Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3238/14.0TBSTB-A.E1
Relator: SILVA RATO
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ILEGITIMIDADE
Data do Acordão: 03/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não precisa de ser intentada contra ambos os cônjuges a providência cautelar em que se pede a entrega judicial de bem imóvel, locado ao cônjuge-mulher para o exercício de actividade comercial, porquanto se não subsume tal situação à "perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos".
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Proc. N.º 3238/14.0TBSTB-A
Apelação
Comarca de Setúbal (Setúbal-IC-SC-J3)
Recorrente: (…)
Recorrido: Caixa (…) – Instituição Financeira de Crédito, SA
R22.2015

I. Caixa (…) – Instituição Financeira de Crédito, SA., requereu, nos termos do Dec.-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, com alteração pelos Dec.-Lei nº 265/97, de 2 de Outubro e Dec.-Lei n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro, o presente Procedimento Cautelar de Entrega Judicial contra (…), pedindo que se ordene a imediata entrega judicial à Requerente da fracção autónoma designada pela letra “N” do prédio urbano que corresponde ao rés-do-chão direito lateral para estabelecimento comercial do prédio urbano sito em Quinta do (…), (…), Rua (…), n.º 2, freguesia de (…), concelho de (…) e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob a ficha n.º (…) da freguesia de (…), inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…) da referida freguesia.
Alegou para o efeito, em síntese, que no exercício da sua actividade comercial, a Requerente celebrou com a Requerida o contrato de locação financeira imobiliário n.º (…), em 19 de Abril de 2005, pelo prazo de 180 meses, tendo a requerida se obrigado ao pagamento de cento e oitenta rendas mensais no valor de € 901,40.
Mais alegou que a Requerida não cumpriu com as suas obrigações decorrentes do referido contrato, não tendo pago as rendas vencidas a 10-05-2014, 10-06-2014, 10-07-2014, 10-08-2014, 10-09-2014 e 10-10-2014 e que a Requerente por carta registada com aviso de recepção datada de 05 de Agosto de 2014, interpelou a requerida para que procedesse ao pagamento das rendas em atraso.
Alegou por fim que em consequência da manutenção do incumprimento e do não pagamento das rendas, a requerente usando da faculdade prevista em 14.ª das Condições Gerais, veio a resolver, por carta registada com aviso de recepção datada de 13 de Outubro de 2014, o contrato de locação financeira, tendo já requerido à Conservatória do Registo Predial o cancelamento do registo de locação financeira averbado em nome da Requerida.

A Requerida deduziu Oposição ao presente Procedimento Cautelar, alegando para o efeito que não é verdade que tenha deixado de pagar as importâncias referidas, no documento junto sob o n.º 3, sendo falso que deva as rendas, juros e demais importâncias.
Mais alegando que é igualmente falso tudo que com base nele foi alegado no requerimento inicial.
Invocou ainda a sua ilegitimidade para ser demandada sem ser igualmente demandado o seu cônjuge, uma vez que no locado foi instalado um estabelecimento comercial pertença de ambos.

Proferido despacho saneador, foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade arguida pela Requerida.

Efectuado julgamento foi proferida sentença, em que, foi decidido o seguinte:
Pelo exposto, defere-se o requerido no presente procedimento cautelar, ordenando a apreensão e entrega ao requerente do imóvel correspondente à fracção autónoma designada pela letra “N” do prédio urbano que corresponde ao rés-do-chão direito lateral para estabelecimento comercial do prédio urbano sito em (…), (…), Rua (…), n.º 2, freguesia de (…), concelho de Setúbal e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob a ficha n.º (…) da freguesia de (…), inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…) da referida freguesia.
Condena-se ainda a Requerida como litigante de má-fé em multa que se fixa em 3 UC.
Custas pela requerida – art.º 539º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Fixo à providência o valor de € 110.000,00 – art.º 306º, 298º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique”.

Inconformada com tal decisão e com o despacho saneador, na parte que declarou improcedente a excepção de ilegitimidade da Requerida, veio esta interpor recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões:
1ª Nos termos dos comandos legais constantes dos n.ºs 1 e 3 do art. 34 º do NCPC, devem ser propostas contra ambos os cônjuges as acções de que possa resultar a perda de bens que só por ambos possam ser alienados.
2ª Por sua vez, a alínea b) do n º 1 do art. 1682º-A do CC impõe a intervenção de ambos os cônjuges na alienação de estabelecimento comercial.
3ª A procedência da providência implicará necessariamente a perda do local de funcionamento do estabelecimento comercial e, por consequência, a perda do próprio estabelecimento que é, lógica e juridicamente, indissociável do local,
Daí,
4ª A inevitável conclusão de que a recorrente é parte ilegítima por a acção ter sido proposta exclusivamente contra ela, constando do contrato de locação financeira a sua qualidade de casada.
5ª A douta decisão recorrida violou, pelo menos, as seguintes disposições legais: n ºs 1 e 3 do art. 34 º do NCPC e alínea b) do n º 1 do art. 1862º-A do CC.
Por outro lado,
6ª É nula a douta decisão recorrida por não se ter pronunciado sobre a inversão do contencioso, ou antecipação do juízo sobre a causa principal, apesar de expressamente requerida, com violação do disposto na alínea d) do n º 1 do art. 615 º do NCPC, nulidade que deve ser arguida no presente recurso conforme estabelece a parte final do n º 4 do mesmo art. do NCPC.
7ª A questão reveste particular importância por dela depender a iniciativa da propositura da causa principal.
Termos em que,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso, com revogação da decisão recorrida e improcedência da providência cautelar por ilegitimidade passiva ou, se assim não se entender, deve ser declarada nula a douta decisão recorrida, com as consequências legais daí resultantes.
...”

Cumpre decidir.

II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual:
1 - A Requerente é uma instituição de crédito que se dedica, entre outras, à concessão de crédito;
2 - Entre a requerente e a requerida (…) foi celebrado em 19/04/2005 um Contrato de Locação Financeira Imobiliária, nos termos do qual a requerente cedeu à requerida, em regime de Locação Financeira, a fracção designada pela letra “N” do prédio urbano que corresponde ao rés-do-chão direito lateral para estabelecimento comercial do prédio urbano sito em (…), (…), Rua (…), n.º 2, freguesia de (…), concelho de Setúbal e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob a ficha n.º (…) da freguesia de (…), inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…) da referida freguesia;
3 - O prazo acordado para o referido Contrato era de 180 meses a ser pago em 180 rendas mensais, no valor de 901,40 euros;
4 - A requerida não pagou as rendas vencidas em 10-05-2014, 10-06-2014, 10-07-2014, 10-08-2014, 10-09-2014 e 10-10-2014;
5 - A requerente enviou uma carta registada com aviso de recepção à requerida datada de 5/08/2014, interpelando-a para pagar as supra referidas rendas no montante global de 1.742,57 euros acrescida de juros de mora à taxa contratualmente prevista no prazo de 30 dias;
6 - A requerente enviou uma carta registada com aviso de recepção à requerida datada de 13 de Outubro de 2014, considerando o contrato resolvido com a consequente entrega imediata do imóvel locado;
7 - Nos termos contratados e legais, foi efectuado o registo do encargo da Locação Financeira junto da respectiva Conservatória, cujo cancelamento já foi previamente requerido e efectuado;
8 - Não obstante a falta de pagamento das rendas acordadas e consequente incumprimento definitivo do Contrato, o imóvel não foi entregue à requerente.

III. Nos termos do disposto nos art.ºs 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, ambos do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 608º do mesmo Código.

A questão a decidir resume-se, pois, a saber se o Tribunal “a quo”:
a) Se procede a alegada excepção de ilegitimidade da Requerida;
b) Se a sentença é nula por não se ter pronunciado sobre a inversão do contencioso, nos termos do art.º 369º do CPC.

Respeita a primeira questão, à questão da ilegitimidade da Requerida para estar por si só em juízo, desacompanhada do seu cônjuge.
Nos termos do art.º 34º do NCPC, sob a epígrafe “Acções que têm que ser propostas por ambos ou contra ambos os cônjuges”, estabelece-se o quadro das acções em que é necessário haver litisconsórcio activo ou passivo de ambos os cônjuges.
No que ao caso interessa, estabelece o n.º 3 do preceito, quanto à necessidade de litisconsórcio passivo de ambos os cônjuges, que devem ser propostas contra ambos os cônjuges, para além do mais, “as acções compreendidas no n.º 1, ou seja “as acções de que possa resultar a perda ou a oneração de que bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as acções que tenham por objecto, directa ou indirectamente, a casa de morada de família”.
Trata-se, no caso em apreço, de Procedimento Cautelar para entrega judicial de bem da Requerente, locado à Requerida para o exercício de actividade comercial, pelo que a questão se resume a saber se esta situação se subsume à “perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos”.
Chamando à colação o disposto no artigo 1682º-A do Código Civil – invocado pela Recorrente para sustentar a sua tese –, que regula a alienação ou oneração de imóveis e de estabelecimento comercial, em particular do seu n.º 1, alínea b) que estipula que carece de consentimento de ambos os cônjuges a alienação, oneração ou locação de estabelecimento comercial, próprio ou comum, conclui-se que tal preceito não é aplicável ao caso em apreço, uma vez que, como acima se disse, trata-se da entrega judicial de um bem imóvel, pertença da Requerente, que o locou à Requerida, para o exercício de comércio, e não à locação, oneração ou alienação de estabelecimento comercial pertença de um ou de ambos os cônjuges, que aliás tem perfeita autonomia em relação ao prédio locado.
Improcede assim, nesta parte o presente recurso.

Quanto à segunda questão, parece a Recorrente desconhecer o disposto no n.º 7 do art.º 21º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, que dispõe que “Decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, …”, o que significa que no presente Procedimento Cautelar, só após a decisão do Procedimento, o Tribunal ouve as partes e decide sobre a causa principal.
Pelo que o Tribunal “a quo” não tinha que proferir decisão sobre a causa principal, aquando da decisão do Procedimento Cautelar.
Improcede assim a arguida nulidade.

Face ao exposto, improcede o presente recurso.

***

IV. Decisão
Pelo acima exposto, decide-se pela improcedência do recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.
Registe e notifique.

Évora, 26 de Março de 2015
Silva Rato
Assunção Raimundo
Abrantes Mendes