Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2560/13.7TBPTM-E.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 03/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A presunção legal estabelecida no n.º 3 do art.º 186.º CIRE, limita-se a um juízo de culpa e não a um nexo de causalidade entre a conduta culposa e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2560/13.7TBPTM-E.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…), Sociedade Imobiliária, S.A. foi declarada insolvente por sentença proferida em 16.09.2013, transitada em julgado, na qual foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno.
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Aberto o presente incidente, o Administrador da insolvência veio apresentar o seu parecer e requereu a qualificação da insolvência como fortuita.
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O Ministério Público emitiu parecer e requereu a qualificação da insolvência como culposa, propondo que sejam por esta afectados os administradores da devedora/insolvente, (…), (…) e (…).
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Foi ordenada a notificação da Insolvente e a citação dos indicados como propostos afectados pela qualificação da insolvência como culposa, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 188º, n.º 6, do CIRE.
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A Insolvente e os propostos afectados pela qualificação da insolvência como culposa – (…), (…) e (…) – deduziram oposição.
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Foi realizada audiência de discussão e julgamento após o que foi proferida sentença que qualificou a insolvência como culposa e:
a) Declarou afectados pela qualificação (…), (…) e (…);
b) Declarou (…), (…) e (…) inibidos, pelo período de 3 (três) anos, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c) Determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por (…), (…) e (…);
d) Condenou (…), (…) e (…) a indemnizar os credores da sociedade (…), Sociedade Imobiliária, S.A. no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património, a efectuar em liquidação de sentença.
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Desta sentença recorrem (…), Sociedade Imobiliária, S.A. e (…), defendendo que a insolvência deve ser qualificada como fortuita.
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O Digno Magistrado do M-º P.º contra-alegou.
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Os recursos têm por objecto a impugnação da matéria de facto bem como o nexo de causalidade entre a conduta dos gerentes, melhor dizendo, do gerente recorrente, e a insolvência.
Pretendem ambos os recorrentes que os factos dados por não provados sob os números 5, 6, 9, 10, 11 e 12 sejam provados.
Os dois primeiros referem-se à elaboração das contas de 2011 e 2012:
5) Pelo menos desde o ano de 2011, não foram elaborados os relatórios de gestão, as contas dos exercícios e demais documentos de prestação de contas.
6) As contas relativas ao exercício de 2012 nunca foram elaboradas.
Tratam-se de factos negativos sem que os recorrentes indiquem o que, afinal, querem ver provado. Parece-nos, até, que dar estes factos por provados os prejudica mais do que ajuda.
Assim, mantêm-se não provados
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Os demais factos são os seguintes:
9) Devido à falta de investidores, a insolvente celebrou contratos de mediação imobiliária, com vista à promoção e venda do projeto.
10) A insolvente tinha como único propósito a transmissão do imóvel ou melhor a transmissão do projeto, chegando a ter uma oferta concreta de € 23.000.000,00 (vinte e três milhões de euros) com o grupo (…).
11) A insolvente não se apresentou à insolvência porque os accionistas continuavam a procurar activamente investidores para o projecto.
12) Continuaram activamente empenhados na procura activa de novos investidores, tendo tal como se afirmou o ora oponente feito várias reuniões com o objetivo da venda do projeto, e por fim assinou contratos de mediação imobiliária com vista á promoção do projeto, o que demonstra que o seu propósito sempre foi esse nunca tendo o oponente papel ativo nesta procura.
Em relação aos dois últimos factos, concordamos com a sentença. Além de a descrição ser demasiado vaga (como procuraram, quem procuraram, houve recusas e com que fundamento, etc.?), entendemos que a prova não concretiza a ideia (e é só uma ideia) que se pretende fazer passar. Em bom rigor, não vemos sequer prova para tanto.
E o mesmo se dirá a respeito dos demais factos. Também aqui não existe qualquer prova para além de umas considerações genéricas sobra a crise financeira mas que em nada se refere a projectos concretos de revitalização.
Assim, nada se altera.
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A matéria de facto é a seguinte:
1. (…), Sociedade Imobiliária, S.A., pessoa colectiva n.º (…), com sede na Praça da (…), nº 15, 1º, Lagoa, foi declarada insolvente por sentença proferida em 16.09.2013, transitada em julgado.
2. A declaração de insolvência foi requerida pelo (…) Bank em 04.07.2013.
3. A Insolvente tinha por objecto social a compra e venda de prédios urbanos, rústicos, mistos e lotes de terreno, administração, arrendamento ou exploração de bens próprios ou alheios, construção, urbanização e promoção de imóveis, aquisição, negociação e venda de participações em sociedades com o mesmo objecto social, bem como negócios directamente ligados ao objecto principal, podendo, ainda, dedicar-se a outras actividades comerciais ou industriais complementares ou afins destas.
4. A insolvente quando foi constituída sempre teve por único objectivo a prossecução do projeto de investimento turístico.
5. No quadriénio de 2011/2014 o Conselho de Administração da insolvente era constituído por (…), (…) e (…).
6. (…) é considerado perante o requerente da insolvente e Administrador da insolvência como o administrador de facto da insolvente.
7. No final do exercício de 2011, a insolvente apresentava um passivo no valor de 2.743.106,27 euros e um capital próprio no valor de 4.009,58 euros.
8. No final do exercício de 2012, a insolvente apresentava um passivo no valor de 1.547.761,76 euros e um capital próprio no valor de 9.123,88 euros.
9. A sociedade não exercia à data da declaração da insolvência qualquer actividade lucrativa.
10. A contabilidade da insolvente não reflecte quaisquer fluxos decorrentes da exploração do prédio rústico, único activo patrimonial da insolvente.
11. Pelo menos desde o final do mês de Novembro de 2012, a insolvente deixou de cumprir as suas obrigações para com os credores.
12. As contas de 2011 e de 2012 não foram depositadas na Conservatória do Registo Comercial.
13. O administrador da insolvente (…), apesar de lhe ter sido solicitado pessoalmente pelo Administrador da Insolvência, não lhe entregou até à presente data os elementos de contabilidade.
14. O projeto da insolvente era composto por uma unidade hoteleira, com campos de golfe, restaurante e habitações de luxo e foram feitas várias diligências junto das várias entidades ligadas ao turismo, representantes da autarquia e junto dos bancos.
15. O Projeto da insolvente teve parecer favorável do Ministério do Ambiente.
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O problema jurídico colocado nas alegações refere-se ao nexo de causalidade entre a conduta negligente dos gerentes e a insolvência, no sentido de que de tal conduta é causa da situação de insolvência.
O art.º 186.º do CIRE estabelece uma definição de insolvência culposa e, para tal, estabelece as presunções mínimas para se chegar a tal conclusão.
Ela é culposa quando «a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores» (n.º 1). De seguida, a lei expõe situações que obrigam a concluir pelo carácter culposo da insolvência e situações que implicam (mas não obrigam) concluir que existe culpa grave dos administradores (n.º 2 e n.º 3).
Nenhum destes preceitos contém a presunção de um nexo de causalidade entre a conduta gravemente culposa e a situação de insolvência daí resultante; pelo contrário, e conforme é jurisprudência dominante (aliás, citada na sentença recorrida, a p. 10) este nexo de causalidade não está abrangido pela presunção (e devemos ter em conta que o n.º 1 refere expressamente um nexo de causalidade).
O sentido literal é o que está melhor descrito no ac. da Relação de Coimbra, de 28 de Maio de 2013, processo n.º 102/12.0TBFAG-B.C1, no ponto n.º 3 do seu sumário.
Com efeito, se o n.º 2 estabelece um elenco de situações objectivas de insolvência culposa (e que não admitem prova do contrário), já o n.º 3 estabelece apenas uma presunção de culpa na actuação de determinadas pessoas, actuação esta, aliás, que o preceito descreve.
Abstractamente, este sentido literal pode não ser suficiente para ligar completamente a actuação culposa ao seu consequente resultado danoso. Com efeito, o resultado de uma acção negligente (real ou presumida) é sempre um resultado danoso, não desejado. Isto porque se o comportamento fosse o devido, o dano não aconteceria. É, pois, indissociável, da presunção de culpa a ligação entre a violação do dever e o resultado que esta violação cria – o que não significa, desde logo, que estejamos perante uma presunção.
No caso de os deveres estarem suficientemente concretizados e individualizados (deveres contratuais ou estatutários), o comportamento culposo tem a consequência inexorável da causação de danos. O devedor que não cumpre culposamente, pelo simples facto do incumprimento, causa um dano – pelo menos, aquele que consiste em a prestação devida não ter sido realizada. Eventualmente, mais de que uma presunção, poder-se-ia falar aqui de uma inferência.
Mas se isto é assim em termos abstractos, o certo é que esta abstração tem de ser completada por factos que permitam a ligação objectiva e concreta entre as duas realidades (o comportamento culposo e o dano). E aqui é que exercem a sua função as presunções legais. A lei pode, naturalmente, estabelecer uma presunção entre uma conduta culposa e o dano (por exemplo, o art.º 492.º Cód. Civil), de forma a permitir uma imediata ligação entre os dois termos. Ponto, no entanto, é que tal presunção seja estabelecida por lei. No nosso caso, não temos qualquer coisa deste género; a presunção estabelecida no art.º 186.º, n.º 3, CIRE, esgota-se no seu próprio conteúdo: o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência é culposo da mesma forma que o é o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais. Mas para além disto a lei não retira qualquer consequência, designadamente, a fixação do nexo de causalidade entre as condutas culposas descritas no n.º 3 e a criação da situação de insolvência.
O Digno Magistrado do M.º P.º contra-alega que que o n.º 3 consagra «presunções de causalidade fundamentante e que o risco do não esclarecimento do evento causador da insolvência desloca-se para o administrador da sociedade, isto é, será ele que terá que vir provar por que é que aquilo correu mal ou não lhe é imputável»; conclui, assim, que a prova do nexo de causalidade é dispensada.
Salvo o devido respeito, não encontramos apoio legal para estas afirmações; em nenhum dos preceitos em análise existe uma presunção de causalidade, sendo certo que, como meio de prova que é (cfr. art.º 349.º, Cód. Civil), não seria difícil ao legislador estabelecê-la.
Mas não o fez.
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No nosso cado concreto, a sentença nada diz sobre isto (não obstante a citação de jurisprudência cima indicada), nada diz sobre a conduta culposa e a criação ou agravamento da situação de insolvência (são estes os termos do art.º 186.º, n.º 1) dela resultante.
Concluímos, assim, que não ocorrem os pressupostos para declarar a insolvência como culposa nem para, em função disto, aplicar as medidas indicadas no art.º 189.º, n.º 2, CIRE.
Nesta medida, os recursos da insolvente e do seu gerente (…) são procedentes.
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Pelo exposto, julgam-se procedentes os recursos e revoga-se a sentença recorrida na parte em que declarou a insolvência culposa e aplicou ao recorrente (…) as medidas do art.º 189.º, n.º 2, CIRE.
Sem custas.
Évora, 14 de Março de 2018
Paulo Amaral
Rosa Barroso
Francisco Matos

Sumário:
A presunção legal estabelecida no n.º 3 do art.º 186.º CIRE, limita-se a um juízo de culpa e não a um nexo de causalidade entre a conduta culposa e a criação ou agravamento da situação de insolvência.