Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5373/21.9T8STB-A.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL DO TRABALHO
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Finda a relação laboral, na sequência de um acordo extrajudicial celebrado com o objectivo de obter determinada devolução, o Tribunal do Trabalho carece de competência material para conhecer de acção, com fundamento jurídico no enriquecimento sem causa, em que se pretende que o Réu seja condenado a restituir-lhe determinada quantia que, por erro dos seus serviços ou engano provocado, lhe teria sido indevidamente paga.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 5373/21.9T8STB-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal– Juízo Central de Competência Cível de Setúbal – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente acção declarativa de condenação proposta por “(…) – Importação e Distribuição de (…) e (…), Unipessoal, Lda.” contra (…), o Réu não se conformou com a decisão que julgou improcedente a excepção de incompetência material do Tribunal a quo.
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O Autor pediu a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de € 42.229,36, acrescida dos respectivos juros legais na quantia de € 8.219,11 e dos demais vincendos, a título de enriquecimento sem causa e, subsidiariamente, com base na falta de pagamento da obrigação contratual.
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A parte activa invoca que, na sequência de uma auditoria interna, foi celebrado um acordo para o pagamento de uma verba indevidamente apropriada e que o Réu se comprometeu a devolver o referido montante no prazo de 4 anos, não o tendo feito.
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Devidamente citado, o Réu apresentou contestação, defendendo, além do mais, a incompetência absoluta do Tribunal, conforme dispõe a alínea a) do artigo 96.º do Código de Processo Civil, por se tratar de um crédito relacionado com uma relação de trabalho subordinado.
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O Autor apresentou articulado de resposta.
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Em sede de audiência prévia, o Juízo Central de Competência Cível de Setúbal concluiu pela improcedência da excepção de incompetência material invocada.
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O recorrente não se conformou com a referida decisão e apresentou alegações que continham as seguintes conclusões:
«I. O Despacho de que se recorre, datado de 15/06/2022, propugna o entendimento que a relação jurídica trazida a juízo pela Recorrida, não obstante se fundar em alegados processamentos salariais e pagamentos de retribuições em excesso e num suposto acordo de pagamento desses valores, deveria ser retirada do contexto dessa relação laboral em que se insere e deveria ser analisada apenas parcelarmente, como se se tratasse de um suposto crédito comum.
II. Ora a própria Recorrida intentou a presente ação nos Juízos Centrais Cíveis de Setúbal confessando judicialmente de forma expressa que pretende ver declarado um pretenso crédito emergente da relação laboral que manteve com o Recorrente, não se mostrando alegados quaisquer outros factos relativos a qualquer outra relação que pudesse ter sido mantida entre as partes.
III. Tanto assim é que, para além da confissão, até pretende efetuar uma pretensa compensação quanto aos créditos laborais que o Recorrido se viu obrigado a demandar judicialmente e que, em primeira instância, já lhe foram reconhecidos nos autos que correm termos sob o n.º 5797/21.1T8STB no Juízo de Trabalho de Setúbal – Juiz 1.
IV. A alínea b) do n.º 1 do artigo 126.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário é inequívoca, competindo aos Juízos de Trabalho conhecer, em matéria cível, nomeadamente, “Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado…”, o que não pode deixar de significar que estando perante questões que respeitam a direitos e deveres recíprocos daqueles que foram partes numa relação laboral, a entidade patronal, ora Recorrida e o seu ex-trabalhador, ora Recorrido, pelo que a situação em apreço é da exclusiva competência dos Juízos de Trabalho (nesse sentido, inter alia, o Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 08/11/1995, relatado pelo Juiz Conselheiro Cortez Neves (Processo n.º 003812, in dgsi.pt) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04/06/2013, relatado pelo Juiz Desembargador Jaime Ferreira (Processo n.º 13/13.2TJCBR.C1, in dgsi.pt)).
V. Uma vez que na ordem jurídica interna a competência é aferida, designadamente, em razão da matéria, conforme dispõe o n.º 2 do artigo 60.º do Código de Processo Civil, que articulado com o artigo 65.º daquele diploma e com a citada alínea b) do n.º 1 do artigo 126.º da LOSJ, o Despacho do Tribunal a quo violou a aplicação conjugada desta normas com o disposto na alínea a) do artigo 96.º, bem como a alínea a) do artigo 577.º, conjugado com os n.ºs 1 e 2 do artigo 576.º, estes, todos do CPC.
VI. As normas que se enunciaram e que mostram violadas, deveriam ter sido interpretadas pelo Tribunal no sentido de declarar o Juízo Central Cível de Setúbal materialmente incompetente para conhecer do presente litígio, o que determina a incompetência absoluta do Tribunal, porquanto tal facto constitui uma exceção dilatória que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância quanto ao ora Recorrido, conforme resulta das disposições já referidas.
Nestes termos e nos mais de Direito se requer, com os fundamentos constantes das Conclusões formuladas, seja revogado o Despacho Saneador de 15/06/2022, sendo considerada procedente por provada a exceção de incompetência absoluta invocada pelo ora Recorrente, absolvendo-o da instância, resultando assim revogado todo o restante conteúdo, assim se fazendo sã, serena e objetiva Justiça».
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A sociedade recorrida não apresentou resposta.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da excepção de competência em razão da matéria.
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III – Matéria de facto:
Os factos interesse para a justa resolução da causa são aqueles que constam do relatório inicial.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Da incompetência em razão da matéria:
O n.º 1 do artigo 211.º da Constituição da República Portuguesa postula que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
São assim tradicionalmente da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, como decorre do artigo 64.º do Código de Processo Civil e do artigo 40.º[1] da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).
A competência dos Juízos de Trabalho encontra-se provisionada no artigo 126.º[2] da Lei de Organização do Sistema Judiciário.
A regra precipitada no artigo 96.º do Código de Processo Civil determina a incompetência absoluta do Tribunal nos casos de infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional.
Ao abrigo deste dispositivo vinga a solução que, mesmo que não suscitada em momento anterior, a violação das regras de competência em razão da matéria que respeitem a Tribunais de outras ordens de jurisdição pode ser suscitada enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.
A respeito da oportunidade da arguição ou do conhecimento oficioso, como sublinham Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, «estabelece-se, atenta a gravidade das infracções em causa, que podem ter lugar em qualquer estado do processo, seja em 1ª instância seja em instância de recurso, enquanto não houver sentença de mérito transitada em julgado»[3].
Sobre esta temática pronunciam-se também Anselmo de Castro[4], Manuel Andrade[5], Castro Mendes[6] e Antunes Varela[7], entre outros.
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O Tribunal de Conflitos tem vindo a editar jurisprudência no sentido que constitui entendimento pacífico que a competência em razão da matéria do Tribunal se afere pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo Autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respectivos fundamentos (causa de pedir)[8] [9].
A decisão recorrida afirma que a relação jurídica em causa, não obstante se fundar em alegados processamentos salariais e pagamentos de retribuições em excesso e num suposto acordo de pagamento desses valores, deve tramitada pelos Tribunais Comuns por se tratar de um crédito comum.
A Meritíssima Juíza de Direito formulou o raciocínio que «não sendo peticionado o pagamento de créditos laborais, mas invocando a Autora o pagamento de uma quantia que o Réu fez sua, sabendo não lhe pertencer e que depois de reconhecida a dívida por parte do mesmo, celebrou um acordo de pagamento e nunca o cumpriu» e firmou o entendimento que se estava perante matéria da área cível.
Em contraponto, o recorrente advoga que se está perante um cenário que respeita a direitos e deveres recíprocos daqueles que foram partes numa relação laboral, a entidade patronal, ora Recorrida e o seu ex-trabalhador, ora Recorrido. E, na sua visão, a situação em apreço é da exclusiva competência dos Juízos de Trabalho, por força do disposto na alínea b) do artigo 126.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário.
Estamos perante uma transacção[10] cuja fonte é de natureza obrigacional e em que não estão em causa questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho, na perspectiva dimensionada pela Lei de Organização do Sistema Judiciário e pelas processuais adjectivas aplicáveis.
Em acréscimo, a título incidental, em sede de apresentação de defesa, não é colocada qualquer questão relacionada com a validade ou a vigência de tal acordo que se mostre associada ao eventual abuso ou qualquer patologia contratual resultante dessa prévia relação laboral por parte da anterior entidade trabalhadora.
Assim, a matéria controvertida entre as partes destina-se tão só a apreciar a existência de uma dívida relacionada com a celebração de uma obrigação de restituição de verbas indevidamente recebidas ou apropriadas. Na verdade, o alegado pagamento indevido não visa, na actualidade, o cumprimento de qualquer direito, obrigação ou ónus de natureza laboral.
Nesta acepção, finda a relação laboral, na sequência de um acordo extrajudicial celebrado com o objectivo de obter determinada devolução, o Tribunal do Trabalho carece de competência material para conhecer de acção, com fundamento jurídico no enriquecimento sem causa, em que se pretende que o Réu seja condenado a restituir-lhe determinada quantia que, por erro dos seus serviços ou engano provocado, lhe teria sido indevidamente paga[11].
Quanto ao argumentário da compensação, na estrita dimensão da competência material, enquanto causa de extinção das obrigações, a mesma tanto pode ser exercitada na jurisdição comum como nos Tribunais do Trabalho, não decorrendo dessa alternativa qualquer prejuízo relevante para o Réu.
Neste contexto, julga-se improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente, atento o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 12/01/2023
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Isabel Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Alves Simões


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[1] Artigo 40.º (Competência em razão da matéria)
1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada.
[2] Artigo 126.º (Competência cível):
1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível:
a) Das questões relativas à anulação e interpretação dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho que não revistam natureza administrativa;
b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;
c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;
d) Das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efetuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais;
e) Das ações destinadas a anular os atos e contratos celebrados por quaisquer entidades responsáveis com o fim de se eximirem ao cumprimento de obrigações resultantes da aplicação da legislação sindical ou do trabalho;
f) Das questões emergentes de contratos equiparados por lei aos de trabalho;
g) Das questões emergentes de contratos de aprendizagem e de tirocínio;
h) Das questões entre trabalhadores ao serviço da mesma entidade, a respeito de direitos e obrigações que resultem de atos praticados em comum na execução das suas relações de trabalho ou que resultem de ato ilícito praticado por um deles na execução do serviço e por motivo deste, ressalvada a competência dos tribunais criminais quanto à responsabilidade civil conexa com a criminal;
i) Das questões entre instituições de previdência ou de abono de família e seus beneficiários, quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros, sem prejuízo da competência própria dos tribunais administrativos e fiscais;
j) Das questões entre associações sindicais e sócios ou pessoas por eles representados, ou afetados por decisões suas, quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de uns ou de outros;
k) Dos processos destinados à liquidação e partilha de bens de instituições de previdência ou de associações sindicais, quando não haja disposição legal em contrário;
l) Das questões entre instituições de previdência ou entre associações sindicais, a respeito da existência, extensão ou qualidade de poderes ou deveres legais, regulamentares ou estatutários de um deles que afete o outro;
m) Das execuções fundadas nas suas decisões ou noutros títulos executivos, ressalvada a competência atribuída a outros tribunais;
n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente;
o) Das questões reconvencionais que com a ação tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão;
p) Das questões cíveis relativas à greve;
q) Das questões entre comissões de trabalhadores e as respetivas comissões coordenadoras, a empresa ou trabalhadores desta;
r) De todas questões relativas ao controlo da legalidade da constituição, dos estatutos e respetivas alterações, do funcionamento e da extinção das associações sindicais, associações de empregadores e comissões de trabalhadores;
s) Das demais questões que por lei lhes sejam atribuídas.
2 - Compete ainda aos juízos do trabalho julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação nos domínios laboral e da segurança social.
[3] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 201.
[4] Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Declaratório, vol. II, Almedina, Coimbra, 1982, pág. 77.
[5] Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1976, pág. 105, assinala que «a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes (qualquer delas) e deve ser suscitada ex-oficio pelo Tribunal (artigo 102.º); pode sê-lo a todo o tempo – enquanto durar o processo – ou pelo menos (quando seja de menor transcendência a norma infringida) dentro dum largo prazo».
[6] João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. I, AAFDL, Lisboa, págs. 562-567.
[7] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra 1985, pág. 229, que referem que quanto ao tempo de arguição «a incompetência absoluta pode ser arguida ou conhecida ex officio em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença transitada sobre o fundo da causa (…). Pode, por conseguinte, ser arguida ou suscitada pela primeira vez, tanto na 1ª instância, como na 2ª instância ou até em tribunal de revista».
[8] Acórdão do Tribunal de Conflitos processo n.º 047/14, de 30/10/2014.
[9] No mesmo sentido podem ser consultados os Acórdãos do Tribunal dos Conflitos: de 21/10/04 proferido no Conflito n.º 8/04; de 23/5/2013, Conflito n.º 12/12 e de 21/1/2014, Conflito n.º 44/13.
[10] Artigo 1248.º (Noção)
1. Transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões.
2. As concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido.
[11] Neste sentido, pode ser consultado o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03/05/2010, consultável em www.dgsi.pt.