.
2 - Pode requerer inventário quem, por testamento, recebeu do autor da sucessão, por conta da quota disponível da sua herança, a meação da sua herança bem como o quinhão hereditário a que tem direito por óbito do seu cônjuge.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
I – RELATÓRIO
AA instaurou o presente processo de inventário para partilha da herança deixada por óbito de BB, indicando para o exercício do cargo de cabeça de casal o neto BB.
Alega, em síntese, no que aqui interessa, que o inventariado faleceu no dia .../.../2022, no estado de viúvo de CC que também usava o nome de CC, com quem foi casado no regime da comunhão geral de bens, tendo deixado como herdeiros os seus netos, o já referido BB e DD, filhos da sua filha EE, já falecida à data do seu decesso e a ora requerente, sua sobrinha, a quem, por testamento de 23.11.2021, foi “legado” por conta da quota disponível da sua herança, a meação e o quinhão hereditário a que o falecido tinha direito por óbito de sua mulher CC.
Conclusos os autos, a Sr.ª Juíza a quo proferiu despacho com o seguinte dispositivo:
«Destarte, nos termos do disposto nos artigos 1085.º, 1100.º, 577.º, alínea e) e 578.º, todos do Código de Processo Civil, declaro que a Requerente carece de legitimidade para requerer o presente processo de inventário e, consequentemente, indefiro liminarmente o requerimento inicial.»
Inconformada, a Requerente apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1- A questão que leva a que se recorra da douta decisão proferida é facilmente entendível, e não necessita de grandes explanações, face ao já supradito.
2- Com efeito a questão centra-se na questão da distinção entre a qualidade de herdeiro e a qualidade de legatário.
3- Já supra se disse que é uma “questão de escola”, e foi uma séria contenda que dividiu insignes figuras do direito sucessório, aquando do anteprojeto do actual código civil português, e dos membros da comissão revisora do mesmo.
4- Todavia a Lei substantiva nem antes, com o Cód. Civil de 1867, nem actualmente, andou divergente relativamente ao essencial da distinção entre herdeiro e legatário.
5- Se já antes se dizia que era herdeiro, quem sucede na totalidade da herança, ou em parte dela, sem determinação de valor ou objecto, e legatário aquele a quem se dispõe de valores ou objetos determinados, ou de certa parte deles, agora, dispõe-se que é herdeiro o que sucede na totalidade, ou numa quota do património do falecido, e legatário o que sucede em bens ou valores determinados. “(antes artº 1736 do Cód. Civil de 1867, agora o nº 2 do artº 2030 do actual Cód. Civil.
6- E vai-se mais longe no n.º 5 do artº 2030 do Cód. Civil, é que a qualificação dada pelo testador aos seus sucessores não lhes confere o título de herdeiro ou legatário, em contravenção do disposto nos números anteriores.
7- Valendo este número, 5, referido, também em relação ao beneficiário do testamento.
8- Ou seja, não podia, nem pode com todo o respeito o tribunal dizer que pelo facto da recorrente se ter intitulado legatária, que daí lhe advenha essa qualidade.
9- E decidir, como decidiu, que a recorrente não tinha legitimidade para requerer o inventário.
10- Pelo que se espera que Vossas Excelências revoguem a douta decisão recorrida, e em substituição da mesma, profiram nova decisão que admita que a recorrente tem legitimidade para requerer o inventário por óbito de seu tio BB,
Assim fazendo a costumada Justiça».

Cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir é a de saber se a Requerente tem legitimidade para instaurar o presente inventário, o que passa por apurar se a mesma é herdeira ou legatária.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos e a dinâmica processual a considerar sãos os contantes do relatório que antecede, que aqui se dão por reproduzidos.

O DIREITO
«Diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam.» art. 2024º do CC.
Os beneficiários de uma vocação distinguem-se entre si consoante são chamados a título de herdeiro ou a título de legatário – art. 2030º, nº 1, do CC.
Dada a importância da qualificação do beneficiário como herdeiro ou legatário, compreende-se que a lei mostre uma certa preocupação de fixar com rigor os conceitos.
É assim que nos surge uma definição destas categorias no nº 2 do art. 2030º do CC: «Diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados.»
Como decorrência da circunstância do direito de o legatário incidir sobre bens ou valores determinados, não lhe é reconhecido, ao contrário do que sucede com os co-herdeiros ou com o cônjuge meeiro, o direito de exigir a partilha [art. 2101º, nº 1, do CC] direito esse que se exerce mediante acordo ou por meio de inventário.
Por sua vez, estipula o art. 1085º do CPC:
«1 - Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo:
a) Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro ou, no caso da alínea b) do artigo 1082.º, os interessados na elaboração da relação dos bens;
b) O Ministério Público, quando a herança seja deferida a menores, maiores acompanhados ou ausentes em parte incerta.
2 - Podem intervir num processo de inventário pendente:
a) Quando haja herdeiros legitimários, os legatários e os donatários, nos atos, termos e diligências suscetíveis de influir no cálculo ou determinação da legítima e de implicar eventual redução das respetivas liberalidades;
b) Os credores da herança e os legatários, nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos;
c) O Ministério Público, para o exercício das competências que lhe estão atribuídas na lei.»
Escreveu-se na decisão recorrida:
«Do preceito em análise, da sua leitura, retira-se que estamos claramente perante dois tipos de legitimidade:
- a legitimidade para requerer o processo de inventário, que decorre das alíneas do seu n.º 1;
- e a legitimidade para intervir no processo, que se retira das alíneas do n.º 2 da mesma norma.
Sendo que, nos casos referidos no n.º 1 do preceito em análise está contida a intervenção como parte principal, ou seja, uma intervenção para todos os actos e termos no processo, como seja a legitimidade para iniciar o processo de inventário e participar em todos os seus actos e termos; nos casos do n.º 2 prevê a intervenção da parte acessória, isto é, uma intervenção para fins específicos, conferindo a alguns interessados, que a lei indica, a intervenção em determinados momentos no inventário, mas não confere ao seu titular o direito de encetar o processo, mas apenas a prerrogativa de participar no processo [neste sentido, veja-se DOMINGOS SILVA CARVALHO DE SÁ, in Do Inventário, descrever, avaliar e partir, 8.º edição revista e actualizada, pág. 45].
Neste sentido, veja-se na jurisprudência, entre outros, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto [processo n.º 1372/17.3T8OAZ.P1; datado de 27.11.2017]
O regime instituído inspirou-se no artigo 4.º do RJPI, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, que por sua vez, já se havia inspirado no artigo 1327.º do Código de Processo Civil de 1961, revogado em 2013.
Do que se vem vindo a expor fácil é de concluir que os credores, donatários e os legatários apenas têm legitimidade para intervir, mas não podem requerer o processo de inventário, seja porque já recebem bens concretos e não carecem de partilha para a sua concretização, seja porque apenas têm direito a precaver-se de uma eventual redução por inoficiosidade de liberalidades que lhe tenham sido feitas pelo autor da sucessão.
Baixando ao caso dos autos, como se disse já, a Requerente radica a sua legitimidade processual, para requerer os termos do presente inventário, na qualidade de Legatária, qualidade que invoca de forma expressa.
Ora, do que se deixa dito, dúvidas inexistem que a Requerente, nessa qualidade de legatária, não invocando qualquer outra nem se percepcionando que a tenha, carece de legitimidade para requerer e fazer seguir os termos do processo de inventário. A falta de legitimidade da Requerente constitui excepção dilatória, que é de conhecimento oficioso – cfr. artigos 577.º, alínea e) e 578.º, ambos do Código de Processo Civil, e implica o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comporte, como é o presente caso – cfr. artigos 1100.º, do Código de Processo Civil.»
Embora seja de sufragar a doutrina exposta na decisão recorrida, já não se pode acompanhar a mesma quando diz que a recorrente “radica a sua legitimidade processual, para requerer os termos do presente inventário, na qualidade de legatária, qualidade que invoca de forma expressa”.
É certo que a recorrente alegou no artigo 2º do requerimento inicial que «por testamento de vinte e três de Novembro de 2021 outorgado a fls. 30 a 31 do Livro 3 da Notária..., do Cartório Notarial em Santarém, lhe foi legado por conta da quota disponível da sua herança, a meação e o quinhão hereditário a que o falecido tinha direito por óbito de sua mulher CC» (sublinhado nosso).
Ora, a utilização do substantivo “legado” na frase transcrita, não tem o sentido que lhe é atribuído na decisão recorrida, isto é, de que a recorrente se atribuiu a si própria a qualidade de legatária, mas antes no sentido do que lhe foi deixado em testamento.
E, ainda que a recorrente tivesse invocado essa qualidade, tal não lhe retiraria a possibilidade de requerer o inventário, pois está claro no testamento junto com o requerimento inicial [Doc. 4], que o autor da sucessão, «pelo presente testamento e por conta da quota disponível da sua herança, pretende deixar a meação da sua herança bem como o quinhão hereditário a que tem direito por óbito de sua mulher, CC, a sua sobrinha AA».
Como se vê, o autor da sucessão, ora inventariado, não concretizou no testamento de que é beneficiária a recorrente, qualquer prédio, ou outro bem de outra natureza, com que quisesse beneficiar a sobrinha, deixando-lhe antes, por conta da quota disponível, a meação da sua herança e o quinhão a que tem direito por óbito da sua já falecida mulher.
Em face do exposto, verifica-se que inexistia motivo para que o Tribunal recorrido concluísse pela existência da exceção de ilegitimidade da requerente e pelo consequente indeferimento liminar do requerimento inicial, decisão que não poderá subsistir devendo ser revogada e substituída por outra, que determine o prosseguimento dos autos em conformidade com a tramitação que lhe cabe, procedendo, pois, a apelação.
A responsabilidade tributária inerente ao presente recurso deverá incidir sobre os interessados do processo de inventário, de acordo com o disposto no artigo 1130º, nº 4, do CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos nos termos acima referidos.
Custas nos termos sobreditos.
*
Évora, 19 de abril de 2023
Manuel Bargado