Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
PROC. Nº 5/15.7T9STB.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: COMPETÊNCIA
ABANDONO DA EMPRESA
ABUSO DE PODER
Data do Acordão: 06/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: 1 - Um órgão de gestão de uma comarca é uma entidade administrativa e não judicial. Tal órgão não tem competência para tomar declarações a arguido e inquirir testemunhas como actos válidos de inquérito em substituição do Ministério Público.
2 - O crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º é um tipo penal “supletivo” relativamente aos restantes que constam da secção III (“Do abuso de autoridade”) do capítulo IV, do título V do Código Penal e foi definido pelo autor do projecto de Código Penal como um tipo que continha a “punição de um abuso de funções para obter benefícios ou causar prejuízos”.

3 - A simples leitura da norma com apelo aos elementos sistemático e histórico faz realçar a constatação da existência de dois sub-tipos penais – o abuso de funções e a violação de deveres funcionais – e por uma específica intenção de obter benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa.

4 - A simples violação de um dever de funcionário não permite concluir que se considere preenchido o referido tipo penal.

Decisão Texto Integral:





Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nestes autos de Inquérito que corre termos nos serviços do Ministério Público de Setúbal, por decisão instrutória lavrada a 17 de Novembro de 2015, a Mmª. Juíza do Tribunal Judicial lavrou despacho a rejeitar a acusação deduzida pelo MP relativamente a um crime de abuso de poder, p. e p. pelos artigos 382º e 386º, nº 1, al. a) do Código Penal imputado ao arguido AA.


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Inconformado com aquela decisão a Digna Procuradora da República interpôs o presente recurso, pedindo a sua procedência pela revogação do despacho recorrido, substituindo-o por outro que pronuncie o arguido, com as seguintes conclusões:

1ª O Ministério Público acusou o arguido AA da prática de um crime de abuso de poder, previsto nos arts. 382º e 386º, n.º 1, al. a) do Código Penal, por referência ao art. 66º, n.º 1 e n.º 2, al. b) do Estatuto dos Funcionários de Justiça (DL n.º 343/99, de 26/8) e ao art. 73º, n.º 2, al. g) e n.º 9 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º 35/14, de 20/6);
2ª Sucintamente e como resulta da acusação, porquanto o arguido, Técnico de Justiça Principal do DIAP, violou os deveres de lealdade e de contribuição para o serviço, inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si, benefício ilegítimo,
3ª A decisão instrutória deu por indiciados todos os factos que integram o tipo objetivo de ilícito em causa;
4ª Ao invés, a decisão sob recurso deu por não indiciados todos os factos que integram o tipo subjetivo do referido ilícito;
5ª Quer na sua vertente genérica, quer na sua vertente específica;
6º Os factos dados como indiciados na decisão instrutória – narrados na íntegra na fundamentação deste recurso – apontam para o seguinte circunstancialismo:
7ª À data dos factos, 8.12.14, e desde o Verão, decorriam obras de remodelação no Palácio de Justiça, as quais incluíam demolições e reconstruções,
8ª Os utentes do Palácio de Justiça, magistrados, funcionários, advogados, agentes policiais, intervenientes processuais e cidadãos em geral conviviam diariamente com ruído no Palácio de Justiça, muitas vezes de enormíssimo volume, dadas as operações de demolição e de reconstrução,
9ª O ruído pôs em causa as diligências, os telefonemas de serviço, as meras conversas de serviço e, por outro lado, a concentração de quem se dedicava ao serviço, como é normal numa situação de obras, tudo isto diariamente,
10ª Sendo o Ministério da Justiça o dono da obra e não o Tribunal, a ninguém seria permitido mandar parar os trabalhos, sobretudo por causa do ruído, decorrência natural de qualquer obra;
11ª Fosse quem fosse que se dirigisse aos trabalhadores do empreiteiro para mandar parar os trabalhos, estaria a agir fora do que lhe é permitido socialmente e, no caso de um magistrado ou de um funcionário, do que lhe é permitido pelos seus deveres estatutários e legais,
12ª Decorrendo algumas diligências sob a obrigação legal de gravação, foi naturalmente acordado com o empreiteiro que nessas situações, e apenas nessas, se solicitaria – durante a sua duração – a suspensão dos trabalhos que pusessem em causa a sua qualidade,
13ª Há uma concreta localização dos factos no círculo dos poderes de facto decorrentes da funções desempenhada pelo arguido: não fosse o arguido reconhecido como funcionário do Tribunal e por certo que o encarregado da obra não mandaria parar os trabalhos, como o arguido lhe solicitou que fizesse;
14ª A falta de indiciação dos factos integradores do tipo subjetivo de ilícito basearam-se, essencialmente, nas declarações do arguido e na credibilidade que lhes foi dada, em contraponto com a dos restantes meios de prova;
15ª Sendo certo que a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal ouviu de viva voz o arguido e nenhuma outra testemunha;
16ª Aliás, no que diz respeito às declarações da Secretária de Justiça obtidas no processo de averiguações levado a cabo pelo Conselho de Gestão da Comarca – testemunha indicada na acusação – a decisão instrutória descurou, mais uma vez devido à credibilidade que conferiu às declarações do arguido, que a mesma referiu que, em momento anterior aos factos aqui em causa, o funcionário AA já se havia dirigido à declarante informando que estava muito barulho na secção e que o mesmo perturbava o serviço, ao que a declarante lhe respondeu que a obra só era parada por motivo de diligências, nomeadamente gravadas;
17ª Foi também conferida pouca relevância – dada a credibilidade conferida às declarações do arguido – ao depoimento da testemunha BB, Segurança-Porteiro do Palácio,
18ª Esta testemunha depôs em fase de inquérito que o encarregado da obra lhe pediu que transmitisse ao arguido para lhe dizer assim que pudesse recomeçar a obra, transmissão que a testemunha realizou; mais depôs que o encarregado da obra lhe chegou a perguntar, a ele Segurança-Porteiro, se o arguido já havia dito que se podia recomeçar a obra, ao que o Segurança-Portiero lhe respondeu que a si nada lhe havia dito (conforme gravação CITIUS deste depoimento, no dia 24.3.15, de 2m40s a 4m20s);
19ª Ora o depoimento é relevante e muito, uma vez que a decisão instrutória várias vezes se louva no facto de o encarregado de obra não ter assegurado, no aludido processo de averiguações, que o arguido o ouviu dirigir-lhe solicitação para que fosse informado assim que a obra pudesse recomeçar;
20ª Baseou-se também a decisão instrutória numa mensagem de correio eletrónico enviada pelo Conselho de Gestão da Comarca a todos os Magistrados e Funcionários do Palácio de Justiça, no dia 28.1.15, ou seja, em momento posterior ao dos factos aqui em causa;
21ª Como corroborando o desconhecimento dos elementos de facto e de direito do tipo de crime que o arguido alega;
22ª Basta transcrever o 1§ dessa comunicação para se concluir, em nosso entender, que assim não é: “Para que a obra em curso no Palácio da Justiça, possa decorrer no mais curto prazo e com o menor inconveniente possíveis, faz-se constar, formalmente agora, que as solicitações a transmitir naquele sentido aos encarregados ou fiscais da obra, apenas serão veiculadas pela Srª Secretária de Justiça ou por quem esta designar” – sublinhado nosso.
23ª Assim, apesar de se ter dado com indiciado o circunstancialismo objetivo da acusação, pôs-se em causa que o arguido, Técnico de Justiça Principal da 2ª Secção do DIAP, que funciona no Palácio de Justiça, conhecesse este circunstancialismo;
24ª Admitiu-se como plausível que o arguido, precisamente num dia de turno feriado, em que os seus superiores hierárquicos não estavam no Palácio de Justiça, tivesse agido em conformidade com o que se admitiu que desconhecia, e não num outro qualquer dia útil de qualquer outra semana em que esteve ao serviço, durante a realização da obra;
25ª Admitiu-se como plausível que o arguido, no único dia em que esteve ao serviço sem a presença dos seus superiores hierárquicos, tenha, pela primeira vez, sentido o ruído da obra e que esse ruído não o tenha deixado fazer um telefonema ou falar com os colegas;
26ª Pergunta-se se nos restantes e anteriores dias de duração da obra não teve o arguido de fazer telefonemas e de falar com os colegas, que nesse serviço não tenha sido perturbado pelo ruído da obra e que fosse, à mercê do seu desconhecimento, pedido para as obras pararem e percebido então, muito antes do dia de turno em causa na acusação, que não o podia fazer;
27ª Portanto, a credibilidade dada às declarações do arguido, recebidas com imediatismo na fase de instrução, a desconsideração da valia e credibilidade das restantes testemunhas, e uma leitura que consideramos menos acertada da comunicação eletrónica do Conselho de Gestão da Comarca de 28.1.15., levaram a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal a considerar mais provável a absolvição do que a condenação do arguido;
28ª Ora, prevendo a lei processual penal que é no julgamento que se avalia, em contraditório pleno e com imediatismo todos os meios de prova à disposição nos autos, a probabilidade de condenação existe e é razoável, com fundamento nos meios de prova indicados na acusação e em regras de experiência de comum que sobre todos deitarão luz.
29ª A Meritíssima Juiz de Instrução Criminal errou juridicamente ao conferir credibilidade plena às declarações do arguido, em moldes que arrasaram a credibilidade e a valia dos restantes meios de prova, assim violando o disposto nos arts. 308º, n.º 1 e n.º 2 e 283º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
30ª Conclui-se, derradeiramente, pela indiciação suficiente dos factos constantes da acusação e da probabilidade razoável de, com base neles, vir o arguido a ser condenado.
Termos em que se requer que a decisão de não pronúncia seja substituída por outra que pronuncie o arguido nos exatos termos da acusação.


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O arguido apresentou resposta defendendo o decidido, com as seguintes conclusões:

1. O Recurso interposto pela Distinta Representante do Ministério Público não merece provimento.
2. A Decisão Instrutória prolatada pela Senhora Juiz de Instrução Criminal é irrepreensível e insusceptível de qualquer juízo de censura no Ordenamento Jurídico Português por não haver, em parte alguma do seu Douto teor, descurado ou violado nenhuma Norma, Principio ou Dever a que se encontrasse submetida enquanto Juiz de Instrução Criminal.
3. A conduta do Arguido AA naquela circunstância de tempo, modo e lugar foi axiologicamente positiva, conforme decorre, além de toda a Prova constante dos Autos, das suas Declarações em sede de Inquérito e Instrução e do teor do seu Requerimento de Abertura de Instrução, acervo probatório, para onde remete a Douta apreciação dos Venerandos Desembargadores.
4. Com efeito, o Dever de Lealdade consiste, única e exclusivamente, na obrigação de desempenhar as suas funções com subordinação aos objectivos do órgão e serviço, sendo certo que na dimensão pública deste Dever exige-se que o trabalhador, no caso o Arguido Jorge Mendes, actuasse no sentido de alcançar os objectivos da Administração.
5. E, como é bom de ver, este Dever está intimamente associado aos deveres de imparcialidade e de prossecução do interesse público, na medida em que constitui o trabalhador no dever de pautar o exercício das suas funções única e exclusivamente no sentido de prosseguir os objectivos que o serviço do Departamento de Investigação e Acção Penal de Setúbal se propõe alcançar.
6. Por conseguinte, fica a questão, qual o facto praticado pelo Arguido AA que é configurativo da violação do Dever de Lealdade? Em sua perspectiva: Absolutamente Nenhum!?
7. No que respeita à violação do Dever de Contribuição para o Serviço, crê-se que a Distinta Representante do Ministério Público se pretende referir ao “Dever de colaborar na normalização do serviço”, inscrito na alínea b) do N.º 2 do Artigo 66.º do Decreto-Lei N.º 343/99, de 26 de Agosto, e, se assim for - mesmo que fossem verdadeiras as factualizações descritas no Libelo Acusatório e ora arrazoadas em sede de Recurso - não alcança o Arguido AA qual seria/foi o facto integrativo da violação desse Dever/Norma a que a sua conduta deu azo.
8. Visto que se tais factos retractassem a Verdade o Arguido AA estaria a ser acusado, como efectivamente o foi, e seria submetido a Julgamento não por a sua conduta colidir com o que tal Norma visa proteger, mas, precisamente, pelo seu contrário.
9. Isto é, se fosse Verdade que o Arguido AA houvesse solicitado, ou até mesmo concretizado, a interrupção da obra este estava a colaborar na “normalização do seu serviço”, porque, efectivamente, o seu serviço, no Departamento de Investigação e Acção Penal de Setúbal, enquanto Funcionário Judicial, circunscreve-se no tratamento com isenção, imparcialidade, zelo, obediência, lealdade, correcção, assiduidade de todo o expediente e diligências que lhe são diariamente adstritas.
10. Porque é fazendo-o que ele dá cumprimento a esse Dever. E fazê-lo implica que não esqueça aquele Dever a que se encontram submetidos todos os Funcionários Públicos, onde se inclui a própria Recorrente, que é o Dever de Prossecução do Interesse Público. E como V/Ex.ªs não descurarão, o Interesse Público prosseguido numa Domus Iustutiae é a Justiça e as necessidades dos Cidadãos que a ela recorrerem e não o andamento, célere ou lento, de uma obra.
11. Neste particular a Recorrente deu mostras, no Libelo que trouxe à Luz e ora em sede de Recurso, de desconhecer o Instrumento primordial em matéria de Regras de Conduta dos Funcionários da Administração Pública.
12. Efectivamente, invocando tais preceitos na configuração daquelas factualizações mostra, senão desconhecer por completo, pelo menos, ter descurado o teor da Carta Deontológica do Serviço Público, que, como V/Ex.ªs Venerandos Desembargadores melhor sabem, constitui, transversalmente a toda a Administração Pública onde se inclui a Recorrente, o pano de fundo de todos os Diplomas Legislativos - caducos, em vigor e a vigorar - que tratam e regulam, em termos de Regras de Conduta, a matéria de Valores e Deveres de todos os Funcionários Públicos que prosseguem, efectivamente, o interesse público.
13. Subsumindo as factualidades inscritas na Acusação e ora vertidas nas conclusões recursórias - que a Recorrente refere terem sido praticadas pelo Arguido AA - ao conjunto dos Valores e Deveres para com os Cidadãos e para com a Administração inscritos há mais de vinte (20) anos nesse Documento constata-se que, pese embora não as haja praticado, se, ainda assim, estas tivessem ocorrido jamais havia descurado: em termos de Valores Fundamentais, o Serviço Público, a Legalidade, a Neutralidade, a Responsabilidade, a Competência, a Integridade; em termos de Deveres para com os Cidadãos, a Qualidade na Prestação do Serviço Público, a Isenção e Imparcialidade, a Competência e Proporcionalidade, a Cortesia e Informação, e a Probidade; e, em termos de Deveres para com a Administração, o Interesse Público, a Dedicação, a Autoformação, o Aperfeiçoamento e Actualização, a Reserva e Discrição, a Parcimónia, a Ponderação Exclusiva do Serviço Público, e a Solidariedade e Cooperação.
14. Além do mais, resulta a bem de ver da Decisão Instrutória que a Senhora Juiz de Instrução Criminal em momento algum - na avaliação das factualidades que lhe foram dadas a apreciar, seja na dimensão objectiva seja na subjectiva - sopesou no seu raciocínio, com descuidado e/ou ao arrepio da Lei, a Prova constante dos Autos, fosse na perspectiva de individualmente considerada, fosse por contraponto daquela com a produzida em sede de Instrução.
15. Pese embora a fase instrutória no sistema processual penal nacional se apresente como o primeiro momento em que o Arguido se pode efectivamente defender daquilo que o acusam, o certo é que, em sede de Instrução, aberta que a mesma esteja, têm os demais sujeitos nela intervenientes, como o seja a Recorrente, a faculdade de requerem, para efeitos de contraditório ou confirmação, a produção de quaisquer Meios de Prova que entendam pertinentes à sustentação da sua perspectiva.
16. Motivo pelo qual se estranha o facto da Distinta Representante do Ministério Público - como autora do Libelo Acusatório e Representante, presencial, daquela Magistratura em toda a Instrução - não haver requerido, em momento algum dessa fase processual, a produção de outro Meio de Prova, nomeadamente a inquirição das Testemunhas cujo depoimento menciona serem susceptíveis de abalar a credibilidade das declarações do Arguido, e vir agora, sem mais, invocar como fundamento do seu Recurso que a Decisão Instrutória enferma de uma excessiva valoração de genuinidade destas declarações em face da demais Prova incluindo outras Declarações colhidas em Inquérito.
17. Certo é que, mesmo que o houvesse feito e tal pretensão fosse acatada e essas Testemunhas fossem inquiridas, ante o que as mesmas já haviam declarado em sede de Inquérito, o sentido da Decisão Instrutória não poderia ser outro que não aquele que a Senhora Juiz de Instrução Criminal lhe deu. Isto porque, conforme decorre do Douto da Decisão Recorrida as declarações das Testemunhas que a Recorrente invoca, aliás como a restante Prova constante dos Autos, foi irrepreensivelmente valorada e considerada para efeitos de Decisão Instrutória pela Senhora Juiz de Instrução Criminal.
18. Na verdade, resulta do teor da Decisão Instrutória que toda a Prova constante dos Autos e produzida em sede de Instrução foi devidamente valorada pela Senhora Juiz de Instrução Criminal, e que, nessa avaliação e análise, não foram descurados nenhuns procedimentos que a Lei lhe impunha.
19. Razão pela qual, conforme decorre do teor da Douta Decisão Recorrida, a aferição dos indícios das factualidades em discussão em sede de Instrução e aqueles que advinham do Inquérito resultaram como insuficientes para submissão do Arguido Jorge Mendes a Julgamento pela prática do Crime de Abuso de Poder de que ia acusado.
20. O que impõe que nenhuma censura mereça a Douta Decisão Recorrida, a qual deverá ser confirmada na íntegra pelos Venerandos Desembargadores da Relação de Évora julgando-se o Recurso da Distinta Representante do Ministério Público improcedente.
Nestes termos, nos melhores e demais de Direito que os Venerandos Desembargadores da Relação de Évora suprirão, deve o Recurso interposto pela Distinta Representante do Ministério Público ser julgado improcedente e, consequentemente, confirmar-se na íntegra a Decisão Recorrida, não se pronunciando para Julgamento o Arguido AA.


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Nesta Relação a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu douto parecer.

Observou-se o disposto no nº 2 do art. 417° do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

B.1 - São elementos de facto relevantes e decorrentes do processo, para além dos que constam do relatório, o teor do despacho judicial recorrido:

É o seguinte o teor do despacho recorrido:

«O Tribunal é competente.
Não existem quaisquer outras nulidades nem questões prévias que cumprem conhecer e não obstem à prolação da decisão instrutória. Factos Suficientemente Indiciados (com relevo para os autos)
Da acusação Pública e do Requerimento de Abertura de Instrução (com relevo para os autos expurgada a matéria conclusiva e de direito).
1.O arguido exerce funções como Técnico de Justiça Principal na 2ª Secção da Sede do Departamento de Investigação e Acção Penal da Comarca, no Palácio de Justiça.
2.No referido Palácio de Justiça decorrem obras de remodelação, mesmo durante as horas de expediente, as quais são interrompidas para salvaguarda das gravações de actos processuais e para assegurar a qualidade destas.
3.No dia 8.12.14, segunda-feira e feriado nacional, o arguido encontrava-se a realizar serviço de turno nas instalações do DIAP, acompanhado da Técnica de Justiça Adjunta CC e da Técnica de Justiça Auxiliar DD.
4.Cerca das 9h30m, de modo a efectuar contactos telefónicos com os órgãos de polícia criminal sem o ruído das obras, o arguido dirigiu-se a um trabalhador do empreiteiro que tem a obra a seu cargo, o qual efectuava trabalhos com martelo pneumático com auscultadores no rés-do-chão do edifício, e fez-lhe sinal para que os interrompesse, o que este fez.
5.Tendo dado conta da interrupção dos trabalhos com martelo pneumático, o encarregado da obra, EE, mandou prossegui-los, logo tendo sido abordado pelo arguido, pelas 9h40m, com pancadas no tapume da obra.
6.O arguido disse ao encarregado da obra que não conseguia realizar uma chamada telefónica para uma entidade policial devido ao ruído da obra, pelo que os trabalhos com martelo pneumático deveriam cessar.
7.O encarregado da obra disse ao arguido que se deveria dirigir a si e não directamente aos trabalhadores sempre que se mostrasse necessário parar os trabalhos e, perante a informação que lhe fora prestada pelo arguido, ordenou a interrupção dos trabalhos com martelo pneumático, mais solicitando ao arguido que lhe transmitisse quando tais trabalhos pudessem prosseguir.
5.O arguido saiu do edifício por volta das 13h00m, quando terminou o serviço de turno, nada dizendo entretanto ao encarregado da obra, o que resultou na paragem dos trabalhos com martelo pneumático, desde as 9h30m até ao início da tarde.
6.Os trabalhos com martelo pneumático eram essenciais às operações de demolição em curso, que sofreram atrasos.
Factos não Suficientemente Indiciados
Da acusação
Sabia o arguido que a paragem da obra apenas poderia ser solicitada para salvaguarda das gravações de acto processuais, por tal já lhe ter sido dito, em momento anterior, em que reclamou do ruído provocado pelas obras, pela Secretária de Justiça.
Sabia o arguido que todos os utentes do Palácio de Justiça, magistrados, funcionários, advogados, agentes policiais, intervenientes processuais e cidadãos em geral se sujeitam ao ruído decorrente das obras, mesmo durante as horas de expediente, e que nenhum deles pode solicitar a paragem dos trabalhos apenas para trabalhar ou frequentar o edifício sem ruído.
Sabia ainda o arguido que a paragem dos trabalhos, apenas por motivo do ruído que causam, inviabilizaria totalmente a sua realização e conclusão.
Sabia o arguido que com a conduta supra descrita violava os deveres de lealdade e de contribuição para o serviço a que está obrigado.
O arguido quis fazer parar os trabalhos durante toda a manhã do serviço de turno, fazendo crer ao encarregado da obra que tal era necessário ao desempenho do serviço, em dia em que não se encontravam no Palácio os seus superiores hierárquicos, apenas para obter ausência de ruído durante o serviço que prestava, benefício que não está ao alcance de nenhum trabalhador ou utente do Palácio de Justiça,
Do requerimento de Abertura de instrução
Inexistem com relevo para os autos factos não suficientemente indiciados.
Motivação do Tribunal
Os presentes autos tiveram início com a certidão integral dos autos de averiguação prévia com o n-º 1/204 de fls. 2 a 20.
Na referida averiguação constam os seguintes autos de inquirição:
Do ora arguido (fls. 4 a 7), onde o mesmo descreve os factos ocorridos e descritos na acusação, afirmando que nessa dia, quando se encontrava a realizar o serviço de turno e uma vez que estava muito barulho na obra – berbequim pneumático – por forma a conseguir elaborar expediente relativo ao julgamento de processo sumário se dirigiu ao piso do r/c tendo feito um gesto para parar a máquina.
Afirmou ainda que, voltando ao piso onde exercia funções verificando que continuava o barulho voltou ao R/C tendo batido no tapume da obra gritando para lhe chamar a atenção (pois de outra forma com o barulho não se aperceberia da sua presença), tendo de seguida chegado pessoa que se identificou como o encarregado e após o barulho da obra parado por iniciativa do próprio encarregado.
EE (fls. 8 a 10), encarregado da obra à data dos factos em apreço.
Declarou o mesmo que constatou que um dos operários tinha deixado de proceder aos trabalhos com o material eléctrico, que o informou que o tinha feito a pedido de alguém do tribunal. Em acto simultâneo o trabalhador retomou o serviço por sua ordem. Após, ouviu pancadas no tapume tendo verificado que quem se encontrava do lado exterior do tapume era o arguido. Adiantou, com relevo, que o mesmo o informou que precisava de faze um telefonema importante para a polícia e que não conseguia ouvir, tendo o encarregado comunicado ao mesmo que deveria ligar para o encarregado da obra para que os trabalhos fossem interrompidos.
Mais adiantou o referido encarregado da obra, em face do informado, que enviou os trabalhadores para outros serviços de obra. E que, pediu ao ao ora arguido que posteriormente lhe dissesse alguma coisa para retomar os trabalhos salientando que “não sabe se tal foi entendido pelo Senhor AA”, sendo que tais trabalhos apenas foram retomados à tarde por nada mais ter sido informado –sublinhado nosso.
DD e CC (fls. 9 a 16), respectivamente, técnica de justiça auxiliar e técnica de justiça adjunta, que se encontravam no 2º andar nos serviçosdo Ministério Público, no dia dos factos, tendo ambas apenas afirmado que o arguido as informou que não se conseguia trabalhar com o ruído, tendo confirmado que este se deslocou duas vezes “lá abaixo” para não continuarem com o barulho, referindo expressões consentâneas com as mencionadas pelo próprio arguido quando inquirido, nada mais adiantando as mesmas.
FF (fls. 17 a 19), secretária de justiça, que declarou ter tido conhecimento dos factos posteriormente através de conversa com o encarregado de obra o qual relatou os factos do modo como os declarou no auto de inquirição a que acima se alude. Mais declarou, com relevo para os autos, que no sentido de confirmar os factos, solicitou que o funcionário AA se deslocasse ao seu gabinete na presença da Técnica de justiça Principal, o que este fez, tendo o mesmo confirmado que no dia descrito na acusação solicitou a paragem da obra, mas apenas por breves momentos pensando que parariam durante alguns minutos e que recomeçariam os trabalhos normalmente, afirmando o mesmo que desconhecia a necessidade de ordenar o recomeço da obra (facto que o próprio encarregado quando inquirido afirmou não poder afirmar que o mesmo se tivesse apercebido do seu pedido para esse efeito).
Referiu que só quando o ouviu, portanto, em momento posterior à ocorrência os factos em apreço, o advertiu que “não deveria nem ele, nem nenhum dos funcionários da secção que gere, em qualquer circunstância, dirigir-se à obra solicitando paragem ou redução de barulhos, devendo, se tal fosse necessário, dirigir-se à superior hierárquica GG a qual devia ser contactada, se necessário, por telemóvel, a qual tomaria as providências necessárias.”
Declarou ainda a Srª Secretária de Justiça, quando perguntada a tal, que em momento anterior não havia comunicado directamente aos funcionários tais instruções, apesar de salientar que “a tramitação normal é por via hierárquica” e que as paragens eram solicitadas a “propósito de diligências gravadas”, facto que havia comunicado ao mesmo em altura anterior que não concretizou.
Em sede de inquérito procedeu-se ao interrogatório do arguido (fls. 33 e 34) tendo o mesmo assumido (tal como nos auto de inquirição supra referido) que no dia dos factos solicitou, por duas vezes, a paragem dos trabalhos por ser o barulho insuportável necessitando de efectuar a realização de diligências necessárias de julgamento sumário e elaboração do expediente referente ao mesmo (esclarecendo que o barulho era de tal forma que a menos de dois metro de distância só aos gritos era audível).
Esclareceu que o trabalhador tinha auscultadores e capacete razão pela qual o arguido fez sinal ao mesmo para efectuar e pausa/paragem com a mão. Que no segundo momento apareceu o encarregado de obra que afirmou que não podia mandar parar a obra. Posteriormente foi para o seu local de trabalho tendo o barulho terminado pelo que, continuou o serviço não mais tendo voltado a pensar no assunto. Não comunicou a nenhum magistrado o sucedido por ter cessado o barulho. Após terminarem as diligências abandonou o tribunal. Presumiu que não estivesse a secretária nem qualquer outro funcionário do MP, uma vez que era feriado, segunda-feira.
Mais afirmou e não havia à data orientações que lhe tivessem sido comunicadas pelo órgão de gestão, o que só aconteceu posteriormente. Que só uns dias depois foi advertido pela secretária, advertência que a mesma confirmou ter efectuado. Admitiu, porém que já teria dado conta de paragens da obra e que as mesmas teriam sido através da Sr.ª Secretária.
Afirmou que a sua intenção era pedir que fosse efectuado outro tipo de trabalho na altura que permitisse a elaboração do expediente, pedindo-o ao encarregado. Não teve intenção de parar a obra, mas apenas deslocalizá-la.
Explicou que nunca o fez antes, mas que naquele dia o barulho era de tal forma ensurdecedor que não era sequer possível conversar com as colegas.
Foi inquirida a testemunha Gonçalo, que exerce as funções de segurança privada no tribunal.
A testemunha confirmou que estava de serviço no dia dos factos motivo pelo qual os presenciou. A testemunha afirmou que nesse dia estava “muito barulho porque estavam a partir paredes”. Assistiu ao facto do arguido se ter deslocado ao piso onde se encontrava solicitando ao trabalhador que parasse os trabalhos porque não conseguir comunicar com a polícia. De imediato apareceu o encarregado da obra tendo tido o arguido e aquele uma discussão durante uns instantes, não recordando as palavras.
Assim, o depoimento da testemunha é coincidente com o do arguido e com o do encarregado da obra, quanto ao motivo pelo qual foi solicitada a paragem da obra e o facto de ter sido na sequência da conversa com próprio encarregado que posteriormente os trabalhos foram interrompidos.
Em sede de instrução foi interrogado o arguido, tendo-o feito de forma espontânea, convicta e clara.
O arguido apresentou a versão dos factos, em tudo semelhante à já por si apresentada em sede de inquérito, coincidente também com a constante do auto de inquirição de fls. 2, embora com maior concretização dos mesmos. Esclareceu, uma vez mais, que só solicitou a paragem dos trabalhos porque não conseguia sequer comunicar com a polícia – via telefone – e que acabou por ser o encarregado da obra a dar a ordem de interrupção dos trabalhos (como o próprio declarou quando inquirido). Que não se apercebeu que tinha de informar para retomarem os trabalhos, convencendo-se que a paragem seria momentânea, que estavam a realizar outros trabalhos (dada a extensão da obra) e que só após o dia dos factos lhe foi comunicado quem podia solicitar a paragem das obra e qual o motivo.
Quando questionado a tal, adiantou que no dia em que os factos ocorreram era feriado estando apenas no tribunal os funcionários e magistrados de turno motivo pelo qual não se encontrava qualquer seu superior hierárquico, não tendo o telefone pessoal dos mesmos nem do encarregado, pelo que para conseguir elaborar a o expediente e realizar o telefonema dirigiu-se ao trabalhador que realizava o trabalho cujo ruído obstava ao exercício da função.
Foi junto aos autos (fls. 132 a 134) o email onde consta a comunicação do Conselho de Gestão da Comarca relativa aos procedimento a adoptar quanto à interrupção dos trabalhos da obra e sua solicitação. O email foi enviado a 28/01/2015, data posterior aos factos supra descritos, o que corrobora as declarações do arguido quanto ao seu desconhecimento do modo de actuação nas circunstância de tempo e lugar descritas na acusação.
Com efeito, é verosímil e credível a versão do arguido, por consentânea com a demais prova analisada no seu conjunto.
Na verdade, tal extrai-se pela conjugação dos depoimentos do próprio encarregado de obra, da secretária de justiça, declarações do arguido e da testemunha BB, segurança que presenciou o segundo momento em que o arguido solicitou a paragem dos trabalhos, como já acima consignado.
Ora, o arguido nega que ao solicitar a paragem dos trabalhos o tenha feito sem qualquer motivo e que tenha tido a intenção de, com tal, fazer parar os trabalhos durante todo o período do tempo, pois que se convenceu que a interrupção fosse momentânea.
Mais salientou, como acima consta, que não sabia que o não podia fazer sendo que naquele dia não estava qualquer superior hierárquico que pudesse informar, não tendo telemóvel pessoal de nenhum dos seus superiores, o que obstaria a que fosse efectuado qualquer contacto.
Tal versão foi corroborada pela própria secretária ao afirmar peremptoriamente que, após o dia em causa nos autos, advertiu o arguido do modo acima exposto.
Igualmente a justificação apresentada pelo arguido foi reforçada pelo depoimento do encarregado quando o próprio refere que não sabe se o arguido percebeu que o tinha de informar para retomar os trabalhos.
Vale isto por dizer que não há prova nos autos que nesta parte e quanto à intenção do arguido possa contrair a versão e justificação apresentada pelo mesmo.
Com efeito, da prova concatenada no seu conjunto mostram-se suficientemente indiciados os factos supra elencados e não suficientemente indiciados os supra descritos.
Enquadramento Jurídico
Das Finalidades da Instrução
Nos termos do art.º 286º do Código de Processo Penal, a instrução, no caso em apreço, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Para tal, importa aferir se resultam dos autos indícios suficientes de se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena, atento o preceituado no art.º 308º, nº 1 do Código de Processo Penal.
O critério da suficiência de indícios dos factos é o mesmo tanto para a acusação pelo Ministério Público como para a pronúncia, como resulta da remissão do art.308º, nº 2, para o art.º 283º, nºs 2, 3 e 4, do Código Processo Penal.
Devendo considerar-se que há indícios suficientes quando, segundo um juízo de probabilidade, e pela apreciação de toda a prova constante dos autos (cfr. art.s 291º/3 e 298º do Código Processo Penal), resulta uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança, conforme art.s 308º n.º 2 e 283.º, n.º 2 Código Processo Penal.
Nos termos do disposto no art. 308.º, n.º 1, do CPP, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronúncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Como refere o Prof. Figueiredo Dias, a propósito da acusação, "os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável que a sua absolvição" (in Direito Processual Penal, Vol. I, p. 133) ou, ainda como afirma o Prof. Germano Marques da Silva “para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais da ocorrência de um crime, donde se pode formar uma convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido. Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva que negativa;(...)” in Curso de Processo Penal, Vol.III, pág.179.
Assim, a prova produzida em sede de instrução tem natureza meramente indiciária, ou seja, é fundada em sinais, suspeitas, indicações suficientes e bastantes para o convencimento da prática do crime e de quem é o seu responsável.
Finalmente, não se pode perder de vista que a instrução não deve constituir uma mera repetição do inquérito, nem uma antecipação do julgamento, mas sim e apenas uma instância de controle judicial da verificação da existência ou inexistência de indícios suficientes da prática de um crime.
Tendo em conta as finalidades da instrução e delimitado o seu objecto em face da matéria controvertida nesta fase processual, importa determinar se nos autos está suficientemente indiciado que o arguido praticou o crime que lhe é imputado na acusação pública, cumprindo analisar os seus elementos típicos.
Do tipo de Crime de Abuso de Poder
Nos termos do artigo 382º, o funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poder ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa comete o crime de abuso de poder.
O bem jurídico que a norma visa proteger é a autoridade e credibilidade da administração do Estado, nomeadamente ao ser “afectada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços”, incumbindo ao funcionário “actuar no sentido de criar no público confiança na acção da Administração Pública – neste sentido vide Paulo Ribeiro de Faria in Comentário Conimbricense do Código Penal – Tomo III, Coimbra Editora, pág. 774 e 775 e Ac. TRC de 28/09/2011 consultado in www.dgsi.pt.
O tipo objectivo do ilícito para ser preenchido exige o abuso de poderes ou a violação de deveres pelo funcionário por referência, naturalmente, aos “poderes ou deveres inerentes à sua função”, como sejam a utilização de tais poderes para finalidades estranhas ou contrárias à função – vide ob. e Ac. cit..
Quer isto dizer, que serão configuradas como situações de abuso de poder aquelas em que há um desvio de poder preterindo-se o interesse público por interesses e fins particulares, o que em nosso entender não se verifica no caso em apreço.
O agente tem de actuar investido de poderes públicos, “com violação de deveres que sobre si impendem, sacrificando o interesse público” com vista à “satisfação de finalidades ou interesses particulares que se venham a traduzir num benefício ilegítimo para si ou para terceiro ou num prejuízo para outra pessoa”– neste sentido vide ac. TRC de 09/02/2011.
Quando o preenchimento do tipo o é através da violação dos deveres funcionais os mesmos integram os deveres de prossecução do interesse público; isenção; imparcialidade; informação; zelo; obediência; lealdade; dever de correção; dever de assiduidade e dever de pontualidade – cfr. art.º 73º da Lei 35/2014 de 20 de Junho.
Os funcionários de justiça têm os deveres gerais dos funcionários da administração pública, acima referidos, aos quais acrescem, com interesse para os autos, o de colaborar na normalização do serviço, independentemente do lugar que ocupam e da carreira a que pertencem – cfr. art.º 66º do D.L. 343/99 de 26 de agosto que aprovou o Estatuto dos funcionários de Justiça.
Não está factualmente concretizada nem apurada a violação dolosa do dever de lealdade e de contribuição descritos na acusação.
Quanto ao tipo subjectivo preenche-se o mesmo com a conduta dolosa do agente, exigindo a norma o dolo específico, estando aqui afastado o dolo eventual – neste sentido vide ob. cit, pág. 779/780 e Ac. TRC de 27/11/2013 também consultado in www.dgsi.pt.
A este respeito refere o referido acórdão que “ o mau uso dos poderes não resulta de erro ou mau conhecimento dos deveres da função, mas tem que ser determinado por uma intenção específica que enquanto fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal”(sublinhado nosso). Este tipo de ilícito, “está construído de tal forma que certa intenção surge como exigência subjectiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona ou dele se autonomiza (…) o autor persegue um resultado que tem em consideração para a realização do tipo, e deve querer causar com a própria conduta um resultado que vai para além do tipo objectivo (…) atitude interna do agente que constitui a intenção específica” de obter para si o benefício ilegítimo ou de causa prejuízo a outra pessoa – Acórdão cit. e Ac. do STJ aí mencionado.
É face aos elementos constitutivos destes tipos de ilícitos, que importa considerar os elementos probatórios colhidos durante o inquérito e em sede de instrução, por forma a poder concluir pela suficiência ou não de indícios da prática destes crimes pelo arguido (cfr. art.s 291º/2 e 298º do CPP).
Ora, como é bom de ver não resulta da prova carreada suficientemente indiciado essa intenção do agente do crime, ora arguido.
A conduta descrita não é, por isso, subsumível ao ilícito penal supra referido, nem a qualquer outro, pois que exige o tipo legal que a mesma seja dolosa, no caso actuando com dolo específico, não se olvidando aqui o princípio da ultima ratio ou da mínima intervenção do direito penal exigida pelo artigo 18.º, n.º 2 do Constituição da República Portuguesa.
Quer isto dizer que, em abstrato a conduta do arguido poderá quanto muito configurar infracção disciplinar ou mesmo vir ser enquadrada no âmbito da responsabilidade civil aquiliana, o que não é nesta sede susceptível de ser apreciado.
Não há, assim, elementos nos autos de onde se possa extrair a actuação deliberada do arguido, como já acima exposto, quando o próprio encarregado assume que a interrupção dos trabalhos o foi por sua ordem, para realizar um acto necessário ao assegurar do serviço de turno e, bem assim, admite que o arguido não tivesse, sequer, percepcionado a necessidade da informação para o reinício dos trabalhos.
O arguido nega, veemente, a intenção da interrupção dos trabalho por mais que o tempo necessário e a intenção de obter para si o beneficio que não seria legítimo (como seja o simples silêncio), que era o de poder comunicar com os órgão de policia criminal querendo com tal causar prejuízos pelo atraso pela paragem dos trabalhos e atraso na execução da obra.
Em face da descrição dos factos suficientemente não indiciados só se poderá concluir pelo não preenchimento do tipo, nomeadamente, no que ao elemento subjectivo diz respeito.
Tal como o acima exposto, dos elementos carreados em sede de instrução não decorre que o arguido tenha violado os deveres ou o abuso de poderes com a intenção do benefício ilegítimo ou do prejuízo de terceiros, (tendo-se considerados como não suficientemente indiciados tais factos) pois só essa conduta indiciária, em termos fácticos, poderia determinar a pronúncia do arguido.
Não podem ser considerados suficientes os indícios se numa apreciação crítica da prova resulta a convicção de que é mais provável a absolvição em sede de julgamento do que a futura condenação do acusado, como se conclui in casu.
Com efeito, face aos elementos probatórios existentes nos autos e acima analisados, verifica-se que os indícios, que existiam no inquérito e que sustentam a acusação no que tange à conduta do arguido não são suficientes, por referência às finalidades da instrução e foram ainda abalados pela prova produzida em sede de instrução.
Conclui-se, tendo presente os elementos típicos do crime em causa e acima descritos, que não é possível apurar da existência de indícios suficientes da prática pelo arguido Jorge Mendes factos que consubstanciem o crime de Abuso de poder.
Distrate, é de concluir da conjugação de toda a prova que não se justifica a sujeição da causa a julgamento quanto ao arguido, pois que não se entende que resulte da prova carreada e dos indícios existentes uma possibilidade razoável de ao referido arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança, o contrário se inferindo da prova .
Decisão
Em face do supra exposto, ao abrigo do previsto no art. 308º, nº 1 do CPP decido:
a)Não pronunciar o arguido Jorge Manuel Martins Mendes pelo art.º 382º e 386º n.º 1 a) do Código Penal de que foi acusado.»

*

B.2 - O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

A questão abordada no recurso reconduz-se a apurar, unicamente, se deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por despacho que receba a acusação com base no pressuposto de que ocorreu a prática de um crime de abuso de poder.


***

B.3.1 – A apreciação a fazer nestes autos deve incidir sobre duas realidades, uma factual, outra de enquadramento jurídico. Naquela o saber se os factos não indiciados – o preenchiemnto de elementos subjectivos do tipo – merecem uma reversão de apreciação, nesta por seu turno, o saber se a indiciação de elementos objectivos se verifica de forma suficiente e justificativos de nova análise probatória a relegar para a audiência de julgamento.

Na primeira análise - e sendo certo que em se tratando de despacho final em sede de instrução não há que fazer aplicação do disposto no artigo 410º do C.P.P. por apelo a vícios de “sentença” – sempre se dirá que à Digna recorrente incumbia a demonstração do mal fundado do decidido quanto à não pronúncia por inexistência de indiciação suficiente do dolo ou dolos do tipo (não se discutindo, por irrelevância, a exigência de um dolo específico), por apelo à necessidade de fundamentação de qualquer despacho judicial e às exigências de impugnação inerentes a qualquer pretensão recursiva.

Que é como quem diz, não obstante a inexistência de vícios de facto de conhecimento oficioso por não aplicação directa do artigo 410º, n. 2 do código, os vícios de facto são livremente invocáveis, posto que demonstráveis.

Quer-nos parecer que o desiderato – de difícil realização – não foi alcançado pois que o tribunal recorrido limitou-se a fazer uma reanálise de toda a prova produzida na instrução e em inquérito, de forma que nos parece equilibrada e ajustada à acusação deduzida.

Mas com um acréscimo de ilicitude nada favorável à recorrente: é que a inquirição das testemunhas referidas pela recorrente foi realizada não por autoridade judiciária em sede de inquérito, sim por uma entidade administrativa colegial ou colectiva de cariz simplesmnmete administrativo.

Sem o exercício de contraditório e sem que o arguido – ouvido na qualidade de funcionário judicial em “averiguação prévia” e como “declarante” (quando supostamente já existiriam indícios de ilícito) não de arguido em inquérito – pudesse exercer o seu direito de defesa, designadamente o fazer-se acompanhar de advogado nesse procedimento “administrativo” com cariz “quase judicial” e fossem inquiridas testemunhas sem que ao arguido fosse permitido o mesmíssimo exercício do direito de defesa.

Ou seja, incorporou-se um procedimento administrativo oriundo de uma entidade administrativa (órgão de gestão da Comarca) como se de inquérito realizado pelo Ministério Público se tratasse, o que desde logo configuraria uma nulidade de inquérito.

E as razões aduzidas no recurso não permitem concluir que aquela apreciação deva ceder perante a argumentação aduzida. Seguramente que ao tribunal recorrido era permitido dar relevo às declarações do arguido e concluir pela inexistência de dolo.

E não deixar para a audiência de julgamento um juízo sobre os factos se os mesmos já indiciam a possibilidade séria de não condenação. Essas apreciação e conclusão são algo que, mais que permitido ao tribunal recorrido, é um imperativo processual penal e constitucional.

Assim, o argumento constante da conclusão 28ª do recurso, para além de genérica e concretamente inábil para colocar em crise a apreciação probatória efectuada, surge como contrária ao exigível processualmente, pois que dali se pode retirar que se exigia ao tribunal recorrido, na dúvida sobre a existência do dolo e da consciência da ilicitude, deixar os autos passar à fase de audiência de julgamento por ser natural que aquela dúvida prejudique o arguido.

Acresce que a comunicação do Conselho de Gestão referida nas conclusões 20ª, 21ª, 22ª e 27ª, por posterior aos factos, só pode ter uma leitura, a de constituir uma pretensão de rectroagir os seus efeitos a momento anterior aos factos (já que não constitui prova da efectiva existência de comunicação verbal anterior).

Neste ponto cumpre realçar então que nada do motivado permite concluir pela errada apreciação realizada pelo tribunal recorrido quanto ao dolo e consciência da ilicitude.

E assim se conclui neste particular que a apreciação realizada pelo tribunal recorrido quanto ao dolo e consciência da ilicitude se deve manter, por nada a inquinar.


*

B.3.2 – No entanto o tema central é outro.

Mesmo a considerar(em)-se indiciados o(s) dolo(s) e a consciência da ilicitude justificar-se-ia o envio dos autos para julgamento porquanto verificados os elementos objectivos do tipo? Esta a questão a considerar. A resposta parece-nos clara pela negativa.

Desde logo convém notar que o crime imputado contém dois sub-tipos na sua previsão: o “abuso de poderes” e/ou a “violação de deveres inerentes à função”.

E que estamos face a um tipo penal “supletivo” relativamente aos restantes que constam da secção III (“Do abuso de autoridade”) do capítulo IV, do título V do Código Penal (destina-se a “colmatar uma eventual lacunar entre os artigos anteriores”, no dizer do autor do anteprojecto). [1] E que foi definido pelo mesmo autor como um tipo que continha a “punição de um abuso de funções para obter benefícios ou causar prejuízos”. [2]

Ou seja, a simples leitura da norma com apelo aos elementos sistemático e histórico faz realçar a constatação da existência de dois sub-tipos penais – o abuso de funções e a violação de deveres funcionais – e por uma específica intenção de obter benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa.

A jurisprudência já tirada sobre o tema espelha essas mesmas características ou elementos do tipo de crime que não se verificam no caso em apreciação. Assim, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-01-2008 (proc. 07P4279,rel. Cons. Henriques Gaspar).

I - No crime de abuso de poder, que constitui um crime de função e, por isso, um crime próprio, o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede; o crime é integrado, no primeiro limite do perímetro da tipicidade, pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais.
II - Mas o mau uso dos poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, tem antes de ser determinado por uma intenção específica que, enquanto fim ou motivo, faz parte do próprio tipo legal. Esta intenção surge como uma exigência subjectiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona ou dele se autonomiza.
III - A intenção específica é um elemento subjectivo que não pertence ao dolo do tipo, enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, e que se não refere a elementos do tipo objectivo, quebrando a correspondência ou congruência entre o tipo objectivo e subjectivo.
IV - Doutrinalmente chamados crimes de intenção ou de resultado cortado, esta espécie de crimes supõe, para além do dolo de tipo, a intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo legal (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, págs. 329-330).
V - O crime de abuso de poder constitui um dos exemplos desta categoria dogmática. A violação pelo funcionário dos deveres inerentes às funções em que está investido (tenha aqui o significado que tiver) constitui o campo de delimitação da tipicidade. A estrutura do crime no primeiro momento de configuração da acção típica fica integrada pela actuação contrária aos deveres da função. Mas, para além do tipo objectivo, exige-se uma intenção específica, uma intenção que é tipicamente requerida, e que tem por objecto uma factualidade que ainda não pertence ao dolo e já não pertence ao tipo objectivo – a intenção de obter benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa.

E no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-10-2008 (proc. 08P3287 , rel. Cons. Maia Costa) acentua-se: «I - São elementos típicos do crime de abuso de poder p. e p. pelo art. 382.º do CP: o abuso de poderes ou a violação de deveres inerentes ao cargo e a intenção, por parte do agente, de obter um benefício ilegítimo, para si ou para terceiro, ou de causar um prejuízo a outra pessoa.»

O mesmo ocorre no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 09-02-2011 (proc. 2983/06.8TAVIS.C1, rel. Jorge Jacob) quando se afirma que: «2. O crime de abuso de poder pressupõe que o agente, investido de poderes públicos, actue com violação dos deveres funcionais que sobre si impendem, sacrificando o interesse público para satisfação de finalidades ou interesses particulares que se venham a traduzir num benefício ilegítimo para si ou para terceiro ou num prejuízo para outra pessoa

Ora, intenção de obter benefício ilegítimo ou causação de prejuízo a outra pessoa é coisa que se não descortina nos autos. A não ser que se considere um benefício, para mais ilegítimo, a aspiração de trabalhar em silêncio. Por outro lado difícil se torna descortinar um prejudicado, pessoa, com o acto.

Mas – como bem realça a recorrente nas suas conclusões 10ª e 11ª – ao arguido não era reconhecida a qualidade de dono da obra nem ordens suas ao empreiteiro poderiam ser consideradas incluídas nos seus deveres funcionais. Em breve, o arguido não tinha poderes para mandar parar a obra.

Ora, só pode abusar de poderes quem os tem.

Isto é, dispor de poderes funcionais é a base de facto essencial ao exercício abusivo desses mesmos poderes, entendendo-se o “abuso” como um “ir além de”, uma procura de um fim diverso/contrário dos pretendidos pela atribuição de poderes por lei ou estatuto.

Como refere o supra citado aresto do STJ de 23-01-2008, abusar dos poderes de que se dispõe é fazer uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede; (…) pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais (…).

E quais são os poderes de que o arguido dispõe e dispunha?

Segundo o caldeirão que constitui a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho) no seu artigo 73.º, são deveres gerais do trabalhador: a) o dever de prossecução do interesse público; b) o dever de isenção; c) o dever de imparcialidade; d) o dever de informação; e) o dever de zelo; f) o dever de obediência; g) o dever de lealdade; h) o dever de correção; i) o dever de assiduidade; j) o dever de pontualidade.

Acrescem os deveres enquanto funcionário de justiça (artigo 66º do Dec-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto): a) Não fazer declarações ou comentários sobre processos, sem prejuízo da prestação de informações que constituam actos de serviço; b) Colaborar na normalização do serviço, independentemente do lugar que ocupam e da carreira a que pertencem; c) Colaborar na formação de estagiários; d) Frequentar as acções de formação para que sejam convocados; e) Usar capa nas sessões e audiências a que tenham de assistir.

O arguido vem acusado da prática de um crime de abuso de poder, previsto nos arts. 382º e 386º, n.º 1, al. a) do Código Penal, por referência ao art. 66º, n.º 1 e n.º 2, al. b) do Estatuto dos Funcionários de Justiça (DL n.º 343/99, de 26/8) e ao art. 73º, n.º 2, al. g) e n.º 9 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º 35/14, de 20/6).

Deste último diploma respinga-se que é imputada ao arguido a violação do dever de lealdade (Lei n.º 35/2014, de 20/06, artigo 73.º, nº 2, al. g), sendo este (nº 9 do preceito) o desempenhar das funções “com subordinação aos objetivos do órgão ou serviço”.

Do primeiro diploma (Estatuto dos Funcionários de Justiça) retira-se que lhe é imputada a violação do dever de “colaborar na normalização do serviço, independentemente do lugar que ocupam e da carreira a que pertencem”.

Relativamente ao primeiro dever é óbvio que a conduta do arguido o não violou, pois que era sua função cumpri-lo por referência ao órgão tribunal e cumpriu os seus deveres enquanto funcionário do Ministério Público que compareceu ao serviço e agiu para – no seu entender – poder cumprir o seu serviço. Os objectivos do órgão ou serviço – o serviço do Ministério Público de Setúbal – foram devidamente cumpridos pelo arguido. Nem se pretende perder aqui espaço na apreciação de deveres que, no caso, se mostram contraditórios.

Quanto ao segundo – e também quanto ao antecedente, caso se discorde do agora fundamentado – a questão que se coloca é a de saber se basta a simples violação de um dever de funcionário para que se considere preenchido o tipo penal.

Que basta para que se actue o poder disciplinar é caso de simples resposta afirmativa.

Que não basta isso para que se considere preenchido o tipo penal de abuso de poder no segundo sub-tipo penal de “violação de deveres” parece-nos igualmente cristalino.

É que o tipo penal nesta vertente exige a “violação de deveres inerentes às suas funções”.

E as funções do arguido dizem respeito ao cumprimento de obrigações nos serviços do Ministério Público – designadamente processuais, que o arguido cumpriu - e não ao assegurar da conclusão da obra em prazo, matéria da estrita competência do MJ e do órgão de gestão administrativa da comarca de Setúbal.

Competia, pois, a este órgão de gestão a obrigação de assegurar, de forma simples, clara e prévia, as condições de realização e suspensão das obras quando requerido e da forma adequada, com a clara assunção de quem e quando o deveria fazer, normal decorrência dos seus poderes de direção e regulamentação (v.g. os artigos 75º e 76º da Lei n.º 35/14, de 20/6).

Por fim resta esclarecer que o tipo de abuso de poder na sua vertente “violação de deveres inerentes às suas funções” goza naturalmente da subsidariedade de actuação do direito penal, no que isso significa – enquanto derivação do princípio da necessidade contido no artigo 18º da Constituição da República Portuguesa – que a actuação do direito penal só se justifica no caso de insuficiência das restantes áreas normativas, se essas se revelarem incapazes de regular e assegurar a protecção dos valores a tutelar.

E no caso é evidente que se não justifica uma intervenção do direito penal, à luz de tais princípios, já que o valor a proteger – realização da obra em prazo - se mostra devidamente tutelado pelo direito disciplinar.

É claro que o exercício da acção disciplinar na área, sobre funcionários – quer na sua vertente orgânica, quer na sua vertente funcional - tem características próprias que o tornam de difícil compreensão, para dizer o mínimo. Mas a eventual dificuldade e/ou falência desta tutela disciplinar, por seu turno, não justifica transformar o princípio da necessidade em princípio da prioridade penal.

Razões porque, também na vertente objectiva, se não justifica conduzir o arguido a julgamento.


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C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto e em confirmar o douto despacho recorrido.

Notifique. Sem custas.

Évora, 07 de Junho de 2016

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

António Condesso

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[1] - V. g. “Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal - Parte Especial”, AAFDL, 1979, 24ª Sessão, pag. 488.

[2] - Idem, ibidem.