Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1886/19.0T8LLE.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: AUTORIDADE DO CASO JULGADO
EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O meio processual adequado à modificação de decisão transitada em julgado é o recurso extraordinário de revisão, desde que fundamentado em alguma das circunstâncias legalmente previstas, não podendo a parte vencida em anterior processo com decisão transitada em julgado obter, através de nova acção, um efeito útil que se traduza em decisão diversa da anterior.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
(…)
Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Execução de Loulé, foi proferido despacho de indeferimento liminar da execução com processo sumário que (…) e (…) instauram contra Município de Castro Marim, para pagamento da quantia de € 9.568,00.

Inconformados, os exequentes recorrem e concluem:
1- Os presentes autos constituem “processo sumário executivo onde não cabe a produção de despacho liminar, a não ser que o solicite o Exm.º Agente de Execução, o que no presente caso não sucedeu.
2- A data da produção do despacho 10-07-2019, proferido após conclusão apresentada nos autos, sem qualquer outra menção ou justificação, o executado já se mostrava citado (09-07-2019).
3- Nos embargos deduzidos pelo executado, este aceita ser de cumprir parcialmente a obrigação.
4- O presente despacho, constitui acto processual nulo (JUIZ SEM PODERES) nos precisos termos do artº 195º do C.P.C., sendo ineficaz e de nenhum efeito e como tal deve ser declarado.
5- Uma sentença judicial conforme a dos autos, aqui reproduzida existe sempre como título, contrariamente ao consignado no despacho, por ser certa e em princípio exigível.
6- O Município executado foi condenado ao pagamento de uma sanção compulsória de € 50,00 por cada dia em que o mesmo Município não cumprisse com o devido, que era a entrega do imóvel aos exequentes.
7- Tendo o executado entregue o imóvel apenas em 22-05-2018, deve pagar o valor devido contado em dias após o trânsito da sentença, que ocorreu em 18-11-2017, o que totaliza o valor de € 9.200,00, pertencendo 50% ao Estado e leais acréscimos, conforme disposto no artº 829º-A, nº 1 e 3 do C.C., e o restante aos exequentes
É que,
8- A obrigação de entrega nunca foi por qualquer meio extinta, e apenas se consumou em 22-05-2018.
9- Uma transacção não revoga, nem extingue nunca, os efeitos de uma sentença judicial.
10- Os exequentes em momento alguma desistiram do recebimento e pagamento do valor devido da sanção compulsória, como até dos outros danos sofridos e já referidos nos autos, entre os quais os danos não patrimoniais.
11- Uma sentença é certa e exigível, sendo apenas discutível, o cumprimento das obrigações na mesma prescritas.
12- A sanção compulsória constitui uma forma coerciva privada de coagir o devedor desta.
13- O devedor executado, foi advertido solenemente, e não cumpriu, até a última, com o sentenciado.
14- Numa transacção, a fonte de litígio é o acto de vontade das partes, e não a sentença homologatória, e só vincula terceiros que na mesma tenha tido intervenção. Ora,
15- No caso nem o M.º Público, nem os exequentes alguma vez desistiram do valor devido pelo não cumprimento, judicialmente fixado.
16- O comportamento do executado, jamais prestigiou a justiça e o respeito pelas decisões judiciais que nunca teve, motivos pelos quais têm de pagar o valor fixado da sanção compulsória.
17- Donde deve ser revogado o despacho impugnado por nulidade do acto, ou e sempre porque contrariamente ao consignado, o título que é uma sentença judicial é exigível, nos termos legais.
18- O aliás douto despacho sob recurso, violou além do mais o disposto nos artº 829º-A, nº 1 e 3, do C.C. e artigos 195º, 703º, nº 1, 726º, nº 1 e 2, alínea a), 719º, nº 1, 723º e 855º, todos do C.P.C.

Não foi oferecida resposta.
Para melhor decisão do caso, solicitou-se o acompanhamento electrónico e procedeu-se à consulta do Proc. 2682/15.0T8LLE e respectivo apenso A, que opôs as partes no mesmo Juízo de Execução de Loulé.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Os factos relevantes para a decisão são os seguintes:
1- Correu termos sob o n.º 76/08.2TBVRS, no Tribunal Judicial de Vila Real de Santo António, acção ordinária proposta pelos exequentes contra a executada, na qual foi proferida em 10.05.2012 sentença contendo o seguinte dispositivo:
“I – Reconhece-se que o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial é da legítima propriedade dos autores;
II – Reconhece-se que o réu ocupou nesse prédio, ilicitamente, uma área de 1180 metros quadrados, construindo uma praça pública em pedra branca e cinzenta – e arrancando, para o efeito, duas figueiras de grande porte, conforme documentam os levantamentos topográficos juntos à petição inicial como documentos números 6 e 7;
III – Condena-se o réu a restituir aos autores o imóvel, livre e desocupado, no seu estado primitivo, desfazendo para o efeito a obra por si realizada nesse terreno;”
2- Interposto recurso, o Tribunal da Relação de Évora confirmou a referida sentença por Acórdão de 05.06.2014, transitado em julgado.
3- Em 30.06.2015, os exequentes instauraram execução da referida sentença, a qual tomou o n.º 2682/15.0T8LLE no Juízo de Execução de Loulé, pedindo a entrega do imóvel, a demolição da obra ali construída e a fixação de sanção pecuniária compulsória.
4- Instaurados embargos pelo executado Município de Castro Marim, que correram por apenso à supra referida execução (apenso A), em 11.07.2017 foi ali proferida sentença, transitada em julgado, contendo o seguinte dispositivo:
“a) Julgar os presentes embargos de executado parcialmente improcedentes, e, em consequência:
b) Ordenar o prosseguimento da acção executiva para prestação de facto, fixando à Exequente o prazo de 45 dias para proceder à entrega aos Executados da parte do prédio ocupada no seu estado primitivo, demolindo e desfazendo a praça pública – estacionamento, arruamento e poços de lixo – no mesmo edificada;
c) Fixar a sanção pecuniária compulsória de cinquenta euros diários, por cada dia que passe, desde o termo do referido prazo de 45 dias, sem que a Executada cumpra o determinado em b);
d) Não apreciar, por não ser o momento processual adequado, o pedido de indemnização formulado pelos Exequentes relativamente à não prestação do facto pela Exequente na acção executiva;”
5- Em 20.02.2018, exequentes e executado apresentaram requerimento conjunto, solicitando a homologação de transacção pela qual colocavam termo ao litígio, nos seguintes termos:
“1 – O Município executado obriga-se ao pagamento aos exequentes da importância de € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros) a título de preço do prédio dos autos, obrigando-se os exequentes a vender-lhe este prédio por aquele preço.
2 – A escritura que titulará a aquisição prometida no n.º 1 e o pagamento do preço ocorrerão no prazo de 30 dias a contar da data da subscrição desta transacção, cabendo ao executado avisar os exequentes para essa celebração com antecedência não inferior a cinco dias.
3 – Ficam a cargo do executado os honorários e encargos que forem devidos à agente de execução dos autos.
4 – As custas ainda em divida a juízo serão de conta do executado, mas os exequentes prescindem das suas custas de parte, no que for disponível.”
6- Por decisão de 04.04.2018, foi homologada a transacção e julgada extinta a execução.
7- Por escritura de 22.05.2018, o imóvel foi vendido pelos exequentes ao executado, pelo preço de € 140.000,00.
8- Em requerimento de 06.06.2018, os exequentes requereram na execução supra identificada a notificação do executado para “pagamento do valor referente à sanção pecuniária fixada nos autos pela não entrega e cumprimento da sentença de 11/07/2017, no apenso à presente execução, após trânsito da mesma em 3-10-2017, e prazo fixado de 45 dias para o efeito, terminando em 18-11-2017, e até 22-05-2018, data da posse ilícita de términus do incumprimento por parte do executado e assim no montante de 9.200,00 (Nove mil e duzentos euros)”.
9- O executado respondeu, requerendo o indeferimento desta pretensão, e os exequentes voltaram a insistir na mesma, em requerimento de 25.06.2018.
10- Em 31.10.2018 foi proferido o seguinte despacho na execução supra identificada:
“Com a transacção junta aos autos (refªs. 5290529 e 5290818), as partes puseram fim ao litígio, conforme sentença de homologação (ref.ª 109009659), já transitada em julgado, que, condenando e absolvendo nos precisos termos acordados, julgou extinta a acção executiva.
Do objecto da transacção consta apenas o pagamento da quantia de € 140.000,00 pelo executado aos exequentes, não estando prevista qualquer sanção pecuniária compulsória pelo atraso naquela prestação ou em qualquer outra.
Como tal, não tem cabimento, nestes autos, o pedido de notificação do executado para liquidar o montante devido a título de sanção pecuniária compulsória; porquanto extravasa o objecto da transacção que pôs fim ao litígio.
Razão, pela qual, se indefere.”
11- Notificado às partes, o referido despacho transitou em julgado.
12- Em 05.11.2018 o agente de execução declarou extinta a execução supra identificada.
13- Em 14.06.2019, os exequentes instauraram a presente execução, enumerando os seguintes factos:
“Pagamento do débito decorrente da indemnização devida pela ocupação que a executada fez do imóvel identificado na sentença em execução de 11-07-2017, transitada em julgado, e referente à sanção pecuniária compulsória de € 50,00 (cinquenta euros), por cada dia que passou, desde o prazo de 45 dias fixado na mesma sentença do Apenso A desse mesmo processo (Proc. Nº 2682/15.0T8LLE-A – Doc. nº 3) sem que a executada Câmara Municipal tivesse cumprido a sentença dos autos principais, e que determinou a entrega do imóvel também aí identificado aos exequentes (Doc. nº 1, 2, 3, 4, 5 e 6).
O prazo do trânsito da referida sentença e do prazo fixado de 45 dias terminou a 18-11-2017, donde tem a exequente direito a receber o valor de € 9.200,00 (nove mil e duzentos euros) correspondente ao valor total da sanção compulsória decorrente dos dias que vão da referida data de 18-11-2017, até 22-05-2018, data da entrega do imóvel aos exequentes, tudo, apesar de conforme resulta dos autos, nesse mesmo dia os mesmos terem vendido o imóvel ao Município executado. Ora o Município executado face ao exposto, nada pagou e recusa-se a fazê-lo apesar da interpelação que os exequentes lhe fizeram nos termos da carta que lhes enviaram em 07-12-2018, conforme cópia dos respectivos registos e aviso de recepção, mas a executada, nem os seus representantes nada disseram (Doc. nº 1, 7 e 8).
E não se presume que o queiram fazer.
Daí a dedução da presente execução para cobrança da dívida de € 9.200,00.
Acrescem os juros legais devidos desde 22-05-2018 até integral pagamento.
Tais juros totalizam em 22-05-2019 a importância de € 368,00.
O total da divida exequenda é assim de € 9.200,00 + € 368,00 = € 9.568,00 (nove mil e quinhentos e sessenta e oito euros).”

Aplicando o Direito.
Da excepção de caso julgado
Na anterior execução, as partes celebraram transacção mediante a qual acordaram na venda ao executado do imóvel reivindicado, sendo tal acto homologado judicialmente. A venda veio a concretizar-se, mas os exequentes pretenderam que a execução continuasse para pagamento da quantia de € 9.200,00, a título de sanção pecuniária compulsória que entendiam estar em dívida e não ter sido abrangida pela transacção celebrada entre as partes.
Certo é que esta pretensão foi indeferida, pelo despacho de 31.10.2018, transitado em julgado, com o argumento da sanção pecuniária compulsória extravasar o objecto da transacção.
Ora, o instituto do caso julgado material deve ser encarado quer na perspectiva da excepção de caso julgado, quer na perspectiva da autoridade do caso julgado. O prestígio das instituições judiciárias, reportado à coerência das decisões que os Tribunais proferem, o princípio da economia processual e o objectivo de estabilidade e certeza das relações jurídicas, exigem que se reconheça a eficácia do caso julgado à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável do julgado.[1]
De resto, o Supremo Tribunal de Justiça vem adoptando um critério moderador do rígido princípio restritivo dos limites objectivos do caso julgado, entendendo que a eficácia do caso julgado da sentença não se estende a todos os motivos da mesma, mas abrange as questões preliminares que constituíram as premissas necessárias e indispensáveis à prolação da parte injuntiva, contanto que se verifiquem os outros pressupostos do caso julgado material, abrangendo, pois, todas as excepções aí suscitadas por imperativo legal e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor, solução que permite evitar a incoerência dos julgamentos, respeita os princípios da justiça e da estabilidade das relações jurídicas, propicia a economia processual e corresponde ao alcance do caso julgado contido no art. 621.º do Código de Processo Civil.[2]
Pois bem, na execução anterior foi expressamente afirmado que os exequentes não podiam pedir o pagamento da sanção pecuniária compulsória, pois a questão estava consumida pela transacção celebrada, e tal questão constituiu a premissa essencial da decisão tomada em 31.10.2018. A autoridade de caso julgado imposta por essa decisão determina a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a mesma questão.
Se os exequentes se mostram inconformados com esse resultado, o meio processual adequado à modificação de decisão transitada em julgado é o recurso extraordinário de revisão, desde que fundamentado em alguma das circunstâncias taxativamente elencadas no art. 696.º do Código de Processo Civil, não podendo a parte vencida em anterior processo com decisão transitada em julgado obter, através de nova acção, um efeito útil que se traduza em decisão diversa da anterior.[3]

Argumentam os exequentes, ainda, que o despacho é nulo, pois o processo não comporta despacho liminar. Erradamente o fazem, pois à execução sumária são aplicáveis subsidiariamente as disposições do processo ordinário de execução – artigo 551.º, n.º 3, do Código de Processo Civil – onde se conta a possibilidade do juiz, oficiosamente, conhecer das questões que poderiam ter determinado o indeferimento liminar, se o agente de execução tivesse suscitado a sua intervenção – artigo 734.º, n.º 1, do mesmo diploma.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelos exequentes.
Évora, 21 de Novembro de 2019
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
__________________________________________________
[1] Neste sentido, cfr. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, 3.ª ed., pág. 202, afirmando o seguinte: “A nós afigura-se-nos, ponderadas as vantagens e os inconvenientes das duas teses em presença, que a economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportado à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidos por aquele critério ecléctico, que sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.”
[2] Mais recentemente, vide os Acórdãos do Supremo de 26.03.2015, de 07.05.2015 e de 16.02.2016, proferidos nos Procs. 1847/08.5TVLSB.L1.S1, 15698/04.2YYLSB-C.L1.S1 e 53/14.4TBPTB-A.G1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] Cfr. o Acórdão da Relação de Coimbra de 06.09.2011 (Proc. 816/09.2TBAGD.C1), sempre na mesma base de dados.