Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1298/18.3T8SLV-A.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: DIVISÃO DE HIPOTECA
PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Uma vez afastado, por vontade das partes, o princípio da indivisibilidade da hipoteca (previsto no artigo 696.º do Código Civil), o exequente não pode vir a executar a fracção autónoma de um condómino pela totalidade da dívida que fora garantida por hipoteca incidente sobre o lote de terreno onde foi edificado o prédio que inclui a fracção, apenas o podendo fazer sobre a parte proporcional de responsabilidade na dívida que à mesma deva ser imputada.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes nesta Relação:

A Exequente/Apelante “Bolsimo – Gestão de Activos, S.A.”, com sede no Edifício Grandella, Rua do Carmo, n.º 42-7.º, Salas A e B, em Lisboa, vem interpor recurso da douta sentença proferida em 17 de Dezembro de 2021 (a fls. 88 a 93 dos autos), no Juízo de Execução de Silves-Juiz 2, nos presentes autos de embargos de executado e oposição à penhora a correrem por apenso à execução para pagamento de quantia certa, no valor de € 243.307,29 (duzentos e quarenta e três mil, trezentos e sete euros e vinte e nove cêntimos) e juros, que lhe havia instaurado a Executada/Apelada, M., residente (…), Praia da Rocha, em Portimão – e que veio a julgar procedentes os embargos e a declarar extinta a execução, por falta do pressuposto processual da falta de título executivo [com o fundamento aí aduzido de ser “certo que a exequente, na qualidade de adquirente de crédito garantido por hipoteca, não terá tido intervenção (nem a cedente original) no título de constituição de propriedade horizontal, mas já aceitou o pagamento parcial da dívida por parte de titulares de outras fracções, o que terá tido base na medida do direito de cada um; é aqui que vence a tese de falta de título executivo bastante, pois a exequente pretende cobrar coercivamente o montante total da dívida, e imputando à proprietária da fracção ‘Z’, a ora embargante, responsabilidade até ao montante máximo garantido pela hipoteca, e juros respectivos, o que carece de sustento”] –, intentando ver revogada tal decisão da 1.ª instância e que se considere a execução em condições de prosseguir os seus trâmites normais, para o que vem apresentar alegações, que remata com a formulação das seguintes Conclusões:

I. Recurso de Apelação interposto da decisão proferida em 17/12/2021, a qual julgou procedentes os embargos/oposição à penhora apresentados pela embargante com fundamento na falta de título executivo bastante.
II. A recorrente considera que os fundamentos empregados pelo Tribunal a quo incorrem em errónea interpretação e aplicação da lei aplicável.
III. A Caixa Económica Montepio Geral (doravante designada por CEMG), anterior titular do crédito, no exercício da sua actividade bancária, emprestou à sociedade ‘Covenda, Compra e Venda de Propriedades, Lda.’, por escritura pública datada de 02 de Fevereiro de 1996, lavrada de fls. 58 e seguintes do livro de notas para escrituras diversas número 289-C, do 2.º Cartório Notarial de Lisboa, a quantia de PTE 90.000.000$00, contravalor de € 448.918,00 (quatrocentos e quarenta e oito mil e novecentos e dezoito euros), à taxa de juro máxima que legalmente se encontrasse em vigor em cada momento da vida do contrato e nas demais condições constantes da escritura, da qual se juntou sob a designação de doc. n.º 4.
IV. Para garantir o cumprimento da sua obrigação contratual, a mutuária constituiu hipoteca sobre o Lote de terreno para construção urbana sito na Rocha dos Castelos, Lote n.º 4, freguesia e concelho de Portimão, bem como todas as benfeitorias que nele viessem a ser realizadas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º 5346, da freguesia de Portimão (cfr. doc. n.º 3 junto com o requerimento executivo).
V. A hipoteca foi registada a favor da anterior titular do crédito através da inscrição Ap. 18, de 1996/02/09, entretanto transmitida para a aqui recorrente através da Ap. 4062, de 2010/05/19.
VI. O referido prédio foi constituído em propriedade horizontal – Apresentação 41, de 1997/05/22 , integrando, entre outras, a fracção Z, que assim garante a mencionada dívida.
VII. O valor do capital mutuado foi disponibilizado à sociedade ‘Covenda – Compra e Venda de Propriedades, Lda.’ e por ela integralmente utilizado a título de empréstimo, pelos prazos, juros, formas de pagamento e demais condições constantes daquela escritura.
VIII. A mutuária não cumpriu as obrigações a que contratualmente se vinculou para com a mutuante, pelo que o capital mutuado e em dívida ascende a € 158.424,84.
IX. Encontrando-se em dívida a quantia de € 158.424,84 relativa a capital, ao qual acrescem os juros vencidos referente a 5 anos contados desde 26/06/2013 até 26/06/2018 à taxa contratual de 6,5%, num valor de € 52.362,66, indemnização com natureza de cláusula penal, correspondente à taxa de 3% ao ano, calculada sobre o capital em dívida desde a data da mora (referente a 5 anos), no valor de € 23.776,75, mutuários conta despesas no valor de € 7.791,97 e imposto de selo num valor de € 951,07. Assim, o valor global em dívida é de € 243,307,29 (duzentos e quarenta e três mil, trezentos e sete euros e vinte e nove cêntimos).
X. A fracção autónoma designada pela letra ‘Z’, imóvel hipotecado que garante o contrato suprarreferido, foi adquirido pela aqui executada/recorrida.
XI. É a executada/recorrida responsável, até ao montante máximo garantido pela hipoteca, perante a exequente/recorrente, em virtude da aquisição do imóvel acima melhor identificado.
XII. A executada/recorrida é parte legítima nos termos do artigo 54.º, nº 2, do Código de Processo Civil, pelo que a presente execução é apresentada contra a executada/recorrida exclusivamente na qualidade de proprietária do bem imóvel hipotecado, devendo a mesma prosseguir até ao montante máximo garantido pela hipoteca ou pelo valor do produto da venda do referido imóvel.
XIII. A dívida é certa, líquida e exigível, pois que está vencida e não foi paga.
XIV. A execução deve prosseguir até obtenção do pagamento, pela executada / recorrida, da quantia em dívida até ao montante máximo garantido pela hipoteca, sendo a responsabilidade da aqui executada limitada ao valor do bem hipotecado de que é proprietária e aqui nomeado à penhora (sublinhado nosso).
XV. O Tribunal a quo, na douta sentença, decidiu que há falta de título executivo bastante, porque a exequente/recorrente pretende cobrar coercivamente o montante total da dívida, imputando à recorrida (proprietária da fracção Z) a responsabilidade até ao montante máximo garantido pela hipoteca e respectivos juros e, desta forma, julgou procedentes os presentes embargos de executado e oposição à penhora, absolvendo a executada/recorrida do pedido executivo.
XVI. Sustenta esta tese na alegada renúncia de forma tácita, por parte da Recorrente, ao distratar hipotecas incidentes sobre fracções autónomas daí resultantes, ou por qualquer forma recebendo o valor correspondente a elas – como aconteceu, no caso concreto, quanto às fracções ‘AT’ e ‘R’.
XVII. Entende a Apelante de forma errada.
XVIII. O normativo legal 696.º do Código Civil diz-nos que “Salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito”.
XIX. Trata-se do princípio da indivisibilidade da hipoteca.
XX. A regra da indivisibilidade da hipoteca desdobra-se num duplo aspecto:
Por um lado, se a hipoteca recair sobre dois ou mais prédios, homogéneos, a garantia incide por inteiro sobre cada um deles e não apenas fragmentariamente, em proporção ao valor de cada um deles;
Por outro lado, se o crédito garantido se fraccionar, por exemplo, através da sua cessão parcial a um ou mais cessionários, qualquer dos credores goza da faculdade de executar o seu crédito, por inteiro, sobre o imóvel ou os imóveis que constituem objecto da garantia (vide Professor Antunes Varela, Obrigações em Geral, Volume II, 4ª edição, 1990, a páginas 539 e 540).
XXI. O citado artigo 696.º do Código Civil veio, assim, consagrar, em toda a sua extensão, a referida regra de indivisibilidade da hipoteca, em três planos diferentes:
Determinou a subsistência da hipoteca sobre cada uma das coisas oneradas, quando, como é natural, ela se haja, ab initio, constituído sobre um objecto múltiplo;
Determinou a subsistência da hipoteca, por inteiro, sobre cada uma das novas coisas resultantes da divisão de um bem inicial hipotecado ou sobre cada uma das partes de coisa autonomizadas a partir de um prédio, também anteriormente hipotecado;
Determinou a subsistência da hipoteca, por inteiro, em prol de cada um dos credores investidos, mercê da divisão de um crédito anterior.
XXII. Desde sempre se teve por claro que, na divisão da coisa onerada, a hipoteca subsiste, por inteiro, sobre cada uma das parcelas autonomizadas.
XXIII. O credor hipotecário pode, pois, executar qualquer delas, pela totalidade do valor em dívida coberto pela garantia.
XXIV. Este preceito legal mostra que o dito princípio não é um imperativo da lei, podendo, assim, a indivisibilidade da garantia ser afastada por convenção das partes em contrário.
XXV. O Tribunal a quo concluiu que houve um acordo de divisibilidade quando a exequente/embargada/recorrida aceitou o distrate da hipoteca sobre as fracções ‘AT’ e ‘R’, contra o pagamento da parte proporcional do crédito ainda em dívida.
XXVI. Mais uma vez, sem razão.
XXVII. Quanto à fracção ‘AT’, a exequente/recorrente não aceitou qualquer distrate. A realidade é que a hipoteca que incidia sobre a fracção ‘AT’ foi cancelada com um documento falso emitido por uma entidade que não era à data titular da hipoteca. Tanto assim que a recorrente, ao se aperceber dessa falsidade, alertou, de imediato, a Conservatória do Registo Predial de Portimão. Tal hipoteca voltou, novamente, a ficar em vigor, conforme decisão da Exma. Sra. Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Portimão. O que bem sabe a recorrida, visto que tentou fazer o mesmo procedimento com a fracção ‘Z’, mas aqui sem sucesso (cfr. documento n.º 1 que se junta para todos os efeitos legais).
XXVIII. Quanto à fracção ‘R’, é verdade que houve uma emissão de distrate da hipoteca no âmbito de um processo judicial. No entanto, o Tribunal a quo esqueceu-se de verificar quem era a exequente nesse processo. Se o tivesse feito, facilmente chegaria à conclusão de que não era a recorrente a exequente, mas sim a anterior titular do crédito CEMG, ou seja, não houve uma renúncia ao princípio da indivisibilidade da hipoteca por parte da recorrente.
XXIX. A recorrente pode, pois, executar qualquer delas, pela totalidade do valor em dívida coberto pela garantia.
XXX. A verdade é que a recorrente, apesar de pedir o valor total ainda em dívida, na parte final do seu requerimento executivo termina com a frase: “… sendo a responsabilidade da aqui executada limitada ao valor do bem hipotecado de que é proprietária e aqui nomeado à penhora, seguindo-se os regulares termos processuais até final”.
XXXI. No requerimento executivo, a recorrente fixou um valor da responsabilidade da executada/recorrida, que é o valor de uma futura venda judicial do imóvel que é propriedade da recorrida e que garante a dívida total da recorrente, valor esse que não pode ser quantificado aquando da propositura da acção executiva.
XXXII. A responsabilidade da executada/recorrida termina após a venda judicial do imóvel que garante a dívida da aqui recorrente.
XXXIII. Mal andou o Tribunal a quo ao proferir esta decisão-surpresa sem recorrer ao artigo 734.º do Código de Processo Civil.
XXXIV. O Tribunal a quo, ao ter este entendimento, designadamente falta de título executivo bastante porque a recorrente não pode cobrar o montante total da dívida à recorrida o que do ponto de vista da recorrente a tese não tem acolhimento, então pode e deve socorrer-se do artigo 734.º do CPC, notificando a exequente/recorrente para vir aos autos aperfeiçoar o requerimento executivo – o que não fez.
XXXV. A Mm.ª Juíza a quo, ao decidir como decidiu, nomeadamente considerando a falta de título executivo bastante porque a recorrente não pode cobrar o montante total da dívida à recorrida, desrespeitou por completo os normativos aplicáveis, desvirtuou completamente o sentido de todo o esquema jurídico relativo às garantias das obrigações.
XXXVI. Bem como descaracterizou a natureza real da hipoteca, perfeitamente espelhado na escritura pública e que serviu de título executivo à presente execução, o que frusta, definitivamente, as legítimas expectativas do credor hipotecário.

Nestes termos e nos demais direitos aplicáveis, deve ser revogada a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, por falta de fundamento legal e proferida uma que julgue os embargos de executados totalmente improcedentes, considerando que o documento (escritura pública) apresentado pela exequente/recorrente é título executivo bastante, prosseguindo a execução os seus termos até à final, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.


A Executada/apelada M. apresenta contra-alegações (fls. 109 verso a 112 verso dos autos), pugnando pela improcedência do recurso e vindo a rematá-las com a formulação das seguintes Conclusões:

I – «A indivisibilidade é uma característica natural, que não essencial, da hipoteca e está na disponibilidade das partes, que a podem afastar por convenção concomitante ou posterior à constituição da garantia, expressa ou tácita, e é susceptível de renúncia, expressa ou tácita, por parte do credor hipotecário» [cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 2889/15.0T8OVR-A.P1.S1, de 11/03/2021].
II – Apesar da indivisibilidade da hipoteca constituir a “regra”, é apenas de carácter supletivo e está sujeita a “desvios”, já que tal característica está na disponibilidade das partes, podendo ser afastada de forma expressa ou tácita.
III – A própria natureza da indivisibilidade da hipoteca resulta que também esta característica não é, em si mesma, divisível: a hipoteca ou é indivisível ou é divisível, não existem hipotecas parcialmente indivisíveis ou parcialmente divisíveis [cfr. Rui Estrela de Oliveira, A Renúncia Tácita do Credor à Indivisibilidade da Hipoteca, 2020].
IV – Para além da renúncia tácita considerada pelo Tribunal a quo, a embargante juntou aos autos um e-mail enviado pelo Ilustre Mandatário da embargante no dia 22 de Fevereiro de 2018 [cfr. doc. 4 junto com os embargos de executado], pelo qual informou a embargante que aceitava distratar a hipoteca mediante o pagamento da quantia de €55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros).
V – Antes de apresentar o requerimento executivo peticionando o pagamento da quantia global de € 243.307,29, a embargante comunicou, de forma expressa e inequívoca, que aceitava distratar a hipoteca da fração autónoma designada pela letra ‘Z’ mediante o pagamento da quantia de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros).
VI – O facto da embargante não ter aceite a proposta formulada pela embargada [cfr. doc. 4 junto com os Embargos de Executado] não afasta os efeitos jurídicos produzidos por tal declaração, uma vez que: «Pois que nada no regime jurídico da hipoteca obriga àquelas exigências e proíbe estas manifestações de vontade, valendo, pois, a regra geral de que a declaração negocial pode ser expressa ou tácita, sendo que esta se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam – artigo 217.º do Código Civil. Ora: «A declaração tácita é constituída por um comportamento do qual se deduza com toda a probabilidade a expressão ou a comunicação de algo, embora esse comportamento não tenha sido finalisticamente dirigido à expressão ou à comunicação daquele conteúdo. Tal comportamento declarativo pode estar contido ou ser integrado por comunicações escritas, verbais ou por quaisquer actos significativos de uma manifestação de vontade, incorporem ou não uma outra declaração expressa» [cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo n.º 2210/09.6TBLRA-C.C1, 22/01/2013].
VII – O facto da embargada ter declarado, de forma expressa e inequívoca, que distrataria a hipoteca por um determinado valor constitui uma declaração tácita de renúncia à indivisibilidade da hipoteca, jamais podendo ser afastados os efeitos jurídicos produzidos pela mesma.
VIII – Tendo existido uma renúncia tácita e, posteriormente, uma renúncia expressa da indivisibilidade da hipoteca, não poderá a embargada peticionar o pagamento integral do crédito hipotecário, mas e tão só na parte proporcional à fração em causa.
IX – Tendo existido sentença de expurgação de hipoteca e não tendo a mesma sido constituída, não pode a recorrida ser onerada, em lugar da empresa insolvente, já que o caso julgado formal e material da sentença de insolvência tal impede, sendo, outrossim, a presente acção uma «fraude à lei» e um «abuso de direito», em contramão ao artigo 334.º do Código Civil, visto que se ludibria o Tribunal, pretendendo-se que a demandada é que é responsável pela dívida «já não cobrável», por efeito de bloqueio do caso julgado referido.
X – A executada/recorrida não é parte legítima no título apresentado nos autos, nem nunca foi notificada de qualquer cessão de crédito ou aceitou tal posição, pelo que a cessão não é válida ou eficaz, em relação à mesma, por força dos arts. 577.º, 582.º e 583.º do CCivil.
XI – A executada/recorrida reitera não ter aceite ou não aceitar qualquer cessão ou transmissão de crédito, ocorrida entre os vários cessionários e cedentes, identificados nos presentes autos.
XII – A douta sentença da 1.ª instância, tendo interiorizado a existência de um processo de insolvência terminado em que a exequente podia e devia ter invocado (graduado e reivindicado) o seu crédito; tendo interiorizado que a executada nada tem a ver com a originária dívida; tendo verificado que a executada possui uma sentença de expurgação de hipoteca, relativamente ao devedor mutuária originária (Convenda) mas que, por inexistência de património, não logrou executar; interiorizando que o Direito não é algo de desumano e não formal, logrou, a partir e dentro dos limites do elemento gramatical, do espírito do legislador, lograr uma solução que perfeitamente é condizente com a ideia de Justiça, com a constatação de inexistir, verdadeiramente, uma hipoteca, por ter sido constituída sobre bens, relativa e absolutamente futura.
XIII – Pelo que deve o recurso apresentado pela recorrente ser julgado improcedente e, consequentemente, confirmar-se a sentença recorrida e, consequentemente, absolvendo a recorrida do pedido executivo e determinando a extinção da execução.

Nestes termos e nos demais de direito que V. Ex.ª doutamente suprirá, deverá:
I – Admitir as presentes contra-alegações de recurso; e, em consequência,
II – Julgar improcedente o recurso interposto pela recorrente, mantendo a decisão recorrida e, consequentemente, absolvendo a recorrida da instância.


Junção de documentos com as alegações.

A Apelante requer a junção aos autos, com as suas alegações de recurso, de dois documentos – de fls. 103 verso a 104 verso e de fls. 105 verso a 106 –, constituídos pelas doutas decisões finais proferidas em Processos de Retificação na Conservatória dos Registos Predial e Comercial de Portimão, nos dias 27 de Novembro de 2018 e 23 de Novembro de 2018, respectivamente, e relativas às fracções do prédio designadas pelas letras ‘AT’ e ‘Z’, referenciadas na acção.
A Apelada vem opor-se à junção, mas apenas por já constarem dos autos.
E, efectivamente, já consta, oportunamente junto pela própria Apelada, a fls. 53 verso a 54 dos autos, o que se reporta à fracção designada pela letra ‘Z’ – pelo que, quanto a esse, nada haverá, agora, ainda, a ordenar.
Já relativamente ao que se reporta à fracção designada pela letra ‘AT’, do que foi remetido a esta Relação para instruir o recurso não conta tal documento, embora a Apelada diga que o mesmo foi junto com a contestação da embargada (poderá, assim, tê-lo sido e não estar no processo físico que foi remetido a esta Relação, mas tratar-se-á sempre de uma decisão de uma autoridade registral, de confirmada autenticidade e interesse, o que, de resto, ninguém põe em causa).
Como quer que seja, admite-se agora a sua junção, dada a importância do mesmo para a questão da divisibilidade ou indivisibilidade da hipoteca sobre as várias fracções daquele prédio constituído no regime de propriedade horizontal, não se condenando a apresentante em multa ou fazendo qualquer outra censura, porquanto até poderia ser este Tribunal da Relação, oficiosamente, mesmo nesta fase do recurso, a ordenar a sua respectiva junção, dada aquela importância ou essencialidade para a discussão da causa.

*

Provam-se os seguintes factos com interesse para a decisão:

1 – O título executivo apresentado na execução consiste em escritura de empréstimo com hipoteca, com o teor do documento junto com o requerimento executivo, celebrado entre ‘Covenda Compra e Venda de Propriedades, Lda. e ‘Caixa Económica Comercial e Industrial anexa ao Montepio Comercial e Industrial Associação de Socorros Mútuos’, em 02/02/1996, cujo teor, como o dos demais a referir, se dá por integralmente reproduzido.
2 – A fracção autónoma designada pela letra ‘Z’, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão com o número 5346, da freguesia de Portimão, foi adquirida pela embargante, por compra a ‘Espacimo Compra e Venda de Imóveis, SA’, com registo pela Ap. 72, de 2001/05/16 – cfr. certidão do registo predial relativa à fracção.
3 – Sobre esta fracção autónoma foi registada mediante a Ap. 3315, de 2018/10/11, a penhora realizada na execução – cfr. mesma certidão.
4 – Sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão n.º 5346, da freguesia de Portimão, foi registada, mediante a Ap. 18, de 1996/02/09, hipoteca voluntária a favor de ‘Caixa Económica Comercial e Industrial anexa ao Montepio Comercial e Industrial Associação de Socorros Mútuos’ e sucessivas transmissões de créditos, incluindo à embargante, neste caso pela Ap. 4062, de 2010/05/19, assim como constituição da propriedade horizontal pela Ap. 41, de 1997/05/22, e demais factos ali registados – certidão do registo predial relativa ao prédio.
5 – As cessões de créditos/garantias registadas foram efectuadas nos termos constantes dos contratos de cessão de créditos juntos com o douto requerimento executivo.
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Ora, a questão que demanda apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem é a de saber se, afinal, o douto requerimento em que a Exequente veio a assentar o seu pedido executório contra a Executada foi ou não correctamente apresentado, sendo bastante para tal. O que colocará, naturalmente, a questão de equacionar se deverá ou não manter-se a solução de o rejeitar, o que impediu o normal desenvolvimento da lide de execução. É só isso que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões alinhadas no recurso apresentado e que já se deixaram transcritas supra para mais facilidade de percepção e entendimento.
[O que a Apelante não deixa de resumir na conclusão xiv das suas doutas alegações: A execução deve prosseguir até obtenção do pagamento, pela executada / recorrida, da quantia em dívida até ao montante máximo garantido pela hipoteca, sendo a responsabilidade da aqui executada limitada ao valor do bem hipotecado de que é proprietária e aqui nomeado à penhora.]
Pois, como é sobejamente conhecido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (vide os artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código Processo Civil), naturalmente sem prejuízo das questões cujo conhecimento ex officio se imponha (vide o artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, desse Código).
Já as questões que foram suscitadas pela embargante com a dedução dos embargos e que lhe foram indeferidas na douta sentença (verbi gratia, a ‘fraude à lei’, o ‘abuso de direito’, a sua ilegitimidade face ao título executivo dado à execução, o caso julgado da insolvência, a sua oposição à cessão de créditos, ou a validade e eficácia desta) não são para ser objecto de apreciação no recurso – como parece ter sido a sua intenção ao tê-las ainda incluído nas suas doutas contra-alegações –, porquanto a mesma obteve ganho de causa nos embargos e não interpôs recurso subordinado para que tais questões fossem ainda objecto de apreciação caso viesse a soçobrar nesse seu ganho de causa e na pretensão de improcedência do recurso apresentado pela credora/exequente/embargada.

Ora, em face do que vem decidido, salva sempre melhor opinião – e aqui surge a nossa dissensão da pretensão recursiva –, apenas podemos dizer que a douta decisão que está impugnada em recurso se apresenta correcta e respeita as normas e princípios que a deviam ter informado, pois que aquele requerimento executivo (com os documentos que o acompanham e que a exequente pretende que seja título executivo bastante para fundar a execução) acaba por não poder constituir (como conclui a douta sentença recorrida) pressuposto suficiente para dar início à execução, assim direcionada contra a executada – não tendo a força necessária a conseguir os objectivos a que a exequente nela se propôs alcançar.
O que a douta sentença resume na proposição que deixou exarada de ser “certo que a exequente, na qualidade de adquirente de crédito garantido por hipoteca, não terá tido intervenção (nem a cedente original) no título de constituição de propriedade horizontal, mas já aceitou o pagamento parcial da dívida por parte de titulares de outras fracções, o que terá tido base na medida do direito de cada um; é aqui que vence a tese de falta de título executivo bastante, pois a exequente pretende cobrar coercivamente o montante total da dívida, imputando à proprietária da fracção Z, a embargante, responsabilidade até ao montante máximo garantido pela hipoteca, e juros respectivos, o que carece de sustento”. E assim é, justamente.

Pois que, na previsão do artigo 696.º do Código Civil, sob a epígrafe de Indivisibilidade, se estabelece que “Salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito”.

[O douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Setembro de 2021, no processo n.º 8263/19.1T8SNT-A.L1.S1, in Base de Dados do ITIJ, diz a este propósito o seguinte, reportando-se à obra “Da Hipoteca: Caracterização, Constituição e Efeitos”, Almedina, Coimbra, 2003, pág. 117: “A citada autora, Maria Menéres Campos, escreve, a propósito deste princípio, que: «Na opinião de Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, da sim­ples leitura do preceito contido no artigo 696.° poderão inferir-se as seguintes conclusões, que nos parece importante enumerar: quando uma hipoteca seja constituída sobre várias coisas, o credor hipotecário pode executá-la, na sua totalidade sobre qualquer delas; quando a hipoteca seja constituída sobre várias partes da coisa (com autonomia jurídica), o credor hipotecário pode, de igual forma, executá-la na sua totalidade, sobre qual­quer das partes em causa; quando uma hipoteca seja constituída sobre uma única coisa que, posteriormente, se divide ou fracciona em várias ou partes autónomas, o credor pode executá-la, na sua totalidade, sobre qualquer uma das novas coisas surgidas ou das partes de coisa autonomizadas; quando a hipoteca seja constituída para garantia de um crédito e este se venha a dividir, qualquer dos credores pode executá-la, na sua totalidade, para satisfação do seu débito; quando uma hipoteca seja constituída para garantia de um crédito de certo montante, e haja cumprimento parcial, o credor hipotecário pode executá-la, na sua totalidade, para satisfação do remanescente em dívida».”]

Consequentemente, o direito da exequente poderia ser exercido, como o foi, na execução de que estes embargos são apenso, porquanto a garantia que o sustentava – hipoteca – havia sido constituída sobre o lote de terreno no qual foi construído o empreendimento de que faz parte a fracção Z da executada, que já foi objecto de penhora nessa execução. Quer dizer: a fracção respondia por toda a dívida – pelas forças do valor que fosse conseguido na sua venda executiva, naturalmente –, ainda que a hipoteca tivesse abrangido, como abrangeu, bens de maior valor. Tal o corolário do referido princípio da indivisibilidade da hipoteca consagrado no já citado normativo legal.
O problema para a exequente – aqui embargada e apelante – é que aquele princípio da indivisibilidade da hipoteca não é absoluto e está na perfeita e total disponibilidade das partes contratantes (“Salvo convenção em contrário”, diz-se no artigo acima transcrito). E a exequente não deixou de dispensar ou renunciar ao princípio quando enveredou por tentar receber o crédito de cada condómino, individualmente considerado, na proporção e parte equivalente a cada fracção.
Pois que resulta clara e expressamente da correspondência trocada entre a exequente e a aqui executada – e que consta dos autos – que se tentou alcançar um valor parcial correspondente à responsabilidade da fracção para assim a vir a libertar da hipoteca. Para tal foram feitas propostas e contrapropostas e só por não se ter chegado a acordo sobre o montante da ‘libertação’, é que a exequente avançou para a execução. E avançou com o pedido de pagamento coercivo, não já da parte da dívida correspondente à fracção da executada (sobre que incidiam aqueles negociações), mas da totalidade da dívida, repristinando o tal princípio da indivisibilidade da hipoteca.
Porém, tendo renunciado antes a ele, e independentemente do resultado das negociações, carece de título executivo especificamente contra a executada, porquanto nele não estão delimitadas/liquidadas as responsabilidades que a esta caberiam. E só assim não seria e a execução estaria correctamente instaurada, se não tivesse havido essa renúncia à indivisibilidade da hipoteca, como a lei prevê e veio a ocorrer de uma forma que teremos que reputar de claramente assumida.
Vide o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Outubro de 2018, no processo n.º 3746/16.8T8LOU-A.P1, in ECLI, que, reportando-se a esta mesma problemática, diz em Sumário: “O credor que beneficia de hipoteca sobre um imóvel no qual é construído um edifício em propriedade horizontal e que à medida que a construção deste avança vai distratando a hipoteca sobre as respectivas fracções, prescinde da indivisibilidade da hipoteca e, por isso, apenas pode exigir a satisfação do seu crédito ao adquirente de uma das fracções na proporção da permilagem desta”.

[A tese da credora/embargada – ao vir pedir a totalidade da dívida, pese embora tenha tentado receber o seu crédito só na parte equivalente à fracção da executada, assim vindo a aceitar a divisibilidade da hipoteca que o garantia na totalidade – não deixaria de colocar tal executada numa situação algo absurda, já que se esta quisesse, por exemplo, manter a sua fracção e evitar a sua venda executiva, teria que desembolsar toda a dívida garantida pela hipoteca inicial mesmo que ela fosse muito superior ao valor do seu próprio bem. E não é isso que se pretende, pois tal como não é justo que a embargante não pague nada, também não o é que pague tudo.]
Aliás, a própria executada não deixa de concordar com isso (rectius, com uma execução a si dirigida apenas pelo valor proporcional ao da sua fracção) quando diz na conclusão VIII das suas contra-alegações de recurso, acima já transcrita: “Tendo existido uma renúncia tácita e, posteriormente, uma renúncia expressa da indivisibilidade da hipoteca, não poderá a embargada peticionar o pagamento integral do crédito hipotecário, mas e tão só na parte proporcional à fração em causa” – sublinhado nosso.
E foi justamente isso que se decidiu na douta sentença objecto do recurso.

E nem sequer é caso para o aperfeiçoamento do requerimento executivo, como pretende a embargada, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 734.º do Código de Processo Civil, pois o problema está no próprio título executivo e terá que ser solucionado com a liquidação da dívida da embargante dentro dele ou até, porventura, por recurso ainda ao processo declarativo, podendo também passar pela divisão do valor do crédito em dívida pelo número de fracções que estão construídas no lote de terreno objecto inicial da hipoteca e sua respectiva permilagem (mas tal não faz parte do objecto do presente recurso, pelo que nos não compete adiantar como se poderá vir a resolver tal problemática).

Decorrentemente, o douto requerimento executivo e os documentos com ele juntos não são título executivo bastante a fundar a execução contra a titular de uma fracção que foi construída no lote de terreno objecto inicial da hipoteca, não havendo, pois, motivo para continuar a permitir o desenvolvimento da sua tramitação futura – a que a douta sentença recorrida, naturalmente, obviou.

E a embargante (executada, agora apelada, M.) não se poderá queixar dos incómodos que toda esta situação lhe trouxe – e, na certa, lhe continuará a acarretar no futuro –, pois que a hipoteca de que goza o crédito da embargada (exequente, agora apelante, “Bolsimo – Gestão de Activos, SA”, no valor exequendo de € 243.307,29), estava naturalmente registada (desde 09 de Fevereiro de 1996) quando adquiriu a sua fracção Z anos volvidos e abrangia o “Lote de terreno para construção urbana sito na Rocha dos Castelos, Lote n.º 4, freguesia e concelho de Portimão, bem como todas as benfeitorias que nele viessem a ser realizadas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º 5346, da freguesia de Portimão” – sublinhado nosso, sendo justamente uma dessas benfeitorias que foi, depois, realizada no lote de terreno hipotecado a construção do empreendimento onde veio a situar-se a identificada fracção ‘Z’ da embargante. Esta haveria era que ter visualizado, com cuidado, o conteúdo do registo predial do prédio antes de adquirir a fracção para evitar este tipo de surpresas ou constrangimentos.

Razões para que, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se deva manter, intacta na ordem jurídica, a douta decisão da 1ª instância que assim considerou, devendo a mesma ser agora confirmada e julgando-se improcedente a Apelação.
*

Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Registe e notifique.
Évora, 09 de Junho de 2022
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana
Maria Rosa Barroso